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Comentário ao artigo Da natureza à cultura: o problema da proibição do incesto na antropologia de Rousseau

O artigo de Bandera (2021BANDERA, M. Dela. Da natureza à cultura: o problema da proibição do incesto na antropologia de Rousseau. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 1, p. 293-312, 2021.) trata do tema da proibição do incesto em Rousseau e procura estabelecer um vínculo entre tal aspecto da antropologia rousseauista e o pensamento de Lévi-Strauss, que enxerga nessa proibição a passagem da natureza para a cultura. A conclusão de Bandera é que, apesar de não ser uma questão central em Rousseau, como é em Lévi-Strauss, a proibição do incesto “[...] marca o instante fundador da cultura” Segundo Bandera (2021BANDERA, M. Dela. Da natureza à cultura: o problema da proibição do incesto na antropologia de Rousseau. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 1, p. 293-312, 2021., p. 308), na medida em que conduz à transição da endogamia para a exogamia, do simples agrupamento para a sociedade, na qual as línguas se desenvolvem e as relações interpessoais passam a ser regidas por normas, aspecto fundamental no estabelecimento da cultura, para Lévi-Strauss. Segundo Bandera (2021BANDERA, M. Dela. Da natureza à cultura: o problema da proibição do incesto na antropologia de Rousseau. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 1, p. 293-312, 2021., p. 308), a proibição do incesto representa, em Rousseau, “[...] a fenda que separa natureza e cultura”, ou seja, a mesma conclusão a que chegaria o antropólogo, dois séculos depois. Desse modo, mesmo que a proibição do incesto seja um tema tratado muito rapidamente pelo genebrino, seu papel seria o mesmo daquele atribuído pelo autor das Estruturas elementares do parentesco.

Fazendo tal leitura do pensamento antropológico de Rousseau, uma questão emerge quase que espontaneamente: por que Rousseau não teria, então, se referido à proibição do incesto em outras obras (além da nota inserida no Ensaio sobre a origem das línguas), se esse evento desempenha um papel tão decisivo e fundamental para a humanidade? Inclino-me a responder, um tanto contrário ao artigo de Bandera, que não podemos ver, em Rousseau, a proibição do incesto como o grande evento, na sua história hipotética, o qual definiria a “fenda” entre natureza e cultura. E pode-se até mesmo questionar sobre a existência de qualquer outro evento que poderia ser apontado como definidor singular da passagem da natureza para a cultura, do físico para a moral. Defendo tal entendimento, não apenas pela ausência do desenvolvimento do tema da proibição do incesto, em outras obras de Rousseau, mas, igualmente, pela forma como os textos apresentam o processo de desnaturação do homem.

Quando Rousseau se refere ao afastamento do homem de seu estado natural, evoca-se, frequentemente, a ideia de um longo processo de formação desse conjunto de construções humanas que denominamos cultura. Os eventos vão se sucedendo, de acordo com as circunstâncias; e não existe nada necessário, vale lembrar, no desenrolar dos acontecimentos, na história hipotética vislumbrada por Rousseau, assim como parece não existir um episódio específico que seria o marco inaugurador da cultura. Evidentemente, há acontecimentos essenciais para o estabelecimento da humanidade, tais como a convivência estável em família, o desenvolvimento da linguagem e das artes (agricultura e metalurgia), as primeiras noções de justiça etc. Entretanto, torna-se problemática qualquer tentativa de escolher um, dentre estes, para definir a passagem entre natureza e cultura.

Tomemos dois episódios fundamentais para o surgimento do mundo cultural: o estabelecimento das primeiras famílias e o nascimento da palavra. No Ensaio sobre a origem das línguas, Rousseau (1998ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas. Tradução de Fulvia Moretto. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1998., p. 147) afirma que o fato de o homem tornar-se social é um evento tão decisivo para a humanidade quanto a inclinação do eixo do globo: “Com esse leve movimento vejo transformar-se a face da Terra e ser decidida a vocação do gênero humano”. Ainda no Ensaio, podemos ler, logo na primeira frase, que “A palavra distingue o homem dentre os animais.” (ROUSSEAU, 1998ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas. Tradução de Fulvia Moretto. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1998., p. 109).

Se entendermos o primeiro como o evento primordial que permitiu que o homem, lentamente, se distanciasse da natureza, e o segundo como um momento no qual o homem já se encontra um tanto afastado de seu estado natural, tendo em vista que a palavra o distingue dentre os animais, como citado acima, podemos, então, analisar se, para Rousseau (1998ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas. Tradução de Fulvia Moretto. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1998.), o intervalo entre esses dois eventos seria apenas uma elaboração da organização intelectual e social que levaria ao grande momento de transição entre natureza e cultura, definido pelo aparecimento das línguas na reunião entre diferentes famílias? Ou se todo esse intervalo poderia ser entendido como um contínuo processo de desnaturação, cujo resultado marcaria a efetivação de uma transição que teria se iniciado com a saída do isolamento do homem natural e, dessa forma, a transição poderia ser encontrada na sucessão de uma multidão de eventos? O que diferencia esses dois entendimentos é justamente essa localização do momento de partida da transição entre natureza e cultura, assim como a existência, ou não, de um evento específico que marque a ruptura entre ambas. Tal análise nos levaria a uma possível resposta, em termos rousseauistas, do questionamento de Lévi-Strauss (2009LÉVI-STRAUSS, Claude. Natureza e cultura. In: As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 39-48.): “Onde acaba a natureza? Onde começa a cultura?”

Conforme já mencionado anteriormente, a forma como Rousseau trata a saída do homem do seu estado de natureza é sempre através de um longo e demorado processo de novas aquisições. Logo no início da primeira parte do Discurso da desigualdade, nosso autor assevera que “[...] todas as faculdades artificiais” do homem só puderam ser adquiridas “[...] por meio de progressos muito longos.” (ROUSSEAU, 1964ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité. In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1964. p.109-223. (Pléiade, III)., p.134). Mais adiante, a faculdade de aperfeiçoar-se, a perfectibilidade, é exposta como aquela que “[...] através dos séculos desabrochem [nos homens] suas luzes e seus erros, seus vícios e virtudes, o torna com o tempo tirano de si mesmo e da natureza”. (ROUSSEAU, 1964ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité. In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1964. p.109-223. (Pléiade, III)., p.142). A respeito da capacidade de reproduzir o fogo, Rousseau declara: “Quantos séculos talvez tenham decorrido antes de chegarem os homens à altura de ver outro fogo que não o do céu. Quantos acasos não lhe foram necessários para aprender os usos mais comuns desse elemento!” (ROUSSEAU, 1964ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité. In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1964. p.109-223. (Pléiade, III)., p. 144).

Já no final da primeira parte, observa-se que o desenvolvimento das faculdades humanas precisa “ [...] do concurso fortuito de inúmeras causas estranhas.” (ROUSSEAU, 1964ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité. In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1964. p.109-223. (Pléiade, III)., p. 162). Enfim, numa etapa mais avançada, quando do surgimento da ideia de propriedade, a noção permanece de uma “[...] lenta sucessão de acontecimentos [...], pois essa ideia de propriedade, dependendo de muitas ideias anteriores que só poderiam ter nascidos sucessivamente, não se formou repentinamente no espírito humano.” (ROUSSEAU, 1964ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité. In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1964. p.109-223. (Pléiade, III)., p. 164). As passagens mencionadas acima procuram mostrar a forma como Rousseau percebe a enorme “[...] distância entre as puras sensações [do homem natural] e os mais simples conhecimentos” (ROUSSEAU, 1964ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité. In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1964. p.109-223. (Pléiade, III)., p. 144), distância que pode ser entendida no seu sentido cronológico mesmo, tal como Rousseau alude aos rudimentos das línguas, que custaram “trabalhos inimagináveis” e um “tempo infinito”, que “[...] foram precisos milhares de anos para sucessivamente desenvolverem-se no espírito humano as operações de que era capaz.” (ROUSSEAU, 1964ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité. In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1964. p.109-223. (Pléiade, III)., p. 146).

Para Rousseau (1964ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité. In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1964. p.109-223. (Pléiade, III)., p. 146), a primeira dificuldade, ao se examinar a origem das línguas, refere-se à questão de “como elas puderam tornar-se necessárias”, tendo em vista o “[...] espaço imenso que, com certeza, existiu entre o puro estado de natureza e a necessidade de línguas” (ROUSSEAU, 1964ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité. In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1964. p.109-223. (Pléiade, III)., p. 147), enfim, “[...] a palavra parece ter sido muito necessária para estabelecer-se o uso da palavra.” (ROUSSEAU, 1964ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité. In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1964. p.109-223. (Pléiade, III)., p. 148-9). De acordo com o artigo de Bandera (2021BANDERA, M. Dela. Da natureza à cultura: o problema da proibição do incesto na antropologia de Rousseau. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 1, p. 293-312, 2021.), essa necessidade do uso da palavra estaria ligada à passagem da endogamia para a exogamia, através da proibição do incesto, uma lei que “[...] não é menos sagrada por ser de instituição humana” (ROUSSEAU, 1998ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas. Tradução de Fulvia Moretto. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1998., p. 196), a qual terminaria por engendrar, segundo Bandera, uma ligação moral entre as famílias.

Sobre as necessidades e impulsos que favoreceram a formação dos “primeiros laços de famílias” e dos “primeiros encontros entre os dois sexos”, em Rousseau, Bandera menciona a necessidade de água e os consequentes encontros nos poços e fontes. Lembra, igualmente, a comparação despertada pelos novos objetos apresentados em tais encontros: “Lá olhos acostumados desde a infância a ver os mesmos objetos começaram a ver outros mais agradáveis. O coração animou-se diante desses novos objetos, uma atração desconhecida tornou-o menos selvagem, ele sentiu o prazer de não estar só.” (ROUSSEAU, 1998ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas. Tradução de Fulvia Moretto. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1998., p. 152). Em outra passagem, pouco mais adiante, Rousseau conclui: “[...] nos terrenos férteis, foi necessário todo ardor das paixões agradáveis para começar a fazer com que os habitantes falassem”; assim, as primeiras línguas, nessas regiões, são “filhas do prazer e não da necessidade” (ROUSSEAU, 1998ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas. Tradução de Fulvia Moretto. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1998., p. 154).

Seguindo esse raciocínio de Rousseau, e considerando a nota do Ensaio referente à proibição do incesto, não vejo relação causal entre a proibição do incesto e a reunião de diferentes famílias. A meu ver, para Rousseau, não é a proibição do incesto que promove os laços entre as diferentes famílias, mas, primeiramente, o consequente encontro prazeroso entre os sexos, o desejo despertado pelos novos objetos, e não a proibição de se casar com aqueles com quem já se estava habituado, pois estes últimos não os atraíam. Dessa forma, não haveria, até aqui, a necessidade de proibir algo que não atraía os jovens solteiros, num momento em que as paixões voluptuosas os impulsionavam justamente para fora do seio familiar. Pode-se supor que tal proibição deva ter ocorrido num outro momento posterior e, nesse sentido, vale lembrar que a referida nota do Ensaio assinala que o casamento entre irmãos “[...] se perpetuou sem inconvenientes [...] mesmo depois da reunião dos povos mais antigos.” (ROUSSEAU, 1998ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas. Tradução de Fulvia Moretto. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1998., p. 196).

Importante mencionar também que, quando Rousseau se refere às origens das línguas entre habitantes das frias regiões do Norte, a questão da proibição do incesto não é levada em conta, e a origem das línguas é atribuída às grandes dificuldades, nessas regiões, em “[...] prover a própria subsistência” (1998, p. 156). Entre os povos do Norte, as línguas são “tristes filhas” (ROUSSEAU, 1998ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas. Tradução de Fulvia Moretto. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1998., p. 155) das necessidades físicas: “[...] o contínuo perigo de morte não permitia que os homens se limitassem à linguagem dos gestos e a primeira palavra entre eles não foi amai-me, mas sim ajudai-me.” (ROUSSEAU, 1998ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas. Tradução de Fulvia Moretto. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1998., p. 156). Vemos, dessa forma, uma diferença significativa nas narrativas sobre as origens das línguas entre os povos do Sul e os do Norte, o que torna um pouco mais problemática a leitura sugerida por Bandera (2021BANDERA, M. Dela. Da natureza à cultura: o problema da proibição do incesto na antropologia de Rousseau. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 1, p. 293-312, 2021.).

Enfim, tal como exposto acima, considero difícil encontrar na proibição do incesto “[...] o momento que se pode localizar a fenda que separa natureza e cultura”, como afirma Bandera (2021BANDERA, M. Dela. Da natureza à cultura: o problema da proibição do incesto na antropologia de Rousseau. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 1, p. 293-312, 2021., p. 308), por dois motivos. Primeiro, por desconfiar da existência de um único evento específico como grande motivador dessa ruptura, a qual evidentemente existe, mas que, a meu ver, foi construída através da longa sucessão de inúmeros acontecimentos. Segundo, por entender que, mesmo na passagem em que Rousseau se refere à proibição do incesto, esse evento não pode ser visto, da forma como é exposto no Ensaio, como a causa do estabelecimento dos primeiros laços entre diferentes famílias, ou seja, não foi a norma (a proibição do incesto) que promoveu o surgimento dos primeiros povos e o desenvolvimento das línguas.

Referências

  • BANDERA, M. Dela. Da natureza à cultura: o problema da proibição do incesto na antropologia de Rousseau. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 1, p. 293-312, 2021.
  • LÉVI-STRAUSS, Claude. Natureza e cultura. In: As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 39-48.
  • ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité. In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1964. p.109-223. (Pléiade, III).
  • ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas. Tradução de Fulvia Moretto. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1998.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    14 Out 2020
  • Aceito
    16 Out 2020
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