Acessibilidade / Reportar erro

Considerações sobre o conceito de revolução e suas relações com as ideias de tempo e história: em busca de uma noção contemporânea

Considerations on the concept of revolution and its relations with the ideas of time and history: in search of a contemporary notion

Resumo:

O artigo explora o desenvolvimento do conceito de revolução na modernidade. Parte-se da hipótese, formulada por Lazzarato, que afirma ser o abandono da ideia de revolução a razão da derrota política e teórica do pensamento crítico pós-maio de 68. A seguir, traça-se uma breve genealogia do conceito de revolução, detendo-se na herança da Revolução Francesa. Nesta parte, utilizam-se as análises do clássico estudo de Kosseleck, mas também a leitura foucaultiana de Kant. Um terceiro momento é dedicado à crítica entre a concepção de tempo e sua relação com a história, na obra de Giorgio Agamben. O italiano, amparado em Walter Benjamin, argumenta que faltou ao marxismo uma compreensão radical do tempo, à altura de sua concepção de história. Para finalizar, explora-se a dicotomia revolta e revolução, na tentativa de abrir outras hipóteses argumentativas ao pensamento crítico, a partir da ideia de suspensão do tempo histórico presente num estudo de outro italiano, Furio Jesi.

Palavras-chave:
Revolução; Revolta; Tempo; História

Abstract:

The article explores the development of the concept of revolution in modernity. We start from the hypothesis, formulated by Lazzarato, who claims that the abandonment of the idea of revolution is the reason for the political and theoretical defeat of critical thinking after May 68. Next, we trace a brief genealogy of the concept of revolution, focusing on the legacy of the French Revolution. In this part we use the analyzes of the classic study by Koselleck, but also from the Foucauldian reading of Kant. A third moment is dedicated to the critique between the conception of time and its relationship with history in the work of Giorgio Agamben. The Italian, supported by Walter Benjamin, argues that Marxism lacked a radical understanding of time as relevant as its conception of history. Finally, we explore the dichotomy of uprising and revolution in an attempt to open other argumentative hypotheses to critical thinking from the idea of suspension of historical time present in a study by another Italian, Furio Jesi.

Keywords:
Revolution; Uprising; Time; History

Introdução

Já se encaminhando para as páginas finais de seu Fascismo ou Revolução? O neoliberalismo em chave estratégica, Maurizio Lazzarato (2019LAZZARATO, M. Fascismo ou revolução? Tradução Takashi Wakamatsu, Fernando Scheibe. São Paulo: N-1, 2019., p. 180) afirma o seguinte:

A palavra “revolução” desapareceu dos programas políticos e das reflexões teóricas, enquanto ao longo de todo o século XIX e até os anos 60 do século XX ela permitiu ao movimento trabalhador ter iniciativa e obter um avanço estratégico sobre o capital.

Segundo o autor, os movimentos políticos de 68 em diante, ao abandonarem o terreno da revolução, perderam o saber estratégico. Tal abandono não deixa de ser paradoxal, na medida em que o conceito de acontecimento foi de fundamental importância ao pensamento crítico do pós-estruturalismo (Peters, 2000PETERS, M. Pós-estruturalismo e filosofia da diferença: uma introdução. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.; Williams, 2013WILLIAMS, J. Pós-estruturalismo. Tradução de Caio Liudvik. 2. ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2013.). Walter Benjamin já teria alertado da imprescindível tarefa de saber captar o kairós, no contínuo da história (Lazzarato, 2019LAZZARATO, M. Fascismo ou revolução? Tradução Takashi Wakamatsu, Fernando Scheibe. São Paulo: N-1, 2019., p. 94); ora, onde mais e com maior potência esse rompimento da continuidade histórica se expressa melhor do que no acontecimento revolucionário?

A incapacidade ou insistência das lutas micropolíticas em não aderirem às lutas macropolíticas ou, dito de outra forma, de a revolta não se tornar revolução é índice da situação contemporânea de derrota total das classes subalternas, do pensamento crítico e da prática anticapitalista. Resumidamente, para Lazzarato, o abandono da revolução como saber e prática estratégica é a principal razão para a derrota teórica e política do pensamento crítico pós-maio de 68. Essa derrota possibilitou o fortalecimento de movimentos fascistas e neofascistas - ou pós-fascistas, como sugere Traverso (2021TRAVERSO, E. As novas faces do fascismo. Tradução Mônica Fernandes, Rafael Mello, Raphael Lana Seabra. Belo Horizonte: Âyiné, 2021.) - os quais assumem a tarefa da ruptura revolucionária, no contemporâneo.

É diante desse quadro descrito por Lazzarato - e que aqui esboçamos, de modo muito rudimentar -, que se dão as razões para as reflexões contidas neste artigo. Gostaríamos de indagar o conceito de revolução e o seu ter lugar na história, que são, nos parece, as principais ideias mobilizadas pelo italiano, na formulação de seu quadro estratégico. Uma crítica das proposições de Lazzarato está fora de questão; isso poderá ser feito numa futura pesquisa. Por ora, interessa-nos percorrer a genealogia do conceito de revolução e sua particular relação com a história e o tempo. Tal tarefa é propedêutica e nos ajudará a avizinhar-nos de uma história do presente, lida pela ótica da revolução.

Nosso objetivo é tensionar a hipótese do crítico italiano, a fim de compreender os usos políticos da noção de revolução, no contemporâneo. O conceito que, após um eclipse de algumas décadas - grosso modo, dos anos 1980 até o início do século XXI -, quando foi capturado pelo uso coorporativo, do marketing ao mass media, retorna nas mãos da ultradireita e do pensamento hegemônico, do neoliberalismo em particular2 2 É o que pode ser lido em diversas pesquisas contemporâneas que identificam o neoliberalismo, ora como revolução, ora como contrarrevolução. Nós nos referimos, sobretudo, aos trabalhos de Wendy Brown (2019), Grégorie Chamayou (2020), Laval e Dardot (2021), além, é claro, do pensamento pós-operaísta representado aqui por Lazzarato (2019). . A ideia de uma revolução conservadora já estava presente no fascismo italiano e outros movimentos autoritários, na Europa, desde a década de 1920, o que não passou desapercebido por historiadores e analistas desses movimentos (Jesi, 2021JESI, F. Cultura de direita. Tradução Davi Pessoa. Belo Horizonte: Âyiné, 2021.; Traverso, 2021TRAVERSO, E. As novas faces do fascismo. Tradução Mônica Fernandes, Rafael Mello, Raphael Lana Seabra. Belo Horizonte: Âyiné, 2021.).

Em face desse quadro, insistimos, nossa tarefa é propedêutica. Trata-se de oferecer uma leitura primária do problema que futuras pesquisas poderão iluminar. Neste texto, a atenção recai sobre as relações entre temporalidade e revolução, daí o recorte do eixo de autores que mobilizamos. Retomamos uma leitura já bastante conhecida de Kosseleck (2006) e Arendt (2011ARENDT, H. Sobre a revolução. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.), no intuito de cercar nosso objeto. O recurso a Agamben nos permite, a um só momento, estabelecer uma crítica da temporalidade e de suas relações com a história em longa duração e introduzir, a partir de Benjamin, o corte da classe no projeto marxista e marxiano da revolução. Feito isso, podemos avançar na máxima tensão produzida entre tempo e revolução na experiência da revolta que pode falhar ou ser bem-sucedida em instituir a revolução. Esse sucesso ou fracasso da revolução é que são indagados por Jesi, do ponto de vista da experiência temporal daí decorrente. Tal experiência, contudo, não nos oferece um ponto fixo e seguro de onde mirar a revolução, mas, pelo contrário, insinua uma espécie de defasagem nessa experiência, que torna ainda mais problemática a questão revolucionária. Daqui a possibilidade de um retorno, já experimentado pelo fascismo histórico, da revolução nas mãos da direita.

1

O conteúdo semântico do moderno conceito de revolução pode variar bastante (Koselleck, 2006KOSELLECK, R. Futuro Passado. Tradução Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: ED PUC, 2006.), indicando ao historiador ou ao analista político fenômenos cujos processos internos não são coincidentes, muitas vezes antinômicos, tais como golpes de Estado, mudanças sociais ou mudanças tecnológicas. Diz respeito a um corte abrupto no tempo ou, ao contrário, um longo processo de mudanças estruturais. Aqui nos interessa observar o conceito numa visada política.

Desde, ao menos, a Revolução Francesa, tanto o analista quanto o público comum puderam conviver com o conceito, isto é, ele é capaz de oferecer condições prévias e universais para seu entendimento, todavia, seu conteúdo é bastante variável, conforme contexto e lugar. Desse modo, Koselleck (2006KOSELLECK, R. Futuro Passado. Tradução Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: ED PUC, 2006., p. 62) define revolução como um arquissemema (Schlagwort) político, quer dizer, uma espécie de sintagma político que consegue abarcar uma ampla variedade de fenômenos, ao mesmo tempo que modifica sensivelmente e obrigatoriamente os fenômenos do qual participa. Poderíamos dizer que, na revolução, conceito e fenômeno se imbricam; um conceito em movimento explica os fatos no instante mesmo no qual os modifica.

De acordo com Koselleck (2006KOSELLECK, R. Futuro Passado. Tradução Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: ED PUC, 2006.), o conceito de revolução é um produto linguístico da modernidade. Todavia, como era peculiar àquela tradição dos inícios do mundo moderno - do humanismo ao esclarecimento (Aufklärung) -, o conceito se apresenta pela pena dos antigos. Hannah Arendt (2011ARENDT, H. Sobre a revolução. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 72) já havia notado que a palavra revolução era originalmente um termo das ciências naturais, mais precisamente da astronomia, e que fazia fortuna crítica desde a publicação, em 1453, da De revolutionibus orbium coelestium de Nicolau Copérnico. Nesse sentido originário, a revolução designava um movimento cíclico perfeito, regular e necessário dos corpos celestes. Tal movimento era assim concebido pela física dos antigos, em perfeita harmonia com sua concepção de tempo cíclico e natural, isto é, a revolução era, em verdade, um movimento de retorno.

Mais adiante, voltaremos à naturalidade do tempo, nos antigos. Importa agora mostrar que o termo chega até Copérnico, muito provavelmente, por intermédio da literatura histórico-política de Políbio; revolução (revolutionibus) era a tradução latina de anakyklosis, termo pelo qual Políbio designava o movimento ininterrupto de ascensão e queda das formas de governo. Lembremos que a tipologia antiga das formas de governo considerava um número limitado de regimes políticos: monarquia, aristocracia e democracia. Tal tipologia foi concebida, como é sabido, por Aristóteles. Para o filósofo, assim como para a reinterpretação histórica de Políbio, os regimes políticos se sucedem no tempo, alcançam seu auge, se corrompem e dão lugar a outro. Toda experiência antiga da política era feita, pois, de ciclos, numa metáfora perfeita com o movimento da natureza (phýsis). É o que parece indicar a metabolé tô politeiôn de Aristóteles, bem como a anakyklosis tô politeiôn de Políbio. Note-se que é esse movimento que está na base da dicotomia fortuna e virtú, concebida pelo gênio de Maquiavel, leitor dos antigos e intérprete de Políbio, cuja apreensão é fundamental ao destino do príncipe.

Ainda durante o século XVII e parte do século XVIII, o termo alude a esse movimento cíclico e natural, sendo esta, nos parece, a principal diferença no uso contemporâneo, quer dizer, a partir da Revolução Francesa, do conceito e do fenômeno da revolução. Até a idade contemporânea, a revolução era pensada e, sobretudo, vivida como um movimento de retrocesso.

O fato de que a palavra “revolução” significasse originalmente restauração, ou seja, algo que para nós é seu exato contrário, não é uma simples curiosidade semântica. As revoluções dos séculos XVII e XVIII, que para nós aparentam dar todas as provas de um novo espírito, o espírito da modernidade, pretendiam ser restaurações (Arendt, 2011ARENDT, H. Sobre a revolução. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 73).

Ora, é exatamente isso que ocorre naquela que foi a primeira revolução “burguesa”. As etapas da Revolução Inglesa culminam com o retorno da monarquia, quer dizer, o ápice da revolução aqui é entendido como restauração. Restauração de um velho direito, retorno à verdadeira constituição - eram estes os elementos que animavam as partes em luta e que legitimavam suas aspirações em derrubar o poder ou em tomar o poder3 3 Interessante notar que mesmo movimentos político-sociais que não almejam tomar o poder ou derrubá-lo encontram seu significado na ideia de restauração de um velho direito. Pensamos aqui certamente no clássico estudo de E. Thompson (1998) sobre as revoltas em torno do preço dos cereais, na Inglaterra do século XVIII. Contrariamente à opinião da história econômica tradicional, mas também do marxismo predominante à época, Thompson demonstra como essas revoltas não eram simplesmente irracionais, fruto da fome, mas, pelo contrário, organizadas em torno de ideias de justiça. A taxação do preço do cereal, principal instrumento de luta dos revoltosos, deitava raízes em antigas leis inglesas, as quais eram colocadas como oposição ao avanço do livre mercado liberal e, nesse sentido, podemos dizer que se tratava, pois, da restauração de um antigo direito. . A imagem da restauração variava conforme a posição do agente - monarquistas, republicanos, Levellers, Diggers - e não é desprezível o fato de que cada grupo envolvido na Revolução Inglesa disputasse uma origem da Bretanha vinculada à sua raça - normandos, saxões -, no sentido de restauração da justiça (Foucault, 1999FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. 99- 133). É todo um movimento, o qual, de algum modo, vincula o processo revolucionário à guerra civil, a que a obra de Hobbes, especialmente O Leviatã, deseja pôr um fim.

Aqui a teoria hobbesiana é importante. Até o século XVII, revolução e guerra civil, embora não significassem a mesma coisa, se confundiam, a depender da posição ocupada pelo inimigo (Koselleck, 2006KOSELLECK, R. Futuro Passado. Tradução Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: ED PUC, 2006.). O pensamento político do século XVII, cujo ponto alto é, sem dúvida, Hobbes, concebe então uma figura capaz de elevar-se acima das lutas locais e entre grupos específicos. Essa figura conhecemos bem, é o Estado. O Estado se nos apresenta como aquele dispositivo que impede a guerra civil, o bellum intestinium. A guerra é remetida até um lugar no tempo, o estado de natureza, um estágio pré-político da humanidade que é necessário pôr a termo.

Nesse movimento teórico posto pelos jusnaturalistas, não é mais possível conceber a revolução como um elemento trans-histórico ou natural (embora o estado de natureza não seja necessariamente localizável na história), de modo que ela passa a assumir contornos propriamente modernos. A revolução é acontecimento, depende inteiramente das relações humanas. Podem ser acontecimentos de longo ou curto prazo, mudanças lentas ou movimento abrupto do cenário político.

Ora, se seguirmos as orientações de Arendt (2011ARENDT, H. Sobre a revolução. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.), a qual vincula necessariamente revolução e guerra, que, portanto, se apresentam como fenômenos violentos, o dispositivo do estado de natureza procurará justamente expulsar a violência da fundação da comunidade política. Segundo sabemos, a tradição política greco-romana concebe a violência como antípoda da política; só há pólis, se não há violência. Esse argumento está presente, de forma clara ou implicitamente, para posicionar toda sorte de levantes, desordens e rebeliões na ordem da guerra civil e consolidar o Estado como verdadeiro lócus da revolução política, por meio de mudanças na constituição política, entendidas como consolidações da justiça. O que temos, nesse momento, é nada menos que a ideia de um poder constituinte em relação com um poder constituído, evidentemente que não postos nesses termos, mas, de qualquer modo, no Estado Barroco, ambos os poderes atuam do mesmo lugar. Poderíamos argumentar, como faz W. Benjamin (2012BENJAMIN, W. O anjo da história. Tradução João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.), que se trata aqui de violência que põe direito ou que o funda, e violência que conserva o direito; todavia, a experiência do pensamento político, nesse momento, ao menos aquela experiência que saiu vitoriosa, procura tenazmente excluir a violência como elemento constituinte do campo político.

Note-se que aqui o conceito de revolução é tomado como necessariamente político, de modo que a justiça só pode funcionar nesse âmbito. Arendt (2011ARENDT, H. Sobre a revolução. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.), novamente, foi quem observou que, até o início do século XVIII, a ideia de compreender a revolução não apenas como mudança política, mas também como mudança social era desprovida de sentido, quer dizer, estava fora da experiência política. O iluminismo (Aufklärung) irá alterar essa situação, o que nos leva a novas modificações na compreensão do conceito de revolução.

O ponto mais alto do iluminismo é, talvez, a associação entre o progresso da razão e o progresso do gênero humano. Sabemos como a ideia de progresso faria fortuna no século XIX, de tal sorte que a noção esteve tão presente que acabou por ingressar na linguagem comum, como bem demonstrou, por exemplo, Le Goff (2003LE GOFF, J. História e memória. Tradução Irene Ferreira, Bernardo Leitão, Suzana Ferreira Borges. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.) ou Châtelet (2009, p. 108ss). Ainda no século das luzes, a ideia de progresso não era corriqueira, usava-se outra palavra correlata, transformação. A transformação - social, econômica, política, cultural - seja ela dada de modo abrupto, seja gradual, dava o tom nos debates e nas ações, durante o esclarecimento. A revolução, evidentemente, tinha aí seu lugar, como abertura de horizontes e transformações de toda ordem. O termo, que, como vimos, vacilava entre uma compreensão metafórica, ou natural, ou ainda trans-histórica, insere-se definitivamente na atualidade do cotidiano, isto é, na história humana.

Na esteira do iluminismo, a Revolução Francesa nos é apresentada como ápice do conceito de revolução, e grande parte da compreensão que temos contemporaneamente do conceito teve sua origem aí. De fato, com a Grande Revolução, teremos a confluência das esperanças utópicas com a revolução, o surgimento de um sentimento de entusiasmo pela revolução, a ideia de que conhecer e dominar o processo revolucionário é, das tarefas políticas, a mais importante e, sobretudo, a compreensão de que a revolução não é mais um retorno, mas aponta para o futuro.

Todas essas questões postas acima podem ser verificadas de maneira formidável em dois ou três textos, publicados à época, daquele que pensou de modo mais acabado o iluminismo, I. Kant. Permita-nos, portanto, examinar de perto dois textos do filósofo prussiano. Um primeiro, destinado a um público mais amplo e publicado em 1783, numa revista de significativa circulação, trata-se do célebre Resposta à pergunta o que é o esclarecimento? (Kant, 1985). Um segundo, publicado um ano mais tarde, leva o título de Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita (Kant, 2003KANT, I. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. Tradução Ricardo Naves, Ricardo R. Terra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.), texto inaugurador daquele gênero de análise mais tarde conhecido por filosofia da história. Nossa leitura, mesmo breve, dados os interesses do artigo, será balizada pela aula de 5 de janeiro de 1983, ministrada por Michel Foucault, no Collège de France, presente na obra O governo de si e dos outros (2010FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2010.); nela, o filósofo francês procura formular, à luz de Kant, algo como que uma história da atualidade, a partir da ideia de um discurso filosófico sobre e da modernidade.

A definição dada por Kant (1985, p. 100) de iluminismo é por demais conhecida, “[...] a saída do homem de seu estado de menoridade”. Embora nos seja dado um ponto de partida, nesse movimento, não nos é dado um ponto de chegada, Kant diz apenas saída. Por outro lado, em outra ocasião, Kant (2003KANT, I. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. Tradução Ricardo Naves, Ricardo R. Terra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.) irá nos dizer que a Alemanha de sua época não era uma nação esclarecida, mas que havia começado o longo processo de esclarecimento. Logo, pois, no mesmo texto, o filósofo procurará demonstrar como o processo civilizacional inaugurado pelo iluminismo é tarefa de gerações4 4 Os textos de Kant e, especialmente, sua tradução de “iluminismo” para “esclarecimento” fazem parte daquele intenso debate em torno da categoria de civilização tão bem descrito por Elias (2011, p. 23-61) no primeiro capítulo de O Processo Civilizador. A ideia de balizar o conceito de iluminismo e a subdivisão da noção de processo civilizatório, opondo franceses e ingleses, de um lado, e alemães, de outro, em categorias como Kultur, Bildung, entre outras, não dizia respeito a uma calorosa disputa erudita. O que estava em jogo ali era justamente a possibilidade de se traduzir a ideia de revolução e transformação em práticas conduzidas pelo Estado e suas instituições, na direção de um aprimoramento perpétuo do gênero humano. . Conforme a interpretação de Foucault (2010FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. 12-15), temos nessa argumentação kantiana em torno do iluminismo um problema novo para a modernidade, o qual concerne ao estatuto do tempo e da história. A questão nova posta por Kant (cf. Foucault, 2010FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2010.) é: o que é o contemporâneo?

Questionar sobre o estatuto da contemporaneidade passaria então por três eixos problemáticos. 1- Encontrar certo elemento do presente, que é preciso reconhecer; 2- como este elemento é signo de um problema (filosófico, histórico, científico etc.) e 3- a maneira pela qual quem fala desse presente - o intelectual, o sujeito político - está implicado nesse processo, ou seja, seu pertencimento a ele, o reconhecimento dele e ação que, porventura, deva tomar. Isto é, a modernidade filosófica:

A filosofia como superfície de emergência de uma atualidade, a filosofia como interrogação sobre o sentido filosófico da atualidade a que ele pertence, a filosofia como interrogação pelo filósofo desse “nós” de que ele faz parte e em relação ao qual ele tem de se situar, é isso, me parece, que caracteriza a filosofia como discurso da modernidade, como discurso sobre a modernidade (Foucault, 2010FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. 14).

Kant estaria, assim, colocando uma questão mais profunda do que aquela que agitou por tantos anos o nascedouro da modernidade, da diferença e da qualidade intelectual entre antigos e modernos (Le Goff, 2003LE GOFF, J. História e memória. Tradução Irene Ferreira, Bernardo Leitão, Suzana Ferreira Borges. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2003., p. 173-204). A questão seria saber qual o sentido do discurso filosófico nesta atualidade da qual somos partícipes. Ora, o iluminismo, conforme aqueles que dele participaram, se coloca à altura desse empreendimento. Mas, de que modo? Sigamos o argumento.

O esclarecimento é um movimento que se reconhece como tal, ou seja, ele tem consciência de si e de sua época. Mais do que isso, também coloca para si uma tarefa no tempo e marca uma cisura no tempo; a partir daqui, diria o iluminismo, a humanidade começa sua grande transformação, sua marcha para fora da menoridade. Em outras palavras, o iluminismo se autorreferencia. Neste ponto, podemos recolocar mais abertamente o tema da revolução. Em que sentido? Na relação desde autorreferenciamento do esclarecimento com um acontecimento que também se autorreferencia, a Revolução Francesa.

A questão que Kant (2003KANT, I. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. Tradução Ricardo Naves, Ricardo R. Terra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.) precisa fazer, e de fato o fará, diz respeito ao papel da revolução no processo do esclarecimento. Para sabê-lo, no entanto, é preciso um deslocamento anterior e se perguntar se é possível um progresso do gênero humano. Já adiantamos que Kant responde positivamente a essa pergunta, contudo, uma das argumentações utilizadas merece o destaque. Para saber se, de fato, o gênero humano pode progredir, é preciso isolar na história um acontecimento que tenha um sinal, uma marca. Um sinal de que o progresso do gênero humano possa ser uma tendência e não uma causalidade. Um sinal que seja rememorativo: que sempre foi assim -, demonstrativo: que acontece agora - e prognóstico: que continuará acontecendo (Foucault, 2010FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2010.). Uma marca, portanto, que nos dá a ver a possibilidade do aprimoramento da espécie humana.

O acontecimento que tem esse sinal ou, dito de outro modo, sinal desse acontecimento, o aprimoramento do gênero humano, é a revolução. Agora, interessante é que não se trata da revolução em si, do grande acontecimento da revolução, uma vez que a revolução é, de toda sorte, um desperdício material. Ora, o fato da revolução e a guerra civil que dela decorre, ou a precede, pode pôr a perder os pequenos ganhos do processo civilizador; o que Kant saúda, então, não é a revolução em si, insistimos, mas o entusiasmo5 5 Hannah Arendt (1993) argumenta que a ausência de uma quarta crítica, uma “crítica da razão política”, está ausente em Kant, pois ele substitui uma filosofia política por uma filosofia da história presente, sobretudo nesse conjunto de textos que referenciamos, no artigo. É desse modo que a noção de entusiasmo pode assumir um lugar político, na ideia de que o evento revolucionário animaria o cotidiano dos indivíduos e das instituições, em busca de seu próprio aprimoramento. Por outro lado, Lyotard (1994), ao explorar a categoria de entusiasmo em Kant, encontra o projeto político do filósofo prussiano em sua crítica estética. pela revolução. A revolução é um acontecimento que não pode ser esquecido, o qual demonstra que os homens de fato almejam uma constituição política justa e uma constituição que evite a guerra (Kant, 2004). Colocando em perspectiva, é dessa maneira que podemos compreender, no texto anterior (Kant, 1985), a referência “[...] raciocinais o quanto quiserem desde que obedeçam [...]” e Frederico da Prússia como o grande agente do esclarecimento.

Vimos confluir, pois, os ideais do iluminismo com a Revolução Francesa. Em Kant, diversos elementos, senão a totalidade deles, são mobilizados para se compreender o fenômeno revolucionário: as esperanças utópicas, a perspectiva de futuro, o conhecimento e o domínio da revolução, a revolução como progresso e transformação. A Revolução Francesa nos parece extremamente importante, porque, em função dela, é possível definir alguns elementos comuns que norteiam o conceito de revolução ainda nos dias atuais, passando inclusive pelos socialismos e comunismos. Koselleck (2006KOSELLECK, R. Futuro Passado. Tradução Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: ED PUC, 2006., p. 69-76) arrola, de fato, essas características; contamos oito. Permita-nos, abaixo, seguir seu argumento.

2

A revolução tem um sentido transcendental, isto é, se apresenta como um conceito meta-histórico, semelhante àquela velha dicotomia entre história em si (historia gestae) e histórias particulares (historia rerum gestarum), a primeira abrigando e dando sentido a estas últimas. Temos, assim, a ideia da revolução em si e de revoluções particulares; nesse caso, a primeira funciona como um princípio regulador para o conhecimento e para a ação daqueles envolvidos nas revoluções particulares. Em outras palavras, processo revolucionário e consciência da revolução se tornam inseparáveis.

Mais do que um tempo breve, segunda característica geral, a revolução é capaz de acelerar o próprio tempo. Sabemos da miríade de eventos que ocorrem nas revoluções, os quais, em “tempos normais”, levariam décadas para se resolver. De toda forma, aqui se revela um elemento de que trataremos mais adiante: é a secularização da experiência temporal religiosa, na história e na filosofia modernas. A consumação da história ou o efetivar-se da revolução correspondem, nesse sentido, ao apocalipse ou à salvação. A velocidade temporal experimentada nas revoluções se relaciona à abreviação do tempo na concepção messiânica de tempo, tão bem explorada por alguém como W. Benjamin (2012BENJAMIN, W. O anjo da história. Tradução João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.).

Terceiro elemento, o Estado é absorvido também pela revolução. A transformação do Estado é, sem dúvida, um dos elementos mais importantes para a revolução, seja de forma violenta, tomando o poder pelas armas, seja de modo pacífico, como bem observamos, ao comentar o projeto kantiano. Ou ainda, neste último sentido, a reforma assume também as facetas da revolução, como, por exemplo, na social-democracia. Há igualmente uma outra opção, negligenciada pelo texto de Koselleck (2006KOSELLECK, R. Futuro Passado. Tradução Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: ED PUC, 2006.), da própria destruição do Estado, debate que mobilizou o pensamento e a ação de teóricos e agentes políticos, socialistas, comunista e anarquistas, por um século.

A revolução, passamos ao quarto ponto, altera não somente a perspectiva com relação ao futuro, mas também ao passado. O passado torna-se um conceito perspectivo no interior da história da filosofia e da filosofia da história, capaz de apontar para uma direção irreversível. Explica-se. Compreender, interpretar e identificar-se com determinadas etapas da revolução torna o agente político capaz de traçar os rumos do processo revolucionário e, de saída, determinar sucessos, fracassos e pontos de chegada, no desenrolar dos acontecimentos. Em acréscimo, constrói uma ponte explicativa e de identificação com os grupos revolucionários que agem e interpretam a revolução agora, com aqueles que fizeram isso antes, jacobinos ou girondinos, bolcheviques ou mencheviques.

Ainda sobre esse tópico, é possível dizer que, a partir do século XIX, a ideia de evolução pode se identificar com a de revolução, no sentido de oferecer um processo geral de emancipação. Koselleck (2006KOSELLECK, R. Futuro Passado. Tradução Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: ED PUC, 2006., p. 71) chama a atenção para o fato de que esse processo geral emancipatório que conjuga evolução e revolução nos é dado pela industrialização. Não há dúvida, mas cabe ressaltar que já podemos encontrar essa perspectiva na ideia de aprimoramento do gênero humano, conforme as teorias iluministas, em especial Kant. Outrossim, o processo de emancipação movido pela industrialização mobilizou por longos anos as políticas da social-democracia europeia e o new deal estadunidense. Na América Latina, ocorreu um amplo debate que desembocou nas teorias da dependência, pedra de toque das políticas e das ideias do nacional-desenvolvimentismo e dos partidos mais à esquerda, ao menos até os inícios da Nova República. Ponto alto das teorias da dependência foi a criação, em 1948 no Chile, da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), na qual os principais intelectuais inseridos eram oriundos do Brasil, da Argentina e do México6 6 Alguns dos principais nomes do desenvolvimentismo e da dependência foram: Raul Prebisch, Maria da Conceição Tavares, Celso Furtado, Osvaldo Sunkel, José Medina Echeverria, Fernando Henrique Cardoso, Enzo Faletto, Aníbal Pinto, Ruy Mauro Marini, entre outros. , onde tais teorias tiveram formidável desenvolvimento.

Foi o jovem Marx quem melhor interpretou nosso próximo elemento, na célebre fórmula, “[...] toda revolução desfaz a velha sociedade; neste sentido, ela é social; toda revolução derruba o velho poder; neste sentido ela é política” (Marx apud Kosseleck, 2006, p. 72). Noutras palavras, destacamos a passagem da revolução política, isto é, o fato da revolução, para a revolução social, quer dizer, o desenvolvimento da revolução. A coincidência e a interdependência entre essas duas revoluções, política e social, foi fundamental na história moderna e, sobremaneira, contemporânea. Tome-se o exemplo dos movimentos de descolonização no continente africano. Não há dúvidas de que ali ocorreram revoluções políticas, todavia, a revolução social aguarda, até os dias atuais, sua resolução.

Outro elemento relevante diz respeito ao jogo incessante entre a permanência e o término da revolução. Ao mesmo tempo que é preciso terminar a revolução, abre-se, num outro movimento, a possibilidade da revolução permanente. Trotsky tornou a expressão “revolução permanente” um mantra do movimento comunista não alinhado aos partidos comunistas, na Europa e América Latina, todavia, a expressão já havia sido utilizada por Proudhon e Marx, a propósito da revolução de 1830, na França. Importa notar, contudo, que a revolução adquire uma duração, no sentido de que ela não acaba enquanto não se cumprirem seus objetivos, isto é, ela é universal do ponto de vista geográfico e permanente do ponto de vista temporal, de sorte que a revolução compreende a si mesma e a sua própria duração. De outro lado, aparecerá na literatura socialista o termo contrarrevolução, a propósito da necessidade, no interior da política burguesa, de se fechar a revolução, antes que esta se radicalize por completo.

É dessa forma que Marx pôde, em certo modo, recuperar o sentido de repetição do tempo na revolução, a partir de suas críticas à revolução burguesa (Marx, 2011MARX, K. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Tradução Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011.). Em Marx, a revolução adquire o caráter de uma categoria histórico-filosófica de importância cabal em sua teoria, pois o sucesso ou o fracasso da formação da consciência de classe e, sobretudo, da consciência do papel revolucionário do proletariado depende do conhecimento da revolução. Esse conhecimento das “leis da revolução” seria elevado ao ápice, no marxismo pós-Lênin. A repetição das revoluções burguesas é entendida por Marx como uma caricatura da Revolução Francesa. É bastante conhecida a boutade que abre O 18 de Brumário (Marx, 2011MARX, K. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Tradução Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 25). Uma nova e verdadeira revolução, agora social, deveria expurgar o passado, sendo esta a tarefa do proletariado. Marx, por conseguinte, consegue diagnosticar com precisão o devir para o futuro, no conceito de revolução, e a revolução socialista se abre, sempre, para o futuro7 7 Em Depois do futuro, Franco Berardi (2019) argumenta que o esvaziamento da noção de utopia e o aparecimento de um sem número de narrativas diatópicas, na contemporaneidade, deitam raízes na obliteração em se pensar o futuro, a qual fora característica central do século XX. Do modernismo estético às teorias do desenvolvimento econômico, era da projeção do futuro que se tratava. Nossa época experimentaria, conforme o italiano, o desaparecimento da ideia de futuro ou, ao menos, de um futuro “melhor”. Outro italiano, o historiador Enzo Traverso (2021), num recente estudo sobre o fascismo na contemporaneidade, parece trilhar um caminho próximo. Parafraseando Koselleck, Traverso afirma que a relação entre o passado como campo de experiência e o futuro como horizonte de expectativas está ausente, neste início de século. . Koselleck (2006KOSELLECK, R. Futuro Passado. Tradução Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: ED PUC, 2006., p. 74) nos chama atenção para um aspecto paradoxal na teoria revolucionária marxiana, o paradoxo da utopia. Em que consiste? Ora, a revolução aqui se nos apresenta como o agente personificado da história, entretanto, ele deixa o mundo empírico sempre para trás, uma vez que o comunismo não se realiza por completo.

Em vista desse paradoxo, podemos abordar a sétima característica. A ideia, antes impensável, de que os homens podem fazer e, de fato, fazem a revolução nos é dada por termos emergentes na literatura e prática políticas dos finais do XIX e por todo o século XX, revolucionamento, revolucionar, revolucionário etc. Daqui a figura do revolucionário profissional, particularmente indissociável do acontecimento da Revolução Russa e cuja encarnação nos remete fatalmente a Lênin e à ideia de vanguarda. O revolucionário profissional é aquele que faz a revolução, a dirige, a leva adiante, porque estuda e conhece as “leis da revolução”. O partido de vanguarda exerceu tamanha influência no movimento comunista que, em 1983, isto é, a poucos anos de distância do colapso do segundo mundo, Ernest Mandel (Hazan, 2021HAZAN, E. A dinâmica da revolta. Tradução Lucas Parente. São Paulo: GLAC, 2021., p. 51) ainda podia afirmar, sem reservas, a sua necessidade.

Para finalizar estes tópicos, permita-nos algumas poucas palavras sobre o problema da legitimidade da revolução, oitava característica destacada por Koselleck (2006KOSELLECK, R. Futuro Passado. Tradução Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: ED PUC, 2006., p. 75-77). O elemento que fatalmente pode distinguir a guerra civil da revolução é a reivindicação de sua legitimidade. Obviamente, a legitimidade é um campo em disputa. Na medida em que a revolução deixou para trás a possibilidade de uma restauração dos tempos gloriosos, ela não pode mais se arvorar na tradição. Desde 1789, é preciso uma filosofia da história, a fim de justificá-la:

O conceito de uma revolução legítima tornou-se necessariamente um conceito partidário no campo da filosofia da história, uma vez que sua pretensão à generalidade alimenta-se de seus antônimos, a “reação” e a “contrarrevolução”. Se, em princípio, até mesmo os que se opunham à revolução a reivindicam, ela, uma vez legitimada, reproduziu continuamente seus inimigos, de modo a perpetuar-se (Koselleck, 2006KOSELLECK, R. Futuro Passado. Tradução Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: ED PUC, 2006., p. 76).

A reação à revolução, isto é, a contrarrevolução, se configura, do ponto de vista do revolucionário “legitimado” pela filosofia da história, como um movimento de restauração, não mais duma ordem legítima, como fora pensada a revolução em seus primórdios, mas numa ordem injusta e, por isso, ilegítima, que a revolução superou. Aqui há uma complexificação que futuras pesquisas poderão esclarecer. Leiamos a afirmação de Traverso (2021TRAVERSO, E. As novas faces do fascismo. Tradução Mônica Fernandes, Rafael Mello, Raphael Lana Seabra. Belo Horizonte: Âyiné, 2021., p. 100):

Depois de mais de meio século de paz nas relações internacionais e do fortalecimento da democracia liberal, o colapso do socialismo real favoreceu uma mudança paradoxal tanto em nossa imaginação política como em nosso léxico historiográfico: a revolução mudou de lado. O conceito de “revolução fascista” tornou-se lugar-comum na academia.

Por volta dos anos 80 e em diante aparecem as análises de nomes como George L. Mosse, Zeev Sternhell e Emilio Gentile, para ficar entre os mais importantes teóricos que interpretam o fenômeno fascista, na Europa, como uma revolução conservadora, conforme chamava GentileGENTILE, E. Chi è fascista. Roma: Laterza, 2019., ou revolução regressiva, segundo prefere Sternhell. Nesse sentido, fascista, a revolução não necessariamente aponta para o futuro, mas parece confluir com aquele sentido original de restauração, embora o passado fascista seja, como sabemos, mítico8 8 A respeito do uso do mito como propaganda nazifascista, ver Jesi (2018). Toda discussão gira em torno da distinção, criada por seu mestre Kerényi, entre mito genuíno (echter Mythos) e mito tecnicizado (zur Technik gewordener Mythos). . Diversos movimentos conservadores contemporâneos, do Brasil à Hungria, podem ser lidos sob essa luz.

3

Exploraremos abaixo a relação entre tempo, história e revolução, a partir das reflexões de Giorgio Agamben e Walter Benjamin. A principal tese concerne à experiência peculiar do tempo, no fenômeno revolucionário. Para Agamben (2005AGAMBEN, G. Tempo e História: crítica do instante e do contínuo. In: AGAMBEN, G. Infância e História. Tradução Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.), é necessário construir uma concepção revolucionária de tempo de par com a já concepção revolucionária da história construída por Marx. Para tanto, Agamben mobilizará as noções críticas de Benjamin em torno do tempo homogêneo e retilíneo da modernidade, assim como do conceito de classe marxiano. Como sabemos, há, em Benjamin, uma sobreposição de argumentos e conceitos teológicos, históricos e filosóficos.

Toda cultura e sociedade, ressalta Agamben (2005AGAMBEN, G. Tempo e História: crítica do instante e do contínuo. In: AGAMBEN, G. Infância e História. Tradução Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005., p. 111), fiel aqui às concepções de Lévi-Strauss, estão relacionadas com a experiência que os que nela vivem fazem do tempo, de sorte que outra cultura ou sociedade só se tornam possíveis com uma mudança na forma como os homens o experimentam. Lembremo-nos das sociedades quentes e frias, isto é, com e sem história da antropologia estrutural, ou então de episódios revolucionários. Há relatos de que, durante a Comuna de Paris, uma das primeiras “medidas” da massa revoltosa foi desferir tiros de canhão em diversas torres das igrejas; a ideia não era assustar o clero parisiense, mas propriamente destruir os relógios oficiais e suprimir o tempo da época, para inaugurar outro. Episódios parecidos serão encontrados na Revolução Francesa - o novo calendário é exemplar (Benjamin, 2012BENJAMIN, W. O anjo da história. Tradução João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012., p. 18).

O que interessa para nós é que, conforme Agamben (2005AGAMBEN, G. Tempo e História: crítica do instante e do contínuo. In: AGAMBEN, G. Infância e História. Tradução Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005., p. 112), uma autêntica revolução não é aquela que aspira a mudar o mundo, mas aquela que muda o tempo. Agamben poderia ter aqui em mente o problema hegeliano da consumação do tempo histórico e o advento do homem e da sociedade pós-histórica. De fato, o assunto habita algumas de suas reflexões, sob o pano de fundo do debate neoliberal pós-kojeviano sobre o fim da história e sobre o advento do Estado universal homogêneo9 9 Ver: AGAMBEN, G. O aberto. Tradução Pedro Mendes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 21-34. . Porém, o alvo do italiano, nesse momento, é a revolução, ou melhor, um dos aspectos da revolução, qual seja, o fim do Estado e da sociedade de classes, na tradição socialista do século XIX, mais exatamente o pensamento de Marx, no qual essas tópicas alcançam sua melhor formulação.

Segundo Agamben (2005AGAMBEN, G. Tempo e História: crítica do instante e do contínuo. In: AGAMBEN, G. Infância e História. Tradução Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005., p. 120ss), o materialismo histórico de Marx constituiu uma concepção original da história, quer dizer, revolucionária, sem uma concepção original do tempo. De que tempo estamos falando? É a partir dessa crítica/elogio do método de Marx que Agamben iniciará sua genealogia do tempo ocidental, condenando aquilo que Benjamin (2012BENJAMIN, W. O anjo da história. Tradução João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012., p. 19) havia chamado de tempo vazio e homogêneo, povoado de instantes quantificados e pontuais em fuga.

A noção de tempo ocidental é marcada por uma dicotomia: somos capazes de experimentar e vivenciar o tempo, contudo, não temos sua representação e o concebemos por imagens ou analogias espaciais. Igualmente, esse tempo, para nós representável, é impossível de ser experimentado. Tratemos, pois, dessa representação espacial do tempo, ao longo da história do Ocidente, demarcando alguns momentos importantes.

4

A Antiguidade greco-romana entendia o tempo de forma circular e contínua, pois o ser autêntico era, para eles, perfeito em si mesmo, portanto, igual a si mesmo e, por isso, eterno e imutável. Logo, o devir e o movimento se configuram como graus inferiores da realidade. A circularidade é, assim, o que melhor representa essa perfeição (o mais divino), cujo topo é a imobilidade. Grosso modo, isso tudo está condensado no Timeu, de Platão, considerado o documento original dessa concepção do tempo antigo. Este se media pela revolução cíclica das esferas celestes, cuja imagem espacial era dada pela eternidade em movimento, como vimos anteriormente.

Aristóteles reafirma, na Física, o caráter circular, donde a consequência primeira é a falta de direção deste, sem início, sem centro, sem fim; o tempo, admitido dessa forma, só tem início ou fim, na medida em que se volta sobre si mesmo. Essa noção da física aristotélica, como um contínuo pontual, infinito e quantificável, marca toda a representação ocidental do tempo. O filósofo assim o definiu: “Número do movimento conforme o antes e o depois [...]” (Aristóteles apudAgamben, 2005AGAMBEN, G. Tempo e História: crítica do instante e do contínuo. In: AGAMBEN, G. Infância e História. Tradução Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005., p. 113). Nessa construção, fundamental é a ideia de instante - o agora (tònyn). É ele que garante a continuidade desse tempo circular. Análogo ao ponto geométrico (stigmé), conjuga e divide o passado e o futuro, repartindo o tempo ao infinito. É sempre o outro e o mesmo, uma vez que une passado e futuro e garante a continuidade. Visto que o instante é, simultaneamente, fim e início do tempo, não da mesma porção dele, mas fim do passado e início do futuro, o tempo estará sempre prestes a começar e terminar e, por essa razão, ele parece sempre outro (Agamben, 2005AGAMBEN, G. Tempo e História: crítica do instante e do contínuo. In: AGAMBEN, G. Infância e História. Tradução Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005., p. 113-114).

A obsessão, a insistência e a incapacidade ocidentais em dominar o tempo, ora de ganhá-lo, ora de fazê-lo passar, têm sua raiz nessa visão grega de “[...] continuum quantificado e infinito de instantes pontuais em fuga” (Agamben, 2005AGAMBEN, G. Tempo e História: crítica do instante e do contínuo. In: AGAMBEN, G. Infância e História. Tradução Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005., p. 114), porque, conforme Agamben, tal representação não leva a uma experiência da historicidade. Não que os gregos não tivessem a prática do tempo vivido, contudo, o lugar dele e de sua análise não era a história, mas a física, já que ele era pensado como objetivo e natural. Assim como cada coisa está no espaço, ela está também no tempo. A natureza do tempo grego é, por conseguinte, a-histórica, ou melhor, não histórica. Por isso, a célebre recomendação de Heródoto, para que os cronistas compilem e narrem as histórias dos homens, porque, assim, o tempo não apagaria os seus feitos.

A percepção cristã de tempo é uma linha reta: o mundo é criado por Deus no tempo (gênese) e acabará no tempo (apocalipse). A história dos homens se passa entre esses dois eventos, e os acontecimentos que aí ocorrem jamais se repetirão. Na Antiguidade, fixa-se uma figura do tempo circular e sem direção, ao passo que, no cristianismo, ela é a expressão espacial de uma linha reta, com direção e sentido da criação do mundo ao seu fim. Por isso, Agostinho podia opor a circularidade pagã à novidade da via recta de Cristo, dado que cada evento vivenciado nessa linha só poderia transcorrer uma única vez, tornando a história dos homens a história da redenção ou da salvação. Há, então, no tempo da cristandade, uma experiência de historicidade que faltava aos antigos. Porque, ao engendrar a história como a história da salvação, o pensamento cristão opera uma cisão, a qual não existia na Antiguidade, entre o tempo natural e o tempo interior humano. Entretanto, ao representá-lo como uma linha reta, mantém-se a sucessão contínua de instantes pontuais, como em Aristóteles, e, mais ainda, permanece a figura do círculo imóvel na eternidade do Deus criador, que acaba, desse modo, por nulificar a experiência humana do tempo.

O tempo moderno não passa de uma laicização do tempo cristão; no entanto, se na linha reta e na novidade cristã se registra a história da salvação, no tempo moderno, não há qualquer sentido que não seja simplesmente a estrutura antes/depois e, talvez, a salvação pela promessa do progresso e da emancipação. Logo, representa-se o tempo, homogêneo, retilíneo e vazio, que nasce da experiência na fábrica e da vida nas grandes cidades, sancionada pela física moderna. O tempo humano, como instantes pontuais em fuga, torna-se verdadeiramente morto, porque não nos permite fazer qualquer uso dele:.

O antes e o depois, estas noções tão incertas e vácuas para a antiguidade, e que, para o cristianismo, tinham sentido apenas em vista do fim do tempo, tornam-se agora em si e por si o sentido e este sentido é apresentado como verdadeiramente histórico (Agamben, 2005AGAMBEN, G. Tempo e História: crítica do instante e do contínuo. In: AGAMBEN, G. Infância e História. Tradução Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005., p. 117).

Com o desenvolvimento das ciências naturais, no século XIX, nasce a noção de processo, que não é mais do que a sucessão de instantes estruturados conforme o antes e o depois; e o sentido da linha reta do tempo passa do mero instante ao processo, em seu conjunto. A não repetição dos acontecimentos no tempo, que, para o cristianismo, dava sentido a uma história da salvação, desmancha-se em pura cronologia. Daí a necessidade de introduzir a ideia de progresso, contínuo e infinito, a fim de dar alguma finalidade a essa representação temporal homogênea, vazia e retilínea. Sob o influxo das ciências da natureza, “desenvolvimento” e “progresso”, os quais traduzem simplesmente a ideia de um processo orientado cronologicamente, se tornam categorias-guia do conhecimento histórico (Agamben, 2005AGAMBEN, G. Tempo e História: crítica do instante e do contínuo. In: AGAMBEN, G. Infância e História. Tradução Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005., p. 118).

Essa formulação de tempo moderno, que ganha força com o historicismo rankiano e o positivismo, mas também com a social-democracia e com aquilo que Benjamin (2012BENJAMIN, W. O anjo da história. Tradução João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.) chama de marxismo vulgar, tem como consequência a negação da possibilidade de estabelecer-se um tempo propriamente humano, porque impede o homem de fazer a experiência da história, sonegando-lhe, conforme Agamben, a formação de uma história autêntica em nome de certo ideal de conhecimento calcado num progresso infinito e moldado pelas ciências naturais.

Marx foi capaz de desenvolver uma perspectiva revolucionária da história, porém, permanece em seu pensamento uma visão tradicional de tempo. Para o filósofo do proletariado, o homem não cai na história, como no idealismo alemão de sua época, mas, ao contrário, a história é a dimensão geral do homem como indivíduo universal, isto é, determina-se pela práxis humana. Esta nada mais é do que a origem e a natureza do homem, num movimento dúplice: o tornar-se natureza do homem e o tornar-se homem da natureza. Ela é sua pátria original e, nesse sentido, o primeiro ato histórico. “O homem não é um ser histórico porque cai no tempo, mas, pelo contrário, somente porque é um ser histórico ele pode cair no tempo, temporalizar-se” (Agamben, 2005AGAMBEN, G. Tempo e História: crítica do instante e do contínuo. In: AGAMBEN, G. Infância e História. Tradução Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005., p. 121, grifo no original).

Todavia, sublinha Agamben, apesar de a história ser a dimensão original da atividade humana, entendida como práxis, o sujeito humano jamais consegue alcançar a história autêntica, pois há aí uma experiência nulificada do tempo, já que a verdade e o inteligível histórico se acham no processo, de sorte que o homem, como indivíduo universal, não pode se apropriar concretamente da história. Encontramos aqui a contradição mais fundamental da experiência do tempo, no homem contemporâneo, dividido entre seu ser-na-história, sua pátria original e seu ser-no-tempo, dado pelos instantes pontuais em fuga; está perdido no tempo e não pode, por isso, apoderar-se de sua história.

A intuição messiânica de Benjamin, sobretudo nas Teses (2012BENJAMIN, W. O anjo da história. Tradução João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.), talvez seja a melhor tentativa de conjugar uma visão revolucionária da história com uma concepção, também revolucionária, de tempo. Contra o instante pontual em fuga, ele opõe “[...] um presente que não é passagem, mas que se mantém imóvel no limiar do tempo” (Agamben, 2005AGAMBEN, G. Tempo e História: crítica do instante e do contínuo. In: AGAMBEN, G. Infância e História. Tradução Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005., p. 125). Contra o progresso e seu tempo vazio e homogêneo, Benjamin conceitua tempo-de-agora (Jetztzeit), uma tentativa de se obter um tempo pleno na suspensão messiânica do acontecer. Não se trata de uma espera pelo evento escatológico ou, na esfera profana, na noção de progresso; porém, antes, da conjugação de uma visão revolucionária, autêntica, como enfatiza Agamben, de história e tempo, pois, como podemos ler ao final do apêndice B à 18ª tese, “[...] cada segundo era a porta por onde podia entrar o Messias” (Benjamin, 2012BENJAMIN, W. O anjo da história. Tradução João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012., p. 20).

5

Averiguemos agora, muito rapidamente, a tese benjaminiana (2012, p. 177), segundo a qual há, em Marx, no conceito de sociedade sem classes, nada menos que uma secularização do tempo messiânico e suas consequências, para nossa crítica ao conceito de revolução. De acordo com Agamben (2006AGAMBEN, G. El tempo que resta. Madrid: Trotta, 2006., p. 37-39), Dionísio de Halicarnasso faz derivar do grego klesis - palavra usada pelo apóstolo Paulo, na Epístola aos Romanos, para designar a comunidade da salvação10 10 Klesis é a forma substantivada de kletos. Pode-se traduzir por chamado, vocação, status. (cf. Pereira, 2017, p. 18). - o termo latino classis, o qual, no direito romano, correspondia à parte dos cidadãos chamados às armas. Os filólogos modernos rechaçam essa derivação etimológica; no entanto, com ela, Agamben assemelha a klesis, isto é, a vocação messiânica, deste que é um conceito-chave para o marxismo: a classe.

Em sua crítica a Hegel, Marx (2010MARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Tradução Rubens Enderle, Leonardo de Deus. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2010.) substitui Klasse por Stand (estamento); isso tinha por função, originalmente, estabelecer as bases estratégicas para a crítica. Porém, para Agamben (2006AGAMBEN, G. El tempo que resta. Madrid: Trotta, 2006., p. 37-42), o termo vai além da repreensão a Hegel e acaba por apontar a transformação social por meio da qual a burguesia impôs seu domínio, no terreno político. Desse modo, ela representaria, na passagem ao capitalismo, a dissolução de todos os Stände (estamentos), ou seja, a burguesia é uma Klasse. Só o aparecimento dela pôde separar o indivíduo como particular e como pertencente a uma classe:

No Stand - e ainda mais no elã familiar - este fato permanece oculto. Por exemplo, um nobre é sempre um nobre, um roturier (plebeu) é sempre um roturier, independentemente de qualquer outra relação que tenha. É uma qualidade inseparável de sua individualidade. A diferença entre o indivíduo e o indivíduo como um membro de uma classe, a causalidade da condição de vida do indivíduo, acontece apenas com o aparecimento da classe, que é, por sua vez, um produto da burguesia (Marx apudAgamben, 2006AGAMBEN, G. El tempo que resta. Madrid: Trotta, 2006., p. 38).

A classe simboliza a cisão entre indivíduo particular e sua figura social. Ora, em Marx, a que encarna em si essa fratura, exibe-a sem véus e mostra toda a contingência de toda condição social - a única, portanto, que pode abolir a divisão social classista, ao emancipar a si mesma e a toda a sociedade - é o proletariado. Há, nesse conceito marxiano, uma função redentora, como demonstram as linhas finais da Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel; a passagem é longa:

Onde se encontra, então, a possibilidade positiva de emancipação alemã? Eis nossa resposta: na formação de uma classe com grilhões radicais, de uma classe da sociedade civil que não seja uma classe da sociedade civil, de um estamento [Stand] que seja a dissolução de todos os estamentos [Stände], de uma esfera que possua um caráter universal mediante seus sofrimentos universais e que não reivindique nenhum direito particular porque contra ela não se comete uma injustiça particular, mas a injustiça por excelência [das Unrecht schlechthin], que já não se encontre numa posição unilateral às consequências, mas numa posição abrangente aos pressupostos do sistema político alemão; uma esfera, por fim, que não pode se emancipar sem se emancipar de todas essas esferas - uma esfera que é, numa palavra, a perda total da humanidade [der völlige Verlust des Menschen] e que, portanto, só pode ganhar a si mesma por um reganho total do homem. Tal dissolução da sociedade, como um elemento particular, é o proletariado (Marx, 2010MARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Tradução Rubens Enderle, Leonardo de Deus. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2010., p. 156).

Permita-nos, agora, citar o manuscrito de Benjamin no qual ele desenvolve a ideia de que, no conceito de sociedade sem classes, Marx secularizou a noção de tempo messiânico. Aqui se interliga, de maneira formidável, luta de classes, messianismo e crítica ao progresso e ao tempo vazio e homogêneo que dele deriva:

Marx secularizou na ideia da sociedade sem classes a ideia do tempo messiânico. E a ideia foi boa. A desgraça começa quando a social-democracia resolveu elevar essa ideia à condição de “ideal”. Nas doutrinas do neokantismo, o ideal era definido como uma “tarefa infinita”. […] Se a sociedade sem classes começou por ser definida como tarefa infinita, o tempo vazio e homogêneo transforma-se, por assim dizer, numa antecâmara onde se podia esperar mais ou menos tranquilamente pela entrada da situação revolucionária […] (A sociedade sem classes não é o objetivo final do progresso na história, mas sim a sua interrupção, tantas vezes fracassada e por fim concretizada). (Benjamin, 2012BENJAMIN, W. O anjo da história. Tradução João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012., p. 177).

De posse dessas formulações benjaminianas, tomemos a sério a etimologia formulada por Dionísio de Halicarnasso e aproximemos a klesis da classe marxiana. Dissolvem-se, no conceito de classe, todas as ordens ou estamentos e aparece a fratura entre indivíduo e sua condição social. Semelhantemente, na klesis paulina, nulificam-se as divisões jurídicas e factuais da profissão e da condição humana, no momento do chamado messiânico11 11 “Mas eis o que vos digo, irmãos: o tempo é breve. O que importa é que os que têm mulher vivam como se não a tivessem, os que choram, como se não chorassem; os que se alegram, como se não se alegrassem; os que compram, como se não possuíssem; os que usam deste mundo, como se dele não usassem. Porque a figura deste mundo passa. Quisera ver-vos livres de toda preocupação” (1 Cor 7, 29-32 apudAgamben, 2006, p. 32-33). . A ekklesia, isto é, a comunidade das vocações messiânicas, representa, nesse sentido proposto por Agamben e Benjamin, mais do que apenas uma analogia com o proletariado marxiano. Assim como aqueles que tomaram consciência do chamado messiânico morrem neste mundo para ressuscitar em outro, o proletariado só pode libertar-se, a si e aos demais, pela autossupressão.

Agora, é possível falar de uma sociedade sem klesis? Agamben sugere afirmativamente, com base em três respostas possíveis. A primeira, designada ético- anárquica, proveniente do anarquismo individualista de Max Stirner, o qual separa revolta e revolução; a segunda, marxiana, que não desmembra revolta e revolução; e, por fim, a de Benjamin, denominada anarconiilista, pelo italiano, a qual torna absolutamente indiscernível revolta e revolução, a classe (klesis) profana e a klesis messiânica. Por certo, Agamben tem em vista tanto a oitava tese de Benjamin (2012BENJAMIN, W. O anjo da história. Tradução João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012., p. 13) - que propõe efetivar o estado de exceção, condição de vida normal dos oprimidos - quanto o Fragmento teológico-político, no qual a felicidade, que aspira à dissolução de tudo o que é terreno (profano), é o leitmotiv de uma política autêntica (Benjamin, 2012BENJAMIN, W. O anjo da história. Tradução João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012., p. 23-24), assim como o Sobre a crítica do poder como violência (Benjamin, 2012BENJAMIN, W. O anjo da história. Tradução João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012., p. 57-82), onde o filósofo alemão propõe uma “violência divina” como forma de superar a violência, que ora põe o direito, ora o conserva.

6

Há uma quarta possibilidade, não explorada por Agamben, que consiste em pôr em novos termos a dicotomia revolta e revolução, a partir da experiência do tempo, na sua relação com a história. Trata-se da hipótese da suspensão do tempo histórico vivenciada no fenômeno da revolta, proposta por Furio Jesi (2018JESI, F. Spartakus: simbologia da revolta. Tradução Vinicius Honesko. São Paulo: N-1, 2018.), ideia que curiosamente, insistimos, Agamben não debate. É curioso, pois Jesi é um dos autores preferidos de Agamben e consta fartamente em suas referências.

Jesi, o qual morreu prematuramente em 1980, foi o mais proeminente discípulo do célebre estudioso da mitologia Karl Kerényi, com quem rompe relações por razões políticas, em 1968. O ano de 68 não é casual ao rompimento nem, tampouco, a propósito de nossa análise do fenômeno e do conceito de revolução. É durante esse ano e no seguinte que Jesi escreve Spartakus: simbologia da revolta (2018); estamos exatamente no ano da “revolução impossível” (Castoriadis; Lefort; Morin, 2018CASTORIADIS, C.; LEFORT, C.; MORIN, E. Maio de 68: a brecha. Tradução Anderson Lima da Silva, Martha Coletto Costa. São Paulo: Autonomia Literária, 2018.) do maio de 68 francês, mas também às voltas com o “outono quente” da autonomia italiana, o “maio italiano”, que duraria dez anos (Tarì, 2019TARÌ, M. Um piano nas barricadas: por uma história da autonomia, Itália 1970. Tradução Edições Antipáticas. São Paulo: GLAC: N-1, 2019.).

É sem dúvida sob o impacto desses dois acontecimentos que o intelectual italiano irá produzir uma análise sui generis da insurreição espartaquista de 1919. Não se trata de uma história do movimento espartaquista, nem ao menos a narrativa dos quinze dias que durou a revolta, mas “[...] em especificar melhor a particular experiência do tempo que nos parece peculiar da revolta” (Jesi, 2018JESI, F. Spartakus: simbologia da revolta. Tradução Vinicius Honesko. São Paulo: N-1, 2018., p. 63), isto é, a revolta liderada por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht funciona aqui como paradigma (Agamben, 2019AGAMBEN, G. Signatura Rerum: sobre o método. Tradução de Andrea Santurbano, Patrícia Peterle. São Paulo: Boitempo, 2019., p. 9-43) para a compreensão das relações entre o fenômeno da revolução e a economia do tempo histórico.

Jesi (2018JESI, F. Spartakus: simbologia da revolta. Tradução Vinicius Honesko. São Paulo: N-1, 2018., p. 61-63) nos introduz a questão, partindo duma breve interpretação das considerações marxistas sobre o capitalismo e a possibilidade de sua superação. Descreve a filosofia da história do marxismo fundamentada na ideia de que leis econômicas e articulação política levam inevitavelmente ao fim do capitalismo, por meio de uma revolução. O fenômeno da revolta seria, por conseguinte, um obstáculo a essa filosofia da história e à orientação política dela derivada.

A diferença entre revolta e revolução não subjaz ao objetivo de ambos os fenômenos, porque, segundo o autor, a tomada do poder são suas finalidades (Jesi, 2018JESI, F. Spartakus: simbologia da revolta. Tradução Vinicius Honesko. São Paulo: N-1, 2018., p. 62). Essa posição é questionável. Se observarmos as revoltas em torno do preço do pão, descritas por Thompson (1998THOMPSON, E. Costumes em comum. São Paulo: Companhia da Letras, 1998., p. 150-202), verificamos a ausência de tal objetivo. Ou, numa visada contemporânea, analisar em que medida diversos movimentos políticos pós-maio de 68 colocavam a questão da tomada do poder como essencial à tarefa revolucionária. De toda sorte, em defesa da tese de nosso autor, é possível constatar que as revoltas da multidão inglesa se deram antes de 1789 e que, portanto, o horizonte revolucionário não estava dado como objetivo máximo da política. De outro lado, a insistência do “pensamento fraco” pós-68 (Lazzarato, 2019LAZZARATO, M. Fascismo ou revolução? Tradução Takashi Wakamatsu, Fernando Scheibe. São Paulo: N-1, 2019.) em deslocar a questão da revolução para fora da conquista do poder teria sido, conforme Lazzarato (2019LAZZARATO, M. Fascismo ou revolução? Tradução Takashi Wakamatsu, Fernando Scheibe. São Paulo: N-1, 2019.), a razão da derrota acachapante de todo movimento político de cunho transformador desde os anos 70. Sabemos também que a classificação dum acontecimento em revolta ou revolução depende muito da posição e dos interesses do observador. Revoluções fracassadas em seu objetivo de conquista do poder podem ser chamadas pelo cronista de revoltas. Hazan (2014HAZAN, E. A dinâmica da revolta. Tradução Lucas Parente. São Paulo: GLAC, 2021., p. 14) nos adverte que “[...] uma revolução não forma um todo homogêneo e coerente, e seu momento inicial tem suas próprias particularidades, que justificam a atribuição de autonomia a esse começo”, de maneira que não empregamos a palavra revolução para o 14 de julho de 1789, nem ao 18 de março de 1871, pois são tipicamente revoltas, ou insurreições.

Se a diferença entre revolta e revolução não pode ser encontrada em seus objetivos, ela nos é dada a conhecer pela experiência que se faz do tempo. Do seguinte modo, a revolução está inserida no tempo histórico enquanto a revolta suspende o tempo histórico. “É possível descrever toda revolta como uma suspensão do tempo histórico” assevera Jesi (2018JESI, F. Spartakus: simbologia da revolta. Tradução Vinicius Honesko. São Paulo: N-1, 2018., p. 70), a propósito de sua análise da revolta espartaquista. O italiano escreve poucas, mas densas páginas, demonstrando como ocorreu o movimento, seus erros e acertos, problemas e virtudes (2018, p. 63-70). Para o escopo de nosso texto, essa demonstração não é essencial; assim, capturemos apenas os argumentos de caráter geral, dado que, conforme já salientamos, a revolta espartaquista nos serve de modelo, paradigma.

O primeiro argumento gira em torno do fato de que, na revolta, teríamos um tempo fechado em si mesmo; escreve Jesi (2018JESI, F. Spartakus: simbologia da revolta. Tradução Vinicius Honesko. São Paulo: N-1, 2018., p. 70): “[...] o instante da revolta determina a fulminante autorrealização e objetivação de si como parte da coletividade”. Quando explode a insurreição, temos algo como que o compromisso de si mesmo numa ação imprevisível. A batalha pela vitória, seja ela total, seja parcial, vale por si mesma, quer dizer, a revolta fechada em si própria é um ato bom e justo para os que dela comungam. É desse modo que o adversário do momento pode ser visto como o inimigo e, no horizonte da luta, só podem ser vistos os componentes simbólicos da ideologia. É assim que, conforme o italiano, se cria um espaço simbólico que engloba cada um na coletividade, o que nos leva até um segundo argumento.

A suspensão do tempo realizada pelos revoltosos cria um espaço e um tempo simbólicos vividos e experenciados como refúgio coletivo. É sob esse prisma que nosso autor, numa visada nietzschiana, pode sugerir que a ideia de revolução permanente seria mais do que a duração infinita da revolta, no interior dum tempo histórico, mas ela é, em verdade, a vontade de potência da suspensão do tempo histórico, porque, na revolta, temos a transformação da batalha individual, solitária e cotidiana de cada um na batalha de toda a coletividade. Tome-se o caso da cidade, durante uma insurreição. A cidade que, em tempos normais, é sentida como opressora, a “cidade do patrão”, torna-se própria, de todos e de cada um. O trajeto até o trabalho, os edifícios, as ruas etc., os quais recordam e demonstram ao trabalhador sua condição de explorado, estão desativados e perderam sua condição de símbolos do poder. Com efeito, a cidade foi escolhida como campo de batalha da coletividade e, nesse espaço, onde o tempo histórico foi suspenso, cada ato vale por si mesmo12 12 Caberia aqui uma relação muito interessante com a ideia de estado de exceção, proposta por Giorgio Agamben, a partir da sua interpretação da oitava tese sobre o conceito de história, de W. Benjamin. Evidentemente, tal aproximação deveria ser feita num outro estudo. Se, conforme Agamben, no estado de exceção temos a suspensão da possibilidade de distinguir direito e fato, a única via de acesso para a ação humana, no espaço criado pela exceção, é a ética. Para aprofundamento dessa ideia ver: AGAMBEN, G. Estado de exceção. Tradução Iraci Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004, assim como: AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz. Tradução Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008. .

A distinção entre revolução e revolta, posta nesses termos, estabelece também uma contradição entre a revolta e as instituições clássicas da classe trabalhadora, o partido e o sindicato. O partido pode estar em concorrência com a coletividade, no momento da revolta. A estrutura do partido, ou do sindicato, é exaustiva, isto é, ela instaura as relações entre a classe e seu exterior, ou seja, entre a classe e o Estado, o direito, a burguesia patronal etc., de modo que o partido, assim como essas instituições da ordem, está preso ao tempo histórico, não só porque se relaciona com as estruturas e os símbolos do poder do tempo normal, mas porque seu objetivo final, se compreendido como partido revolucionário, é o fim de um tempo histórico e a inauguração de outro tempo histórico, após a revolução.

Por outro lado, a revolta se vale do partido, não propriamente de sua estrutura organizacional, mas sobretudo e principalmente de sua ideologia, apreendida como simbologia. A revolta, agora do ponto de vista do partido, pode até ser estratégica, e o partido trabalha com isso, quer dizer, crê que o evento da revolta possa manifestar e maturar a consciência de classe, entretanto, o instante insurrecional é válido por si mesmo e é independente das ações do partido e até contra ele. Aqui, o paralelo com os “maios” francês e italiano alcança um ponto formidável, não só pela crítica à estrutura partidária, mas pelas razões da derrota. Nesse sentido, abordaremos um último ponto, o qual explora as relações entre a estratégia e a temporalidade suspensa, para finalizar.

A estratégia do partido pensa ações cujo efeito pode ser calculado, justamente porque inserido no tempo histórico, todavia, a revolta não pode calcular os efeitos de sua ação. É dessa maneira que Jesi (2018JESI, F. Spartakus: simbologia da revolta. Tradução Vinicius Honesko. São Paulo: N-1, 2018., p. 80) pode nos informar que partido/sindicato e revolta são realidades autônomas, pois seus valores são diferentes. O partido pode até decidir suspender o tempo histórico, contudo, só do ponto de vista da estratégia, quer dizer, em função do tempo histórico. O mesmo se pode afirmar das estruturas de poder da ordem. O tempo normal, que é um conceito burguês e que garante a tranquilidade de sua dominação, pode ser suspenso, quando desejável, desde que restabelecido quando os objetivos do poder forem alcançados. Trocando em miúdos, dada uma situação tal que a ordem burguesa esteja fragilizada, a suspensão do tempo histórico, seja na revolta, seja na guerra, pode ser uma opção para o fortalecimento de sua posição.

É dessa maneira que, por paradoxal que possa parecer, o poder pode desejar mais revoltas. A revolta, quando não é capaz de medir as consequências de suas ações, pode, portanto, fortalecer a posição de seu inimigo. Aquilo que se apresenta como sua principal força, a suspensão do tempo histórico, pode ser na mesma medida a sua fraqueza e a razão para sua derrota. Resta pensar a possibilidade de uma insurreição que vem, para usar um termo caro a Agamben, que garanta na suspensão do tempo histórico, uma história e um tempo simultaneamente revolucionários.

Considerações Finais

Abrimos nossa argumentação, colocando em evidência o diagnóstico do presente formulado por Lazzarato (2019LAZZARATO, M. Fascismo ou revolução? Tradução Takashi Wakamatsu, Fernando Scheibe. São Paulo: N-1, 2019.). Para ele, ocorre atualmente um retrocesso dos movimentos políticos de contestação e emancipação dos grupos subalternos, pois o pensamento e as práticas críticas perderam o horizonte da revolução. Sem propriamente entrar no mérito de tal análise, ela nos deu a oportunidade de refletir sobre um dos conceitos políticos mais importantes da modernidade, e que, de fato, havia entrado em desuso no vocabulário político no momento mesmo em que era muito utilizado pelo marketing, mass media e no mundo dos negócios - revolução.

Traçamos uma breve genealogia do conceito, desde seus primeiros usos, na aurora da modernidade, passando por dois pontos altos, o iluminismo da Revolução Francesa e o marxismo. Diversos elementos foram destacados, todavia, o principal desses elementos, aquele para que todos os outros de algum modo convergem, diz respeito à especial relação da revolução com o tempo histórico. A revolução é capaz de acelerar o tempo ou freá-lo, apontar para o futuro ou restaurar o passado, estabelecer um corte radical na continuidade do tempo.

A especial relação do tempo e da história com a revolução é-nos apresentada, na forma da crítica, pelo filósofo italiano G. Agamben. Amparado sobretudo em W. Benjamin, o pensador italiano nos oferece uma genealogia da noção de tempo, no mundo ocidental, a qual é marcada por uma crítica do instante e do contínuo, na história. Nesse sentido, uma revolução deve, antes de mais nada, mudar nossa relação com o tempo.

A partir dessa constatação é que lemos o ensaio de F. Jesi em torno da revolta espartaquista que assolou a Alemanha, durante um brevíssimo período, em 1919. A esmagadora derrota sofrida pela revolta serviu de pano de fundo para que F. Jesi fizesse uma distinção entre revolta e revolução, com base na relação que cada um desses fenômenos estabelece com o tempo histórico. A revolução faz parte do tempo histórico, enquanto a revolta suspende o tempo histórico.

Nossa conclusão é um truísmo: o conceito de revolução é um conceito em disputa. É interessante que, depois de passar por um breve eclipse, a ideia de revolução tenha retornado pela mão dos fascistas (Traverso, 2021TRAVERSO, E. As novas faces do fascismo. Tradução Mônica Fernandes, Rafael Mello, Raphael Lana Seabra. Belo Horizonte: Âyiné, 2021.), pois a revolução havia sido, durante todo o século XX, mobilizada quase que exclusivamente pelos socialismos.

Referências

  • AGAMBEN, G. Tempo e História: crítica do instante e do contínuo. In: AGAMBEN, G. Infância e História. Tradução Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
  • AGAMBEN, G. El tempo que resta. Madrid: Trotta, 2006.
  • AGAMBEN, G. Signatura Rerum: sobre o método. Tradução de Andrea Santurbano, Patrícia Peterle. São Paulo: Boitempo, 2019.
  • ARENDT, H. Lições sobre a filosofia política de Kant. Tradução André de Macedo Duarte. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993.
  • ARENDT, H. Sobre a revolução. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
  • BENJAMIN, W. O anjo da história. Tradução João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
  • BERARDI, F. Depois do futuro. Tradução Regina Silva. São Paulo: UBU, 2019.
  • BROWN, W. Nas ruínas do neoliberalismo. Tradução Mario Marino e Eduardo Santos. São Paulo: Politeia, 2019.
  • CASTORIADIS, C.; LEFORT, C.; MORIN, E. Maio de 68: a brecha. Tradução Anderson Lima da Silva, Martha Coletto Costa. São Paulo: Autonomia Literária, 2018.
  • CHAMAYOU, G. A sociedade ingovernável. Uma genealogia do liberalismo Autoritário. Tradução Letícia Mei. São Paulo: UBU, 2020.
  • DARDOT, P. et al A escolha da guerra civil. Uma outra história do neoliberalismo. Tradução Márcia Cunha. São Paulo: Elefante, 2021.
  • ELIAS, N. O processo civilizador. V. 1. Tradução de Ruy Jungmann. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
  • FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
  • GENTILE, E. Chi è fascista. Roma: Laterza, 2019.
  • HAZAN, E. A dinâmica da revolta. Tradução Lucas Parente. São Paulo: GLAC, 2021.
  • JESI, F. Spartakus: simbologia da revolta. Tradução Vinicius Honesko. São Paulo: N-1, 2018.
  • JESI, F. Cultura de direita. Tradução Davi Pessoa. Belo Horizonte: Âyiné, 2021.
  • KANT, I. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. Tradução Ricardo Naves, Ricardo R. Terra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  • KOSELLECK, R. Futuro Passado. Tradução Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: ED PUC, 2006.
  • LAZZARATO, M. Fascismo ou revolução? Tradução Takashi Wakamatsu, Fernando Scheibe. São Paulo: N-1, 2019.
  • LE GOFF, J. História e memória. Tradução Irene Ferreira, Bernardo Leitão, Suzana Ferreira Borges. 5. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.
  • LYOTARD, J-F. El entusiasmo: critica kantiana de la historia. Barcelona: Gedisa, 1994.
  • MARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Tradução Rubens Enderle, Leonardo de Deus. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2010.
  • MARX, K. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Tradução Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011.
  • PEREIRA, A. Uma tradução de Romanos 1 com comentários temáticos. Revista Eletrônica Espaço Teológico, v. 11, n.19, 2017.
  • PETERS, M. Pós-estruturalismo e filosofia da diferença: uma introdução. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
  • TARÌ, M. Um piano nas barricadas: por uma história da autonomia, Itália 1970. Tradução Edições Antipáticas. São Paulo: GLAC: N-1, 2019.
  • THOMPSON, E. Costumes em comum. São Paulo: Companhia da Letras, 1998.
  • TRAVERSO, E. As novas faces do fascismo. Tradução Mônica Fernandes, Rafael Mello, Raphael Lana Seabra. Belo Horizonte: Âyiné, 2021.
  • WILLIAMS, J. Pós-estruturalismo. Tradução de Caio Liudvik. 2. ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2013.
  • 2
    É o que pode ser lido em diversas pesquisas contemporâneas que identificam o neoliberalismo, ora como revolução, ora como contrarrevolução. Nós nos referimos, sobretudo, aos trabalhos de Wendy Brown (2019BROWN, W. Nas ruínas do neoliberalismo. Tradução Mario Marino e Eduardo Santos. São Paulo: Politeia, 2019.), Grégorie Chamayou (2020CHAMAYOU, G. A sociedade ingovernável. Uma genealogia do liberalismo Autoritário. Tradução Letícia Mei. São Paulo: UBU, 2020.), Laval e Dardot (2021DARDOT, P. et al. A escolha da guerra civil. Uma outra história do neoliberalismo. Tradução Márcia Cunha. São Paulo: Elefante, 2021.), além, é claro, do pensamento pós-operaísta representado aqui por Lazzarato (2019LAZZARATO, M. Fascismo ou revolução? Tradução Takashi Wakamatsu, Fernando Scheibe. São Paulo: N-1, 2019.).
  • 3
    Interessante notar que mesmo movimentos político-sociais que não almejam tomar o poder ou derrubá-lo encontram seu significado na ideia de restauração de um velho direito. Pensamos aqui certamente no clássico estudo de E. Thompson (1998THOMPSON, E. Costumes em comum. São Paulo: Companhia da Letras, 1998.) sobre as revoltas em torno do preço dos cereais, na Inglaterra do século XVIII. Contrariamente à opinião da história econômica tradicional, mas também do marxismo predominante à época, Thompson demonstra como essas revoltas não eram simplesmente irracionais, fruto da fome, mas, pelo contrário, organizadas em torno de ideias de justiça. A taxação do preço do cereal, principal instrumento de luta dos revoltosos, deitava raízes em antigas leis inglesas, as quais eram colocadas como oposição ao avanço do livre mercado liberal e, nesse sentido, podemos dizer que se tratava, pois, da restauração de um antigo direito.
  • 4
    Os textos de Kant e, especialmente, sua tradução de “iluminismo” para “esclarecimento” fazem parte daquele intenso debate em torno da categoria de civilização tão bem descrito por Elias (2011ELIAS, N. O processo civilizador. V. 1. Tradução de Ruy Jungmann. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011., p. 23-61) no primeiro capítulo de O Processo Civilizador. A ideia de balizar o conceito de iluminismo e a subdivisão da noção de processo civilizatório, opondo franceses e ingleses, de um lado, e alemães, de outro, em categorias como Kultur, Bildung, entre outras, não dizia respeito a uma calorosa disputa erudita. O que estava em jogo ali era justamente a possibilidade de se traduzir a ideia de revolução e transformação em práticas conduzidas pelo Estado e suas instituições, na direção de um aprimoramento perpétuo do gênero humano.
  • 5
    Hannah Arendt (1993ARENDT, H. Lições sobre a filosofia política de Kant. Tradução André de Macedo Duarte. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1993.) argumenta que a ausência de uma quarta crítica, uma “crítica da razão política”, está ausente em Kant, pois ele substitui uma filosofia política por uma filosofia da história presente, sobretudo nesse conjunto de textos que referenciamos, no artigo. É desse modo que a noção de entusiasmo pode assumir um lugar político, na ideia de que o evento revolucionário animaria o cotidiano dos indivíduos e das instituições, em busca de seu próprio aprimoramento. Por outro lado, Lyotard (1994LYOTARD, J-F. El entusiasmo: critica kantiana de la historia. Barcelona: Gedisa, 1994.), ao explorar a categoria de entusiasmo em Kant, encontra o projeto político do filósofo prussiano em sua crítica estética.
  • 6
    Alguns dos principais nomes do desenvolvimentismo e da dependência foram: Raul Prebisch, Maria da Conceição Tavares, Celso Furtado, Osvaldo Sunkel, José Medina Echeverria, Fernando Henrique Cardoso, Enzo Faletto, Aníbal Pinto, Ruy Mauro Marini, entre outros.
  • 7
    Em Depois do futuro, Franco Berardi (2019BERARDI, F. Depois do futuro. Tradução Regina Silva. São Paulo: UBU, 2019.) argumenta que o esvaziamento da noção de utopia e o aparecimento de um sem número de narrativas diatópicas, na contemporaneidade, deitam raízes na obliteração em se pensar o futuro, a qual fora característica central do século XX. Do modernismo estético às teorias do desenvolvimento econômico, era da projeção do futuro que se tratava. Nossa época experimentaria, conforme o italiano, o desaparecimento da ideia de futuro ou, ao menos, de um futuro “melhor”. Outro italiano, o historiador Enzo Traverso (2021TRAVERSO, E. As novas faces do fascismo. Tradução Mônica Fernandes, Rafael Mello, Raphael Lana Seabra. Belo Horizonte: Âyiné, 2021.), num recente estudo sobre o fascismo na contemporaneidade, parece trilhar um caminho próximo. Parafraseando Koselleck, Traverso afirma que a relação entre o passado como campo de experiência e o futuro como horizonte de expectativas está ausente, neste início de século.
  • 8
    A respeito do uso do mito como propaganda nazifascista, ver Jesi (2018JESI, F. Spartakus: simbologia da revolta. Tradução Vinicius Honesko. São Paulo: N-1, 2018.). Toda discussão gira em torno da distinção, criada por seu mestre Kerényi, entre mito genuíno (echter Mythos) e mito tecnicizado (zur Technik gewordener Mythos).
  • 9
    Ver: AGAMBEN, G. O aberto. Tradução Pedro Mendes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 21-34.
  • 10
    Klesis é a forma substantivada de kletos. Pode-se traduzir por chamado, vocação, status. (cf. Pereira, 2017PEREIRA, A. Uma tradução de Romanos 1 com comentários temáticos. Revista Eletrônica Espaço Teológico, v. 11, n.19, 2017., p. 18).
  • 11
    “Mas eis o que vos digo, irmãos: o tempo é breve. O que importa é que os que têm mulher vivam como se não a tivessem, os que choram, como se não chorassem; os que se alegram, como se não se alegrassem; os que compram, como se não possuíssem; os que usam deste mundo, como se dele não usassem. Porque a figura deste mundo passa. Quisera ver-vos livres de toda preocupação” (1 Cor 7, 29-32 apudAgamben, 2006AGAMBEN, G. El tempo que resta. Madrid: Trotta, 2006., p. 32-33).
  • 12
    Caberia aqui uma relação muito interessante com a ideia de estado de exceção, proposta por Giorgio Agamben, a partir da sua interpretação da oitava tese sobre o conceito de história, de W. Benjamin. Evidentemente, tal aproximação deveria ser feita num outro estudo. Se, conforme Agamben, no estado de exceção temos a suspensão da possibilidade de distinguir direito e fato, a única via de acesso para a ação humana, no espaço criado pela exceção, é a ética. Para aprofundamento dessa ideia ver: AGAMBEN, G. Estado de exceção. Tradução Iraci Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004, assim como: AGAMBEN, G. O que resta de Auschwitz. Tradução Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    06 Mar 2023
  • Aceito
    18 Maio 2023
  • Publicado
    22 Out 2023
Universidade Estadual Paulista, Departamento de Filosofia Av.Hygino Muzzi Filho, 737, 17525-900 Marília-São Paulo/Brasil, Tel.: 55 (14) 3402-1306, Fax: 55 (14) 3402-1302 - Marília - SP - Brazil
E-mail: transformacao@marilia.unesp.br