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Apresentação

O dossiê ora apresentado, intitulado “Filosofias do Sul: entre a África e a América Latina”, tem uma origem certa: Maputo, dezembro de 2019. Um dos editores do dossiê, Luca Bussotti, foi visitar o amigo e colega Severino Ngoenha, Reitor da Universidade Técnica de Moçambique. Severino entregou dois livros a Luca: o Manifesto por uma terceira via, escrito com outro filósofo moçambicano, José Castiano, e Lomuku, o primeiro estudo por ele publicado sobre a sociedade civil de Moçambique, de que os dois haviam falado, ao longo da sua redação. A obra fora lançada naquele mesmo mês, que antecedeu a eclosão da pandemia de COVID-19, no anfiteatro da Universidade Técnica de Moçambique.

O Manifesto é um pamphleto repleto de conteúdos e significados, não apenas para Moçambique, mas para o pensamento africano no geral. Foi assim que, mediante um texto sobre a interpretação desse livro, proposto à revista Trans/Form/Ação, os dois editores entraram em contato. O artigo despertou de imediato o interesse do editor responsável da revista, Marcos Antonio Alves, dando início a um diálogo em torno da possibilidade de pensar num dossiê sobre a filosofia africana ou, no geral, as filosofias do Sul.

Em princípio, o evento que garantiria os textos para este número especial da revista deveria ser constituído pela III Conferência sobre Ativismo em África, organizado pelo Instituto de África (agora confluído no Centro de Estudos Avançados) da UFPE, a partir do painel dedicado ao pensamento africano. Entretanto, por conta da pandemia, o evento sofreu uma procrastinação. Diante disso, resolveu-se lançar uma chamada aberta de artigos para este dossiê, desvinculando-o assim da dita Conferência, a qual acabou acontecendo em 2021, com a presença de autores participantes do encontro.

A escolha deu certo. Foram recebidas quase quarenta submissões, das quais foram aprovados vinte textos, mais uma entrevista, por meio do processo de revisão de pares duplo-cega, seguindo os trâmites avaliativos normais da revista. O número conspícuo de artigos publicados representa o espelho fiel da demanda existente em volta das filosofias do Sul, a partir do pensamento africano, afro-brasileiro e latino-americano. A filosofia, hoje mais do que nunca, necessita extrapolar sua turris eburnea de busca por certezas metafísicas e debates abstratos, geralmente caraterizados pelo seu eterno eurocentrismo. É mister avançar cada vez mais na abordagem de questões concretas e prementes, as quais podem ser resumidas nas tentativas, diversificadas e múltiplas, de compreensão de processos complexos e ainda pouco conhecidos, em volta de realidades que precisam ser investigadas com comprometimento e já não com o olhar de longe de um observador desencantado. Este era um dos objetivos da chamada aberta para este Dossiê.

Tal visão de transformação das fronteiras e perspectivas do pensamento filosófico, coerentemente com a própria denominação desta revista, foi compartilhada pelo seu editor, juntamente com a Coordenadoria África do Centro de Estudos Avançados da UFPE, recém-constituído, e nomeadamente com o então vice coordenador, Remo Mutzenberg, e a coordenadora, Luíza Nascimento dos Reis. A entrevista que abre o dossiê é com ela, representando um elemento simbólico de uma acadêmica negra que faz o incipit de um número especial de uma revista de filosofia.

Os estudos sobre movimentos sociais e de protesto no Sul Global, e nomeadamente em África e em América Latina, se multiplicaram ao longo dos últimos anos, devido, essencialmente, ao seu protagonismo, que levou a mudanças significativas, quer em termos de obtenção de novos direitos, quer na arena política. Entretanto, o que prevaleceu foi uma aproximação epistemológica baseada em pesquisas empíricas, ainda muitas vezes centradas no pensamento oceidental do Hemisfério Norte. Percebemos ainda a carência, na maioria dos casos, de uma reflexão mais profunda sobre os elementos ontológicos da sociedade civil africana e latino-americana no seu todo. Inquietações sobre a sua natureza, o que é que ela pretende, para que ela atua, que tipo de princípios éticos e políticos ela propõe, quais seus limites e desafios são apenas algumas das questões que uma reflexão filosófica deveria trazer à tona, indo além do estudo meramente descritivo da mesma.

Num constante diálogo com as outras disciplinas das humanidades, este número da revista Trans/Form/Ação buscou incentivar a submissão de artigos sobre sociedade civil e movimentos sociais no Sul Global, com referência especial aos casos africanos e latino-americanos, inclusivamente no diálogo que estes conseguiram estabelecer, em consideração dos muitos elementos comuns às duas áreas geográficas. Tentando uma autonomia de pensamento, desafiamos a construção de textos que visam compreender os elementos dialéticos e dialógicos entre espaços de originalidade de filosofias e modos de vida centrados em tradições epistemológicas típicas da cultura africana, tais como o Ubuntu, a Razão Negra ou práticas tradicionais ou comunitárias, assim como na tradição pós-colonial latino-americana, que desaguou em várias correntes de pensamento, ainda hoje atuais. Os artigos aprovados trazem reflexões centradas em abordagens filosóficas pós-coloniais, relativas ao continente africano assim como à diáspora e aos desafios similares enfrentados pelos países latino americanos, capazes de propor modelos de pensamento e de existência que partam da necessidade de uma mudança do paradigma atual, a que a sociedade civil poderá contribuir sobremaneira.

Os textos presentes no dossiê constituem a expressão de perspectivas, sensibilidades, linhas de pesquisa diferenciadas, classificáveis consoante quatro orientações principais, que representam as subdivisões internas ao dossiê: filosofia africana, pensamento afro-brasileiro, filosofia latino-americana e filosofia brasileira. O elemento comum a todos os textos é constituído pelo anseio em quebrar prejuízos e o desejo em querer construir pontes de conhecimento mútuo. Uma tentativa não simples, mas que, julgamos, tenha sido bem-sucedida, na expectativa de andar ao encontro dos interesses dos leitores.

Este número especial inicia-se, pois, com uma entrevista a Luíza Nascimento dos Reis (Universidade Federal de Pernambuco). Ela faz um excursus dos seus estudos em volta das pontes afro-brasileiras, traçando o caminho de intelectuais negros que estiveram em África, entre as décadas de 1960 até 1980, enfatizando, internamente, o papel do Centro de Estudos Afro-Orientais, fundado em 1959 na Universidade Federal da Bahia. Nesse passeio entre figuras de destaque da cultura e academia africana e afro-brasileira, a entrevistada recorda seus trabalhos sobre Wole Soyinka, escritor nigeriano Prêmio Nobel da Literatura, em 1986, que Luíza tem estudado e tornado conhecido, no Brasil.

Depois da entrevista de abertura, o dossiê publica uma seção intitulada Filosofia Africana, constituída de quatro textos. O primeiro texto dessa parte, de autoria de Alex Sander da Silva (Universidade do Extremo Sul Catarinense, Santa Catarina) e Christian Muleka Mwewa (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Mato Grosso do Sul), “Notas de um pensamento da circulação e da travessia em Achile Mbembe”, aborda aspetos do pensamento desse importante filósofo camaronês. Refletindo sobre o “devir negro” formulado por Achile Mbembe, o artigo procura compreender a inserção e a recepção da lógica capitalista, em África e no mundo. A conclusão é de que é preciso afirmar-se “negro”, para sair do esquema colonial que ainda está permeando o neoliberal africano.

Em seguida, vem o texto de autoria do filósofo e antropólogo italiano, Marzio Gatti (Instituto Superior Santo Agostinho, Pavia, Itália), e se debruça sobre “La decostruzione della visione eurocentrica. Il contributo dell’antropologia culturale e filosofica nel pensiero africano sulla religione”, em continuidade com as pesquisas realizadas por parte desse autor, acerca do imbricamento entre religião, filosofia e pensamento africano. Nesse caso específico, Gatti procura descontruir os fundamentos do pensamento filosófico e antropológico ocidental, que sempre se têm apresentado como o único possível, dentro de um quadro dominado pelo paradigma economicista. O pensamento filosófico e antropológico africano, segundo o autor, representa uma tentativa bem-sucedida de superar tal monopólio, mobilizando determinados autores, tais como Malinowski, Boas, Temples e, mais à frente, Asante, com o seu Afrocentrismo.

Os últimos dois artigos dessa parte dizem respeito a uma realidade específica do contexto africano: Moçambique. No primeiro, a filósofa e estudiosa em direitos humanos de Moçambique, Laura António Nhaueleque (moçambicana, Universidade Aberta de Lisboa e Universidade Técnica de Moçambique), apresenta “A Etnomatemática entre conhecimento subalterno e epistemicídio. O caso de Moçambique”, onde desenvolve uma interessante reflexão a propósito do epistemicídio dos saberes locais, tendo como base a questão da etnomatemática. Depois de ter analisado os elementos epistemológicos, passa a ilustrar a contribuição de Paulus Gerdes, cientista holandês-moçambicano, na aplicação dos princípios da etnomatemática no Moçambique independente. Apesar do interesse do governo, ao longo dos primeiros anos, a etnomatemática, no contexto moçambicano, acabou desaparecendo rapidamente do horizonte educacional e epistemológico local, em seguida à abertura ao neoliberalismo e à subsequente uniformização dos saberes, inclusive o científico e o matemático.

Finalmente, o outro texto remetendo a Moçambique, fechando a parte sobre Filosofia Africana, é de autoria de Luca Bussotti (italiano e moçambicano, Universidade Federal de Pernambuco), intitulado “Um Manifesto para Moçambique: a Terceira Via de Ngoenha e Castiano”, dois entre os filósofos moçambicanos e africanos mais destacados dos nossos dias. O Manifesto, segundo o autor, visa a encontrar uma modalidade diferente de pensar e praticar a comunidade moçambicana, hoje em crise de identidade e de valores, depois do fracasso da “Primeira Via” (o socialismo, com justiça social, mas sem liberdades individuais), assim como da atual “Segunda” (o liberalismo, com liberdades individuais, mas sem justiça social). Assim, o Manifesto representaria uma das pouquíssimas contribuições de intelectuais moçambicanos, neste momento complicado da vida do país, em que parece não haver saída para os conflitos armados, assim como para práticas cada vez mais difusas, com base na idolatria dolarocrática.

A segunda parte do dossiê, denominada Filosofia Afro-brasileira, agrupa um total de oito artigos, tendo como elemento comum a reflexão em volta de questões mais centradas na realidade brasileira, mas a partir de análises e perspectivas filosóficas africanas.

O primeiro texto dessa parte é da autoria de Fabiano Veliq (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Minas Gerais) e Paula Magalhães (Universidade Federal de Minas Gerais, Minas Gerais), “A colonização é aqui e agora”: Elementos de presentificação do racismo. Nele, os autores procuram entender como o racismo, elemento estruturante da sociedade brasileira e, mais em geral, do Sul Global, se manifesta na sociedade contemporânea, apesar de suas representações “otimistas” que invisibilizam os legados da colonialidade. Tais representações dizem respeito à precarização do trabalho e às imagens estereotipadas da mulher negra. Para abordar tais questões, Veliq utiliza, como referencial teórico privilegiado, autores como Walter Mignolo, Achile Mbembe e Lélia Gonzalez, almejando mostrar como os eixos da exploração neoliberal formam um conjunto sistemático e não apenas pontos isolados e ocasionais.

O segundo texto dessa parte, da autoria de Suze Piza (Universidade Federal do ABC, São Paulo), aborda o tema do “Sequestro do conceito de necropolítica”. Um tema, este, formulado por Achile Mbembe, que a autora procura analisar de forma profunda, criticando o uso superficial que dele é feito, geralmente, nas academias. No fim, Piza propõe uma definição mais clara do conceito e uma sua possível aplicação à realidade política brasileira, desafiando, portanto, as abordagens epistemológicas comuns, ao querer usar um paradigma da filosofia política africana, a fim de compreender aspetos relevantes da política brasileira.

No terceiro texto, “Ressonâncias e Ontologias outras: pensando com o pensar Bantu-Kongo”, Tiganá Santana Neves Santos (Universidade Federal da Bahia, Bahia) desenvolve conceitos já apresentados ao longo dos seus originais trabalhos, apresentando uma reflexão sobre como afirmar ontologias distintas das de tipo euro-ocidental, a partir do pensamento do Bantu-Kongo, desenvolvido na margem afrodiaspórica do Atlântico. O autor traz a sua inspiração de pensadores congoleses, como Bunseki Fu-KiAu e Zamenga B., os quais abrem as portas a um pensamento filosófico complexo, superando as ressonâncias de uma filosofia etnicizada em sentido ocidental.

O quarto texto é escrito por Luís Thiago Freire Dantas (Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro), intitulado “Filosofias em Diáspora: Epistemologia do terreiro e transformações do EU”. O autor propõe uma filosofia que entrecruze vivência e pensamento filosófico terreno e espiritual, através da narrativa afrodiaspórica da orixá Oyá/Iansã. As especificidades analisadas pelo autor se referem à memória do corpo negro que revela uma identidade ancestral, reclamando uma história própria e transformando o EU num ser possível só mediante a relação com o outro.

Em seguida, Anor Sganzerla (Universidade Católica do Paraná, Paraná), Ivo Pereira de Queiroz (Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Paraná) e Rodolfo Stancki Silva (Universidade Católica do Paraná, Paraná) apresentam “Fanon, jornalista da justiça social e da libertação, e suas aproximações com a bioética de Potter”. Eles procuram comparar o jornalismo libertador de Franz Fanon com os ideais da bioética global criada por Van Rensselaer Potter. Segundo os autores, o elemento comum entre os dois pensadores assentaria na definição de paradigma libertário, o qual, no caso de Fanon, teria as suas raízes na prática de médico e jornalista e, para Potter, na práxis “humanizada da ciência e tecnologia”.

O sexto texto, escrito por Alcione Correa Alves, constitui um estudo sobre a “Hipótese sobre a noção de prefácio em Éduard Glissant”, importante escritor da Martinica. O autor reflete em torno da ancestralidade epistemológica do lugar como meio para compreender as literaturas afro-americanas, partindo do “Prefácio” de Glissant. Esse lugar, que serve como introdução mais vasta a toda a América Latina, se centra no Haiti e no Caribe, enfatizando o fragmentarismo desse Archipel. O valor do divers se torna típico do lugar afro-americano e da sua compreensão, que caracteriza boa parte da literatura martinicana, entrando em diálogo com outras epistemologias, tais como as do afro-americanismo.

O sétimo texto é da autoria de Antonio Oliveira Dju (oriundo da Guiné-Bissau, Universidade Estadual de Londrina, Paraná) e Darcísio Natal Muraro (Universidade Estadual de Londrina, Paraná). Em “Ubuntu como modo de vida: contribuição da filosofia africana para pensar a democracia”, os autores analisam as possíveis contribuições da filosofia Ubuntu - uma das principais teorias filosóficas africanas - para enfrentar a atual crise política brasileira, caraterizada por racismo, intolerância, sexismo. A resposta é que os dois conceitos básicos da filosofia Ubuntu, comunidade e tolerância, podem constituir ferramentas relevantes para repensar as relações político-sociais, no Brasil, à mesma maneira que aconteceu na África do Sul, a qual conseguiu sair do apartheid, com base na aplicação do Ubuntismo à reconciliação da nação, depois de anos de terríveis discriminações e violências.

O último artigo dessa parte, de Marco Antônio Vieira (Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais) é intitulado “Macumbarias travestis em Castiel Vitorino Brasileiro ou a implosão do teatro da representação: corpo, gênero, negritude”. O autor apresenta a forma como o artista negro e travesti Castiel Vitorino Brasileiro procura se opor à arte hegemônica, mediante a revisão das práticas discursivas, utilizando a sua poiesis. No fim, segundo o autor, Brasileiro consegue reverter o “teatro da representação”, juntando abordagens filosóficas, artísticas, teorias de gênero e queer.

A terceira parte verte sobre Filosofias Latino-Americanas e é composta por sete textos, dos quais os dois primeiros sobre questões relacionadas com o feminismo, no Sul Global.

Abrindo essa parte, a filósofa brasileira Juliana Oliveira Missaggia (Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do Sul) escreve sobre “O problema do sujeito político do feminismo: reflexões a partir de um viés colonial”. A autora parte de um questionamento sobre quem constitui o sujeito político do feminismo, investigando a volta do “essencialismo”. Ela defende a necessidade, para o Sul Global e mais especificamente para Brasil, de ter uma pauta e uma conceptualização próprias sobre o sujeito político do feminismo, superando a tendência da mera importação e reprodução de teorias ocidentais, tendo como referências autoras como María Lugones. Segundo Missaggia, conceitos do feminismo europeu, tais como o de “corporeidade situada”, de Beauvoir, devem ser transformados pelo feminismo do Sul Global, mediante uma abordagem descolonial, capaz de contextualizar a corporeidade no local geográfico próprio, no seio de uma corporeidade que deve englobar aspetos como raça, orientação sexual, classe e outros. Só assim, conclui a autora, será possível construir um subjetivismo feminino, no Sul Global.

Em seguida, Guilherme Paiva de Carvalho (Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Rio Grande do Norte) publica “Pensamento pós-colonial, gênero e poder em María Lugones”. O texto reflete sobre a perspectiva do pensamento pós-colonial e a colonialidade do poder, segundo o pensamento de María Lugones, que introduz o conceito de gênero nas relações de poder, com base na teoria de Oyèzonké Oyěwùmí. A ideia é propor um feminismo decolonial de resistência e emancipação, aplicável a toda a América Latina e até a todo o Sul Global.

O terceiro texto dessa parte é da autoria de Daniel Pansarelli (Universidade Federal do ABC, São Paulo) e Bruno Reikdal Lima (Universidade Federal do ABC, São Paulo), e aborda “A corrupção em perspectiva latino-americana”. Partindo do pensamento de Enrique Dussel, os autores propõem uma leitura dos mecanismos de corrupção do Sul Global, através de um sistema de fetichização do poder que legitima práticas de corrupção. Tal legitimação deriva, no pensamento político de Dussel, da distinção entre Potentia e Potestas, a qual originaria um uso delegado e um corrompido do poder. No contexto latino-americano, tal processo leva a uma normalização da corrupção, que, entretanto, as próprias comunidades políticas latino-americanas (e africanas) poderão superar, des-fetichizando o poder.

No quarto artigo, da autoria de Abraão Lincoln Ferreira Costa (Centro Universitário Estácio de Brasília, Distrito Federal), o autor desenvolve “Reflexões sul-americanas: em defesa do filosofar abaixo do Equador”, procurando analisar as bases de uma filosofia a partir do Brasil, para estender o seu raciocínio a toda a América Latina. Seus pressupostos histórico-teóricos são constituídos pelos “efeitos paralisantes” da colonização europeia, a necessária desconstrução da filosofia eurocêntrica e, finalmente, a apresentação de uma “ética negativa”, com base no pensamento do argentino Julio Ramon Cabrera. Através desse pensador, o autor conclui que uma postura “deflacionante” ajudaria a mitigar os efeitos e os sofrimentos ocultados de um modelo ético afirmativo, indo além de outras éticas negativas propostas por filósofos ocidentais, tais como Schopenhauer, Nietzsche e Heidegger.

No quinto texto, Leno Francisco Danner (Universidade Federal de Rondônia, Rondônia), Fernando Danner (Universidade Federal de Rondônia, Rondônia) e Julie Dorrico (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul), em “Pacificando o Branco: uma história da modernidade contada pelos indígenas”, apresentam a leitura que, da modernidade, é feita, através do pensamento indígena brasileiro. A ideia principal do artigo é de que a história da modernidade seja lida mediante um paradigma fundado na tríade eurocentrismo-colonialismo-racismo, à mesma maneira que alguns autores africanos, tais como Senghor, Césaire, Mbembe, procuraram também propor. Nessa história, negro e indígena foram racializados e seu genocídio representa o primeiro passo de um evidente processo que os reduzia a menoridades políticas. O artigo traz a reflexão do pensador indígena Ailton Krernak, segundo o qual seria necessário “pacificar o branco”, sugerindo a ele “que é possível viver de uma outra maneira”.

No sexto artigo, da autoria de Rodrigo Pelloso Gelamo (Universidade Estadual Paulista, São Paulo), Amanda Veloso Garcia (Universidade Estadual Paulista, São Paulo) e Augusto Rodrigues (Universidade Estadual Paulista, São Paulo), intitulado “Descolonizar a filosofia brasileira: desafios éticos e políticos para os filósofos do Sul Global”, os autores buscam problematizar alguns dos princípios da filosofia brasileira, demarcando seus pressupostos colonizadores. Tal filosofia tem de responder, nas intenções dos autores, aos problemas prementes no contexto brasileiro, indicando, como referências capazes de moldar uma nova abordagem filosófica brasileira, pensadores como Lélia Gonzalez, Ailton Krenak, dentre outros. À guisa de conclusão, os autores propõem a saída do “extrativismo epistêmico” que o Sul Global está sofrendo, mas também indo além da lógica da decolonialidade, a qual tende a esconder relações de opressão no seu próprio interior.

Completando o rol de 19 artigos, publicamos, de autoria de Jelson R. de Oliveira (Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Paraná), “Das Espistemolgias do Sul a um novo Ethos sulista: comunidades tradicionais e responsabilidade ambiental”. O texto aborda inicialmente a questão epistemológica clássica, criticada por alguns autores, como Dussel e Boaventura de Sousa Santos. Com isso, visa a mostrar como - com base no conceito de ética, desenvolvido por Hans Jonas - quem, na prática, põe em crise a dominação da natureza por parte da tecnologia são as comunidades rurais brasileiras, que adotaram uma vida frugal, alternativa aos princípios destruidores da civilização moderna.

Fechamos o Dossiê com a publicação de uma resenha do livro de Achille Mbembe, escrita por Diego dos Santos Reis (Universidade Federal da Paraíba), mediante a análise crítica de Sair da grande noite: Ensaio sobre a África descolonizada, cuja questão central verte sobre o pós-colonialismo em África. Trata-se, segundo Reis, de um pós-colonial muito complexo, em que a obtenção das independências políticas não significou necessariamente a aquisição da liberdade tout court. Diante desse dilema, a filosofia africana contemporânea vai descobrindo novos desafios, numa altura de regressão generalizada de debate democrático, em nível continental.

Assim é constituído este que é mais um dos Dossiês publicados pela Trans/Form/Ação. Nos últimos anos, viemos celebrando uma série de parcerias para publicação de números temáticos como este que ora apresentamos. Como exemplo, em convênio com o Centro de Filosofia, Política e Cultura, sediado na Universidade de Évora, Portugal, publicamos o “Dossier Filosofia da Técnica e da Tecnologia”. Em parceria com a Universidade Federal da Bahia (UFBA), publicamos o “Dossier Ernest Sosa”, com um artigo do próprio homenageado. Boa parte dos artigos desses dossiês foram publicados por pesquisadores estrangeiros, sem desconsiderar a participação de brasileiros, nos fascículos. Em 2021, foram publicados, ainda, em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNESP, uma série de livros de egressos e integrantes do PPGFil, avaliados por meio de Edital Interno.

Também estamos organizando, em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de São João Del-Rey, um Dossiê sobre filosofia autoral brasileira. Foram convidados reconhecidos pesquisadores nacionais, em torno de vinte, para escrever em primeira pessoa sobre temas de suas pesquisas. Buscamos, com tal atividade, contribuir para a construção e o fortalecimento de uma filosofia nacional, procurcando pensar, inclusive, no significado desse termo ou dessa prática. O Dossiê em questão contém, em seu cronograma, a publicação de pre-prints, uma experiência inovadora na revista e na área das humanidades, almejando considerar as boas práticas estabelecidas pelo programa Ciência Aberta.

Em todas as parcerias celebradas, explicitamos o compromisso com a qualidade dos textos, respeitando os critérios de avaliação da revista, em caráter de avaliação por pares duplo-cega, mesmo para os autores convidados.

Conforme lembra Alves (2021ALVES, M. A. Apresentação. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da UNESP, v. 44, n. 4, p. 09-20, 2021., p. 12): “Seguindo o costume do periódico, buscamos considerar todas as metodologias, bem como as diferentes áreas de pesquisa da filosofia e também de áreas de interesse filosófico.” Em 2019, para ilustrar essa questão, já havíamos publicado uma edição especial da revista exclusivamente sobre o pensamento de autores do Hemisfério Norte. Ressalte-se, no entanto, que trabalhos desse hemisfério são comuns e predominantes, na filosofia, especialmente ocidental de origem grega. Estamos tentando voltar o olhar e oferecer oportunidade também a pesquisas especializadas que não possuem tanto contato e facilidade para publicação, democratizando o acesso, a produção e a socialização do conhecimento. Este fascículo e o de filosofia autoral constituem provas disso.

Além da distribuição geográfica nas publicações, a revista também vem promovendo outras ações, com vistas a diminuir desigualdades e oferecer oportunidades a todos/as. Reconfiguramos, por exemplo, a Comissão Executiva, cuja representatividade agora está dividida igualmente entre as áreas de pesquisa do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNESP, aos quais a revista está vinculada, bem como buscamos uma divisão mais equânime de gênero e de representação externa. A comissão é responsável, principalmente, pelas questões administrativas e referentes à política da revista.

Também reconfiguramos o Conselho Editorial, procurando uma distribuição mais igualitária de gênero, geográfica e de linhas temáticas. Atualmente, a representação feminina é equivalente à masculina. Intensificamos a participação de conselheiros estabelecidos no Hemisfério Sul, bem como integrantes de todas as regiões do Brasil. O critério adotado para a escolha dos integrantes nacionais é sua atividade comprovada em seu currículo Lattes, considerando especialmente como requisito pesquisadores com bolsa de produtividade em pesquisa CNPq/Categoria PQ-1. Para os integrantes estrangeiros, a escolha é feita a partir de seu currículo, tendo em vista sua produção, fator de impacto e referência internacional.

O Conselho Editorial tem função consultiva e pode ser chamado para sugerir decisão sobre pareceres em material submetido, em situações específicas, dar sugestões na linha editorial da revista, bem como sugerir ou organizar números temáticos. Também ampliamos sobremaneira a quantidade de pareceristas. Atualmente, contamos com quase três mil pesquisadores, em nosso banco de dados.

Esperamos, com essas práticas, continuar garantindo a qualidade de nossas publicações, propiciando a socialização do conhecimento em todas as áreas e de todas as regiões do Brasil e do mundo. Desejamos boa leitura deste fascículo!!!

Referência

  • ALVES, M. A. Apresentação. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da UNESP, v. 44, n. 4, p. 09-20, 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Out 2021
  • Aceito
    09 Nov 2021
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