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Qualidade da política de integração escola-comunidade: educação para a paz?

CALEIDOSCÓPIO

Qualidade da política de integração escola-comunidade: educação para a paz?

Vera Lucia Sabongi de RossiI; Eloísa de Mattos HöflingII

IDoutora em Educação e professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: derossi@unicamp.br

IIDoutora em Educação e professora aposentada colaboradora da Faculdade de Educação da UNICAMP. E-mail: elohofling@yahoo.com.br

No Brasil, o artigo sexto da Constituição Federal de 1988 reconhece a educação como um direito fundamental de natureza social, que pertence à comunidade e representa uma forma de inserção no mundo da cultura. Para a sociedade que a concretiza, ela se caracteriza como um bem comum, que representa a busca pela continuidade de um modo de vida que, deliberadamente, se escolhe preservar. Para que a comunidade participe de forma ativa, a LDB (1996), em seu artigo 14, estabelece que os sistemas de ensino definam as normas de gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com suas peculiaridades e princípios de participação da comunidade escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes.

No âmbito da lei, a relação escola-comunidade oportuniza a melhoria da qualidade da experiência escolar e do desempenho dos alunos, potencializa práticas educativas, nos momentos de produção de conhecimento, de partilhas coletivas e cooperativas organizacionais, que são também de natureza sociais. Todavia, apesar das inúmeras formas de defesas e resistências produzidas por esta relação escola-comunidade, nessa organização espacio-temporal ampliada circula também um imaginário articulado, implícita e explicitamente, com o poder instituído, cerceado pelo monopólio da palavra legítima e da significação válida que, por vezes, perpassa processos decisórios, ainda que democráticos e colegiados.

A escola não escapa das tramas históricas e dos jogos do micro e do macropoder, ou seja, das antinomias constitutivas do mundo moderno e contemporâneo envoltas em teorias, normatizações e práticas educativas que pretendem libertar e, ao mesmo tempo, moldar o indivíduo, segundo padrões sociais de comportamento, tornando-o produtivo e integrado.

Graças aos conservadores e seus aliados no campo midiático, em escala planetária, são difundidos temas e termos isolados com aparência técnica, que se tornam palavras de ordem políticas, naturalizando esquemas do pensamento neoliberal dos últimos anos (Bourdieu, 1999). Temas e palavras que pretendem regular práticas e definir necessidades sociais da população. Entre as temáticas mais recorrentes, que se tornaram eixos da reforma educativa dos anos de 1990, encontram-se as articuladas à qualidade da educação e suas metas de qualidade de ensino na instituição escolar. No caso do tema da cultura da paz, há um movimento semelhante - quiçá mais sutil, mais difuso e, portanto, mais audacioso - de promoção da qualidade de vida pela via da escola.

Nos anos de 1990, a ONU e a UNESCO convocaram especialistas de todo o mundo para compor a Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. Nos documentos oficiais, encontram-se as diretrizes políticas e pedagógicas contemporâneas da cultura da paz que foram internacionalizadas, com o objetivo de fazer recuar a pobreza, a exclusão social, as incompreensões e a guerra. Divulgadas por toda a America Latina, tais diretrizes materializaram-se nos estados brasileiros pela via do Programa Escola da Família, afinado ao conceito de qualidade educativa da política educacional projetada a partir de 2003.

A problematização desta relação, pouco pesquisada, encontra-se na dissertação de mestrado defendida por Maria Lúcia Ferreira, na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),2 em 27 de fevereiro de 2009. Vale a pena destacar alguns pontos fundamentais de sua pesquisa intitulada: Análise da política de integração escola-comunidade: estudo de caso do Programa Escola da Família do estado de São Paulo.

A partir dos anos de 1990, a política de integração escola-comunidade, sua inserção no bojo das reformas e das políticas públicas para a educação básica efetivadas no Brasil e nos países em desenvolvimento, teve apoio do poder público e desencadeou uma série de ações que envolveram a escola pública no estado de São Paulo. Entre os objetivos contidos no Manual Operativo do Programa Escola da Família (MOPEF), encontra-se o de "promover a qualidade de vida e ampliar os horizontes culturais de crianças, jovens e adultos; tornar as escolas um espaço de convivência familiar nos fins de semana; aproximar educadores (voluntários, universitários e profissionais), a fim de que possam conduzir as atividades em escolas nos finais de semana; qualificar para o mercado de trabalho".

Alguns estudos trabalham a relação escola-comunidade sob diferentes enfoques. Contudo, com o objetivo de compreender a sua política de integração nas escolas da rede pública do estado de São Paulo, Maria Lúcia Ferreira analisou, utilizando entrevistas e documentação escrita diversificada, uma escola pública estadual, instalada em bairro de periferia urbana, de baixa renda, na zona leste de um município de médio porte.

Seu trabalho foi organizado em quatro capítulos. No primeiro, intitulado "Origem do Programa Escola da Família", estudou as concepções teórico-metodológicas que fundamentaram a política direcionada às escolas públicas da rede estadual do Programa e suas relações com a cultura da paz.

"Educar para a paz no mundo contemporâneo" tornou-se uma expressão e uma necessidade assumida entre profissionais de diversas áreas, em especial por quem exerce atividades formativas escolares ou não. O ideal de educar para a paz transformou-se em um projeto instrutivo para formar a sociedade pacífica, séculos antes de Cristo. Entretanto, no século XX, em especial após a primeira e a segunda guerras mundiais, o tema foi estimulado por iniciativa das Nações Unidas e da UNESCO, com a compreensão internacional das liberdades fundamentais e dos direitos humanos. A autora da pesquisa traçou um panorama histórico filosófico dos ideais que permearam os projetos desenvolvidos e implantados mundialmente com esse objetivo, bem como suas repercussões concretas no processo de ensino-aprendizagem, com a disseminação dos modelos e conceitos de paz e conflito.

Ferreira apontou os caminhos e proposições que foram reservados à educação dentro da complexidade dos fenômenos mundiais. Suas bases foram dialogar com a diversidade para a construção da democracia e "dotar a humanidade da capacidade de dominar seu próprio desenvolvimento e tomar seu destino em suas mãos" (p. 41).

É importante considerar que, no Brasil das ultimas décadas, os atos de violência se dão em larga escala, em especial entre jovens de 15 a 24 anos. Escolas parecem prisões monitoradas por vídeos e policiais. Na década de 1990, não se observam, de modo geral, grandes avanços na formulação e execução de programas de combate à violência escolar na cidade de São Paulo.

No capitulo dois, intitulado "A elaboração de um programa de governo", a autora aponta o surgimento, em 2003, do Programa Escola da Família como parte de um projeto regulamentado pelo governo do estado de São Paulo, fundado no ideal de educar para a paz, fornecer espaço de convivência para os jovens e combater à violência. Apresenta o processo de implantação que foi regulamentado pelo Decreto n. 48.781/2004, abordando sua composição, suas diretrizes, o fluxograma de funcionamento, estrutura física e profissionais envolvidos. Utilizou, para tanto, fontes oficiais, publicações e discursos. O que se tem observado, explica Ferreira (op. cit., p. 84), é que

(...) a política decretada com princípios democráticos valoriza a cultura do participacionismos, para garantir a efetiva abertura de espaços escolares. Um processo que se assemelha ao de transição de uma administração centralizada e toda poderosa para outro modelo de gerenciamento do poder público, em que a descentralização e a participação cidadã aparecem como estratégias para revigorar um Estado insuficientemente irrigado pela democracia.

No capitulo três, "O Programa Escola da Família em uma escola pública do interior de São Paulo", é apresentado o estudo realizado a partir dos dados coletados por meio de entrevistas e observações do processo, com o objetivo de delinear a relação entre o olhar da comunidade e a execução dos trabalhos a ela designados.

Conforme pudemos observar, trata-se de um novo programa afinado ao conceito de qualidade educativa da política educacional, pensado como um projeto sistêmico para toda a rede estadual de ensino e se alinhando a projetos já implementados pela Secretaria de Estado da Educação (SEE) de São Paulo. Importante considerar que, em toda a America Latina, o discurso referente ao campo educacional foi assumido pelo campo produtivo num sentido mercantil de consequências antidemocráticas.

No quarto capitulo, intitulado "Pesquisando o Programa Escola da Família", a autora afirmou que:

(...) para a maioria dos sujeitos da pesquisa existe um descompasso entre averbações sugeridas pelos documentos e a prática local. Houve um desencanto para a maioria das pessoas, porque o Estado oferece um pacote de oportunidades para a comunidade, mas não proporciona um conteúdo consistente para construir o alicerce e seus sonhos. (p. 143)

Analisando a definição das diretrizes do Programa, diz a autora que:

(...) é notável a relação existente entre o Programa Escola da Família como ferramenta de inclusão e democratização da escola e a promoção da qualidade de relacionamentos da escola com seus interlocutores. (...) dentro do seu ideal, enseja trazer a comunidade para dentro da escola, fazendo da escola um ponto de encontro social, onde fosse oferecido a ela recursos (...) para retirar a criança da rua para um espaço social (...). (p. 158)

Mas, certamente, estas medidas idealizadas nos documentos não foram colocadas em prática, como explicitam os dados obtidos na escola pesquisada.

Nas "Considerações finais", Maria Lúcia Ferreira retomou os desastres causados pelo apelo emotivo da cultura da paz em suas ligações com o Programa Escola da Família, quando convocou a comunidade externa a assumir problemas educacionais e a disponibilizar espaços escolares nos finais de semana. O Programa, como componente da política educacional implementada nas escolas públicas da rede estadual, foi conceituado pela SEE e pela UNESCO como de maior abrangência e relevância. Todavia, qual será o tipo de educação oportunizada aos participantes do Programa elaborado pelo Governo do Estado de São Paulo?

A grande maioria dos entrevistados mostrou-se descontente com o tratamento recebido porque: houve uma euforia inicial que, aos poucos, foi esvaziada pela falta de consistência dos programas em relação aos serviços prestados; os conflitos foram originados pela inconstância política e ausência de definição concreta da aplicação das diretrizes pelos diversos profissionais; estes não foram preparados para esse tipo de projeto e nem as instituições escolares estavam adequadas para atender a comunidade. Outras dificuldades foram geradas pelas relações difíceis interpessoais e falta de diálogo entre as partes. Como disse a autora: "Os trabalhadores do Programa não conheceram a comunidade, os tesouros e os conhecimentos escondidos nos bairros próximos à escola" (p. 171).

Convidamos à leitura.

Nota

1. A dissertação (Ferreira, 2009) foi orientada pela professora Eloísa de Mattos Höfling e a banca foi constituída pelos professores Luis Bezerra Neto e Cristina Bruzzo.

  • BOURDIEU, P. Escritos da educação 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
  • FERREIRA, M.L. Análise da política de integração escola-comunidade: estudo de caso do Programa Escola da Família do estado de São Paulo. 2009. Dissertação (mestrado) - Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, Campinas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2009
  • Data do Fascículo
    Ago 2009
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