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Ensino religioso, uma herança do autoritarismo

CALEIDOSCÓPIO

Ensino religioso, uma herança do autoritarismo

José Vaidergorn

Doutor em Educação e professor do Departamento de Ciências da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar, da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (UNESP – Araraquara). E-mail: mehrlicht@superig.com.br

O desejo de influência preponderante da religião sobre o Estado e a sociedade não é novidade no Brasil. Depois do Império, onde o padroado estabeleceu o vínculo entre o poder monárquico e o catolicismo como religião oficial, a República, mesmo estando constitucionalmente separada da Igreja, desta sempre sofreu, de forma mais ou menos explícita, a pressão ideológica pelo comando de corações e mentes de seus cidadãos.

Nos tempos mais recentes, de recrudescimento do fundamentalismo religioso de diversas confissões em todo o mundo (com a conseqüente intolerância que legitima a violência e o terror contra os inimigos de sua fé), a disputa entre as crenças ocupa cada vez maiores espaços. Em suas devidas peculiaridades, o Brasil faz parte desse movimento, e a educação é dele parcela estratégica. Nesse aspecto, é possível traçar uma linha de continuidade desde a República Velha, que passa pelo período da ditadura getulista, pelo interregno democrático de 1945 a 1964, pela imposição da infame Educação Moral e Cívica na ditadura militar, até chegar à concorrência religiosa nas escolas públicas em pleno regime democrático.1 1 Convém lembrar aqui os artigos sobre este tema publicados nos Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas (São Paulo, v. 37, n. 131, p. 281-369, maio-ago. 2007).

As concessões atuais se verificam desde o preâmbulo da Constituição em vigor, promulgada "sob a proteção de Deus". O comprometimento do Estado laico com as influências religiosas no âmbito educacional se mostra, por exemplo, no parágrafo 1º do artigo 210 da Constituição ("O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental") e é reforçado no artigo 33 da Lei n. 9.293/1996, de Diretrizes e Bases da Educação: "O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo". Os parágrafos deste artigo ("§ 1º – Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores; § 2º – Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso"), bem como o proposto pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de 1998, tentam aparentemente se esforçar em evitar o inevitável.

Nos Parâmetros, os temas transversais trazem um discurso que ressalta a pluralidade e o respeito às diferenças e desigualdades para se alcançar a igualdade. A proposição de respeito aos diversos costumes, origens e dogmas religiosos na valorização da alteridade, belas palavras que recheiam os Parâmetros, encobre o embate que restaura o que havia de mais autoritário e conservador na educação do período da ditadura militar.

Sob a denominação de Educação Moral e Cívica, como disciplina e área de estudo, implantada em 1969, os pressupostos da moral conservadora e do civismo religioso, agregados aos valores da Doutrina de Segurança Nacional portados pelo "regime militar", passaram a compor os conteúdos escolares garantidores dos "objetivos nacionais permanentes" dos vencedores de 1964. A formação desejada era a de uma boa cidadania, que se moveria em um mundo binário e maniqueísta (certo/errado, sim/não, bom/mau etc.), favorecendo assim uma concepção de poder. Seus pressupostos, zelados por uma Comissão Nacional de Moral e Civismo, eram o de controle e submissão, notadamente sobre o proletariado, clientela privilegiada das escolas públicas e potencialmente ameaçadora aos setores dominantes do Estado e da sociedade, da política e da economia. Os professores, mesmo obtendo uma formação universitária que dava a autorização para o exercício do magistério nas matérias relacionadas (Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política do Brasil – OSPB), deveriam apresentar, para poderem assumir as aulas nas escolas públicas, cartas de recomendação e atestados de bons antecedentes políticos e criminais.

A realidade construída pela Educação Moral e Cívica era transfigurada ideologicamente através de um processo racionalizador não-científico, que desestruturava as contradições sociais em um mundo imaginário. Apesar do fim da ditadura e da extinção (ou suspensão?) dos conteúdos da moral e cívica como disciplina, as sementes autoritárias continuaram brotando e o ensino religioso, sendo obrigatório no sistema educacional, embora facultativo aos estudantes, conforme a Constituição e a LDB, encontrou terreno fértil.

Reportagem de capa da revista Época ("Jesus vai à escola") descreve algumas das práticas realizadas em escolas públicas, em diferentes partes do país, por professores que enaltecem o ensino religioso como controlador dos conflitos entre os alunos. À aparência de harmonização e disciplina que seus rituais trariam à escola, contrapõe-se a disputa pela hegemonia que transcende a fé. Os professores, recrutados a partir de diferentes critérios estaduais, devem ser indicados ou, no mínimo, credenciados por entidades religiosas – lembrando os atestados de antecedentes da época da ditadura. Sendo o catolicismo ainda a religião majoritária,2 2 A reportagem cita dados do IBGE, onde 74% da população brasileira se declararam católicos, 15% evangélicos, 7% sem religião e 3% adeptos de outras crenças. é natural que as escolas públicas reproduzam, em sua maioria, esta concepção. A história do catolicismo não é meritória em termos de tolerância com as outras crenças. A reportagem mostra, nesse aspecto, quão distante está a prática escolar com o preconizado pelos Parâmetros Curriculares Nacionais. Em diferentes situações, as crianças pertencentes a famílias de credos minoritários ou sem religião são sujeitas ao proselitismo e ao preconceito,3 3 Há que se considerar, de acordo com a reportagem, que o estado do Rio de Janeiro adotou, em 2002, no governo Garotinho, uma divisão das práticas de ensino religioso de acordo com a crença dos alunos, incluindo, além dos ritos católico e evangélico, o espiritismo e a umbanda. gerando situações de constrangimentos e conflitos dentro e fora da escola.

Não há, a rigor, uma fórmula de tratamento do ensino religioso nas escolas públicas. É um campo aberto de disputa que invade e transcende a vida privada e pretende impor um molde de sociedade de base confessional. E isso se faz tanto de forma pouco refinada – com a quase inocente prática de se orar o Pai Nosso antes das aulas –, como através de um lustro intelectual, de semiformação (Halbbildung) adorniana, como as proposições trazidas, sob a forma de subsídios formativos aos professores, em obras como Ensino religioso no ensino fundamental, produzido por integrantes de três grupos de pesquisa4 4 Grupos de Pesquisa "Educação e Religião" (Curitiba, PR), "Educogitans" (FURB – Blumenau, SC) e "Ethos, Alteridade e Desenvolvimento" (FURB – Blumenau, SC). Como autores, assinam Lilian Blank de Oliveira, Sérgio Rogério Azevedo Junqueira, Luiz Alberto Souza Alves e Ernesto Jacob Keim. voltados a este conteúdo e destinado aos professores.

Em seus cinco capítulos (precedidos de uma apresentação e uma introdução e concluídos com uma curta "Considerações Finais"), os autores do livro pretendem contribuir para a constituição de uma proposta de ensino religioso que siga a linha traçada pelos PCN e incentive aos "outros tecelões e pesquisadores" a colaborar "para a formação de um mundo melhor e possível" (p. 21-22). O primeiro capítulo, sob um título de inspiração fenomenológica ("O humano religioso: um ser de buscas ou em buscas?"), relaciona a religiosidade com o olhar moderno de mundo. Busca-se encontrar, dessa forma, o lugar do ensino religioso, que deveria dar um sentido à vida e, por extensão, à educação. Após um passeio por citações fragmentadas e resumidas de personagens como Comte, Spencer, Jung, Freud, Fromm, Einstein e, last but not least, Teillard de Chardin, entre outros, o capítulo fecha com uma relação de oito referenciais que podem conduzir a uma proposta de ensino religioso a partir do cotidiano escolar.

O segundo capítulo– "Contexto histórico-cultural do ensino religioso" – inicia com um histórico deste ensino, adentrando na legislação recente que o considera como área do conhecimento e, posteriormente, como disciplina. Na seqüência, pretende-se inserir o ensino religioso no contexto da escola, no Brasil e no exterior. O capítulo seguinte – "Religiosidade e fenômeno religioso" – é o cerne filosófico da obra, sua razão de ser. Com um discurso teoricamente mais elaborado, se comparado com o restante do livro, os autores expõem ao leitor, iniciando no referencial fenomenológico, a necessidade cultural do sagrado na vida dos povos, na forma de um programa de estudo comparativo.

A conseqüência é óbvia: o quarto capítulo – "Ensino religioso como componente curricular" – apresenta o programa de estudo, definindo o objeto e os objetivos, o conteúdo e a metodologia, a linguagem religiosa a ser utilizada e a identidade e formação do professor. O quinto capítulo – "O ensino religioso e a trans, a inter e a disciplinaridade: uma perspectiva didática" – pretende assumir uma característica multirreferencial, por meio de rasas fórmulas (não é gratuita a citação de Paulo Freire) tão ao gosto dos professores que não sabem – ou não querem – preparar-se para a sala de aula.

A tradição autoritária persiste no ensino religioso. Por mais que se queira atualizar, renovar e descaracterizar sua gênese, permanece o intento das religiões de influir na sociedade civil e nos poderes da República, através da educação. A fé, que, na promessa iluminista, deveria se manter no âmbito privado, cada vez mais, no mundo e no Brasil, se torna fator de política pública, por vezes combatendo a razão e o conhecimento científico e legitimando ações antidemocráticas – tal como na época da ditadura.

Notas

  • ADORNO, T.W. Teoria da semiformação. Trad. de Newton Ramos-de-Oliveira, Bruno Pucci e Cláudia B. M. de Abreu. Educação & Sociedade, Campinas, ano 17, n. 56, p. 388-411, dez. 1996.
  • ARANHA, A.; MENDONÇA, M. Jesus vai à Escola. Época, São Paulo, n. 537, p. 108-14,1ş set. 2008.
  • OLIVEIRA, L.B. et al. Ensino religioso no ensino fundamental São Paulo: Cortez, 2007. 175p. (Coleção Docência em Formação série Ensino Fundamental).
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    Convém lembrar aqui os artigos sobre este tema publicados nos
    Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas (São Paulo, v. 37, n. 131, p. 281-369, maio-ago. 2007).
  • 2
    A reportagem cita dados do IBGE, onde 74% da população brasileira se declararam católicos, 15% evangélicos, 7% sem religião e 3% adeptos de outras crenças.
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    Há que se considerar, de acordo com a reportagem, que o estado do Rio de Janeiro adotou, em 2002, no governo Garotinho, uma divisão das práticas de ensino religioso de acordo com a crença dos alunos, incluindo, além dos ritos católico e evangélico, o espiritismo e a umbanda.
  • 4
    Grupos de Pesquisa "Educação e Religião" (Curitiba, PR), "Educogitans" (FURB – Blumenau, SC) e "Ethos, Alteridade e Desenvolvimento" (FURB – Blumenau, SC). Como autores, assinam Lilian Blank de Oliveira, Sérgio Rogério Azevedo Junqueira, Luiz Alberto Souza Alves e Ernesto Jacob Keim.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Abr 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008
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