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Apresentação: Gramsci, intelectuais e educação

APRESENTAÇÃO

Gramsci, intelectuais e educação

Tendo em vista o aniversário de setenta anos da morte de Antonio Gramsci, em 27 de abril de 2007, um grupo de professores e pesquisadores universitários se propôs a publicar este número dos Cadernos CEDES, intitulado "Gramsci, intelectuais e educação". Seu conteúdo é dedicado ao estudo de problemas examinados pelo grande teórico e político italiano, em confronto com outras correntes de pensamento, bem como à análise dos percursos que seguiram, no Brasil, a assimilação de suas teorias ao campo educacional.

A contribuição de Gramsci para expandir o referencial teórico marxiano, de modo a contemplar problemas emergentes no início do século passado, e dentre eles a questão da educação e da cultura, conferiu-lhe o status de um dos mais importantes pensadores do século XX, cuja influência sobre diversas áreas do conhecimento e da atividade política se faz sentir até os dias de hoje. Suas teorias e sua prática política foram marcadas pela ruptura com qualquer tipo de dogmatismo, que vinha fossilizando o marxismo, procurando recuperar o vigor da polêmica com outras concepções de mundo como método de crítica política e de produção do conhecimento.

A área da educação foi o ambiente intelectual no qual o pensamento de Gramsci mostrou-se bastante vigoroso. A assimilação de suas idéias no Brasil passou por muitos percalços, mas contribuiu, sem dúvida, para dar início a um processo de ruptura com o determinismo econômico na análise da cultura, o qual jogava para um futuro remoto, quando o capitalismo ruísse, qualquer esperança de transformar a escola. Graças à difusão do conceito de Gramsci sobre a hegemonia, a atuação da escola, do ensino e do professor deixou de ser vista como mera "reprodução" mecânica do capital. Não obstante as categorias por ele formuladas não tenham hoje a mesma divulgação e assimilação conhecidas na década de 1980, o seu legado teórico continua a ser refletido e aggiornato.

Uma indicação importante nesse sentido, para além da elaboração de dissertações e teses que continuam a buscar nas matrizes do pensamento gramsciano uma consistente referência teórica, é a revista eletrônica Gramsci e o Brasil (www.gramsci.org). Ela começou a circular em 1998, reunindo diversas seções nas quais se encontram textos de análise sobre temas políticos, sociais e culturais. O trabalho de edição da revista é voluntário e deve-se ao empenho de Luiz Sérgio Henriques, que tem cuidado com exemplar dedicação desse importante canal de expressão de idéias, cuja orientação, como ele próprio afirma, "conjuga democracia política e socialismo".

Outra iniciativa relativamente recente e de grande peso para a difusão do pensamento gramsciano no Brasil é a publicação dos Cadernos do Cárcere, pela Civilização Brasileira, em seis volumes, entre 1999 e 2002. Trata-se de uma edição que busca superar os limites das primeiras publicações da obra de Gramsci no Brasil,1 1 . Nos anos de 1960, foram publicadas pela Civilização Brasileira as seguintes obras de Gramsci: Cartas do cárcere (1966), Concepção dialética da história (1966); Maquiavel, a política e o Estado moderno (1968); Os intelectuais e a organização da cultura (1968) e Literatura e vida nacional (1968). iniciadas na década de 1960. Elas seguiram o modelo adotado para a edição dos Cadernos do Cárcere na Itália, entre 1948 e 1951, pelo então secretário do Partido Comunista Italiano (PCI), Palmiro Togliatti, cuja organização temática teria sido monitorada para atender a interesses políticos de alinhamento à linha stalinista (Vacca, 1999, 2005; Fiori, 1991). A nova edição brasileira, embora ainda mantenha uma organização temática e exclua os textos de tipo "A",2 2 . A classificação dos textos de Gramsci em "A", "B" e "C" foi feita por Gerratana (Gramsci, 1977, Prefácio, p. XXXVI), na edição crítica que organizou dos Cadernos do Cárcere. Os textos de tipo "A" constituem a primeira formulação de Gramsci, que depois ganhou uma segunda redação, classificada como texto "C". Já os textos de tipo "B" são aqueles que tiveram uma redação única. incorpora também contribuições do extraordinário trabalho de Valentino Gerratana (1977). Este organizou uma edição crítica dos Cadernos do Cárcere, que foram publicados integralmente na Itália em 1975 e se tornaram uma referência internacional ao estudo da obra de Gramsci. Em 2004, na seqüência do projeto para a Civilização Brasileira de publicação das Obras de Gramsci em português, saíram dois volumes de Escritos políticos (reunindo textos anteriores ao cárcere, em 1926); e, em 2005, seria uma edição completa de todas as Cartas do cárcere, um dos maiores documentos do gênero em todo o século XX.

A produção teórica de Gramsci, portanto, ultrapassa o modismo intelectual de uma época. Eis aí a relevância de retomar as suas reflexões no presente número dos Cadernos CEDES, que contém cinco artigos.

O primeiro deles, intitulado Os primórdios de Gramsci: entre o Risorgimento e a I Guerra Mundial, tem como autor Domenico Losurdo, professor de Sociologia e História da Filosofia da Universidade de Urbino, na Itália. Destacado estudioso do liberalismo, Losurdo afirma que, no começo de sua formação teórica e política, Gramsci foi liberal. E fez bem em escolher como referências filosóficas para a análise da Itália os filósofos neo-idealistas Benedetto Croce e Giovanni Gentile. Na virada do século XIX para o XX, eles representavam a Itália moderna, do Risorgimento, da luta contra o clero e a igreja católica. Já os representantes do Partido Socialista Italiano faziam uma análise naturalista e até racial dos problemas do Sul da Itália, de onde vinha Gramsci, o qual não se identificava com os estigmas atribuídos aos meridionais. Mas a sua adesão inicial ao liberalismo foi rompida no curso dos acontecimentos históricos que aguçaram os conflitos entre o Ocidente liberal e a Revolução Soviética.

O segundo artigo, Gramsci e a educação do educador, focaliza a relação entre a atividade editorial de Gramsci, nos anos que antecedem sua prisão, e a proposta educativa que emerge da sua experiência com a fundação da revista L'Ordine Nuovo. É escrito por Marcos Del Roio, professor livre-docente e pesquisador em Ciência Política da Universidade Estadual de São Paulo (UNESP, campus de Marília). Além de mostrar os vínculos entre o trabalho de Gramsci com revistas e jornais e a formulação de sua proposta educativa, o autor identifica três diferentes manifestações dessa proposta, correspondentes, numa primeira fase, à auto-educação, numa segunda fase, à educação do partido comunista e sua direção e, por fim, numa terceira fase, à educação do educador das massas.

O terceiro artigo, de autoria de Rosemary Dore, professora de Filosofia da Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é Gramsci e o debate sobre a escola pública no Brasil. Nele, a autora examina a chegada das idéias de Gramsci na área educacional e o confronto entre sua noção de escola e outras tendências inspiradas no conceito de "reprodução" social e cultural. O artigo mostra também que somente depois da maior divulgação das idéias de Gramsci no Brasil, na década de 1980, foram apresentados projetos para a escola pública no campo do pensamento socialista. No entanto, a assimilação de suas reflexões sobre a "escola unitária" foi problemática, devido aos pressupostos teóricos que acompanharam a difusão do seu pensamento no Brasil.

Gramsci e a educação: a renovação de uma agenda esquecida, o quarto artigo, discute os problemas de análises a respeito dos vínculos entre sociedade civil e Estado e como podemos compreender a autonomia da escola na sociedade. Seu autor, Eduardo Magrone, professor de Sociologia da Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), retoma a reflexão de Gramsci sobre o Estado ampliado, identificando porque os seus fundamentos são dialéticos e fazendo algumas advertências para os riscos de uma visão antitética das relações entre Estado e sociedade civil na atual cultura política brasileira.

Finalmente, vem o artigo Intelectuais "orgânicos" em tempos de pós-modernidade, redigido pelo professor de Filosofia da Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Giovanni Semeraro. Trata-se de um texto instigante e original, porque o autor parte da análise de Gramsci sobre a função dos intelectuais e procura avançá-la ao investigar suas manifestações na complexidade do mundo contemporâneo. Desse trabalho, resultam importantes contribuições para compreender os novos contornos com que se apresenta aquela noção gramsciana na sociedade pós-moderna.

ROSEMARY DORE

(Organizadora)

Notas

Referências bibliográficas

FIORI, G. Gramsci, Togliatti, Stalin. Roma-Bari: Laterza, 1991.

GRAMSCI, A. Quaderni del carcere. In: GERRATANA, V. (Org.). Ed. Crítica. 4v. Turim: Einaudi, 1975.

VACCA, G. Introduzione. In: DANIELE, C. (Org.). Togliatti editore di Gramsci. Roma: Carocci, 2005. p. 13-54.

VACCA, G. Editore delle Lettere e dei Quaderni. In: VACCA, G. Appuntamenti con Gramsci. Roma: Carocci, 1999. p. 107-149.

  • 1
    . Nos anos de 1960, foram publicadas pela Civilização Brasileira as seguintes obras de Gramsci:
    Cartas do cárcere (1966),
    Concepção dialética da história (1966);
    Maquiavel, a política e o Estado moderno (1968);
    Os intelectuais e a organização da cultura (1968) e
    Literatura e vida nacional (1968).
  • 2
    . A classificação dos textos de Gramsci em "A", "B" e "C" foi feita por Gerratana (Gramsci, 1977, Prefácio, p. XXXVI), na edição crítica que organizou dos
    Cadernos do Cárcere. Os textos de tipo "A" constituem a primeira formulação de Gramsci, que depois ganhou uma segunda redação, classificada como texto "C". Já os textos de tipo "B" são aqueles que tiveram uma redação única.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Fev 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2006
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