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Por que não somos só o nosso cérebro: em defesa do enativismo

Why we are not only our brain: in defense of enactivism

Resumo:

No artigo “Por que somos o nosso cérebro: o enativismo posto em questão” (neste volume), Pereira e colaboradores levantam uma bateria de críticas ao enativismo, que é uma família de abordagens nas ciências cognitivas que confere centralidade ao corpo e à ação autônoma dos organismos nas explicações dos seus processos cognitivos. As investidas dos autores miram alguns conceitos centrais da proposta enativista, como conhecimento prático, corporificação (ou corporeidade) e regularidades sensório-motoras. Eu argumento que as críticas de Pereira et al. não procedem por razões diversas: algumas assumem o que querem provar, outras conferem peso excessivo a intuições sobre cenários ficcionais e, por fim, outras atacam espantalhos que não representam as posições enativistas. Nenhum dos pontos que levanto em defesa o enativismo são novos, mas considero importantes explicitá-los para tornar o debate sobre filosofia das ciências cognitivas mais claro.

Palavras-chave:
Enativismo; Cognitivismo; Representações Mentais; Falácias

Abstract:

In the article “Why are we our brain: enactivism put into question” (this volume), Pereira and collaborators raise a battery of criticisms of enactivism, which is a family of approaches in the cognitive sciences that gives centrality to the body and to the autonomous action of organisms in explanations of their cognitive processes. The authors’ attacks target some central concepts of the enactivist proposal, such as practical knowledge, embodiment (or corporeity) and sensory-motor regularities. I argue that the criticisms by Pereira et al. do not proceed for different reasons: some assume what they want to prove, others give excessive weight to intuitions about fictional scenarios and, finally, others attack scarecrows that do not represent the enactivist positions. None of the points I raise in defense of enactivism are new, but I consider it important to make them explicit in order to make the debate on the philosophy of cognitive sciences clearer.

Key-words:
Enactivism; Cognitivism; Mental Representations; Fallacies

Introdução

O artigo “Por que somos o nosso cérebro: o enativismo posto em questão”, escrito por Roberto Horácio Sá Pereira, Sérgio Farias de Souza Filho e Victor Machado Barcellos, traz uma bateria de críticas à concepção enativa de cognição apresentada originalmente por Varela et al. (1991/2016VARELA, F. J.; THOMPSON, E.; ROSCH, E. The Embodied Mind. Revised ed. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 2016.). Algumas das críticas são totalmente novas, outras ecoam problemas já enfrentados por enativistas e por outros teóricos da cognição corporificada. De qualquer modo, são pontos que merecem esclarecimento, por parte dos próprios enativistas - os quais, por estarem preocupados em avançar sua tradição de pesquisa, às vezes perdem de vista questões mais básicas. O artigo de Pereira et al. é, portanto, absolutamente meritório em levantar essas questões, e eu considero essa uma excelente ocasião para fazer os devidos esclarecimentos.

No entanto, as críticas apresentadas no artigo alvo são muito menos contundentes do que a retórica dos autores faz parecer. Com efeito, eu mostrarei aqui que todas elas são absoluta e inequivocamente improcedentes. Entre os problemas que eu identifico nos argumentos do artigo de Pereira et al., estão sobretudo petições de princípio, confusões metodológicas e argumentos comprometedoramente entimemáticos. O meu ponto fundamental será reiterar que não é garantida a suposição, da qual se valem os autores, de que as conexões básicas entre mente mundo forjadas biologicamente devam ser caracterizadas em termos semânticos, isto é, envolvendo conteúdo representacional-o assim chamado Problema Duro do Conteúdo.2 2 Eu agradeço a um parecerista por chamar atenção a esse ponto. Dei-me a liberdade de usar suas próprias palavras. Para mostrar as falhas do artigo-alvo, eu comentarei cada seção separadamente. Desse modo, este texto espelhará em estrutura o texto dos autores (embora eu acrescente algumas subseções). Meu objetivo principal aqui é apenas desfazer confusões e desmontar os espantalhos ardilosamente levantados pelos autores. Assim, eu defenderei o enativismo-mas farei isso de um modo minimamente propositivo, pois eu não apresentarei aqui nenhuma tese positiva que já não tenha sido exposta e mais bem fundamentada em outros lugares.

1 Enativismo: uma breve desintrodução

1.1 Que enativismo?

Na seção introdutória do artigo-alvo, a caracterização do enativismo é feita a partir do trabalho recente de Gallagher e Bower (2014GALLAGHER, S.; BOWER, M. Making enactivism even more embodied. Avant, v. 5, n. 2, p. 232-247, 2014.), o qual divide o enativismo em três fases: o enativismo precoce de Varela et al. (1991/2016VARELA, F. J.; THOMPSON, E.; ROSCH, E. The Embodied Mind. Revised ed. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 2016.), o suposto enativismo sobre consciência perceptual de Alva Noë (2004NOË, A. Action in Perception. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 2004.) e o enativismo radical de Hutto e Myin (2013HUTTO, D. D.; MYIN, E. Radicalizing Enactivism: Basic Minds without Content. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 2013.). Os autores estão corretos na compreensão de que todos os enativistas sustentam que “[...] a percepção seria constituída por forma de agir corporificado [ou incorporado] de um organismo” e que isto “[...] dispensaria por completo a noção de representação”, o que, por sua vez, consiste na rejeição da tese segundo a qual “[...] percepção é uma mera recepção passiva do mundo”. Ademais, é consenso entre enativistas que fenômenos cognitivos, como a consciência (mas não apenas) não residem no cérebro, pois envolvem o acoplamento entre sujeito e ambiente. Assim, explicações desses fenômenos exigem considerar a “[...] interação do organismo com os aspectos ambientais.” (PEREIRA et al., p. 519). É a partir desse consenso que os autores apresentam suas malfadadas críticas.

Antes de respondê-las, notemos que um ponto que os autores deveriam destacar-e que Hutto e Myin (2013HUTTO, D. D.; MYIN, E. Radicalizing Enactivism: Basic Minds without Content. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 2013.), Chemero (2009CHEMERO, A. Radical Embodied Cognitive Science. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 2009.) e Di Paolo et al. (2017DI PAOLO, E.; BUHRMANN, T.; BARANDIARAM, X. Sensorimotor Life: An Enactive Proposal. Oxford, New York: Oxford University Press, 2017.) deixam abundantemente claro-é que teóricos da cognição radicalmente corporificada modelam a cognição a partir de técnicas que dispensam conteúdos representacionais. Nesse contexto, ‘conteúdos representacionais’ ou simplesmente ‘representações mentais’ são entendidas como estados internos com condições de acurácia, portadores de informação semântica sobre fontes distais de estímulo (voltaremos a isso na subseção 1.3). Uma ferramenta usada para mostrar a dispensabilidade de conteúdos representacionais é a teoria de sistemas dinâmicos. De acordo com essa teoria, a descrição diacrônica do comportamento de um agente cognitivo através dos seus estados possíveis é complementada pela descrição das variações do ambiente que constituem atratores e repelentes para as variações de estados do agente. Por isso, a situação do agente, ou contexto ambiental, é indispensável para o entendimento de como ação e percepção dão origem a estados cognitivos não representacionais. Além disso, modelos dessa natureza não atribuem um processador central de informação que seria responsável por interpretar estímulos e oferecer respostas motoras de acordo com regras simbólicas (GELDER, 1995GELDER, T. VAN. What might cognition be if not computation? Journal of Philosophy, v. 91, p. 345-381, 1995.). Portanto, não é necessário postular conteúdo representacional para explicar toda cognição-ou seja, a representação mental não é a marca da cognição. É possível, ainda assim, que haja cognição com conteúdo? Sim. Mas toda cognição seria carregada de conteúdo-isto é, seria a cognição necessariamente representacional? Veementemente não.3 3 No caso da primeira pergunta, Hutto e Myin (2017) argumentam ainda que o conteúdo característico da cognição superior (pensar, refletir, inferir, lembrar, imaginar etc.) não é composto de representações mentais, mas de símbolos socioculturalmente distribuídos. Para uma explicação na linha da de Hutto e Myin de como a cognição superior emergiu em nós, humanos, através de um longo processo de manuseio de itens publicamente transmitidos, veja-se Rolla (2022). Outros autores, trabalhando na fronteira entre enativismo e psicologia ecológica, articulam o conceito de affordance para ampliar o escopo de explicações radicalmente corporificadas da cognição superior (KIVERSTEIN; RIETVELD, 2015, 2018; RIETVELD; KIVERSTEIN, 2014). Veja-se Rolla (2021a, capítulo 3), para uma discussão. Um exemplo de cognição sem conteúdo representacional é o nosso acesso ao ambiente imediato, a chamada cognição básica. De acordo com o enativismo, estados cognitivos básicos (como ação e percepção) emergem de exercícios de habilidades sensório-motoras, isto é, habilidades que correlacionam padrões de movimento com padrões de sensação. Enquanto movimento e sensação não possuem intencionalidade, ação e percepção possuem, de modo que as características que emergem na dinâmica sensório-motora não podem ser reduzidas às suas bases emergenciais (sensação e movimento separadamente).

1.2 Que construtivismo?

Ainda na seção de apresentação do enativismo, os autores comentam como essa teoria parece ‘abraçar um antirrealismo ingênuo [pois] sujeito e mundo se constituiriam pelas ações incorporadas do primeiro (sujeito) sobre o segundo (mundo)’ (PEREIRA et al.). Ou seja, ao rejeitar que a cognição envolva o acesso a um mundo pré-dado (‘pregiven’, na expressão de Varela et al. (2016VARELA, F. J.; THOMPSON, E.; ROSCH, E. The Embodied Mind. Revised ed. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 2016.), ou simplesmente dado, o enativismo estaria apenas repetindo o construtitivismo antirrealista presente na fenomenologia de Merleau-Ponty. Isso é falso.

Esse erro do artigo alvo é parcialmente justificado, pois o trabalho inovador de Varela e colaboradores em The Embodied Mind por vezes é demasiado programático. Leitores de primeira viagem podem não perceber o vínculo entre alguns posicionamentos que tipicamente são considerados completamente independentes na filosofia analítica tradicional. Um exemplo é a relação entre os frameworks cognitivista e adaptacionista nas ciências cognitivas e biologia evolutiva, respectivamente. Com efeito, a ideia enativista de codeterminação entre organismo e ambiente só é adequadamente explorada em conjunção com a discussão sobre biologia evolutiva que toma por base os trabalhos de Susan Oyama (2000OYAMA, S. The Ontogeny of Information. 2. ed. Durham, NC: Duke University Press, 2000.) e de Stephen Jay Gould e Richard Lewontin (1979GOULD, S. J.; LEWONTIN, R. C. The spandrels of San Marco and the Panglossian paradigm: a critique of the adaptationist programme. Proceedings of the Royal Society of London - Biological Sciences, v. 205, n. 1161, p. 581-598, 1979.) contra a ortodoxia daquela disciplina. Recentemente, essa discussão foi extensivamente mais bem elaborada por Evan Thompson (2007THOMPSON, E. Mind in Life: Biology, Phenomenology and the Sciences of the Mind. Cambridge, Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press, 2007.), que aprofunda a relação entre a visão enativista de evolução e a teoria dos sistemas desenvolvimentais. A ausência desse debate no artigo de Pereira et al., refletida no modo como os autores descartam o suposto construtivismo enativista, é sintomática de um atalho que, ao invés de levar à terra prometida da “refutação cabal do enativismo”, conduz à total inocuidade dessa crítica pelos autores.

Para desfazer esse engano temerário, consideremos o seguinte. Caso a proposta enativista fosse apenas de avançar uma codeterminação mental (em que o conceito de mente é interpretado internalisticamente) entre agente e mundo, então os enativistas estariam comprometidos com a tese excêntrica de que um sujeito constrói um mundo internamente ao percebê-lo. Ou seja, se aquele fosse ocaso, o enativismo seria de fato uma variação de construtivismo antirrealista. Isso, no entanto, violaria a própria proposta de Varela et al. (1991/2016VARELA, F. J.; THOMPSON, E.; ROSCH, E. The Embodied Mind. Revised ed. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 2016., capítulo 8) de evitar tanto o realismo quanto o antirrealismo. Ambas as visões exerciam certo repuxo na primeira geração das ciências cognitivas. O realismo estaria presente na ideia de que a cognição é o acesso parcial a um mundo externamente dado, e o antirrealismo estaria presente na ideia de que a cognição consiste na projeção de operações cognitivas internamente dadas. Ambas ideias, de viés realista e antirrealista, eram (e ainda são) persuasivas a muitos cientistas cognitivos do lado de fora da tradição enativa.

Para entender como o enativismo de Varela et al. se distancia tanto do realismo quanto do antirrealismo, é imprescindível interpretar o argumento contra o acesso a um mundo dado em conjunção com as observações dos autores de The Embodied Mind a respeito de biologia evolutiva. Como Nara Figueiredo e eu demonstramos recentemente (ROLLA; FIGUEIREDO, 2021ROLLA, G.; FIGUEIREDO, N. Bringing forth a world, literally. Phenomenology and the Cognitive Sciences, 3 ago. 2021.), a ideia de que organismos realizam seu mundo (no original, ‘bring forth their world’) deve ser lida literalmente. Em resumo, as relações metabólicas entre organismo e ambiente causam mudanças em ambos os sistemas e, se as mudanças ambientais são estáveis o suficiente, elas se configuram como heranças ecológicas (não-genéticas) para as gerações seguintes. Nesse caso, a atividade organísmica contínua gera novas pressões ambientais e dirige (indireta e não-teleologicamente) o curso evolutivo dos organismos na medida em que estes realizam seus mundos.

O ponto acima é melhor entendido se atentarmos que, em The Embodied Mind (capítulo 9), os autores argumentam extensivamente contra a teoria então predominante na biologia evolutiva, o adaptacionismo. Segundo essa teoria, o único fator capaz de direcionar a evolução é a adaptação do organismo a pressões externas. (Notemos que essa concepção é análoga ao mantra cognitivista segundo o qual a cognição consiste no ajuste das representações de um organismo a um mundo externamente dado.) Juntos, adaptacionismo e genética mendeliana configuram as bases da assim chamada síntese evolucionária moderna. Embora a síntese evolucionária moderna tenha se tornado predominante na biologia evolutiva, a partir de 1930, atualmente, o fértil programa de pesquisa conhecido como síntese evolucionária estendida (REIS; ARAÚJO, 2020REIS, C. R. M. dos; ARAÚJO, L. A. L. Extended Evolutionary Synthesis: Neither Synthesis Nor Extension. Biological Theory, v. 15, n. 2, p. 57-60, 16 jun. 2020.; LALAND et al., 2015LALAND, K. N. et al. The extended evolutionary synthesis: Its structure, assumptions and predictions. Proceedings of the Royal Society B: Biological Sciences, v. 282, n. 1813, 2015.) é uma alternativa de maior relevância no panorama teórico.

Como Figueiredo e eu demostramos (2021), a concepção enativista de evolução é perfeitamente contemplada por uma das vertentes mais produtivas da síntese evolucionária estendida, a teoria da construção de nicho (LALAND; MATTHEWS; FELDMAN, 2016LALAND, K. N.; MATTHEWS, B.; FELDMAN, M. W. An introduction to niche construction theory. Evolutionary Ecology, v. 30, n. 2, p. 191-202, 2016.; LALAND; ODLING-SMEE; FELDMAN, 2000LALAND, K. N.; ODLING-SMEE, J.; FELDMAN, M. W. Niche construction, biological evolution, and cultural change. Behavioral and Brain Sciences, v. 23, n. 1, p. 131-146, fev. 2000.; LEWONTIN, 1983LEWONTIN, R. Gene, organism, and environment. In: BENDALL, D. S. (ed.). Evolution from molecules to men. Cambridge: Cambridge University Press, 1983., 2000LEWONTIN, R. The Triple Helix: Gene, Organism and Environment. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2000.; ODLING-SMEE; LALAND; FELDMAN, 2003ODLING-SMEE, J.; LALAND, K. N.; FELDMAN, M. W. Niche Construction: The Neglected Process in Evolution. Princeton; Oxford: Princeton University Press, 2003.; STERELNY, 2011STERELNY, K. From hominins to humans: How sapiens became behaviourally modern. Philosophical Transactions of the Royal Society B: Biological Sciences, v. 366, n. 1566, p. 809-822, 2011.). Nessa perspectiva, há uma codeterminação em escala filogenética entre organismo e ambiente. Ou seja, não há mundo externamente dado (tampouco há capacidades cognitivas internamente dadas), pois organismos literalmente constroem seus mundos através de gerações. Basta olhar para a janela para notar que todo o nosso ambiente é construído pela ação de outros seres. Até mesmo a atmosfera terrestre só possui as propriedades que possui por causa de uma longa história de interações biológicas na Terra que antecede o surgimento dos H. sapiens em bilhões de anos. É sem dúvidas um curioso devaneio filosófico pensar o contrário-que o mundo existe lá fora, isto é, dado, antes de qualquer coisa.

1.3 Representações mentais: o planeta Vulcano das ciências cognitivas 4 4 Esta subseção aproveita alguns argumentos que são mais cuidadosamente explorados no meu livro A Mente Enativa (2021a).

Em seguida, os autores discutem a crítica enativista ao conceito de representação mental. Eles apontam que Varela et al. (1991/2016VARELA, F. J.; THOMPSON, E.; ROSCH, E. The Embodied Mind. Revised ed. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 2016.) cometem uma ambiguidade ao interpretar a representação ora como uma imagem mental (análogo ao sense data), ora como um conteúdo que transmite informação. Se essa ambiguidade existe, então o apelo ao representacionalismo (como um dos pilares do cognitivismo junto ao computacionalismo) seria vindicado diante das críticas enativistas.

Enquanto pode muito bem ser o caso que o enativismo precoce de Varela e colaboradores (1991/2016VARELA, F. J.; THOMPSON, E.; ROSCH, E. The Embodied Mind. Revised ed. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 2016.) vale-se de uma ambiguidade sobre o conceito de representação para tecer suas críticas, há uma objeção muito mais contundente no mercado que é devida ao enativismo radical de Dan Hutto e Erik Myin (HUTTO; MYIN, 2013HUTTO, D. D.; MYIN, E. Radicalizing Enactivism: Basic Minds without Content. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 2013., capítulo 4). Embora Pereira e colegas citem diversas vezes o trabalho de Hutto e Myin, os autores do artigo alvo convenientemente esquecem de endereçar a crítica do enativismo radical contra a possibilidade de naturalização de representações mentais. É importante notar que, de acordo com essa crítica, representações são entendidas exatamente ao modo do cognitivismo corrente-sem, portanto, aproximar indevidamente as representações mentais dos sense data. O fato de que, no artigo alvo, não encontramos nenhuma resposta ao problema levantado por Hutto e Myin (porque provavelmente não é possível respondê-lo, como mostro nos parágrafos seguintes), evidencia que qualquer explicação representacionalista oferecida por Pereira e colaboradores saiu suspeitamente barata demais.

O argumento de Hutto e Myin, conhecido como Problema Duro do Conteúdo, é simples: de acordo com cognitivistas, representações mentais são portadoras de informação semanticamente carregada, isto é, informação sobre as fontes distais de estímulos sensoriais. Porém, o único tipo de informação encontrada na natureza é a covariação. Estados naturais covariam confiável ou nomicamente. Pensemos na relação de covariação entre a idade da árvore e o número de anéis no seu tronco, ou entre a presença de fumaça e a presença de fogo etc. Não podemos inferir que um dos termos em uma relação de covariação representa o outro. Números de anéis no tronco da árvore não representam a sua idade-a representação aqui é imputada por nós uma vez que estamos situados em um contexto sociocultural amplo. Por si só, estados naturais são piamente quietistas e não dizem nada sobre ninguém. Ou seja, covariação não implica conteúdo semântico. Agora: por que seriam os estados cerebrais diferentes dos demais estados naturais? Por que um padrão de atividade neuronal seria a representação (ou o veículo de uma representação) sobre uma fonte distal de estímulo, e não simplesmente a covariação confiável (dada uma longa história evolutiva) entre performance cognitiva e objeto de cognição? Ou o cognitivista aceita que existe cognição sem conteúdo (acarretando o enativismo) ou ele nos passa um cheque sem fundo com a promessa de que um dia a física do futuro vai descobrir conteúdos semânticos em estados naturais. A segunda via é naturalisticamente temerosa. Donde se segue que o cognitivista deve dar o braço a torcer e abdicar da representação como a marca da cognição.

Notemos que os enativistas radicais não estão sozinhos nessa objeção: um ponto semelhante foi feito, de dentro do campo cognitivista, por William Ramsey (2007RAMSEY, W. M. Representation Reconsidered. New York: Cambridge University Press, 2007.), segundo o qual o que se chama hoje de ‘representação’ nas ciências cognitivas não satisfaz a tarefa de descrição do trabalho, isto é, não desempenha a função explanatória desejada. Um exemplo de como o conceito de representação mental não executa uma função explanatoriamente imprescindível pode ser encontrado no trabalho do aclamado neurocientista Stanislas Dehaene sobre leitura. Ao contrapor o modelo de processamento paralelo massivo do cérebro ao modelo clássico de processamento linear de informação (duas ideias de fundamento cognitivista), ele escreve que:

Hoje, a visão “arbustosa” [bushy] do cérebro, com várias funções operando em paralelo, substituiu o antigo modelo serial. Pois nós hoje sabemos, depois de termos tentado programar o reconhecimento de formas visuais em computadores, que a visão é complexa e que não pode ser reduzida a uma simples cadeia de “imagens” cerebrais. Várias operações intrincadas são necessárias para o reconhecimento de um único caractere. A análise visual é apenas o primeiro passo da leitura. Subsequentemente, uma variedade de representações distintas deve ser posta em contato: as raízes das palavras, os seus significados, os seus padrões de som, a articulação dos seus esquemas motores. Cada uma dessas operações tipicamente demanda a ativação de simultânea de várias áreas corticais separadas em que as conexões não são organizadas em cadeias lineares. (DEHAENE, 2009DEHAENE, S. Reading in the brain: The new science of how we read. New York: Penguin Books, 2009., p. 64, grifo nosso).

Agora: o que quer dizer “representações”, na passagem acima? A frase seguinte dá a entender que seriam operações do cérebro. Mas, se esse for o caso, não passam de sinais em covariação, isto é, padrões de atividade neuronal ocorrendo de modo ordenado. Isso é insuficiente para caracterizar um estado como representacional. Tendo isso em mente, podemos responder aos autores, quando eles escrevem que “[...] não entendemos como poderíamos prescindir do conceito de conteúdo representacional uma vez que temos que assumir como um fato a possibilidade de erros anti-predicativos se quisermos entender o fracasso das nossas ações.” (PEREIRA et al., 521).

Se a colocação em questão não for interpretada como uma falácia de apelo à ignorância, o modo óbvio de respondê-la é que a falta de uma covariação entre estados internos, ações do organismo e disposições ambientais (ou “erro anti-predicativo”, para usar o vocabulário dos autores) não é suficiente para estabelecer conteúdo representacional-assim como a existência de uma covariação também não o é. O ponto é que a possibilidade de erro, que é um desencontro entre sistema cognitivo e mundo, pode ser explicado pela falta de covariação, não necessitando a introdução de capacidades representacionais (para um aprofundamento nessa questão, veja KIRCHHOFF; ROBERTSON, 2018KIRCHHOFF, M. D.; ROBERTSON, I. Enactivism and predictive processing: a non-representational view. Philosophical Explorations, v. 21, n. 2, p. 264-281, maio 2018.)5 5 Eu agradeço a um parecerista anônimo por essa observação. .

Importantemente, nada disso quer dizer que o enativista deveria se desfazer de todas as magníficas descobertas das ciências cognitivas e da neurociência. Isso seria jogar o bebê proverbial fora junto com a água do banho. O que o enativismo sucede em fazer é rejeitar que essas descobertas impliquem conteúdo representacional, apesar do vocabulário representacionalista herdado da primeira geração das ciências cognitivas. Ou seja, mesmo que as nossas técnicas de modelagem envolvam uma linguagem computacional, não podemos projetar a linguagem dessas técnicas para o objeto-alvo dos nossos modelos. Posto de outro modo, o cérebro não é um cientista homuncular fazendo cálculos e previsões sobre o mundo (BRUINEBERG; KIVERSTEIN; RIETVELD, 2018BRUINEBERG, J.; KIVERSTEIN, J.; RIETVELD, E. The anticipating brain is not a scientist: the free-energy principle from an ecological-enactive perspective. Synthese, v. 195, n. 6, p. 2417-2444, jun. 2018.), mas uma parte de um sistema que opera, quando tudo vai bem, em sintonia com o resto do corpo e com o ambiente distal. Em relação a isso, a crítica enativista mostra a inviabilidade do projeto de naturalizar representações mentais (a não ser, é claro, que aquela física do futuro se concretize, de modo a mostrar-nos como um estado natural possa vir a ter propriedades semânticas).

Esse último ponto pode ser pensado nos termos da seguinte analogia: representações mentais são como o planeta hipotético Vulcano. Como se sabe, a observação de perturbações na órbita de Urano por Urbain Le Verrier levou-o a postular a presença do planeta Netuno, cuja existência só foi observada posteriormente. Mais tarde, a constatação da precessão do periélio de Mercúrio promoveu o mesmo tipo de reação nos astrônomos. Sob a suposição de que as perturbações observadas só poderiam ser causadas por um planeta até então não observado e situado entre Mercúrio e o Sol, deu-se início a uma caçada por um planeta hipotético, Vulcano. Essa caçada acabou quando Einstein mostrou que as distorções observadas deviam-se a um corpo massivo (o Sol) cuja magnitude seria capaz de curvar ondas eletromagnéticas viajando no espaço. De modo semelhante, a primeira geração das ciências cognitivas modelou a cognição de cima para baixo, começando com performances típicas da cognição superior, como a linguagem e o raciocínio. Esse ponto de partida parece autorizar a suposição de que toda cognição é marcada por representações, o que ensejou a busca pela representação mental dentro do paradigma naturalista. Mas assim como a busca por Vulcano acabou com a descoberta de Einstein, a busca pela naturalização das representações mentais deveria ter acabado quando foi demonstrado que não é preciso postular representações para explicar toda a qualquer cognição.6 6 Agradeço a Thales Silva por essa última observação.

2 Se minha vó tivesse rodas, ela seria uma bicicleta

2.1 Por que “não cognitivo”?

Ao fim da primeira seção, os autores fazem um anúncio da crítica a ser desenvolvida na seção seguinte. O alvo é a epistemologia enativista, que é centrada na noção de know-how (MYIN; VAN DEN HERIK, 2020MYIN, E.; VAN DEN HERIK, J. C. A twofold tale of one mind: revisiting REC’s multi-storey story. Synthese, 5 set. 2020.; ROLLA; HUFFERMANN, 2021ROLLA, G.; HUFFERMANN, J. Converging enactivisms: radical enactivism meets linguistic bodies. Adaptive Behavior, 2021.)7 7 Os autores também mencionam o trabalho de Stanley e Williamson (2001), os quais defendem que o conhecimento prático é um tipo de conhecimento proposicional - uma tese conhecida como intelectualismo. Embora Pereira et al. não se apoiem diretamente sobre essa proposta, devo tratar brevemente sobre ela. Stanley e Williamson argumentam que saber fazer x é semanticamente semelhante a saber que P é o caso - pois saber fazer x implicaria que se sabe, acerca de um modo M, que M é o modo correto de fazer x. No entanto, há uma lacuna no argumento intelectualista, pois Stanley e Williamson reconhecem um “modo prático de apresentação” implicado exclusivamente no conhecimento prático. Isto é, mesmo que faltem as palavras a um sujeito para explicar como ele sabe fazer algo, ele é capaz de mostrar que este é o jeito certo fazer algo. Isso pode envolver, por exemplo, demonstrar o jeito certo de fazer algo. Anti-intelectualistas prontamente respondem que não está claro como um modo prático de apresentação ou uma maneira prática de pensar (como STANLEY, 2011, coloca) não estariam ligados à noção de habilidade ou a qualquer outra noção central ao conhecimento prático. Dessa forma, o recurso empregado pelos intelectualistas para dar conta da intuição de que há algo de distintivo no conhecimento prático pode ser considerado meramente ad hoc. . Segundo o enativismo, o comportamento de um agente na exploração ativa do ambiente em que está inserido pode ser entendido como um saber fazer ou um saber como. Esse tipo de conhecimento é inteiramente prático e envolve apenas o exercício de habilidades sensório-motoras. Portanto, não envolve representar como o ambiente está disposto, tampouco ter crenças verdadeiras justificadas sobre o ambiente. Pereira et al. tratam esse tipo de conhecimento como ‘destituído de sentido cognitivo’ (minha ênfase). Mas isto é interessante: qual o sentido de ‘cognitivo’ está em jogo aqui? Neste ponto os autores cometem uma flagrante petição de princípio. Vejamos.

Um ponto fundamental que não é explicitado em nenhum momento no artigo alvo é que o conceito de cognição para enativistas é diferente do conceito de cognição para cognitivistas, dado que o enativismo rejeita que representações sejam a marca do mental. Enquanto cognitivistas defendem que a cognição é o processamento de informações pela articulação de representações, enativistas entendem que a cognição é uma ação exploratória autônoma do organismo acerca do seu ambiente. Essa ideia pode ser interpretada através do conceito de meta-metabolismo (MORENO; UMEREZ; IBAÑEZ, 1997MORENO, A.; UMEREZ, J.; IBAÑEZ, J. Cognition and Life: The Autonomy of Cognition. Brain and Cognition, v. 34, n. 1, p. 107-129, jun. 1997.; WERNER, 2020WERNER, K. Enactment and construction of the cognitive niche: toward an ontology of the mind-world connection. Synthese, v. 197, n. 3, p. 1313-1341, 2020.). A ideia é que organismos com sistema nervoso suficientemente desenvolvidos são capazes de ajustar, adaptar e facilitar seus processos metabólicos pela exploração ativa do ambiente, e por isso a cognição é evolutivamente adaptativa. Desse modo, percepção e ação são performances inegavelmente cognitivas, pois sem elas o organismo ficaria a mercê de recursos ambientais (como as criaturas da biota Ediacarana antes da explosão Cambriana).

Então por que o know-how (saber fazer) seria de “desprovido de sentido cognitivo”? Não seria cognitivo, é claro, se estivéssemos pensando a cognição como exclusivamente o que hoje se chama de ‘cognição superior’: pensar, raciocinar, descrever etc., pois todas essas performances envolvem a manipulação de símbolos. Mas é perfeitamente cabível tratar a interação de um agente com o mundo em termos de cognição básica, isto é, a exploração ativa do ambiente imediato sem o intermédio de conteúdo representacional. Tratar o conhecimento prático (sem representações e proposições) como nãocognitivo é pressupor resolvida, a favor do cognitivismo, a questão sobre o que é ou não cognição. Mas isso é exatamente que está em disputa, e por isso os autores cometem uma petição de princípio.

2.2 Quanto vale uma intuição?

Mas isso não vem ao caso, até porque Pereira e colaboradores provavelmente sustentariam que, por ‘cognitivo’, devemos entender ‘proposicional’-e que talvez percepção e ação sejam cognitivas apenas em um sentido menos interessante do termo. Ainda assim, há problemas notáveis nessa segunda bateria de argumentos. Eu identifico, em especial, um grave erro metodológico: os autores insistem que as nossas ‘intuições pré-teóricas’ (PEREIRA et al.) sobre casos ficcionais ou parcialmente ficcionais nos mostrariam que as teses enativistas são, nas palavras dos autores, ‘nonsense’ (PEREIRA et al.).

Antes de apresentar esses argumentos e respondê-los detalhadamente, eu gostaria de discutir algo que os autores colocam para debaixo do tapete: qual o valor das nossas “intuições pré-teóricas” sobre casos contrafactuais quando elas são aplicadas para o mundo real? Nossas intuições podem nos dizer uma coisa ou outra sobre conceitos que habitam o reino cristalino do a priori. Mas elas são de pouco valor na decisão acerca da plausibilidade de teses empíricas, como as que estão em jogo. Como uma analogia, consideremos o que dizem nossas intuições sobre a constituição de objetos físicos, como a mesa em que me apoio enquanto escrevo ou a tela em que você está lendo este paper, ou até você mesmo, em toda sua beleza. Todas essas coisas parecem majoritariamente objetos sólidos e impenetráveis, não é? Aliás, seria sem dúvidas “intuitivo” do ponto de vista “pré-teórico” dizer que esses objetos são compostos mais de matéria do que de qualquer outra coisa. Mas isso está errado, pois todos os objetos são compostos majoritariamente de espaços vazios entre átomos-malgrado nossas intuições do contrário.

Meu ponto aqui é que, do ponto de vista empírico, o que nós diríamos se as coisas fossem radicalmente diferentes do que são não é evidência a favor (nem contra) nada. Os autores ignoram isso ao seguirem uma tradição argumentativa distintiva de maior parte da epistemologia pós-Gettier. Tipicamente, nessa tradição, um filósofo A propõe uma teoria T para cobrir alguns casos de atribuição de conhecimento (ou outros estados epistêmicos), ao que um filósofo B rebate que T não dá a resposta intuitivamente correta sobre outros casos contrafactuais remotos, ao que A responde com T*, ao que B responde com uma objeção de que T* não dá a resposta intuitivamente correta sobre ainda outros casos contrafactuais remotos, e assim por diante. O problema é que nossas intuições-aqui entendidas como disposições para reconhecer a presença de certos conceitos-têm sua confiabilidade ancorada às condições normais em que conceitos ocorrem (para um argumento mais cuidadoso sobre esses pontos, ver ROLLA, 2021bROLLA, G. Contra intuições. Filosofia Unisinos, v. 22, n. 1, p. 21-28, 2021b.). Se sairmos do reino das condições normais e adentramos as especulações características da filosofia de poltrona, em que os únicos limites são as possibilidades lógicas e a nossa criatividade, nossas intuições apontam para qualquer lado como um ponteiro maluco. Por isso, eu chamo argumentos que se baseiam em especulações selvagens de argumentos do tipo “se minha vó tivesse rodas, ela seria uma bicicleta”. Como veremos, esse é precisamente o tipo de argumento que os autores mobilizam contra o enativismo.

2.3. Sobre pianistas e conhecimentos

Parte importante da primeira seção do artigo consiste em recontar a história trágica do pianista João Carlos Martins.8 8 O mesmo argumento também é ilustrado com a história do paraplégico Juliano Pinto, o qual, com o auxílio de um exoesqueleto, foi capaz de dar o pontapé inicial na Copa do Mundo de 2014. As mesmas considerações que faço a seguir, no corpo do texto, com respeito a João Carlos Martins se aplicam no caso de Juliano Pinto. Resumidamente, Martins é um renomado pianista brasileiro que perdeu a capacidade de tocar piano por conta de lesões (algumas relacionadas à prática do piano). O ponto com essa narrativa é que, mesmo com todas as dificuldades e todos os acidentes que impedem a João Carlos o comportamento motor mais fino necessário para de fato tocar piano, o músico ainda saberia como tocar piano. Essa conclusão seria reforçada pelo fato de que, se um dia um tratamento milagroso lhe restituísse a capacidade motora, ele seria capaz de fazer o que há muito tempo já sabia como fazer. De fato, embora os autores não contem a parte mais recente da história, a capacidade de João Carlos para tocar piano foi ao menos parcialmente restituída em 2020 pelo uso de luvas biônicas feitas sob medida pelo designer Ubiratã Bizarro Costa. Isso supostamente mostraria que o pianista voltou a ser capaz de fazer algo que ele sempre soube como fazer.

Em resposta, devemos notar que, em condições normais, a atribuição de conhecimento prático depende da execução bem-sucedida de uma tarefa de modo regular e constante. É nesse sentido que enativistas enfatizam o conhecimento prático, por exemplo, na navegação bem-sucedida do ambiente sem representar a disposição desse ambiente e os seus objetos. Nesse tipo de cenário, só faz sentido dizer que o agente possui conhecimento prático se a tarefa é realizada com sucesso e estabilidade (ROLLA; HUFFERMANN, 2021ROLLA, G.; HUFFERMANN, J. Converging enactivisms: radical enactivism meets linguistic bodies. Adaptive Behavior, 2021.). A ideia de fundo aqui é que saber como fazer algo (possuir um determinado conhecimento prático) mobiliza uma rede de capacidades que foram recorrentemente treinadas para serem executadas em condições específicas. Isso significa que uma pessoa sabe como fazer algo porque é capaz de fazer algo em condições ambientais favoráveis. Mesmo que eventuais erros sejam possíveis, ela ainda saberia como realizar a performance se normalmente o exercício das capacidades pertinentes obtém sucesso.9 9 Eu agradeço a um parecerista anônimo por essa observação. Posto de outro modo, em condições normais, se o sujeito não é capaz de (não possui as habilidades relevantes para) executar uma tarefa, não faz sentido dizer que ele sabe como fazer a tarefa em questão. Eu não sei como cozinhar um boeuf bourguignon, como escalar uma montanha, como desmontar o motor de um fusca nem como manejar um submarino. Se você me pedir para fazer qualquer uma dessas coisas, eu não serei capaz de fazê-las-mesmo que em um sentido filosoficamente muito desinteressante eu poderia fazê-las (com muito incentivo e esforço). Mas o fato é que eu não tenho o saber prático relevante porque não tenho as habilidades relevantes suficientemente bem treinadas. Semelhantemente, eu sei como andar de bicicleta, e em condições ambientais favoráveis continuo sabendo. Se o pneu da minha bicicleta furar ou se ela for furtada, eu não perco o meu conhecimento prático-pois esses cenários são desfavoráveis para o exercício das habilidades em questão. Só faz sentido dizer que eu não sei como andar de bicicleta se, em condições ambientais favoráveis (e sem outras interferências, como lesões ou embriaguez), eu não consiga me manter equilibrado e me deslocar de um ponto a outro.10 10 O exemplo da bicicleta do qual me vali aqui foi sugerido por um parecerista anônimo.

Voltando ao caso do pianista. Pensar que João Carlos Martins (quando ainda era incapaz de movimentar ambas as mãos) sabia tocar mesmo que não pudesse tocar piano é uma visão por demasiado ingênua sobre como funciona uma performance. Qualquer um que se preste para estudar um instrumento musical sabe que, para saber tocar determinada peça, o treino deve ser diário, exaustivo e repetitivo. Esta pode ser considerada uma evidência anedótica, mas eu considero o caso da minha companheira bastante ilustrativo: ela é uma pianista amadora talentosa e já tocou peças de alta dificuldade, como Liebestraum n. 3 de Franz Liszt. Sem praticar essa obra há muitos anos (sua preferência atualmente é pelos chorinhos de Ernesto Nazareth), ela não hesita em dizer que não sabe como tocar Liebestraum n. 3, embora reconheça que, com um pouco de atenção à partitura e bastante prática, reaprenda a tocar mais rapidamente do que da primeira vez. A explicação enativista é que as muitas horas de prática modificaram suas capacidades motoras (este é o aprendizado corporificado adquirido pela repetição) e, embora essas capacidades tenham sido majoritariamente perdidas, a plasticidade humana garante a sua re-aquisição com treino e esforço.

De um modo geral, o ponto aqui é: sem a execução de fato da peça em questão, o sujeito não sabe como tocá-la, mesmo que tenha decorado cada compasso da partitura. Ou seja, João Carlos Martins talvez ainda soubesse que se toca uma composição pressionando uma sequência de notas específica em determinado tempo, com um dedilhado específico, mas (enquanto estava lesionado ou impedido) não sabia como pressionar essa sequência de notas, pelo simples fato de que não podia fazê-lo. Seguramente ele sabia que se toca piano assim-e-assado, mas não sabia mais como tocar. Confundir esses dois tipos de atribuição de conhecimento representa supor, circularmente, que o conhecimento prático é uma variedade de conhecimento proposicional. É justamente isso que está em disputa, e é isso que os autores ainda não provaram.

Consideremos agora a reabilitação real de Martins com o auxílio das luvas extensoras biônicas. As especulações sobre se ele sempre soube como tocar piano ou se teve de readquirir seu conhecimento prático poderiam ganhar mais corpo e relevância empírica nesse cenário. Contudo, sem estudos controlados, não podemos dizer se o pianista agora tem a mesma proficiência de outrora e, por conseguinte, se possui o mesmo saber prático. Será o caso que ele tem mais facilidade para tocar uma peça de Bach hoje (com as luvas) do que tinha antes de todas as enfermidades? Ele poderia, por exemplo, tocar la Campanella de Franz Liszt-uma peça notória pela sua dificuldade-desde o primeiro segundo em que colocou as luvas, ou teve de reaprender como se toca essa peça? Ou quem sabe João Carlos saberia apenas como tocar composições mais simples e de menor abertura entre os dedos? Parece-me inteiramente aberta a questão sobre se o autor sempre soube como tocar ou se teve de adquirir um novo saber prático adaptado às novas circunstâncias.

Mas o que diríamos se imaginarmos um cenário em que Martins recupera milagrosamente a capacidade motora fina das mãos por completo? Talvez aí então disséssemos que ele sempre sabia como tocar piano, mesmo quando não podia tocar, porque sua habilidade foi inteiramente restituída pelo milagre. Mas talvez disséssemos (o que me parece mais plausível) que ele teria de reaprender a tocar algumas peças. Poderíamos dizer que ele não seria mais o mesmo pianista, ou que não teria mais a mesma capacidade. Talvez até mesmo diríamos, quem sabe, que ele passaria a ter uma capacidade ainda maior do que antes do milagre. O ponto é que, quando os casos contrafactuais são muito remotos, como os que envolvem curas milagrosas e intervenções divinas, não sabemos o que dizer-como quando o pintassilgo de Austin (1970AUSTIN, J. L. Other Minds. In: URMSON, J. O.; WARNOCK, G. J. (ed.). J. L. Austin: Philosophical Papers. London: Oxford University Press, 1970. p. 76-116.) explode ou recita Virginia Woolf. Por isso, eu acho que esse tipo de cenário não deveria receber tanto peso nas considerações a favor ou contra uma teoria, sobretudo quando a questão é largamente empírica. Trata-se de um caso notável de “se minha vó tivesse rodas, seria uma bicicleta”. Pode ser interessante como um exercício de criatividade filosófica, mas não prova nada substancial.

Então, mesmo que os autores acreditem terem reduzido ao absurdo a concepção não-intelectualista de conhecimento prático endossada por enativistas, nenhum dos seus argumentos é exitoso. 11 11 Os autores também imaginam um cenário no qual João Carlos tivesse desenvolvido o mal de Alzheimer, sem perder a capacidade motora (ao menos inicialmente). “Nós diríamos que ele ainda sabe como tocar piano?” Não sei o que nós diríamos, e o que nós diríamos provavelmente não importa muito. A pergunta certa é: ele ainda consegue tocar piano? Ou melhor: ele consegue como antes? Com a mesma fluidez? Ele continua sendo capaz de treinar e de refinar suas habilidades?

3 Sobre cérebros e corpos

3.1. O cérebro também faz parte do corpo

Pereira et al. abrem a segunda seção do seu artigo enunciando o fato de que, para o enativismo, “[...] a percepção é essencialmente uma atividade incorporada [ou corporificada] de um organismo” (PEREIRA et al., 530), para, então, discutir a tese de Gallagher (2005GALLAGHER, S. How the Body Shapes the Mind. [s.l.] Oxford University Press, 2005.), segundo a qual o corpo dá forma à mente. A partir daí, Pereira e colaboradores se empenham em defender a tese contrária, segundo a qual “[...] cabe ao cérebro moldar o corpo biológico ou físico (Körper) como corpo vivo (Leib).” (PEREIRA et al., 530).

Uma primeira objeção que podemos apresentar é: se o cérebro fosse exclusivamente responsável a conferir a forma ao corpo vivo e ao corpo biológico, então como poderia o cérebro de seres humanos ser formado apenas na sexta para sétima semana de gestação, e não antes? Esse é um conhecido fato biológico que falseia a tese de que o cérebro dá forma ao corpo biológico. Embora a questão mais interessante diga respeito à relação entre cérebro e corpo vivo, a alegação de Pereira e colaboradores é sobre a primazia do cérebro com respeito à forma do corpo, tanto vivo quanto biológico, por isso é importante destacar a falsidade empírica daquela afirmação.12 12 Eu agradeço a um parecerista anônimo por me chamar atenção a esse ponto. Além disso, um dos tratamentos contemporâneos para casos extremos de epilepsia é a hemisferectomia, isto é, a remoção de um hemisfério do cérebro-pois pacientes epilépticos possuem uma maior conectividade (anômala) entre os dois hemisférios (KLIEMANN et al., 2019KLIEMANN, D. et al. Intrinsic Functional Connectivity of the Brain in Adults with a Single Cerebral Hemisphere. Cell Reports, v. 29, n. 8, p. 2398-2407.e4, nov. 2019.). Se a afirmação dos autores acerca da relação cérebro-corpo biológico fosse correta, então um paciente que passa por uma hemisferectomia perderia metade do seu corpo biológico. Naturalmente, isso é absurdo e descabido. Mas mais interessante do que isso é que as pessoas podem levar uma vida moderadamente normal mesmo depois de um procedimento tão invasivo.

Mesmo ignorando as dificuldades acima, que eu acredito de qualquer forma serem menores, há algo interessante a ser dito sobre o que os autores pensam serem teses contrárias, sejam elas: que o corpo dá forma à mente e que o cérebro dá forma ao corpo vivo. Notemos primeiro que o conceito de corpo vivo remete a um corpo animado, imbuído de mentalidade, por oposição ao corpo como objeto ou corpo biológico (conjunto de veias, músculos, vísceras etc.). Agora, dado que o corpo vivo é um corpo imbuído de mente, é possível destacar uma suposição curiosa que subjaz ao argumento entimemático dos autores. As teses de que o corpo dá forma à mente e de que o cérebro dá forma ao corpo vivo só são contrárias-no sentido de que não podem ser ambas verdadeiras-sob a suposição de que o cérebro não faz parte do corpo! Vejamos: se o cérebro é parte do corpo, então a tese de que o cérebro é responsável pela mentalidade implica também que o corpo é responsável pela mentalidade.13 13 Obviamente, há uma tendência em tratar cérebro e corpo como opostos, pois ambos os termos abreviariam a exclusão um do outro. Por exemplo, “cérebro” quer dizer “cérebro menos o resto do corpo” e “corpo” quer dizer, por sua vez, “corpo menos o cérebro”. Justamente, pressupor esse tipo de distinção - como se o funcionamento do cérebro não dependesse de oxigenação, circulação sanguínea e termorregulação, que são produtos da atividade do organismo como um todo - para argumentar pela exclusividade do cérebro na determinação da mentalidade é pressupor, de partida, que se pode tratar o corpo como um mecanismo. O sentido de “mecanismo” que tenho em mente aqui é de estrutura que pode ser separada por partes, em que cada uma pode ser analisada independentemente das demais, sem prejuízo à configuração do todo. Justamente, concepções corporificadas da cognição têm por ponto de partida a rejeição da ideia moderna de que o corpo (e fenômenos biológicos de um modo geral) deve ser entendido como os mecanismos da física. O que há de próprio ao domínio biológico em comparação com o domínio físico (e talvez com o químico também) é exatamente a existência de múltiplos regimes causais que caracterizam sistemas complexos, em que a emergência é a regra e não a exceção. Eu agradeço mais uma vez a um parecerista anônimo por me chamar atenção a esse problema. Mesmo que o resto dessa seção seja empiricamente bem-informado, trazendo discussões interessantes sobre esquemas corporais (que eu comentarei em seguir), parece-me uma trivialidade biológica que o cérebro faz parte do corpo tanto quanto mãos, pés, pulmões, intestino etc.

Talvez, no entanto, o que os autores queiram dizer com a premissa oculta de que o cérebro não é parte do corpo é que ‘cérebro’, nesse contexto, significa somatório de representações mentais. ‘Cérebro’ não se referiria, desse modo, à massa cinzenta dentro das nossas cabeças, mas àquilo de que essa massa é veículo, isto é, as representações mentais e as operações sobre elas. Em uma analogia (sem dúvida confortável ao cognitivismo dos autores), ‘cérebro’ parece referir-se ao software, enquanto a massa cinzenta seria apenas o hardware. Mas, além de tratar-se de uma escolha semântica curiosa, isso me soa vagamente dualista, porque, afinal de contas, as representações mentais estariam estocadas e seriam computadas em outro plano que não o cérebro de fato (no nosso sentido biologicamente incontroverso do termo). Mas o real problema dessa concepção, se eu estiver interpretando os autores corretamente, é que ela apela à distinção entre veículo e conteúdo. Se, no entanto, há excelentes razões para duvidar da possibilidade de naturalizar conteúdo (isto é, representações mentais), então não há uma razão de ser da distinção entre veículo e conteúdo. Assim sendo-a não ser que os autores realmente queiram dizer que o cérebro não faz parte do corpo-a motivação de Pereira et al. nessa seção só faz sentido se a crítica dos enativistas radicais contra a possibilidade do conteúdo representacional já estivesse sido respondida. Como eu mostrei em 1.3 acima, ela não foi respondida, e o apelo ao representacionalismo aqui acaba saindo, como em outras passagens, suspeitamente barato.

Ratos, primatas e membros fantasmas

Como eu disse, essa seção é empiricamente bem-informada, pois nela os autores discutem alguns experimentos que supostamente acarretariam, de uma vez por todas, a falsidade do enativismo. Vejamos.

O primeiro experimento comentado é de Pais-Vieira e colegas (2013PAIS-VIEIRA, M. et al. A Brain-to-Brain Interface for Real-Time Sharing of Sensorimotor Information. Scientific Reports, v. 3, n. 1, 28 dez. 2013.), que mostram que uma interface cérebro-a-cérebro entre dois roedores permitiu que a atividade cortical envolvida na realização de uma tarefa por um roedor seja transmitida pela interface a outro roedor. O cérebro do receptor recebe esses estímulos e aprende a desempenhar os padrões sensório-motoros relevantes para a tarefa (sem nunca ter feito a tarefa). Pereira e colaboradores parecem pensar que esse experimento refuta o enativismo porque supostamente refutaria a tese de que as constantes perceptuais são individuadas relativa e exclusivamente a cada corpo. Essa interpretação da intenção dos autores é clara quando eles escrevem ‘pouco importa qual corpo (qual organismo vivo) ao fim e ao cabo irá realizar a tarefa. O que importa é aquilo que o enativista quer negar: a rede neuronal intracraniana’ (PEREIRA et al.).

Será? Enativistas enfatizam que a morfologia corpórea de um organismo é constitutiva das suas atividades cognitivas, e por morfologia corpórea entende-se também como a rede neuronal é implementada nesse organismo. É um bem conhecido fato biológico que as estruturas neuronais transcendem a caixa craniana, conectando o cérebro ao resto do organismo, então a escolha pelo cérebro como locus da cognição (porque seria onde fica a rede neuronal) parece mais como um erro empírico. Ademais, no experimento comentado, temos dois (ou mais) agentes covariando seus estados de modo sincronizado, caracterizando um sistema complexo pelo acoplamento entre dois organismos-exatamente como a passagem de Pais-Vieira et al. (2013PAIS-VIEIRA, M. et al. A Brain-to-Brain Interface for Real-Time Sharing of Sensorimotor Information. Scientific Reports, v. 3, n. 1, 28 dez. 2013.) citada pelos autores indica. Longe de ser uma refutação do enativismo, fenômenos de sincronização são conhecidos de longa data da ciência cognitiva radicalmente corporificada, tendo sido estudados por psicólogos ecológicos (ver o modelo HKB em CHEMERO, 2009CHEMERO, A. Radical Embodied Cognitive Science. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 2009. capítulo 5) assim como por enativistas (DE JAEGHER; DI PAOLO; GALLAGHER, 2010DE JAEGHER, H.; DI PAOLO, E.; GALLAGHER, S. Can social interaction constitute social cognition? Trends in Cognitive Sciences, v. 14, n. 10, p. 441-447, out. 2010.).

Portanto, quando os autores formalizam o seu argumento e escrevem que ‘3. Assim, primeiro, perceber é uma atividade no cérebro (rede neuronal), e a ação realizada é contingente para a percepção’ (PEREIRA et al.), a resposta óbvia é que os ratos estão de fato acoplados pela interface, e que há corpos agindo em ação conjunta-nenhum mistério até aqui. Em seguida, os autores escrevem que ‘6. Ora, segundo [a interface de cérebro-a-cérebro], o rato que aciona a alavanca só o faz na medida em que “recupera um conteúdo informativo” sensório-motor do primeiro rato’ (PEREIRA et al.). O problema, dessa vez, é que o “conteúdo informativo” mencionado é a covariação de estados. Como eu mencionei acima (1.3), covariação é insuficiente para o conteúdo. Longe de ser, portanto, uma refutação do enativismo, o experimento comentado pelos autores é perfeitamente acomodável no paradigma enativista, feitas as ressalvas sobre o vocabulário representacionalista.

O segundo experimento comentado na terceira seção é retirado de Ramakrishnan et al. (2015RAMAKRISHNAN, A. et al. Computing Arm Movements with a Monkey Brainet. Scientific Reports, v. 5, n. 1, p. 10767, 9 set. 2015.) e configura o mesmo tipo de caso, porém dessa vez com primatas utilizando uma interface cérebro-máquina ao invés de cérebro-a-cérebro. Nesse experimento, nota-se um acoplamento entre agentes através de um avatar virtual, o que permitiu o desenvolvimento de padrões sensório-motores comuns e a sincronia de estados intraneurais entre os primatas. Os autores alegam que ‘um mesmo corpo não é necessário para a experiência tátil’ (PEREIRA et al.). Mas isso não é controverso. De fato, é perfeitamente possível no panorama enativista que indivíduos morfologicamente semelhantes e com características ontogenéticas congruentes tenham experiências semelhantes, ou até mesmo idênticas, e que, com o acoplamento adequado, entrem em sincronia. Mas Pereira et al. continuam e afirmam que ‘o que é necessário é aquilo que o enativista quer negar: a existência de uma rede neuronal instanciada em uma série indefinida de corpos em espaços distintos’ (PEREIRA et al.).

A resposta enativista, para qualquer um familiarizado com a literatura, é que não há compromisso com a tese de que “um mesmo corpo” é necessário para determinar a qualidade da experiência. Enativistas têm compromisso centralmente com duas teses: em primeiro lugar, de que é necessário ter um corpo para ter experiências (anti-dualismo) e, em segundo lugar, de que a morfologia corpórea é um parâmetro crucial para determinar o tipo de experiências a serem tidas (corporificação). Ou seja, que dois ou mais organismos com morfologia corpórea semelhante possam transmitir sinais táteis através de conexões adequadas, e que dessa transmissão eles refinem e coordenem suas habilidades sensório-motoras, não é nem um pouco contrário ao enativismo. Seria surpreendente se o experimento mostrasse a transmissão de um sinal tátil entre organismos radicalmente diferentes e que ainda assim preservasse a qualidade da experiência. Por exemplo, se o primata pudesse ter o tato aderente de uma lagartixa ou a sensibilidade à corrente elétrica de um tubarão. Isso, eu acredito, ainda não foi demonstrado.

O terceiro experimento comentado nesta seção diz respeito ao famoso caso da ilusão da mão de borracha, e para isso os autores usam o trabalho de Shokur et al. (2013SHOKUR, S. et al. Expanding the primate body schema in sensorimotor cortex by virtual touches of an avatar. Proceedings of the National Academy of Sciences, v. 110, n. 37, p. 15121-15126, 10 set. 2013.). Essa ilusão é interessante porque mostra que um objeto não corpóreo (a mão de borracha) pode facilmente ser incorporado no esquema e na imagem corporal do sujeito pelo cruzamento de informações visuais e táteis. Segundo os autores, disso se seguiria que

[...] esse corpo vivo é constituído metafisicamente pela representação subliminar e/ou não-conceitual do corpo biológico ou de substitutos, como avatares e membros mecânicos, que têm a forma de um esquema corporal gerado pelo próprio cérebro de forma sub-pessoal e subliminar (PEREIRA et al., p. 16).

Contudo, essa consequência se seguiria apenas sob a suposição de que esse fenômeno é uma ilusão de fato, em que a deriva proprioceptiva constatada no experimento é uma anomalia genuína, e não uma característica da nossa plasticidade adaptativa. Pois, sob a suposição de que existe um acoplamento momentâneo entre sujeito e órgão postiço-semelhante ao uso de uma ferramenta, como quando o martelo é percebido como a extensão do nosso corpo durante o ato de martelar um prego na parede (SCHETTLER; RAJA; ANDERSON, 2019SCHETTLER, A.; RAJA, V.; ANDERSON, M. L. The Embodiment of Objects: Review, Analysis, and Future Directions. Frontiers in Neuroscience, v. 13, 13 dez. 2019.)-, então não há nada de ameaçador ao enativismo no experimento da mão de borracha. Claro, o enativista ainda teria a dificuldade adicional de explicar por que a deriva proprioceptiva acontece. Talvez o caminho aqui seja explorar nossa virtude adaptativa que decorre do uso de ferramentas, como as tecnologias líticas que antecedem até mesmo o surgimento do sapiens. De acordo com essa explicação, nós temos a facilidade de incorporar objetos ao nosso corpo, e não há nada de misterioso com isso, sobretudo considerando que nós somos os únicos primatas que se realizam pela confecção e uso de ferramentas (IHDE; MALAFOURIS, 2019IHDE, D.; MALAFOURIS, L. Homo faber revisited: Postphenomenology and material engagement theory. Philosophy & Technology, v. 32, n. 2, p. 195-214, 2019.). A ideia, portanto, é que apenas sob a suposição de que a explicação enativista da “ilusão” da mão de borracha está a priori errada, a objeção pode proceder. Trata-se de mais uma petição de princípios.

Esta seção conclui com um comentário interessante sobre uma terapia usada para aliviar a dor do membro fantasma, que é comumente relatada por pessoas que tiveram um membro amputado. Os autores perguntam: ‘como entendermos o tal membro fantasma sem supormos um conteúdo representacional?’. Eu respondo: hoje sabemos que a dor do membro fantasma é causada pelo trauma da amputação, que rompe conexões nervosas eferentes e aferentes. Os danos às terminações nervosas causam tumores benignos onde elas foram rompidas, deixando os nervos superexcitáveis e emitindo descargas súbitas que causam dor (HANYU-DEUTMEYER; CASCELLA; VARACALLO, 2021HANYU-DEUTMEYER, A. A.; CASCELLA, C.; VARACALLO, A. Phantom Limb Pain. Disponível em: Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK448188/ . Acesso em: 22 set. 2021.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK44...
). Mas a descoberta interessante relatada por Pereira et al. é que pessoas que fizeram o tratamento de movimentar o membro normal e “movimentar” o membro amputado na frente do espelho relataram uma diminuição considerável de dor, diferente de outros grupos que usaram outras técnicas. Como os autores mesmo reconhecem, não há uma explicação óbvia para o êxito dessa terapia. Mas por isso mesmo é importante ter cautela ao asserir que o cérebro (ou o homúnculo lá dentro) está ajustando a sua representação do corpo pelo espelho. É igualmente provável que a observação dos movimentos no espelho diminua a dor por facilitar o ajuste das habilidades sensório-motoras às novas condições do sujeito, precisamente pelo reforço sensorial da imagem especular.

4 Onde fica a consciência perceptual

4.1. Fogo amigo nas trincheiras cognitivistas

Na terceira seção do seu artigo, os autores atacam o que acreditam ser a quintessência do enativismo, o externismo fenomenal. Essa é a tese de que o caráter fenomenal da experiência é constituído pelo ambiente com o qual o agente interage. Que isso seja uma das consequências de abolir a ubiquidade das representações mentais nas ciências cognitivas é uma coisa-mas tratar aquela tese como quintessência pode ser uma novidade para maior parte dos enativistas. De qualquer forma, aqui o argumento foca na teoria da consciência perceptual de Alva Noë.

Apesar do trabalho de Alva Noë (2004NOË, A. Action in Perception. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 2004., 2012NOË, A. Varieties of Presence. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2012.) ser caracterizado como pertencente à fase intermediária desse programa de pesquisa, um peso exagerado é atribuído às suas contribuições, pois, inobstante aparências do contrário, Noë é um cognitivista. No entanto, esse equívoco por Pereira e colaboradores é parcialmente justificadao pois o próprio Noë - em conjunção com outros autores (HURLEY; NOË, 2003HURLEY, S.; NOË, A. Neural Plasticity and Consciousness. Biology & Philosophy, v. 18, n. 1, p. 131-168, jan. 2003.; O’REGAN; NOË, 2001aO’REGAN, J. K.; NOË, A. What it is like to see: A sensorimotor theory of perceptual experience. Synthese, v. 129, n. 1, p. 79-103, 2001a., 2001bO’REGAN, J. K.; NOË, A. A sensorimotor account of vision and visual consciousness. Behavioral and Brain Sciences, v. 24, n. 05, p. 939-973, 18 out. 2001b.) - foi um dos responsáveis por ampliar o alcance do enativismo na filosofia analítica no começo dos anos 2000. Porém, o exame do seu trabalho revela um compromisso velado com o cognitivismo que é veementemente rejeitado pelas variedades mais desenvolvidas de enativismo disponíveis (DI PAOLO; BUHRMANN; BARANDIARAN, 2017DI PAOLO, E.; BUHRMANN, T.; BARANDIARAM, X. Sensorimotor Life: An Enactive Proposal. Oxford, New York: Oxford University Press, 2017.; HUTTO; MYIN, 2013HUTTO, D. D.; MYIN, E. Radicalizing Enactivism: Basic Minds without Content. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 2013.). É importante ter isso com clareza em mente, pois as críticas dirigidas a Noë são, na verdade, críticas a um companheiro dos próprios autores nas trincheiras cognitivistas-trincheiras essas que há pelo menos 30 anos entraram em irreversível recuo na disputa pelo terreno das ciências cognitivas.

Em resumo, as razões pelas quais a teoria de Alva Noë sobre a consciência perceptual não deve ser tomada como exemplo de enativismo são as seguintes. Noë argumenta que a consciência perceptual de um sujeito é constituída pelo entendimento prático de padrões sensório-motores. Isto significa que o caráter fenomênico de estados perceptuais é determinado pelo conhecimento de quais exercícios sensório-motores oferecem as variações perceptuais esperadas pelo indivíduo. A acusação consensual é justamente que Noë contrabandeia uma tese cognitivista na sua explicação da consciência perceptual, pois “entendimento prático”, no uso que Noë faz, é simplesmente conhecimento proposicional. Isso ocorre porque o sujeito sabe que determinados exercícios sensório-motores terão determinadas respostas esperadas por ele. Por implicar conhecimento proposicional, a fortiori, a explicação de Noë implica conteúdo representacional (HUTTO, 2005HUTTO, D. D. Knowing what? Radical versus conservative enactivism. Phenomenology and the Cognitive Sciences, v. 4, n. 4, p. 389-405, 2005.; HUTTO; MYIN, 2013HUTTO, D. D.; MYIN, E. Radicalizing Enactivism: Basic Minds without Content. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 2013.; ROWLANDS, 2010ROWLANDS, M. The New Science of the Mind: From Extended Mind to Embodied Phenomenology. Massachusetts: The MIT Press, 2010.). Notemos que nenhum enativista deve comprometer-se com essa teoria, dada a ênfase do enativismo na rejeição do conteúdo representacional como a marca da cognição (1.3 acima). O fato de que Noë combina veladamente conteúdo representacional com coordenação sensório-motora apenas o afasta do cognitivismo clássico como de Fodor (1983FODOR, J. The Modularity of Mind. Cambridge: MIT Press, 1983.), mas não dá o passo necessário para caracterizá-lo como enativista, pois ele não explica o fenômeno da consciência sem recorrer (nem implicitamente!) a conteúdo representacional.

Qualquer que seja o caso, essa seção tem dois argumentos que merecem atenção: primeiro a observação de que alguns estados anômalos, como alucinações, podem ser indiscrimináveis de percepções genuínas-e que, uma vez que ocorrem na ausência de uma interação entre sujeito e mundo, falsificariam o externismo fenomenal do enativismo. Em segundo lugar, os autores relatam uma história pessoal em que um dos autores falhou em distinguir particulares, apesar da diferença numérica entre esses particulares, o que supostamente convidaria interações sensório-motoras diferentes. Veremos cada argumento por vez.

4.2 Das alucinações e percepções

Como suporte ao fato de que algumas alucinações são qualitativamente indiscrimináveis de percepções genuínas, os autores invocam a Síndrome de Charles Bonnet (SCB). Pessoas com SCB desenvolvem padrões sui generis de alucinação conforme lhes faltam estímulos no córtex visual (mais especificamente, no lobo occipital ventral), e geralmente os sintomas pioram conforme a sua idade avança. Porém é bem conhecido que pessoas afetadas por essa condição são capazes de discriminar alucinações de percepções verídicas e de levar uma vida quase normal (SACKS, 2012SACKS, O. Hallucinations. New York: Knopf, 2012.). Segue-se que essas alucinações não são indiscrimináveis de experiências normais, pois é possível discriminá-las. Ou seja, segue-se que os dois tipos de estados-percepção genuína e alucinação-possuem qualidades fenomênicas potencialmente diferentes. Pode não ser um caso “universalizável”, como os autores colocam, mas isso é uma inversão de ônus da prova. Para que o argumento dos autores funcione, o que precisaria ser universalizável aqui é a tese de que toda alucinação para pessoas afetadas pela SCB é indistinguível de percepção genuína, pois apenas assim Pereira e colaboradores teriam suporte para afirmar que não há diferença fenomênica entre percepção e alucinação (ou delírio).

Depois de comentar o caso de um idoso acometido com SCB que alucina plantas com cores vibrantes, os autores se perguntam se ‘haveria alguma ação incorporada que os organismos pudessem realizar que tornasse o caráter fenomenal das suas experiências alucinatórias distinto das suas percepções genuínas?’ E eles mesmos respondem que não há nenhuma evidência na literatura. Mas me parece gritantemente falso que você possa interagir do mesmo modo com o mundo real e com uma alucinação. Até onde eu sei, não é possível regar uma alucinação! Ou seja: há óbvias diferenças entre o aspecto fenomênico de uma percepção genuína, o que envolve o acesso sensório-motor ao mundo, e o aspecto fenomênico de uma alucinação (sem o exercício sensório-motor adequado). Em condições normais, você pode interagir fluentemente com o mundo, mas não é o mesmo com uma alucinação-sobretudo se ainda estivermos falando dos casos de SCB, porque essa é uma afecção do córtex visual apenas. Mas se estivermos falando sobre uma pessoa acometida por outros impedimentos cognitivos-digamos que ela esteja em um caso de delírio permanente-então não há nenhuma tendência a atribuir-lhe estados cognitivos normais ou mesmo análogos aos que uma pessoa neurotípica em condições normais executaria. Isso é tudo que precisamos para barrar um argumento pelo internismo fenomenal avançado pelos autores.

Isso posto, os autores desafiam os enativistas a provar que ‘duplicatas cerebrais, interagindo de forma incorporada com diferentes particulares e diferentes propriedades distantes [ou distais], realizariam experiências fenomenalmente distintas, ainda que expostos aos mesmos estímulos próximos [ou proximais]’. Isso, eu acredito, é um equívoco. Enativistas não precisam responder a esse desafio porque ele não é empiricamente plausível. Isso é trabalho de filósofos que se encantam com possibilidades lógicas que, por mais divertidas que sejam, ainda são cientificamente irrelevantes. Do mesmo modo, os autores se perguntam sobre ‘por que temos que supor que cérebros em tanques de nutrientes não possam compartilhar dos mesmos processos metabólicos de cérebros encarnadas quando devidamente estimulados?’. Aqui me parece haver novamente uma confusão acerca de fatos biológicos básicos (ver também THOMPSON; COSMELLI, 2011THOMPSON, E.; COSMELLI, D. Brain in a Vat or Body in a World? Brainbound versus Enactive Views of Experience. Philosophical Topics, v. 39, n. 1, p. 164-180, 2011.). Se fosse possível separar o metabolismo do corpo dos funcionamentos cerebrais, toda vez em que eu tivesse que trabalhar, mas estivesse muito cansado, eu removeria o cérebro do corpo e colocaria meu corpo em stand by enquanto meu cérebro escreve, estuda ou prepara uma aula.

4.3. Da discriminação de particulares

Antes de apresentar o argumento interessante contra a concepção enativista de experiência fenomênica, os autores ainda ensaiam mais um argumento do tipo “se minha vó tivesse rodas, ela seria uma bicicleta” ao enunciar que a tese enativista é contraintutivia e que ‘supor que a consciência não esteja em nossas cabeças, mas antes “nas atividades orgânicas amplas” em um ambiente é difícil de se engolir’ (PEREIRA et al.,), chamando por causa disso a teoria enativa de ‘wishful thinking’ (PEREIRA et al.) ou autoengano em bom português. Se fizesse sentido entrar no mérito sobre os estados psicológicos dos autores, neste ponto estaríamos lidando com um caso clássico de projeção.

Mas seja como for, os autores prosseguem com um relato pessoal, em que um sujeito inebriado em uma festa consome várias taças de vinho inadvertidamente sob a impressão de que havia bebido muito menos. Ocorre que, sem que ele soubesse, toda vez em que colocava sua taça na bancada, alguém a enchia. Na medida em que ele interagiu com vários particulares diferentes (taças 1 a 10) - prossegue o argumento dos autores-se o enativismo estivesse correto, o sujeito seria capaz de perceber, ao beber cada taça, que se tratava de uma taça com conteúdo diferente da anterior.

Se assim fosse, o enativismo teria de enfrentar uma forte objeção. Mas não é isso que o enativismo prevê. Vamos supor que o sujeito estivesse bebendo vinho tinto seco. Se alguém coloca um mesmo tipo de vinho na sua taça quando ele não está olhando, a resposta sensório-motora é amplamente semelhante às anteriores. Ou seja, não há variação ambiental significativa o suficiente para interferir no exercício dos seus padrões sensório-motores nesse caso. Assim, mesmo ignorando que as capacidades discriminatórias do sujeito seriam progressivamente afetadas a cada nova taça, a conclusão enativista é que não há como discriminar uma taça da outra porque o ambiente se ofereceu de modo suficientemente semelhante. Isso é o que de fato aconteceu no exemplo original. Mas e se os responsáveis por manter a bebida rolando trocassem a taça de vinho tinto seco por um vinho tinto doce? Ou por um copo de uísque? Ou por uma taça alongada de espumante? Ou por um copo de suco de laranja com gelo? Ou uma taça de mamma jamma?14 14 Esse é um drink que minha companheira e eu criamos, na tentativa de reproduzir um drink de um restaurante homônimo, em Salvador (BA). Segue a receita: três partes vinho branco seco, duas partes de espumante, meia parte de vermouth branco e fatias de morango a gosto. O nosso ficou melhor. Todos esses casos, naturalmente, convidam interações sensório-motoras mais ou menos diferentes daquelas envolvidas com as taças de vinho, a começar pelo próprio formato ideal de cada copo para cada bebida. Apenas nesse tipo de caso, em que as variações ambientais são significativas o suficiente, o enativismo prevê que as ações do sujeito dariam origem a estados perceptuais substancialmente diferentes, porque seriam necessários exercícios sensório-motores diferentes.15 15 Essa resposta também se aplica ao caso das uvas Carménère e Merlot, no artigo original.

Conclusão

O enativismo segue firme e forte.

Agradecimentos

Eu agradeço muito enfaticamente a Marcos Antonio Alves pelo convite para participar de um número tão prestigioso da revista Trans/Form/Ação e também pela paciência na editoração deste artigo. Agradeço mais uma vez aos pareceristas anônimos que ofereceram sugestões importantes para a melhoria deste texto. Agradeço a Nara Figueiredo, Guilherme de Vasconcelos, Lucas Argolo por lerem e comentarem este texto comigo. O retorno positivo de muitos amigos e colegas, entre eles (mas não apenas) Ralph Ings Bannell, Thales Silva e Roberto Alexandre Levy, representou uma importante força motivadora para o meu trabalho como um todo.

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  • 2
    Eu agradeço a um parecerista por chamar atenção a esse ponto. Dei-me a liberdade de usar suas próprias palavras.
  • 3
    No caso da primeira pergunta, Hutto e Myin (2017HUTTO, D. D.; MYIN, E. Evolving Enactivism: Basic Minds Meet Content. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 2017.) argumentam ainda que o conteúdo característico da cognição superior (pensar, refletir, inferir, lembrar, imaginar etc.) não é composto de representações mentais, mas de símbolos socioculturalmente distribuídos. Para uma explicação na linha da de Hutto e Myin de como a cognição superior emergiu em nós, humanos, através de um longo processo de manuseio de itens publicamente transmitidos, veja-se Rolla (2022ROLLA, G. Do babies represent? On a failed argument for representationalism. Synthese, v. 200, n. 4, p. 278-278, ago. 2022.). Outros autores, trabalhando na fronteira entre enativismo e psicologia ecológica, articulam o conceito de affordance para ampliar o escopo de explicações radicalmente corporificadas da cognição superior (KIVERSTEIN; RIETVELD, 2015KIVERSTEIN, J.; RIETVELD, E. The Primacy of Skilled Intentionality: on Hutto & Satne’s the Natural Origins of Content. Philosophia (United States), v. 43, n. 3, p. 701-721, 2015., 2018KIVERSTEIN, J.; RIETVELD, E. Reconceiving representation-hungry cognition: an ecological-enactive proposal. Adaptive Behavior, v. 26, n. 4, p. 147-163, 23 ago. 2018.; RIETVELD; KIVERSTEIN, 2014RIETVELD, E.; KIVERSTEIN, J. A Rich Landscape of Affordances. Ecological Psychology, v. 26, n. 4, p. 325-352, 2 out. 2014.). Veja-se Rolla (2021aROLLA, G. A mente enativa. Porto Alegre: a Fi, 2021a., capítulo 3), para uma discussão.
  • 4
    Esta subseção aproveita alguns argumentos que são mais cuidadosamente explorados no meu livro A Mente Enativa (2021a).
  • 5
    Eu agradeço a um parecerista anônimo por essa observação.
  • 6
    Agradeço a Thales Silva por essa última observação.
  • 7
    Os autores também mencionam o trabalho de Stanley e Williamson (2001STANLEY, J.; WILLIAMSON, T. Knowing How. The Journal of Philosophy, v. 98, n. 8, p. 411-444, 2001.), os quais defendem que o conhecimento prático é um tipo de conhecimento proposicional - uma tese conhecida como intelectualismo. Embora Pereira et al. não se apoiem diretamente sobre essa proposta, devo tratar brevemente sobre ela. Stanley e Williamson argumentam que saber fazer x é semanticamente semelhante a saber que P é o caso - pois saber fazer x implicaria que se sabe, acerca de um modo M, que M é o modo correto de fazer x. No entanto, há uma lacuna no argumento intelectualista, pois Stanley e Williamson reconhecem um “modo prático de apresentação” implicado exclusivamente no conhecimento prático. Isto é, mesmo que faltem as palavras a um sujeito para explicar como ele sabe fazer algo, ele é capaz de mostrar que este é o jeito certo fazer algo. Isso pode envolver, por exemplo, demonstrar o jeito certo de fazer algo. Anti-intelectualistas prontamente respondem que não está claro como um modo prático de apresentação ou uma maneira prática de pensar (como STANLEY, 2011STANLEY, J. Know How. [s.l.] Oxford University Press, 2011., coloca) não estariam ligados à noção de habilidade ou a qualquer outra noção central ao conhecimento prático. Dessa forma, o recurso empregado pelos intelectualistas para dar conta da intuição de que há algo de distintivo no conhecimento prático pode ser considerado meramente ad hoc.
  • 8
    O mesmo argumento também é ilustrado com a história do paraplégico Juliano Pinto, o qual, com o auxílio de um exoesqueleto, foi capaz de dar o pontapé inicial na Copa do Mundo de 2014. As mesmas considerações que faço a seguir, no corpo do texto, com respeito a João Carlos Martins se aplicam no caso de Juliano Pinto.
  • 9
    Eu agradeço a um parecerista anônimo por essa observação.
  • 10
    O exemplo da bicicleta do qual me vali aqui foi sugerido por um parecerista anônimo.
  • 11
    Os autores também imaginam um cenário no qual João Carlos tivesse desenvolvido o mal de Alzheimer, sem perder a capacidade motora (ao menos inicialmente). “Nós diríamos que ele ainda sabe como tocar piano?” Não sei o que nós diríamos, e o que nós diríamos provavelmente não importa muito. A pergunta certa é: ele ainda consegue tocar piano? Ou melhor: ele consegue como antes? Com a mesma fluidez? Ele continua sendo capaz de treinar e de refinar suas habilidades?
  • 12
    Eu agradeço a um parecerista anônimo por me chamar atenção a esse ponto.
  • 13
    Obviamente, há uma tendência em tratar cérebro e corpo como opostos, pois ambos os termos abreviariam a exclusão um do outro. Por exemplo, “cérebro” quer dizer “cérebro menos o resto do corpo” e “corpo” quer dizer, por sua vez, “corpo menos o cérebro”. Justamente, pressupor esse tipo de distinção - como se o funcionamento do cérebro não dependesse de oxigenação, circulação sanguínea e termorregulação, que são produtos da atividade do organismo como um todo - para argumentar pela exclusividade do cérebro na determinação da mentalidade é pressupor, de partida, que se pode tratar o corpo como um mecanismo. O sentido de “mecanismo” que tenho em mente aqui é de estrutura que pode ser separada por partes, em que cada uma pode ser analisada independentemente das demais, sem prejuízo à configuração do todo. Justamente, concepções corporificadas da cognição têm por ponto de partida a rejeição da ideia moderna de que o corpo (e fenômenos biológicos de um modo geral) deve ser entendido como os mecanismos da física. O que há de próprio ao domínio biológico em comparação com o domínio físico (e talvez com o químico também) é exatamente a existência de múltiplos regimes causais que caracterizam sistemas complexos, em que a emergência é a regra e não a exceção. Eu agradeço mais uma vez a um parecerista anônimo por me chamar atenção a esse problema.
  • 14
    Esse é um drink que minha companheira e eu criamos, na tentativa de reproduzir um drink de um restaurante homônimo, em Salvador (BA). Segue a receita: três partes vinho branco seco, duas partes de espumante, meia parte de vermouth branco e fatias de morango a gosto. O nosso ficou melhor.
  • 15
    Essa resposta também se aplica ao caso das uvas Carménère e Merlot, no artigo original.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    11 Set 2022
  • Aceito
    03 Jan 2023
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