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Comentário a “‘Ohne Gewalt’. Justicia y dislocación en el proyecto ‘Gewalt’ de 1921 y ‘Kafka’ de 1934 de Walter Benjamin”: a uma faca de dois gumes

Em Crime e castigo, Dostoiévski escreveu que “[...] para tudo há um limite que é perigoso ultrapassar.” (DOSTOIÉVSKI, 2016DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e castigo. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016., p. 307). Ao transpor o limite da lei humana - e aquele demarcado pelo antigo mandamento divino que dizia “não matarás” (BÍBLIABÍBLIA de Jerusalém. 10. reimpr. São Paulo: Paulus, 2015., Ex 20, 13) - Raskólnikov, protagonista do romance, sabendo-se culpado, ouve da boca do investigador do duplo assassinato, de que se tornara suspeito, que “as provas”, num processo jurídico, “[...] são de dois gumes.” (DOSTOIÉVSKI, 2016DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e castigo. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016., p. 345). Com isso, o policial Porfiri tentava dar conta do seu desejo, e da correlata dificuldade, de que um inquérito fosse “matematicamente claro”, isto é, de que as provas fossem cristalinas, garantindo ao processo legal o estabelecimento do culpado, no reconhecimento da violência cometida, para que, enfim, fosse obtida a justiça. Logo, o próprio Raskólnikov entende que Porfiri não dispõe de nada além do seu delírio, ou seja, “[...] de nenhuma prova além da psicologia, que é de dois gumes, de nada positivo.” (p. 363).

Na célebre obra de Dostoiévski, que permite refletir, por meio da literatura, acerca dos temas do direito, da violência e da justiça, há uma demarcação clara de limites entre a razão e a moral. Raskólnikov, embora em delírio, sustenta uma explicação racional para o seu crime - tendo inclusive desenvolvido uma teoria geral do crime, centrada na justificativa de seu objetivo final e demonstrada em artigo publicado. Mas, no decorrer do processo, sente “[...] um infinito cansaço moral.” (p. 470). Termina se rendendo.

Redenção não é uma opção para Josef K., protagonista de outro famoso processo jurídico-literário. Refiro-me ao romance inacabado de Kafka, O processo, cuja escrita teria se iniciado sob influência da obra de Dostoiévski - ou mesmo, como já se propôs, que a sua formulação do problema da culpa derivaria diretamente daquela matriz russa. Ali, ao contrário, não há expiação possível para a culpa - nem mesmo os sete anos de trabalhos forçados em prisão na Sibéria, como acontece a Raskólnikov - pois a natureza do crime é desconhecida. Nem K., nem os guardas responsáveis por sua detenção, nem o juiz de instrução de seu primeiro inquérito, nem os funcionários dos cartórios; nenhuma dessas figuras detém os autos de um processo jurídico que fosse capaz de coletar provas, formular hipóteses e submetê-las abertamente a um tribunal. Não há, portanto, a possibilidade de uma violência ser expurgada pela justiça, embora haja acusação. (Uma curiosidade: na primeira audiência, o juiz de instrução pergunta a K. se ele é pintor de paredes, atividade do outro principal suspeito de Crime e castigo.)

Kafka “ultrapassa o limite” instaurado entre os termos: crime e castigo. Borrando as fronteiras das instâncias diametralmente opostas da justiça - a falta e sua correlata punição -, o escritor tcheco de língua alemã mostra um problema anterior à instauração das leis, o que Deus faria com a mediação de Moisés, através das tábuas, no Êxodo. Kafka aponta para a impossibilidade de seguir leis desconhecidas, de obedecer a mandamentos ainda não estabelecidos. Na gênese da moral judaico-cristã, no livro intitulado Gênesis, vemos a figura de Abraão aquiescer às instruções de seu Deus, embora elas não sejam claramente discerníveis, mesmo que não pareçam razoáveis e que seus motivos se mantenham secretos. O exemplo emblemático é o pedido de sacrifício de Isaac, o filho único e tão desejado, concedido pela mesma intervenção divina, que, depois, sem explicação ou erro algum, exigiria a morte da descendência prometida.

Em seu ensaio “Franz Kafka: a propósito do décimo aniversário de sua morte”, Walter Benjamin comenta que, embora o Abraão de Kafka pareça “obsequioso como um garçom”, disposto, portanto, a cumprir a exigência do sacrifício, ele não chegaria a seguir a ordem divina por uma razão bem menos nobre do que o apreço à vida do filho: por não conseguir se liberar dos negócios corriqueiros, dos afazeres da vida cotidiana; porque, em última instância, sua casa não está arrumada, para que possa sair. A prisão invadiu a vida. Ultrapassaram-se os limites demarcatórios da ação humana (como a realização de um crime) e da ordem jurídica (capaz de ditar o castigo conveniente). A casa bagunçada de Abraão, na versão comentada por Benjamin, e as obrigações do funcionário-inseto Gregor Samsa, de A metamorfose, as quais deveriam ser mantidas a qualquer custo, mostram que a vida “normal” é a própria punição. Se houve ou haverá um julgamento, ele permanece secreto.

O problema da justiça, como categoria que se apresenta ao pensamento filosófico de Benjamin, é tema de interesse central do artigo de Diego FernándezFERNÁNDEZ H., Diego. ‘Ohne Gewalt’. Justicia y dislocación en el proyecto ‘Gewalt’ de 1921 y ‘Kafka’ de 1934 de Walter Benjamin. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 3, p. 127-152, 2023., que discute em que medida o contato com a obra de Kafka, mesmo quando não mencionada explicitamente, é determinante para a formulação benjaminiana em torno dos temas da violência e do direito. Se podemos notar o “elemento nebuloso” das parábolas de Kafka (BENJAMIN, 1994BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas volume I: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994., p. 154), o artigo em questão visa a explorar o que parece da ordem de uma nebulosidade em torno dos termos vinculados à justiça na reflexão de Benjamin desde os textos de juventude, como na marcação dos limites entre “expiação” e “des-expiação”. Não tendo sido oferecida a K. a chance de purgar sua falta, fosse ela qual fosse, pela expiação do crime, será que o desenrolar de seu processo poderia representar uma des-expiação, na inversão de sentido, em uma deliberada negação da redenção?

Sem redenção, O processo termina, como nos chama atenção Benjamin, assim: “Era como se a vergonha devesse sobreviver a ele.” Segundo sua interpretação, a vergonha “tem dupla face”, é “[...] ao mesmo tempo uma reação íntima do indivíduo e uma reação social.” (BENJAMIN, 1994BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas volume I: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994., p. 155). Pensemos a vergonha, aqui, de forma intercambiável com a noção de culpa; e que o processo de culpabilização se manifesta numa “distorção”, conforme também analisa Fernández. Na negação da expiação dessa culpa, vemos a “deformação” de corpos, como na passagem do humano a animal, com Samsa, e na corcunda dos frequentadores dos cartórios, os quais se curvam para caberem nas galerias.

Essas ultrapassagens de limites que distorcem as formas aguçam a estranheza, sem resolverem a contradição dos polos invertidos, sugerindo a falta de sentido de tudo, inclusive do processo legal. Se, em Crime e castigo, há provas, mesmo que as psicológicas, mas falta a certeza clara da matemática para averiguar sua eficácia no ato do julgamento, por isso elas representariam uma “faca de dois gumes”, podendo valer para a defesa ou para a acusação, dependendo de sua aplicação, em O processo, há a inversão do fio de corte de uma mesma lâmina em dois sentidos opostos, mas isso ocorre sem haver a consistência de qualquer realização eficaz do próprio corte, para quaisquer dos dois lados.

Trago um exemplo, a título de conclusão. No encontro de K. com a senhorita Montag, é anunciada a resposta negativa da senhorita Bürstner, sua amiga, ao pedido dele de uma entrevista. À reação dele, ela esclarece: “[...] as entrevistas não são nem concedidas, nem, ao contrário, recusadas.” (KAFKA, 1997KAFKA, Franz. O processo. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1997., p. 101). No caso, sua solicitação teria sido considerada desnecessária, o que anularia as duas opções opostas. Reconhecendo ser essa suspensão da oposição um “bom recurso”, K. nota tratar-se de “uma faca de dois gumes” - mas aqui surge um significado bem diferente daquele conferido por Dostoiévski a essa ideia - pois, se ela exagerava “o significado da entrevista solicitada” por ele, tentava, “[...] ao mesmo tempo, virar as coisas de um tal modo, que era como se o próprio K. exagerasse tudo.” Mas ele “[...] não queria exagerar nada.” (p. 103). Numa espécie de dupla negação de seus dois gumes, a faca perde duplamente a capacidade de cortar. “É nesse fio da navalha que nós vivemos” (2002KAFKA, Franz. Narrativas do espólio. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002., p. 125), anotou Kafka, em Sobre a questão das leis. Este é o nosso comentário ao artigo de Fernández H.

Referências

  • BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas volume I: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.
  • BÍBLIA de Jerusalém. 10. reimpr. São Paulo: Paulus, 2015.
  • DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e castigo. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016.
  • FERNÁNDEZ H., Diego. ‘Ohne Gewalt’. Justicia y dislocación en el proyecto ‘Gewalt’ de 1921 y ‘Kafka’ de 1934 de Walter Benjamin. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 3, p. 127-152, 2023.
  • KAFKA, Franz. O processo. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
  • KAFKA, Franz. Narrativas do espólio. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2023

Histórico

  • Recebido
    12 Abr 2023
  • Aceito
    20 Abr 2023
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