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O disjuntivismo ecológico e o argumento causal1 1 Este trabalho contou com o apoio da CAPES e auxílio financeiro do CNPq, projeto n° 307872/2018-1.

Ecological disjunctivism and the causal argument

Resumo:

Neste artigo, argumenta-se que a abordagem ecológica da percepção oferece recursos para desarmar o argumento causal contra o disjuntivismo. Segundo o argumento causal, como os estados cerebrais que proximamente antecedem a experiência perceptiva e a experiência alucinatória correspondente podem ser do mesmo tipo, não haveria, portanto, uma boa razão para rejeitar que a experiência perceptiva e a experiência alucinatória correspondente tenham fundamentalmente a mesma natureza. O disjuntivismo com respeito à natureza da experiência seria, assim, falso. Identificam-se três suposições que apoiam o argumento causal: a suposição da indistinguibilidade, a suposição da linearidade e a suposição da duplicação. De acordo com a abordagem ecológica da percepção, essas suposições não se sustentam, abrindo espaço para a defesa de uma versão ecológica do disjuntivismo. Episódios perceptivos se estendem ao longo do tempo e são supervenientes ao sistema organismo-ambiente. Eles também podem ser distinguidos dos “correspondentes” episódios de alucinação, por serem o resultado de um processo controlado de sintonização, ao passo que as alucinações são passivas e refratárias às atividades de exploração e sintonização. Por fim, o disjuntivismo ecológico, na medida em que é imune ao argumento causal, se mostra vantajoso em relação aos disjuntivismos negativo e positivo.

Palavras-chave:
Disjuntivismo ecológico; Argumento causal; Indistinguibilidade; Retroalimentação dinâmica; Psicologia ecológica

Abstract:

In this paper, I argue that the ecological approach to perception provides resources to overcome the causal argument against disjunctivism. According to the causal argument, since the brain states that proximally cause the perceptual experience and the corresponding hallucinatory one can be of the same type, there would be no good reason to reject that the perceptual experience and the corresponding hallucinatory experience have fundamentally the same nature. Disjunctivism concerning the nature of the experience would then be false. I identify three assumptions that support the causal argument: the indistinguishability assumption, the linearity assumption, and the duplication assumption. According to the ecological approach to disjunctivism, these assumptions should be rejected, opening up room for a version of disjunctivism that I call ‘Ecological Disjunctivism’. Perceptual episodes are extended over time and are supervenient to the organism-environment system. They can be distinguished from the ‘corresponding’ hallucinations because the former results from a controlled process of attunement to the environment, whereas hallucinations are passive and insensible to the exploratory activities of the perceptual system. Finally, ecological disjunctivism, since it is immune to the causal argument, is more advantageous than negative and positive disjunctivism.

Keywords:
Ecological disjunctivism; Causal argument; Indistinguishability; Dynamical feedback; Ecological psychology

Introdução

O argumento causal é um argumento célebre a favor da concepção conjuntiva da percepção. Segundo essa concepção, episódios perceptivos e os correspondentes episódios de alucinação comungam fundamentalmente o mesmo tipo de experiência. O argumento causal justifica essa tese a partir de considerações sobre o processo causal que subjaz à produção desses episódios. Basicamente, se os eventos cerebrais que antecedem os episódios de percepção e de alucinação são do mesmo tipo, e há razões para pensar que poderiam ser, então, o episódio de percepção e o correspondente episódio de alucinação devem compartilhar um elemento psicológico comum. De causas similares, esperam-se efeitos similares. A suposição, normalmente aceita, de que esses episódios possam ser indistinguíveis reforça essa conclusão.

Na literatura, disjuntivistas resistem a essa conclusão. Disjuntivistas caracterizados como “positivos” sustentam que há espaço para introduzir um evento psicológico adicional, a consciência direta do objeto distal, para introduzir uma diferença fundamental entre episódios perceptivos e alucinatórios, ainda que indistinguíveis introspectivamente. Disjuntivistas caracterizados como “negativos” sustentam que a indistinguibilidade entre os episódios perceptivos e os correspondentes episódios de alucinação não deve ser explicada pela suposição de um elemento psicológico comum. A indistinguibilidade é um fenômeno epistêmico básico e não carece de explicação ulterior. Esse movimento abre espaço para tratar a alucinação negativamente, a partir da indistinguibilidade; na verdade, essa é a sua única característica: ela é introspectivamente indistinguível do episódio perceptivo correspondente. Ambas as respostas são instáveis, no entanto. Por um lado, tornamos a alucinação misteriosa, se a sua única característica é epistêmica; por outro, a consciência direta do objeto distal não parece ter um papel na explicação da fenomenologia do episódio perceptivo.

Para contornar essas dificuldades, proponho a formulação de uma posição disjuntivista que desarma o argumento causal. Chamo essa posição de disjuntivismo ecológico, pois ela se apoia na abordagem ecológica da percepção. Identifico três suposições subjacentes ao argumento causal e que são aceitas pelos disjuntivistas positivos e negativos: a suposição da indistinguibilidade, a suposição da linearidade e a suposição da duplicação. Argumento que não há razões para sustentar essas suposições, se adotamos a abordagem ecológica da percepção. Dessa maneira, o argumento causal é desarmado e a versão do disjuntivismo defendida se mostra mais fecunda que os disjuntivismos positivo e negativo.

Este artigo está estruturado da seguinte maneira. Na Seção 2, apresento o argumento causal e saliento as dificuldades que ele coloca para o disjuntivismo. Deixo claras também as suposições implícitas do argumento. Na Seção 3, discuto as reações do disjuntivismo positivo e negativo ao argumento causal. Essa discussão propicia também um contexto para a introdução do disjuntivismo ecológico. Na Seção 4, articulo o disjuntivismo ecológico e explico como ele distingue percepção de alucinação. Na Seção 5, retomo as suposições do argumento causal e argumento que, se a abordagem ecológica da percepção estiver correta, essas suposições não se sustentam. Concluo que o argumento causal não é uma ameaça para o disjuntivismo ecológico.

1 O argumento causal

As teorias conjuntivas da percepção afirmam que casos de percepção verídica e os correspondentes casos de alucinação envolvem fundamentalmente3 3 Tyler Burge introduziu a noção de elemento comum fundamental, para evitar que a negação da concepção conjuntiva fosse concebida como a rejeição de qualquer elemento comum. Isso seria um espantalho da concepção disjuntiva, já que ela coincidiria, então, com a tese de que o episódio perceptivo e o episódio de alucinação correspondente não têm nenhum elemento em comum. A negação da concepção conjuntiva deve ser feita em relação ao alegado elemento comum fundamental, o qual cumpre um papel decisivo e não eliminável na classificação e explicação dos tipos de estados experienciais (BURGE, 2011, p. 47). um mesmo tipo de experiência, independentemente de como esse tipo de experiência venha a ser caracterizado, seja por um conteúdo intencional, no caso das teorias representacionalistas, seja por dados dos sentidos, no caso das teorias dos dados dos sentidos. Assim, ver a adaga de Macbeth e alucinar a adaga de Macbeth envolvem o mesmo tipo de experiência, o qual responde pelas qualidades fenomenológicas do episódio de visão e do episódio de alucinação, explicando, assim, por que esses episódios parecem indistinguíveis para o percebedor. A diferença entre um episódio de percepção e o seu correspondente episódio de alucinação é externa ou extrínseca ao tipo comum de experiência que constitui esses episódios. No episódio perceptivo, há um objeto externo com o qual o percebedor está relacionado causalmente, de modo apropriado, mas não no episódio alucinatório. Um argumento célebre para as teorias conjuntivas é o da alucinação4 4 Para uma discussão detalhada desse argumento, veja-se Carvalho (2015) . Basicamente, argumenta-se primeiro que um caso de alucinação requer a introdução de um tipo de experiência cujas qualidades são dependentes apenas do sujeito, para explicar como é que algo aparece para um sujeito como sendo de uma determinada maneira. Em seguida, a partir da concessão de pares de casos de percepção e alucinação indistinguíveis, argumenta-se que a melhor explicação para a indistinguibilidade é que o caso de percepção envolve o mesmo tipo de experiência que constitui a alucinação. O argumento causal, o qual será o foco da nossa discussão, tem uma estrutura um pouco diferente. No lugar de uma inferência pela melhor explicação, ele busca tirar proveito da concepção linear de causação que parece ser assumida pela absoluta maioria das teorias da percepção. Ele tem a vantagem de parecer ser um argumento perfeitamente compatível e até apoiado por teorias empíricas da percepção.O argumento causal5 5 Para uma apresentação e discussão mais extensa do argumento causal, vejam-se Johnston (2004, p. 115-120) e Soteriou (2016, p. 158-169). parte da consideração de que, em uma situação normal de percepção, digamos, a percepção do objeto O, o processo causal relevante para a ocorrência desse episódio perceptivo é o seguinte: o objeto distal O e as condições ambientais de fundo C impactam os nossos órgãos sensoriais, os quais, por sua vez, disparam uma série de eventos cerebrais, no caso da visão, eventos no córtex visual primário, eventos estes que se propagam até gerar o evento E proximal, que, por fim, causa a experiência perceptiva consciente do objeto O. Como se vê, o processo causal que começa com o objeto distal O e termina com a percepção do objeto O é linear. A próxima alegação é a de que a experiência alucinatória correspondente poderia ser produzida na ausência do objeto distal O, bastando produzir o evento proximal E, por meio de alguma intervenção direta sobre o cérebro do agente. Como as causas distais externas estão ausentes, nesse caso, é razoável afirmar também que o episódio alucinatório é superveniente ao evento proximal E. Assim, o evento E é suficiente para a produção do estado experiencial que constitui o episódio alucinatório. Como o evento E também é a causa proximal da percepção do objeto O, devemos concluir que, no episódio de percepção, o evento E é igualmente suficiente para a produção de um estado experiencial que constitui o episódio perceptivo e que em nada difere do estado experiencial que o estado E produz, na situação de alucinação. Desse modo, a percepção e a alucinação têm um estado experiencial fundamentalmente comum.

Para negar que haja esse estado experiencial comum, teríamos que sustentar que o estado E, de alguma maneira, rastreia os seus antecedentes causais, para produzir diferentes estados experienciais. Se, na cadeia causal, há o objeto distal O, então, o estado cerebral E produz um tipo de experiência. Se o objeto distal O está ausente, logo, o estado cerebral E produz um outro tipo de experiência. Mas isso significa que haveria uma espécie de ação à distância do objeto distal O sobre o estado E ou que E “olha para trás” e detecta os seus antecedentes causais (JOHNSTON, 2004JOHNSTON, M. The Obscure Object of Hallucination. Philosophical Studies, v. 120, n. 1, p. 113-183, 1 jul. 2004., p. 116). Essas suposições são muito contraintuitivas para serem aceitáveis.

Contudo, mesmo que não se possa negar que haja um estado experiencial comum entre o episódio perceptivo e a alucinação correspondente, há espaço para rejeitar que esse estado comum seja fundamental para o episódio perceptivo, no sentido de constituí-lo por completo. Em um caso normal de percepção, o objeto distal O e as condições ambientais de fundo C podem causar não apenas o estado comum E, mas também um outro estado cerebral F, o qual, por sua vez, causa o estado psicológico de estar perceptivamente ciente do objeto O. Assim, o episódio perceptivo é constituído não só pelo estado experiencial que ele compartilha com a alucinação correspondente, mas também pela consciência perceptiva do objeto O, em que essa consciência é uma relação direta entre o percebedor e o objeto O. Essa qualificação é importante, para que se tenha uma posição que se afasta da concepção conjuntiva, já que, como vimos, esta última acomoda a diferença entre percepção e alucinação em termos de relações causais que são extrínsecas aos estados experienciais, os quais, fundamentalmente, constituem episódios de percepção e de alucinação.

O defensor da concepção conjuntiva, contudo, tem ainda uma carta na manga. Ele ou ela poderá argumentar que a possibilidade que acabamos de levantar é instável. Essa instabilidade pode ser apreciada, ao se considerar a seguinte pergunta: no caso do episódio perceptivo, o que explica a sua fenomenologia? Por um lado, se se supuser que a consciência perceptiva do objeto O responde preponderantemente pela fenomenologia do episódio perceptivo, então, o estado experiencial que o episódio perceptivo comunga com a alucinação correspondente terá um papel secundário ou nenhum papel, na explicação da fenomenologia do episódio perceptivo. Por conseguinte, também não será suficiente para explicar a fenomenologia do episódio alucinatório. O problema é que a alucinação não é constituída por outro estado psicológico além deste que ela comunga com o episódio perceptivo.

Desse modo, a fenomenologia da alucinação ficará sem explicação, o que é inusitado, uma vez que os episódios perceptivo e alucinatório são, como foi concedido, introspectivamente indistinguíveis. Por outro lado, se se supuser que o estado experiencial que o episódio perceptivo comunga com o episódio alucinatório é suficiente para explicar a fenomenologia da alucinação, logo, será forçoso reconhecer que ele tem um papel preponderante na explicação da fenomenologia do episódio perceptivo também, já que estes episódios são indistinguíveis. O problema, então, é que parecerá que a consciência perceptiva do objeto O desempenha um papel secundário ou nenhum papel, na explicação da fenomenologia do episódio perceptivo.

Em comparação com a concepção conjuntiva, a suposição desse estado psicológico extra no episódio perceptivo parecerá gratuita. Além disso, é estranho que a consciência do objeto O não venha ela mesma acompanhada de uma rica fenomenologia. Mas é o que se deve concluir, se todo ou quase todo o trabalho explicativo é realizado pelo estado experiencial que o episódio perceptivo comunga com o episódio alucinatório. Dessa maneira, o oponente da concepção conjuntiva ou tem uma motivação para introduzir a consciência perceptiva do objeto O, porém, não explica a fenomenologia da alucinação, ou explica a fenomenologia da alucinação, mas não tem justificativa para introduzir esse estado psicológico extra. Dialeticamente, parece que o defensor da concepção conjuntiva se encontra mais bem posicionado.

O argumento causal, como acabamos de ver, apoia-se em uma série de suposições que podem ser contestadas: (1) a causação subjacente ao episódio perceptivo é linear; (2) episódios perceptivos são supervenientes a estados cerebrais apenas - na nossa discussão, o episódio de visão é superveniente aos estados cerebrais E e F -, o que implica que os episódios perceptivos poderiam ser duplicados em diferentes ambientes, desde que as causas cerebrais internas permanecessem as mesmas, e (3) o episódio perceptivo e o correspondente episódio alucinatório são introspectivamente indistinguíveis. Chamo essas suposições respectivamente de “suposição da linearidade”, “suposição da duplicação” e “suposição da indistinguibilidade”. Irei questionar cada uma dessas suposições. Todavia, para ter uma base para esses questionamentos, eu vou antes apresentar algumas posições disjuntivistas e introduzir e situar o disjuntivismo ecológico.

2 Disjuntivismos

O disjuntivismo pode ser entendido como a negação da visão conjuntiva. Assim, ele nega que haja um estado experiencial fundamentalmente comum a um episódio de percepção e ao seu correspondente episódio de alucinação. Suponha-se que Macbeth esteja vendo uma adaga num certo momento e, em outro, esteja a alucinar uma adaga. Embora ambos os episódios possam ser descritos por uma frase como “é como se Macbeth estivesse vendo uma adaga adiante”, essa frase, para o disjuntivista, não captura um estado experiencial fundamentalmente comum e, portanto, ela deve ser lida disjuntivamente: ou Macbeth vê uma adaga adiante, ou Macbeth alucina como se houvesse uma adaga adiante. A estratégia de negar que episódios experienciais alegadamente indistinguíveis podem, no entanto, ser fundamentalmente distintos foi explicitamente introduzida por Hinton (1967HINTON, J. M. Visual Experiences. Mind, v. LXXVI, n. 302, p. 217-227, 1967.), embora se possa dizer que foi preconizada implicitamente por Austin (1962AUSTIN, J. Sense and Sensibilia. Oxford: Oxford University Press, 1962., p. 52).

Há vários tipos de disjuntivismo. O que acabamos de mencionar abarca uma família de posições que pode ser qualificada como disjuntivismo metafísico ou experiencial (HADDOCK; MACPHERSON, 2008HADDOCK, A.; MACPHERSON, F. Introduction: Varieties of Disjunctivism. In: HADDOCK, A.; MACPHERSON, F. (ed.). Disjunctivism: Perception, Action, Knowledge. Oxford: Oxford University Press, 2008. p. 1-24., p. 2-4; PRITCHARD, 2012PRITCHARD, D. Epistemological Disjunctivism. Oxford: Oxford University Press, 2012., p. 23). Essa família de posições deve ser distinguida de uma outra, que é normalmente rotulada de “disjuntivismo epistemológico”. Nesse caso, a visão conjuntiva que serve de contraste é a que afirma que o episódio de percepção e o correspondente episódio de alucinação oferecem para o agente a mesma evidência experiencial. Assim, a evidência disponível a um sujeito encubado e cujas experiências são manipuladas para serem indistinguíveis das que ele teria se não estivesse encubado é exatamente a mesma que ele teria se não estivesse encubado. O disjuntivismo epistemológico nega que a evidência disponível seja a mesma em ambos os casos (MCDOWELL, 1983MCDOWELL, J. Criteria, Defeasibility, and Knowledge. Proceedings of the British Academy, v. 68, p. 455-479, 1983., p. 475-476; PRITCHARD, 2012PRITCHARD, D. Epistemological Disjunctivism. Oxford: Oxford University Press, 2012., p. 15). O suporte epistêmico que o sujeito tem na situação em que está encubado é pior do que na situação em que ele não está encubado. Consequentemente, as suas crenças empíricas não estão igualmente justificadas em ambas as situações. Embora o disjuntivismo epistemológico possa se apoiar no disjuntivismo metafísico, ele não depende deste último e pode ser defendido de modo independente. Neste artigo, estou interessado no disjuntivismo metafísico ou experiencial.

O disjuntivismo experiencial, como já dito, compreende uma família de posições. Vou destacar duas que podem ser encaradas como diferentes reações ao argumento causal: o disjuntivismo positivo e o disjuntivismo negativo. O primeiro parte da consideração de que duas coisas qualitativamente idênticas possam ser, no entanto, genericamente distintas. Um limão e um pedaço de sabão podem parecer qualitativamente idênticos, ainda que sejam genericamente distintos (AUSTIN, 1962AUSTIN, J. Sense and Sensibilia. Oxford: Oxford University Press, 1962., p. 50). Ao aplicar essa ideia ao episódio perceptivo e ao correspondente episódio alucinatório, temos o seguinte: embora sejam qualitativamente idênticos, o que explica a fenomenologia de um episódio não é o que explica a fenomenologia do outro. A fenomenologia do episódio de ilusão pode ser explicada por uma relação direta com dados dos sentidos ou por características intrínsecas do veículo representacional, conforme se defenda uma visão relacional ou representacional da experiência, enquanto a fenomenologia do episódio perceptivo é explicada pela relação direta com objetos externos. Esse disjuntivismo é caracterizado como positivo, pois oferece uma explicação positiva da fenomenologia do episódio de alucinação.

Entretanto, como já vimos, o argumento causal coloca um problema genuíno para essa posição na medida em que o estado cerebral proximal E, o qual antecede tanto o episódio de percepção quanto o seu correspondente episódio de alucinação, torna implausível a ideia de que dois estados psicológicos genericamente distintos resultem do mesmo tipo de estado cerebral. A comparação com o caso do limão e o pedaço de sabão é inadequada, pois eles têm estruturas internas muito distintas, ainda que possam ter aparências semelhantes ou, em certas condições, até mesmo idênticas. Porém, é de se esperar que duas coisas com estruturas internas idênticas tenham a mesma aparência, todo o resto permanecendo o mesmo. De causas similares, esperam-se efeitos similares. Assim, o argumento causal força o reconhecimento de um efeito psicológico comum que constitui, pelo menos em parte, tanto o episódio de percepção quanto o correspondente episódio de alucinação. Por conseguinte, a afirmação de que a fenomenologia do episódio verídico é explicada por uma suposta relação direta com objetos externos fica comprometida.

O disjuntivismo negativo tenta se esquivar dessa consequência do argumento causal, negando que a indistinguibilidade entre o episódio perceptivo e o correspondente episódio de alucinação deva ser explicada pela posse de uma propriedade comum. Como Michael Martin (2008MARTIN, M. G. F. The Reality of Appearances. In: BYRNE, A.; LOGUE, H. (ed.). Disjunctivism: Contemporary Readings. [s.l.] The MIT Press, 2008. p. 91-115., p. 91) argumenta, o princípio de que “[...] se duas experiências perceptivas são indistinguíveis para o sujeito delas, então as duas experiências têm o mesmo caráter consciente” não é mandatório e que podemos obter um tipo de disjuntivismo pela negação desse princípio. A ideia central é que alucinações não têm uma caracterização positiva. Elas são negativamente caracterizadas como um tipo de experiência que é indistinguível da sua correspondente experiência verídica. Assim, a única afirmação substantiva que podemos fazer acerca de uma alucinação é que o sujeito que a tem é incapaz de discriminá-la da sua correspondente experiência verídica. Além disso, a propriedade epistêmica da indistinguibilidade é o que explica a fenomenologia da alucinação. Martin, dessa maneira, inverte a ordem explicativa habitual: em vez de dizer que um episódio de alucinação e o correspondente episódio verídico são indistinguíveis, porque têm a mesma fenomenologia, ele afirma que o episódio de alucinação tem a mesma fenomenologia do episódio verídico, porque é indistinguível deste último.

O episódio verídico, por sua vez, tem a fenomenologia que tem em virtude dos objetos com os quais ele nos coloca em contato. Por fim, o fato de a alucinação ser indistinguível do correspondente episódio verídico deve ser tomado como um fato epistemológico bruto, o qual não carece de explicação ulterior (MARTIN, 2004MARTIN, M. G. F. The Limits of Self-Awareness. Philosophical Studies, v. 120, n. 1-3, p. 37-89, jul. 2004., p. 72). Esse passo atenua a pressão pelo reconhecimento de um evento psicológico comum em virtude apenas do estado cerebral comum E, afinal, a não ser que se adote uma teoria da identidade tipo-tipo, diferentes estados psicológicos podem estar associados a uma mesma base neuronal. Contudo, a posição como um todo é sensível à acusação de que é misterioso como a propriedade epistemológica de ser incapaz de distinguir a alucinação do correspondente episódio verídico explica a fenomenologia da alucinação.

Como já havia anunciado, o disjuntivismo anda em um campo minado: ou, como no caso do disjuntivismo negativo, ele tem uma motivação para introduzir a consciência perceptiva do objeto O, mas não explica a fenomenologia da alucinação, ou, como no caso do disjuntivismo positivo, ele explica a fenomenologia da alucinação, todavia, não tem justificativa para introduzir esse estado psicológico extra. Para evitar essa funesta disjunção, é preciso que o disjuntivismo seja erguido sobre uma base bem diferente.

3 O disjuntivismo ecológico

O disjuntivismo ecológico, tal como eu o articulei (CARVALHO, 2021CARVALHO, E. M. An ecological approach to disjunctivism. Synthese, v. 198, p. 285-306, jan. 2021.), recebe esse nome por se apoiar na abordagem ecológica da percepção. Embora James Gibson não tenha se envolvido diretamente com as querelas filosóficas em torno do realismo ingênuo e do disjuntivismo6 6 Vários gibsonianos, no entanto, se engajaram de modo mais sistemático com a discussão do realismo direto (SHAW; BRANSFORD, 1977; SHAW; TURVEY; MACE, 1982; TURVEY et al., 1981). , ele claramente desenvolveu uma abordagem da percepção com muitas afinidades com essas posições. A tese de que percebemos affordances diretamente ao capturar informação ambiental é muito difundida, e Gibson foi bastante explícito sobre o seu realismo (GIBSON, 1967GIBSON, J. J. New Reasons for Realism. Synthese, v. 17, n. 2, p. 162-172, 1967.). Eu irei ainda mais longe e vou sustentar que a abordagem de Gibson oferece as bases científicas para uma versão do disjuntivismo que é imune ao argumento causal. Na passagem seguinte, nota-se o aceno para algo que pode ser muito bem incorporado em uma versão do disjuntivismo:Há consciência direta ou imediata de objetos ou eventos quando os sistemas perceptivos ressoam para capturar informação e pode haver um tipo de consciência direta ou imediata de estados psicológicos dos nossos órgãos dos sentidos quando os nervos sensórios estão excitados. Mas estes dois tipos de experiência não podem ser confundidos, pois eles estão em polos opostos, objetivo e subjetivo. Apenas a primeira deve ser chamada experiência perceptiva. (GIBSON, 1967GIBSON, J. J. New Reasons for Realism. Synthese, v. 17, n. 2, p. 162-172, 1967., p. 168).

Gibson não está apenas a fazer a distinção nominal entre experiência perceptiva e alucinação, o que é trivial e aceito por todos; ele está sobretudo afirmando que essas experiências têm naturezas distintas e que os tipos de consciência que as constituem também são diferentes. Na sua visão, não há um elemento fundamentalmente comum entre percepções e alucinações. Para entender melhor por que a psicologia ecológica é oportuna para a articulação de uma versão do disjuntivismo, precisamos introduzir as suas principais ideias.

Segundo Chemero, a psicologia ecológica pode ser articulada em torno de três princípios: (1) a percepção é ativa e direta; (2) a percepção é para guiar a ação e (3) a percepção é de affordances (CHEMERO, 2009CHEMERO, A. Radical Embodied Cognitive Science. Cambridge: The MIT Press, 2009., p. 98). O primeiro princípio deixa bem clara a oposição da abordagem ecológica em relação às teorias que Gibson chamou de teorias instantâneas da percepção (2015GIBSON, J. J. The Ecological Approach to Visual Perception. Classical Edition. New York: Psychology, 2015., xiii). Essas teorias supõem que o estímulo para a percepção é pobre, proximal e pontual. Por conseguinte, para obter a percepção de um objeto no espaço tridimensional, esse estímulo precisa ser enriquecido pela mediação de representações, inferências e possivelmente conhecimento de fundo. Também se supõe que esse processamento ocorre de modo automático. A abordagem ecológica rejeita essas suposições. Para os psicólogos ecológicos, há rica informação ecológica no ambiente. Esse tipo de informação é constituído por padrões de energia no espaço e/ou no tempo que estão correlacionados nomicamente com as suas fontes distais. O organismo percebe, ao se sintonizar e capturar ativamente essa informação. Como a informação se encontra espalhada no espaço e no tempo, o organismo precisa mover os olhos, a cabeça ou o corpo para capturá-la.

Além disso, informação sobre o próprio organismo e a sua relação com o ambiente só se torna disponível pela sua locomoção no ambiente. Assim, a percepção é ativa, porque o organismo procura ativamente informação ecológica no ambiente. A metáfora mais adequada para compreender o processo perceptivo é a do rádio (GIBSON, 1968GIBSON, J. J. The Senses Considered as Perceptual Systems. London: George Allen & Unwin Ltd, 1968., p. 269-271). O organismo se sintoniza à informação ecológica, ao modular o seu fluxo de estimulação ao padrão de energia que constitui essa informação. Esse processo dispensa representações e inferências e, por isso, a percepção é também direta. O organismo fica diretamente consciente de objetos ou eventos distais, ao se sintonizar e capturar a informação ambiental que especifica unicamente estes objetos ou eventos.7 7 Como a informação ecológica requer uma relação de um para um entre um padrão de energia e a sua causa distal, não há como esse padrão de energia estar presente, sem que a sua causa distal também esteja. Por conseguinte, a captura da informação é suficiente para estabelecer a relação de contato direto com uma affordance ambiental, e nenhuma inferência é requerida (REED, 1983, p. 90). O segundo princípio, em conformidade com a teoria da seleção natural, avança a hipótese de que os sistemas perceptivos foram selecionados pela sua utilidade em guiar a ação. Por fim, o terceiro princípio da abordagem ecológica afirma que percebemos affordances ou possibilidades de ações. Como a função da percepção é guiar a ação, é desejável que percebamos diretamente o que podemos fazer com as coisas, em vez de propriedades categoriais dos objetos, tais como cor e forma. Por exemplo, não percebemos uma maçã ou um tomate maduros primeiramente como tendo a propriedade de ser vermelho e depois raciocinamos que ele é comestível. Já os percebemos diretamente como comestíveis. Caso contrário, precisaríamos ainda de um passo intermediário que transformasse a percepção de propriedades categoriais em algo que sirva para guiar a ação. A hipótese de Gibson é que percebemos primeira e diretamente possibilidades de ações (GIBSON, 2015GIBSON, J. J. The Ecological Approach to Visual Perception. Classical Edition. New York: Psychology, 2015., p. 126).

A percepção é, assim, uma atividade dinâmica e contínua, por meio da qual o organismo “[...] mantém contato com o mundo.” (GIBSON, 2015GIBSON, J. J. The Ecological Approach to Visual Perception. Classical Edition. New York: Psychology, 2015., p. 228). Ela ocorre ao longo do tempo, incessantemente, e envolve atividades exploratórias e ajustes dos órgãos sensoriais. A percepção não busca representar o mundo, mas nos manter sintonizados a ele, para cumprir a sua função de guiar a ação. Por meio de movimentos, o agente controla o fluxo sensorial, de sorte que ele ressoe a informação ambiental que especifica as affordances do ambiente. Segundo essa concepção de percepção, o ato de perceber não é algo que ocorre entre o estímulo e a ação, como é suposto pelas concepções lineares, mas resulta de um processo dinâmico de sintonização entre o organismo e o ambiente. Os estados de um organismo sintonizado ao seu ambiente exibem um grau elevado de simetria aos estados do seu ambiente, pois o organismo controla o seu fluxo sensorial para que ele ressoe a estrutura da informação ambiental.8 8 Como argumentam Shaw, McIntyre e Mace (1974, p. 278), “[...] um organismo possui o máximo grau de adaptação ao seu ambiente quando o maior grau de simetria existe entre os seus estados (tanto biológico quanto psicológico) e os estados do seu ambiente.” Pela mesma razão, o ato de perceber não é superveniente aos estados cerebrais apenas: ele é, antes, um evento do sistema organismo-ambiente como um todo, concernente à sintonização do organismo ao seu ambiente. Quando o organismo é bem-sucedido nessa tarefa de sintonização, diz-se que ele capturou a informação ambiental.Nessa perspectiva, percepção e alucinação são episódios fundamentalmente distintos, segundo a abordagem ecológica. Um episódio de percepção envolve o ambiente, ele é um ato de captura de informação ambiental, ao passo que um episódio de alucinação, embora seja acompanhado de sensações, não envolve a captura de informação ambiental. O disjuntivismo ecológico funda-se sobre essa diferença. O próprio Gibson, em linha com essa diferença fundamental entre episódios perceptivos e episódios não perceptivos, a alucinação aí englobada, afirma que os episódios não perceptivos devem ser explicados por princípios próprios, diferentes daqueles que são empregados para explicar a percepção: “[...] uma teoria da percepção deve certamente permitir o erro perceptivo, mas ela dificilmente pode ser ao mesmo tempo uma teoria do erro perceptivo.” (GIBSON, 1968GIBSON, J. J. The Senses Considered as Perceptual Systems. London: George Allen & Unwin Ltd, 1968., p. 287). O erro perceptivo ocorre justamente quando o organismo não captura informação ambiental, e isto pode se dar ou porque a informação disponível é inadequada, ou porque o organismo falha em capturar a informação adequada.9 9 Complementarmente, é importante chamar a atenção para o fato de que a informação ambiental é ela mesma relativa a nichos. Conforme Turvey (1981, p. 276) exemplifica, certos padrões do campo bioelétrico, no nicho de tubarões, especificam linguados, embora, fora desse nicho, possam estar correlacionados com outras coisas. Mas isso não significa que, fora do seu nicho, o tubarão teria percepções errôneas. Na verdade, fora do seu nicho, não há informações ambientais às quais o organismo esteja sintonizado e, portanto, a sua habilidade perceptual não é exercida. Como defendi no artigo em que introduzi o disjuntivismo ecológico, o nicho é uma condição habilitadora para o exercício de habilidades perceptuais, de modo que estas não são exercidas fora dos ambientes nos quais foram adquiridas (CARVALHO, 2021, p. S290). Essa restrição está conectada ao princípio da mutualidade da psicologia ecológica. As habilidades dos organismos e as características do ambiente são complementares, devendo ser entendidas umas em referência às outras. Veja-se a nota 11 do presente artigo. Agradeço a um dos pareceristas anônimos por chamar a minha atenção para esse ponto. Em qualquer caso, temos um episódio que não pode ser caracterizado pela consciência de algo que é especificado por informação ambiental, nem que resultou de um processo de sintonização entre organismo e ambiente, que permite a captura de informação ambiental. A natureza desse episódio é, portanto, diferente da natureza do episódio perceptivo.

4 Desarmando o argumento causal

Eu disse que o argumento causal faz uma série de suposições que podem ser questionadas. Com base no disjuntivismo ecológico, vou questionar agora cada uma dessas suposições.

5 A suposição da indistinguibilidade

A maioria dos disjuntivistas concedem a possibilidade da indistinguibilidade. Como vimos, tanto o disjuntivismo negativo quanto o positivo fazem essa concessão e se enredam em dificuldades. Por causa dela, o disjuntivismo positivo não consegue explicar como a consciência do objeto contribui para a fenomenologia da experiência perceptiva, tornando aquela dispensável, e o disjuntivismo negativo se vê forçado a dar uma caracterização puramente epistemológica da alucinação, tornando esta misteriosa. Ambos teriam mais espaço de manobra, se rejeitassem a suposição da indistinguibilidade. Normalmente, essa suposição é defendida com base na afirmação de que ela é muito barata, pois se requer apenas que se conceda que a alucinação indistinguível a um episódio perceptivo seja possível, não que ela de fato ocorra.

No entanto, precisamos distinguir a possibilidade conceitual ou metafísica da natural. A primeira é normalmente constrangida apenas pela ausência de contradição, de modo que as leis físicas, biológicas e psicológicas conhecidas não colocam uma limitação para o que se pode conceber como possível. De fato, se entendemos a possibilidade, nesses termos, parece difícil negar que, para qualquer experiência perceptiva, possamos conceber uma experiência alucinatória que é indistinguível da primeira. Nenhuma contradição parece estar envolvida na concepção dessa possibilidade. Porém, se temos no horizonte a possibilidade natural, isto é, aquela que é constrangida pelas leis naturais que prevalecem no nosso mundo atual, então, não é tão claro que a concessão de indistinguibilidade seja tão barata. Na verdade, pode muito bem ser o caso que ela não seja viável em função das leis psicológicas, biológicas e fisiológicas que regem o funcionamento do nosso sistema perceptivo. Ao trabalhar com a possibilidade natural, temos de ter em mente que podemos nos enganar mais facilmente ao julgar o que é possível ou não, pois o nosso conhecimento de quais leis naturais prevalecem no nosso mundo atual é passível de revisão. De toda forma, neste texto, eu me comprometo com a possibilidade natural, não com a conceitual ou metafísica. Como o argumento causal normalmente é apresentado em contextos não céticos, exigindo do interlocutor o comprometimento com a coerência com a ciência, parece-me razoável que o que esteja em discussão seja a possibilidade natural.

O disjuntivismo ecológico, ao se basear na psicologia ecológica, abre espaço para a recusa da indistinguibilidade. Como vimos, episódios de percepção e episódios de alucinação têm naturezas distintas. Teoricamente, são distinguíveis. Claro que a questão é se são distinguíveis na perspectiva da primeira pessoa, não na perspectiva da terceira pessoa. Antes de avançar nesse ponto, gostaria de fazer um comentário sobre a possível acusação de que cometo petição de princípio, ao rejeitar a indistinguibilidade com base na psicologia ecológica, já que não vou e não me cabe sustentar empiricamente a cogência desse programa de pesquisa. Sim, estou supondo a psicologia ecológica e refletindo quão longe podemos ir com o disjuntivismo a partir dela. Se cometo petição de princípio, eu o faço tanto quanto os demais disjuntivistas, positivos ou negativos, os quais supõem concepções lineares da percepção.10 10 A possibilidade natural de que sempre podemos gerar uma alucinação indistinguível de uma experiência perceptiva parece encontrar respaldo na concepção linear da percepção. Segundo essa concepção, a situação de experimentação ideal seria uma em que o sujeito está imobilizado - corpo, cabeça e possivelmente os olhos - e apenas os seus órgãos sensoriais são estimulados. Desse modo, o efeito psicológico, a experiência do sujeito pode ser correlacionada diretamente com os estímulos sensoriais. No caso da visão, o uso do taquistoscópio auxilia a forjar uma situação desse tipo. O taquistoscópio é um aparelho que permite a projeção de imagens sobre a retina, por um intervalo de tempo bem curto. O sujeito é então convidado a relatar a experiência resultante. Não espanta que, nessas condições, pareça razoável que as experiências assim obtidas possam também ser produzidas intervindo nos eventos cerebrais mais proximais. Consequentemente, o mesmo tipo de experiência poderia ser produzido com ou sem os estímulos nos órgãos sensoriais, vindicando, assim, a indistinguibilidade. Como não estamos em terreno cético, essas suposições são inofensivas, embora obviamente eu não espere convencer o meu interlocutor da verdade da psicologia ecológica, apenas que uma versão interessante do disjuntivismo pode ser erguida com base nela.Quando avaliamos se uma experiência alucinatória é indistinguível da experiência perceptiva correspondente, temos de levar em consideração toda a informação disponível ao agente. A respeito do bastão que parece torto, quando imerso na água, Austin enfaticamente salienta que, se se negligencia a água, a mudança de um meio para outro etc., o bastão imerso na água parecerá indistinguível de um bastão realmente torto (AUSTIN, 1962AUSTIN, J. Sense and Sensibilia. Oxford: Oxford University Press, 1962., p. 42), mas não há qualquer razão para o percebedor negligenciar esses aspectos, que estão inclusive presentes em sua experiência.

Na perspectiva ecológica, os recursos disponíveis ao sujeito são ainda mais ricos e amplos que na concepção passiva e linear da percepção. Supõe-se um agente que move os olhos, a cabeça e o corpo, na busca de informação ambiental. Normalmente, a percepção ocorre ao longo do tempo, pois depende das atividades exploratórias do agente ou porque a própria informação ambiental está espalhada temporalmente, como tipicamente é o caso da informação sobre eventos. A informação sobre o tamanho de um objeto em relação ao terreno, por exemplo, é capturada aproximando-se ou afastando-se do objeto (GIBSON, 2015GIBSON, J. J. The Ecological Approach to Visual Perception. Classical Edition. New York: Psychology, 2015., p. 154). Trivialmente, muitas alucinações que seriam indistinguíveis das suas correspondentes experiências perceptivas para sujeitos imóveis não o serão para sujeitos que se locomovem e podem explorar o seu ambiente. Pelo movimento, trarão à tona diferenças que não estavam salientes e que poderão distinguir uma experiência perceptiva de uma alucinatória. Conforme salienta Gibson, “[...] pode-se enganar um olho imóvel, mas não um sistema visual ativo.” (GIBSON, 1970GIBSON, J. J. On the Relation between Hallucination and Perception. Leonardo, v. 33, n. 2, p. 425-427, 1970., p. 427).

Pode-se argumentar que essas considerações são insuficientes para bloquear a possibilidade natural de alucinações indistinguíveis. O defensor da concepção linear não precisa defender que a percepção tem de ser instantânea. Os módulos perceptivos podem muito bem receber uma série de estímulos proximais, ao longo de um intervalo de tempo, antes de processar uma percepção resultante. O processo não deixaria de ser linear por isso. E a consideração central do defensor da concepção linear continuaria a mesma: a causa proximal que antecede a percepção resultante poderia ser simulada por intervenção direta sobre o sistema perceptivo, produzindo uma alucinação indistinguível da percepção que teríamos, em condições normais.

Além disso, ainda que em situações normais possamos distinguir uma experiência como perceptiva ou verossímil, em função da sua coerência com uma série de experiências sucessivas, nada impede que essa série de experiências seja obtida por uma série de intervenções diretas sobre o sistema perceptivo. Assim, embora pareça à primeira vista que eu possa perceber um celeiro real ao me locomover lateralmente a ele, para detectar que não se trata de uma fachada de celeiro, a alucinação indistinguível de um celeiro poderia ser produzida ao longo do tempo por uma sequência de intervenções diretas sobre o sistema perceptivo. Se a locomoção e o movimento significam apenas se submeter a mais estímulos, não é claro que a concepção linear da percepção não possa acomodá-los e manter aberta a possibilidade da indistinguibilidade natural.

6 A suposição da linearidade

Para contornar essa dificuldade, temos de deixar mais claro como a psicologia ecológica deixa de lado a suposição da linearidade. A concepção linear, recordemos, é a de que a percepção resulta de uma entrada sensorial e, sozinha ou em conjunto com operações cognitivas adicionais, pode ser a causa de saídas motoras. Se, no entanto, aceitamos que a saída motora retroalimenta o sistema perceptivo, não apenas porque ela indiretamente afeta os estímulos que chegam do ambiente, mas principalmente porque ela traz informação motora que poderá compor em conjunto com as entradas sensoriais informação relevante para o sistema perceptivo, então, a suposição da linearidade foi abandonada. A causalidade por trás da percepção assim entendida dinamicamente é circular. A saída motora é tanto efeito quanto causa da percepção (HURLEY, 2002HURLEY, S. L. Consciousness in action. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2002., p. 419). A concepção ecológica da percepção é francamente dinâmica. Isso fica ainda mais explícito na discussão de Gibson sobre o critério para distinguir percepções de alucinações.

De acordo com Gibson, as experiências que são insensíveis à locomoção ou ao movimento dos olhos não são perceptivas, pois, nesses casos, não estamos diante de algo que pode ser explorado, focado, determinado mais precisamente etc. É o caso, por exemplo, das imagens residuais: para onde quer que olhemos, elas permanecem na mesma região do nosso campo visual, de sorte que não conseguimos nos aproximar ou nos afastar delas, nem focar ou ampliar os seus detalhes. Simplesmente não há, nesse caso, informação ambiental para ser explorada, e as saídas motoras não retroalimentam a percepção, não tendo qualquer efeito sobre a experiência da imagem residual. Essas considerações apontam para um bom critério para distinguir experiências perceptivas de experiências não perceptivas:

Sempre que o ajuste dos órgãos perceptivos produz uma mudança correspondente na estimulação, há uma fonte externa de estimulação e o agente está percebendo. Sempre que o ajuste dos órgãos perceptivos não produz nenhuma mudança correspondente na estimulação, não há uma fonte externa de estimulação e o agente está imaginando, sonhando ou alucinando. (GIBSON, 1970GIBSON, J. J. On the Relation between Hallucination and Perception. Leonardo, v. 33, n. 2, p. 425-427, 1970., p. 426).

Note-se que a afirmação de Gibson não é que o ajuste dos órgãos perceptivos tenha algum impacto na estimulação. Isso a concepção linear pode acomodar, já que qualquer ajuste dos órgãos perceptivos implicará que o agente assume uma nova perspectiva em relação ao ambiente e, portanto, receberá estímulos diferentes. A sua afirmação é que os ajustes produzem mudanças correspondentes na estimulação, que as variações serão equivalentes. As variações podem inclusive ser revertidas, se os ajustes ou movimentos são revertidos (1970, p. 426). Essa variação concomitante ou não é de grande importância. A variação motora junto com a variação da entrada visual, ou de outra modalidade, fornece a informação de complexidade elevada de que a variação da entrada visual se deve à variação motora, e não, por exemplo, a mudanças no ambiente.

Essa informação é vital, por exemplo, para distinguir um objeto que se move em direção do agente do movimento do agente em direção ao objeto, bem como para a percepção da localização dos objetos no espaço egocêntrico. Nesse sentido, a retroalimentação motora pode constituir em parte a percepção de um objeto se movendo ou a percepção de onde se encontra um objeto. A retroalimentação não precisa ser apenas motora e de índole proprioceptiva - ela pode ser e, em muitos casos, ela é visual, isto é, a visão dos próprios movimentos retroalimenta o sistema perceptivo (GIBSON, 2015GIBSON, J. J. The Ecological Approach to Visual Perception. Classical Edition. New York: Psychology, 2015., p. 173), e relações complexas entre ela e outras entradas podem constituir novas percepções. Em virtude dessa retroalimentação dinâmica entre diversos sistemas perceptivos e proprioceptivos, Gibson (2015GIBSON, J. J. The Ecological Approach to Visual Perception. Classical Edition. New York: Psychology, 2015., p. 133) assevera que perceber o mundo envolve perceber a si mesmo.

Se voltarmos ao caso do celeiro, podemos ver agora que há uma diferença, discriminável pelo agente, entre perceber um celeiro enquanto se se locomove ao redor de um e simplesmente receber uma sucessão de estímulos visuais que poderiam dar a impressão de um celeiro que se move. No primeiro caso, temos um fluxo de estimulação que é controlado pelo agente, enquanto ele se sintoniza à informação ambiental, um processo, o qual, como acabamos de explicar, envolve a retroalimentação motora e/ou visual. Ademais, o celeiro pode ser explorado de diferentes maneiras pelo agente, gerando alterações correspondentes no fluxo de estimulação. No segundo caso, temos um fluxo de estimulação passivo, não controlado e, por conseguinte, na melhor das hipóteses, uma imagem mental de um celeiro que não responde aos movimentos do agente. A experiência perceptiva e a experiência alucinatória “correspondente” podem ser similares em vários aspectos, entretanto, além de terem naturezas distintas, elas são perfeitamente distinguíveis.

A contrapartida fenomenológica da retroalimentação dinâmica e da causalidade circular que esta última implica, como já mencionado quando falamos do processo de sintonização para a captura de informação ecológica, é que o ato perceptivo não é instantâneo, ele não se limita ao instante presente mas ocorre ao longo do tempo. Na verdade, a percepção é um ato contínuo (GIBSON, 2015GIBSON, J. J. The Ecological Approach to Visual Perception. Classical Edition. New York: Psychology, 2015., p. 229), uma atividade incessante para a manutenção do contato do organismo com o mundo. Isto é ainda mais saliente na percepção de eventos, em diferentes escalas temporais, como a percepção de um objeto saindo do campo de visão, das folhas de uma árvore caindo ou até mesmo da mudança do clima no planeta Terra (WITHAGEN, 2022WITHAGEN, R. Affective Gibsonian Psychology. New York: Routledge, 2022., p. 37). Em todos esses casos, o organismo controladamente se sintoniza à informação ecológica que está espalhada no tempo, e se abre perceptivamente ao passado. Contrariamente ao que é suposto pela concepção linear, a percepção não está confinada a um instante (GIBSON, 2015GIBSON, J. J. The Ecological Approach to Visual Perception. Classical Edition. New York: Psychology, 2015., p. 300), ela pode se estender retrospectiva e prospectivamente. A sensação normalmente cessa quando a estimulação cessa, mas a percepção não se interrompe por isso (2015, p. 242), pois ela é a detecção de padrões ou invariantes ao longo do tempo através de um processo de sintonização que envolve ciclos de ação e estimulação, isto é, contínuo ajuste dos órgãos sensoriais e exploração do ambiente. Percepção envolve uma causalidade circular, ela não é o efeito instantâneo de estimulações ou de sensações instantâneas.

Por fim, a rejeição da suposição da linearidade torna mais difícil a defesa da tese de que a percepção é superveniente a processos cerebrais apenas, uma vez que saídas motoras e visuais podem constituir novos episódios perceptivos. Os ciclos de percepção-ação envolvem o corpo e o ambiente do agente. Como a psicologia ecológica procura deixar claro, um episódio perceptivo, na medida em que resulta de um processo ativo e dinâmico de sintonização do agente à informação ambiental - informação que, em muitos casos, só emerge através da locomoção e da retroalimentação motora -, não é um evento do cérebro apenas, mas do sistema organismo-ambiente.

7 A suposição da duplicação

Se supomos que a percepção é um processo de sintonização entre organismo e ambiente em que o primeiro controla o fluxo de estimulação para capturar informação ambiental, então, organismo e ambiente estão acoplados e, como já mencionado, há uma simetria entre os estados físicos do organismo e do ambiente. Em outras palavras, organismo e ambiente não são separáveis, sem drásticas consequências para os estados físicos internos do organismo. Segundo enfatiza Costall (1984COSTALL, A. P. Are Theories of Perception Necessary? A Review of Gibsons’s The Ecological Approach to Visual Perception. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, v. 41, n. 1, p. 109-115, jan. 1984., p. 113), Gibson esforçou-se para negar “[...] a ideia de que o organismo pode ser tomado como se ele pudesse existir fora de qualquer tipo de coordenação com um ambiente.” Se alterarmos o ambiente, alteramos os estados físicos do organismo e, por conseguinte, os estados perceptivos que, na abordagem ecológica, são supervenientes ao sistema organismo-ambiente.

A concepção linear, contudo, dá suporte à suposição de que os estados físicos internos do organismo poderiam ser os mesmos, embora em ambientes bem distintos, bastando manter as causas proximais as mesmas. Susan Hurley chama essa suposição de “suposição da duplicação” (HURLEY, 2002HURLEY, S. L. Consciousness in action. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2002., p. 294). Trata-se de uma suposição comum nos debates entre externistas e internistas acerca do conteúdo mental. Nos experimentos de pensamento envolvendo Terras Gêmeas, somos convidados a imaginar um mundo que, na aparência, é idêntico ou muito semelhante ao nosso, contudo, que possui alguma substância, como o equivalente deles para a água, cuja estrutura física ou química mais profunda é diferente da estrutura da substância correspondente no nosso mundo.

Supõe-se ainda que um humano na Terra e o seu doppelgänger nesse mundo imaginário têm os mesmos estados físicos internos. A disputa é sobre se as diferenças ambientais importam para a fixação do conteúdo dos estados mentais desses indivíduos. Internistas sustentam que não, enquanto externistas sustentam que sim. Curiosamente, conjuntivistas e disjuntivistas, tanto negativos quanto positivos, na medida em que aceitam a suposição da indistinguibilidade e a da linearidade, parecem acatar também algo muito próximo da suposição da duplicação: desde que as causas proximais sejam as mesmas, os estados físicos internos do percebedor serão os mesmos. A disputa é sobre se as diferenças ambientais - a presença e a ausência do objeto distal O, em diferentes situações - importam constitutivamente para a natureza do estado experiencial do percebedor. Conjuntivistas sustentam que não e disjuntivistas (não ecológicos) sustentam que sim. O disjuntivista ecológico rejeita a suposição da duplicação e, portanto, rejeita a questão colocada nesses termos, embora concorde com os disjuntivistas não ecológicos em que a percepção envolve o mundo. A rejeição da suposição da duplicação é um caminho alternativo para negar a concepção da mente como interna (HURLEY, 2002HURLEY, S. L. Consciousness in action. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2002., p. 297).

A suposição da duplicação até parece trivial, quando consideramos um percebedor parado, recebendo estímulos num instante particular. Mas já vimos que o percebedor típico, segundo a psicologia ecológica, é um que se move e cujo sistema perceptivo é equipado com retroalimentação dinâmica. Segundo Susan Hurley, a retroalimentação dinâmica coloca um desafio difícil para a suposição da duplicação, o que já era de se esperar, visto que ela ataca também a suposição da linearidade. Hurley nos convida a imaginar em detalhes alguns casos de inversão, para explicitar as dificuldades de duplicação que normalmente são ignoradas em muitos experimentos de pensamento do tipo Terra Gêmea. Uma inversão mais simples seria o caso da Terra Invertida Verde-Vermelho, onde tudo que é verde na Terra é vermelho na Terra Invertida e vice-versa (HURLEY, 2002HURLEY, S. L. Consciousness in action. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2002., p. 299).

Além disso, os habitantes da Terra Invertida chamam as coisas verdes de “vermelhas” e as coisas vermelhas de “verdes”. Imaginemos agora a Maria e a Maria Invertida e que elas interagem normalmente com os seus ambientes, em uma série de atividades cotidianas. O caso de “agentes” estáticos não nos interessa. Poderão Maria e Maria Invertida ter os mesmos estados físicos internos? Certamente que não. Quando Maria estiver olhando para algo vermelho na Terra, Maria Invertida estará olhando para algo verde na Terra Invertida. Ondas eletromagnéticas de diferentes comprimentos atingirão as retinas de Maria e Maria Invertida e, por conta disso, elas terão estados físicos internos distintos. Contudo, nesse caso, não é difícil conceber um dispositivo para viabilizar a duplicação. Maria Invertida poderia ser equipada com lentes que revertem a luz verde para a vermelha e vice-versa. Desde que se suponha que os estados físicos da lente não façam parte dos estados internos da Maria Invertida, os estados físicos internos de Maria e Maria Invertida podem ser duplicados, ao longo de suas interações com os seus respectivos ambientes.

Outros mundos invertidos geram dificuldades maiores, como é o caso da Terra Invertida Esquerda-Direita (HURLEY, 2002HURLEY, S. L. Consciousness in action. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2002., p. 302). Para diferenciá-lo do caso anterior, chamemos esse mundo de “Terra Espelho”. Imagine-se que tudo que está à esquerda de Maria está à direita da Maria Espelho e vice-versa. O que precisaríamos fazer para tornar a duplicação possível? Certamente, Maria Espelho precisaria usar lentes que revertem raios luminosos que vêm da esquerda, para que alcancem a sua retina, como se viessem da direita e vice-versa. Todavia, isso só vai funcionar enquanto Maria e Maria Espelho estiverem com os olhos fixos e não se moverem. Imagine-se que haja uma bola à esquerda de Maria e que ela mova a sua mão para a esquerda, na direção da bola. Como a bola na Terra Espelho está à direita de Maria Espelho, ela vai mover a sua mão esquerda para uma direção onde não há bola alguma. Além disso, devido às lentes inversoras, ela verá a sua mão esquerda do lado direito e movendo-se para a direita. As relações normais, em relação a Maria, entre saída motora e retroalimentação visual, foram alteradas.

De modo semelhante, as relações entre a retroalimentação visual e a retroalimentação proprioceptiva foram igualmente alteradas. Maria Espelho vê sua mão se movendo para a direita, mas sente que ela se move para a esquerda. Para contornar essas dificuldades e tornar a duplicação possível, precisamos de mais dois dispositivos. Maria Espelho tem de ser equipada com um reversor motor, o qual reverta os sinais acerca de qual mão Maria Espelho vai mover, mas também em que direção. Assim, o mesmo sinal motor que acompanha a mão esquerda de Maria se movendo para a esquerda deverá acompanhar a mão direita de Maria Espelho se movendo para a direita.

Mas isso ainda não é suficiente: também precisamos de um reversor proprioceptivo. Maria Espelho, devido ao reversor motor, estará movendo a sua mão direita para a direita, enquanto Maria estará movendo a sua mão esquerda para a esquerda. Os sinais proprioceptivos de Maria e Maria Espelho serão, portanto, distintos. O reversor proprioceptivo deve reverter esses sinais. Ao mover a sua mão direita para a direita, Maria precisa sentir que a mão que ela vê à sua esquerda (devido às lentes reversoras) se move para a esquerda também. Parece que agora obtivemos a duplicação.

No entanto, a introdução destes dois últimos dispositivos, sem entrar nos detalhes de como seriam realmente viáveis, força um recuo quanto ao que constitui os limites internos de Maria e Maria Espelho. Os músculos e nervos motores terão de ficar de fora, já que seus estados serão diferentes em Maria e em Maria Espelho. Para manter a possibilidade da duplicação, será preciso, na melhor das hipóteses, recuar até o sistema nervoso central, supondo que os dispositivos mencionados possam ser implementados alterando apenas os sistemas neuronais periféricos, o que não é óbvio (HURLEY, 2002HURLEY, S. L. Consciousness in action. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2002., p. 312).

Susan Hurley concebe em detalhes mais um caso de mundo adulterado, a Terra Esticada, em que os objetos nesse mundo sofrem uma distorção na vertical, isto é, eles são esticados para ter o dobro da altura dos seus correspondentes na Terra (2002, p. 314-318). Apenas o sistema nervoso central dos seus habitantes não sofre essa distorção. Deixo os detalhes acerca dos ajustes necessários para a duplicação para o leitor; o ponto central de Hurley é que, nesse caso e em muitos outros, fica cada vez mais difícil preservar mesmo o sistema nervoso central para fazer justiça às complexas relações entre saídas motoras, sinais visuais e proprioceptivos, em um sistema perceptivo dinâmico. A parcela de estados físicos internos que podem ser preservados como os mesmos é cada vez menor, o que levanta a forte suspeita de que a mente não deve ser superveniente aos limites do corpo, ao sistema nervoso central ou a um conjunto ainda mais estreito de neurônios, para não mencionar o caráter cada vez mais artificial de como vamos, nesses recuos, traçando os limites entre o interno e o externo. Assim, a estratégia de recuo parece fadada ao fracasso.

Ao contrário, devemos ir na direção oposta. A mente, como preconiza a abordagem ecológica, é superveniente ao sistema organismo-ambiente, no qual ambos são vistos como complementares.11 11 Uma das preocupações da psicologia ecológica é encontrar o nível adequado de descrição das ações de um organismo e do ambiente onde essas ações ocorrem. Assim, deve-se distinguir o mundo físico, que é desprovido de significado para o organismo, do ambiente, o qual é descrito em escala ecológica, em termos relativos a um organismo. Nesse nível de descrição, também conhecido como princípio da mutualidade, ambiente e organismo são correlatos (LOBO; HERAS-ESCRIBANO; TRAVIESO, 2018, p. 5). Segundo afirma Gibson, “[...] nenhum animal poderia existir sem um ambiente circundando-o. De modo semelhante, embora não tão óbvio, um ambiente implica um animal a ser circundado.” (GIBSON, 2015, p. 4). O ambiente em que o organismo vive, em relação ao qual ele faz discriminações e onde ele age, é o mundo de abrigos, tocas, caminhos, presas, predadores etc. Isso no que diz respeito ao espaço ecológico. Quanto ao tempo ecológico, o ambiente do organismo é constituído de eventos na escala que lhe é significativa: o organismo acorda, busca alimentos, se alimenta, cuida e alimenta a prole, foge e se esconde de predadores, repousa etc. Unidades métricas são inadequadas para descrever o ambiente do organismo, seja o seu aspecto espacial, seja o seu aspecto temporal. Na mesma linha, Susan Hurley sugere que a mente esteja centrada no que ela chama de singularidade dinâmica: “[...] um sistema dinâmico contínuo e complexo centrado em um organismo ativo, com ciclos de retroalimentação que podem ter órbitas tanto externas quanto internas.” (2002, p. 333). A fronteira do que é interno e externo à mente pode, assim, envolver elementos que estão fora do corpo, na medida em que a retroalimentação dinâmica envolve porções do ambiente. Essa fronteira é também fluida, podendo se alterar com o tempo. De acordo com a abordagem ecológica, os elementos fora do corpo que compõem o ambiente do organismo e que, por conseguinte, fazem parte da base material da sua mente são aquelas parcelas do mundo físico ao qual o organismo está sintonizado. Como vimos, há uma estreita simetria entre os estados do organismo e os estados do ambiente ao qual o primeiro está sintonizado. Não é à toa, portanto, que seja inviável desacoplar uma organismo do seu ambiente para acoplá-lo a um outro bem diferente e mantê-lo como tendo a mesma mente ou como tendo os mesmos estados internos que teria, no ambiente original. E, se é assim, não parece haver razões para se pensar que os episódios de percepção e as alucinações “correspondentes” sejam indistinguíveis, pois elas terão dinâmicas e marcas motoras e proprioceptivas bem distintas, embora possam ter alguns elementos sensoriais em comum.

8 E o cérebro numa cuba?

A possibilidade de sermos cérebros encubados não vai de encontro a tudo o que eu disse até agora? Não parece perfeitamente concebível que um cérebro encubado fosse estimulado para ter as mesmas experiências que temos, vindicando, assim, as suposições da indistinguibilidade, da linearidade e da duplicação? Como afirmei na Seção 5.1, estou interessado em possibilidades naturais, não em possibilidades conceptuais ou metafísicas. Logo, o que temos de avaliar é se poderíamos mesmo encubar um cérebro ou em que circunstâncias ele poderia ser encubado. Novamente, os detalhes fazem toda a diferença.

Essa questão foi abordada por Evan Thompson e Diego Cosmelli (2011THOMPSON, E.; COSMELLI, D. Brain in a Vat or Body in a World? Brainbound versus Enactive Views of Experience. Philosophical Topics, v. 39, n. 1, p. 163-180, 2011.), cuja conclusão é que dificilmente podemos encubar um cérebro, a não ser que o façamos através de um corpo substituto o qual emule a intrincada dinâmica de interações que o cérebro tem com o nosso corpo habitual. Para início de conversa, precisamos de um líquido que envolva o cérebro e que possa absorver os subprodutos das suas reações químicas. Precisamos também de sangue e um sistema vascular por meio do qual nutrientes chegam a diversas partes do cérebro. Não há como fazer circular o sangue sem alguma bomba, algo que cumpra o papel do coração. Além disso, é necessário acoplar um sistema de reciclagem para manter o nível de oxigênio e açúcar no sangue e para eliminar outros resíduos. O próprio sistema circulatório deve estar acoplado ao cérebro, já que a quantidade de sangue a ser enviada para diferentes regiões do cérebro depende da própria atividade intrínseca do cérebro, isto é, do que ele está fazendo no momento.

Essas são as condições mínimas para manter o cérebro vivo. Ademais, queremos que ele tenha uma atividade normal. Sabemos que o cérebro é um sistema dinâmico autônomo, isto é, ele tem atividade intrínseca. O cérebro não age apenas em resposta a estímulos, ele está continuamente ativo. Para manter a sua atividade interna intrínseca e a sua homeostase, as conexões com os demais sistemas precisam ser finas. O cérebro precisa ter mapas desses sistemas, a fim de regular a sua atividade, e também deve poder ter algum controle sobre esses sistemas, conforme já vimos, no caso do sistema vascular. Em conjunto, esses sistemas formam um emaranhado dinâmico.

Quanto aos estímulos sensoriais, eles têm de ser do mesmo tipo e da mesma complexidade dos estímulos que o nosso cérebro tem, em virtude da sua fina conexão com o nosso corpo. Imagine-se a variedade de configurações que o nosso corpo assume e como elas afetam continuamente o cérebro. Tudo isso precisa ser emulado pela cuba, por meio de encaixes neuroquímicos perfeitos. Não só essas entradas, mas, como vimos, as saídas do cérebro que retroalimentam os sistemas perceptivos também têm de ser contempladas. Visto que o sistema responsável pelos estímulos afeta a atividade do cérebro, ele precisa estar bem integrado ao cérebro e aos demais sistemas, para não atrapalhar ou até mesmo inviabilizar o cérebro, na manutenção da sua atividade interna. A sobrecarga de estímulo pode ser fatal para o cérebro. Como nos demais casos, o cérebro precisa controlar como será estimulado. Ou seja, a cuba deverá ser equipada com sistemas sensoriomotores. Assim, o nosso cérebro numa cuba se parece agora com um agente sensoriomotor autônomo e que interage com o seu entorno.

Essas considerações levaram os autores a concluir que “[...] qualquer ‘cuba’ adequadamente funcional será um corpo substituto. Não queremos dizer que será um corpo como o nosso na sua composição material, mas um suficientemente semelhante ao nosso na sua organização funcional.” (THOMPSON; COSMELLI, 2011THOMPSON, E.; COSMELLI, D. Brain in a Vat or Body in a World? Brainbound versus Enactive Views of Experience. Philosophical Topics, v. 39, n. 1, p. 163-180, 2011., p. 172). Dessa maneira, o mínimo para se ter uma criatura consciente não é apenas o cérebro, porém, um organismo, compreendido como um sistema que se autorregula e que é composto por subsistemas neurais e extraneurais fortemente entrelaçados. E, retomando a minha conclusão da seção anterior, para continuar a ter os mesmos estados mentais que tinha antes, esse novo organismo terá de habitar o mesmo ambiente que era habitado pelo corpo anterior ou um muito semelhante a ele.

Considerações Finais

O argumento causal depende de uma série de suposições que não parecem resistir a um exame mais detalhado. Os sistemas perceptivos são dinâmicos, especialmente se supomos um percebedor que se move no seu ambiente. Ao considerar a retroalimentação dinâmica, somos levados à conclusão de que os estados perceptivos envolvem o ambiente. Essa conclusão também é apoiada pela abordagem ecológica. Organismo e ambiente são complementares. A imagem que emerge da mente é a de uma singularidade dinâmica centrada no organismo e permeada pelo ambiente no qual ele habita. Estados mentais são estados do sistema organismo-ambiente e, portanto, têm uma base material mais ampla que a do corpo ou a do cérebro apenas. Um cérebro encubado e mentalmente vivo é uma quimera.

O argumento causal é um problema para disjuntivistas que assumem a concepção linear da percepção. Esses disjuntivistas, por aceitarem a suposição da indistinguibilidade, se veem pressionados ou a fornecer uma explicação misteriosa para a alucinação, ou a assumir uma relação de contato direto que não parece ter qualquer papel na explicação da fenomenologia da experiência perceptiva. O disjuntivismo ecológico está livre dessas dificuldades, pois rejeita a concepção linear da percepção. Episódios de percepção são distintos dos “correspondentes” episódios de alucinação: os primeiros, mas não os segundos, envolvem a captura de informação ambiental. Percepção e alucinação podem ser distinguidos pelo percebedor. A percepção é uma experiência controlada de sintonização à informação, enquanto a alucinação é passiva e refratária às atividades de exploração e sintonização. A abordagem ecológica se limita à possibilidade natural. Para além desse limiar, o que encontramos é uma intensa neblina conceitual. Nessas condições, ainda que despertos e alertas, não há nada que consigamos ver com clareza.

Referências

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  • 1
    Este trabalho contou com o apoio da CAPES e auxílio financeiro do CNPq, projeto n° 307872/2018-1.
  • 3
    Tyler Burge introduziu a noção de elemento comum fundamental, para evitar que a negação da concepção conjuntiva fosse concebida como a rejeição de qualquer elemento comum. Isso seria um espantalho da concepção disjuntiva, já que ela coincidiria, então, com a tese de que o episódio perceptivo e o episódio de alucinação correspondente não têm nenhum elemento em comum. A negação da concepção conjuntiva deve ser feita em relação ao alegado elemento comum fundamental, o qual cumpre um papel decisivo e não eliminável na classificação e explicação dos tipos de estados experienciais (BURGE, 2011BURGE, T. Disjunctivism Again. Philosophical Explorations, v. 14, p. 43-80, nov. 2012., p. 47).
  • 4
    Para uma discussão detalhada desse argumento, veja-se Carvalho (2015CARVALHO, E. M. O Argumento da Ilusão/Alucinação e o Disjuntivismo: Ayer versus Austin. Sképsis, v. VIII, n. 12, p. 85-107, 2015.)
  • 5
    Para uma apresentação e discussão mais extensa do argumento causal, vejam-se Johnston (2004JOHNSTON, M. The Obscure Object of Hallucination. Philosophical Studies, v. 120, n. 1, p. 113-183, 1 jul. 2004., p. 115-120) e Soteriou (2016SOTERIOU, M. Disjunctivism. Oxon: Routledge, 2016., p. 158-169).
  • 6
    Vários gibsonianos, no entanto, se engajaram de modo mais sistemático com a discussão do realismo direto (SHAW; BRANSFORD, 1977SHAW, R.; BRANSFORD, J. Introduction: Psychological Approaches to the Problem of Knowledge. In: SHAW, R.; BRANSFORD, J. (ed.). Perceiving, Acting and Knowing: Toward an Ecological Psychology. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates, 1977. p. 1-39.; SHAW; TURVEY; MACE, 1982SHAW, R. E.; TURVEY, M. T.; MACE, W. M. Ecological Psychology: The Consequence of a Commitment to Realism. In: WEIMER, W.; PALERMO, D. (ed.). Cognition and the Symbolic Processes II. Hillsdale, NJ: Lawrence Erlbaum Associates, 1982. v. 2, p. 159-226.; TURVEY et al., 1981TURVEY, M. T. et al. Ecological Laws of Perceiving and Acting: In Reply to Fodor and Pylyshyn (1981). Cognition, v. 9, n. 3, p. 237-304, 1981.).
  • 7
    Como a informação ecológica requer uma relação de um para um entre um padrão de energia e a sua causa distal, não há como esse padrão de energia estar presente, sem que a sua causa distal também esteja. Por conseguinte, a captura da informação é suficiente para estabelecer a relação de contato direto com uma affordance ambiental, e nenhuma inferência é requerida (REED, 1983REED, E. S. Two Theories of Intentionality of Perceiving. Synthese v. 54, n. 1, p. 85-94, 1983., p. 90).
  • 8
    Como argumentam Shaw, McIntyre e Mace (1974SHAW, R.; MCINTYRE, M.; MACE, W. M. The Role of Symmetry in Event Perception. In: Perception: Essays in Honor of James J. Gibson. Ithaca: Cornell University Press, 1974. p. 276-310., p. 278), “[...] um organismo possui o máximo grau de adaptação ao seu ambiente quando o maior grau de simetria existe entre os seus estados (tanto biológico quanto psicológico) e os estados do seu ambiente.”
  • 9
    Complementarmente, é importante chamar a atenção para o fato de que a informação ambiental é ela mesma relativa a nichos. Conforme Turvey (1981TURVEY, M. T. et al. Ecological Laws of Perceiving and Acting: In Reply to Fodor and Pylyshyn (1981). Cognition, v. 9, n. 3, p. 237-304, 1981., p. 276) exemplifica, certos padrões do campo bioelétrico, no nicho de tubarões, especificam linguados, embora, fora desse nicho, possam estar correlacionados com outras coisas. Mas isso não significa que, fora do seu nicho, o tubarão teria percepções errôneas. Na verdade, fora do seu nicho, não há informações ambientais às quais o organismo esteja sintonizado e, portanto, a sua habilidade perceptual não é exercida. Como defendi no artigo em que introduzi o disjuntivismo ecológico, o nicho é uma condição habilitadora para o exercício de habilidades perceptuais, de modo que estas não são exercidas fora dos ambientes nos quais foram adquiridas (CARVALHO, 2021CARVALHO, E. M. An ecological approach to disjunctivism. Synthese, v. 198, p. 285-306, jan. 2021., p. S290). Essa restrição está conectada ao princípio da mutualidade da psicologia ecológica. As habilidades dos organismos e as características do ambiente são complementares, devendo ser entendidas umas em referência às outras. Veja-se a nota 11 do presente artigo. Agradeço a um dos pareceristas anônimos por chamar a minha atenção para esse ponto.
  • 10
    A possibilidade natural de que sempre podemos gerar uma alucinação indistinguível de uma experiência perceptiva parece encontrar respaldo na concepção linear da percepção. Segundo essa concepção, a situação de experimentação ideal seria uma em que o sujeito está imobilizado - corpo, cabeça e possivelmente os olhos - e apenas os seus órgãos sensoriais são estimulados. Desse modo, o efeito psicológico, a experiência do sujeito pode ser correlacionada diretamente com os estímulos sensoriais. No caso da visão, o uso do taquistoscópio auxilia a forjar uma situação desse tipo. O taquistoscópio é um aparelho que permite a projeção de imagens sobre a retina, por um intervalo de tempo bem curto. O sujeito é então convidado a relatar a experiência resultante. Não espanta que, nessas condições, pareça razoável que as experiências assim obtidas possam também ser produzidas intervindo nos eventos cerebrais mais proximais. Consequentemente, o mesmo tipo de experiência poderia ser produzido com ou sem os estímulos nos órgãos sensoriais, vindicando, assim, a indistinguibilidade.
  • 11
    Uma das preocupações da psicologia ecológica é encontrar o nível adequado de descrição das ações de um organismo e do ambiente onde essas ações ocorrem. Assim, deve-se distinguir o mundo físico, que é desprovido de significado para o organismo, do ambiente, o qual é descrito em escala ecológica, em termos relativos a um organismo. Nesse nível de descrição, também conhecido como princípio da mutualidade, ambiente e organismo são correlatos (LOBO; HERAS-ESCRIBANO; TRAVIESO, 2018LOBO, L.; HERAS-ESCRIBANO, M.; TRAVIESO, D. The History and Philosophy of Ecological Psychology. Frontiers in Psychology, v. 9, p. 1-15, nov. 2018., p. 5). Segundo afirma Gibson, “[...] nenhum animal poderia existir sem um ambiente circundando-o. De modo semelhante, embora não tão óbvio, um ambiente implica um animal a ser circundado.” (GIBSON, 2015GIBSON, J. J. The Ecological Approach to Visual Perception. Classical Edition. New York: Psychology, 2015., p. 4). O ambiente em que o organismo vive, em relação ao qual ele faz discriminações e onde ele age, é o mundo de abrigos, tocas, caminhos, presas, predadores etc. Isso no que diz respeito ao espaço ecológico. Quanto ao tempo ecológico, o ambiente do organismo é constituído de eventos na escala que lhe é significativa: o organismo acorda, busca alimentos, se alimenta, cuida e alimenta a prole, foge e se esconde de predadores, repousa etc. Unidades métricas são inadequadas para descrever o ambiente do organismo, seja o seu aspecto espacial, seja o seu aspecto temporal.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2022
  • Aceito
    07 Fev 2023
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