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Memória, narrativa e identidade profissional: analisando memoriais docentes

Memory, narrative and professional identity: analyzing teachers memorials

Resumos

Discute-se neste texto o valor dos memoriais na constituição da identidade docente. Uma das virtudes do memorial é permitir ao seu autor articular, no instante presente, os fios de um passado que não retorna mais e de um futuro ainda em aberto. É uma história que está dentro de outra maior, em que o sujeito é, ao mesmo tempo, resultado e agente componente de sua construção, pois não existe história que não seja feita de fragmentos de outras histórias. Como argumento dessa questão, busca-se tecer uma interlocução entre L. S. Vigotski, sobre a dimensão social da memória, e M. Bakhtin, no que tange à sua compreensão do texto autobiográfico. Para tanto, o desenho metodológico parte da análise de memoriais escritos por educadoras da rede municipal do Rio de Janeiro sobre suas experiências educacionais, a partir da segunda metade do século XX. O foco da discussão fundamenta-se nos aspectos que essas profissionais revelam sobre os indicadores que marcaram a entrada e permanência na vida escolar.

Memória; Professora; Identidade profissional; Escola; Memorial


The text discusses the value of memorials as a component of teachers' identity building. One of the memorials advantages is the fact that they allow their authors to articulate the memories of past and the possibilities of the future in the present time. The memorial is a story that grows within a larger one. Here, the subject is at the same time the outcome and an agent of the process, for there are no stories but those created from other stories' fragments. In this sense, we weave a dialogue between the social dimension of memory in L.S Vigotsky and M. Bakhtin's understanding on autobiographical texts (life record). The methodological design starts from the analysis of memorials written by public school teachers from the city of Rio de Janeiro since the second half of the 20th century. The main point of the discussion is based on the aspects that these professionals unveil regarding the entry in school life as well as the elements that explain their permanence in teaching.

Memory; Teacher; Professional identity; School; Memorial


ARTIGOS

Memória, narrativa e identidade profissional: analisando memoriais docentes

Memory, narrative and professional identity: analyzing teachers memorials

Daniele Nunes Henrique SilvaI; Angel Pino SirgadoII; Larissa Vasques TaviraIII

IDoutora em Educação e docente do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: daninunes74@gmail.com IIDoutor em Psicologia e livre-docente em Psicologia da Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: pino0933@terra.com.br IIIAluna do curso de Psicologia da Universidade de Brasília e bolsista de Iniciação Científica (CNPq). E-mail: larissatavira@gmail.com

RESUMO

Discute-se neste texto o valor dos memoriais na constituição da identidade docente. Uma das virtudes do memorial é permitir ao seu autor articular, no instante presente, os fios de um passado que não retorna mais e de um futuro ainda em aberto. É uma história que está dentro de outra maior, em que o sujeito é, ao mesmo tempo, resultado e agente componente de sua construção, pois não existe história que não seja feita de fragmentos de outras histórias. Como argumento dessa questão, busca-se tecer uma interlocução entre L. S. Vigotski, sobre a dimensão social da memória, e M. Bakhtin, no que tange à sua compreensão do texto autobiográfico. Para tanto, o desenho metodológico parte da análise de memoriais escritos por educadoras da rede municipal do Rio de Janeiro sobre suas experiências educacionais, a partir da segunda metade do século XX. O foco da discussão fundamenta-se nos aspectos que essas profissionais revelam sobre os indicadores que marcaram a entrada e permanência na vida escolar.

Palavras-chave: Memória. Professora. Identidade profissional. Escola. Memorial.

ABSTRACT

The text discusses the value of memorials as a component of teachers' identity building. One of the memorials advantages is the fact that they allow their authors to articulate the memories of past and the possibilities of the future in the present time. The memorial is a story that grows within a larger one. Here, the subject is at the same time the outcome and an agent of the process, for there are no stories but those created from other stories' fragments. In this sense, we weave a dialogue between the social dimension of memory in L.S Vigotsky and M. Bakhtin's understanding on autobiographical texts (life record). The methodological design starts from the analysis of memorials written by public school teachers from the city of Rio de Janeiro since the second half of the 20th century. The main point of the discussion is based on the aspects that these professionals unveil regarding the entry in school life as well as the elements that explain their permanence in teaching.

Keywords: Memory. Teacher. Professional identity. School. Memorial.

Introdução

Registrar as memórias em forma de texto biográfico é algo que alguns educadores vêm realizando nos últimos anos (Soares, 1981; Moura, 1998; Silva, 2005a; Passegui, 2006). Na maioria dos casos, esses documentos memoriais revelam uma necessidade de refletir sobre a experiência profissional, buscando entender as trajetórias subjetivas que vão delineando o ofício docente. À primeira vista, escrever em tom biográfico não parece ser uma atividade muito difícil para o professor que já tem o hábito de registrar os desafios/desvios de suas vidas dentro e fora da escola.

Em 2005, um grupo de professoras do Instituto Helena Antipoff (IHA),1 1 . Em 2005, o Instituto Helena Antipoff (IHA) era o órgão da Secretaria Municipal de Educação responsável pela educação especial no Rio de Janeiro (Magalhaes, 2005). da Secretaria da Educação do Rio de Janeiro, decidiu organizar suas memórias em narrativas, na forma de livro (Silva, 2005a). Nesses documentos, observa-se que o passado e o presente se articulam, afetando-se mutuamente e permitindo diferentes modos de compreensão da identidade docente. Deparando-se com as lembranças, as memórias escritas dessas educadoras apresentam uma valiosa compreensão dos marcadores que vão delineando e sustentando a trajetória profissional que, por vezes, atravessa profundas contradições acerca das possibilidades de se tornar profissional. Na leitura dos memoriais, percebe-se como nelas estão tecidos os diferentes modos de ser professora, a partir da possibilidade de construção de teias de significados sobre a história recente desse ofício.

Além de configurar uma forma do autor-memorialista se posicionar diante dos fatos lembrados, reescrevendo a sua história, a escrita do memorial visita as memórias do leitor-professor que lê o documento, convidando-o a refletir sobre a sua própria identidade profissional. Instiga-o, portanto, a argumentar: afinal, quem sou eu no trabalho que faço?

Esse impacto da leitura dos memoriais na formação do professor-autor e professor-leitor promove uma série de indagações a respeito das relações entre memória, narrativa e identidade profissional. Enfim, como pode a escrita biográfica do outro (autor-professor-memorialista) revelar a outrem (leitor-professor) aspectos da sua dimensão profissional?

Tentar responder a essa questão central constitui o objetivo deste trabalho, esperando esclarecer os princípios que norteiam a memória e a narrativa escrita na composição de memoriais, a partir da análise dos documentos escritos por esse grupo de professoras, procurando extrair alguns eixos de confluências entre eles. Para tanto, o argumento teórico se apoia, especialmente, nas contribuições de dois autores: L. S. Vigotski, no que tange ao problema da memória no desenvolvimento humano, e M. Bakhtin, no que diz respeito aos aspectos que envolvem a composição do texto biográfico.

A dimensão social e cultural da memória

Os dois primeiros significados do termo "memória" encontrados nos dicionários são: 1. Faculdade de reter as ideias, impressões e conhecimentos adquiridos anteriormente; 2. Lembrança, reminiscência, recordação (Buarque de Holanda, 2009, p. 910). Enquanto o primeiro remete à ideia de uma instância, que permite guardar diversos tipos de experiências vividas anteriormente, o segundo se refere à recuperação do conteúdo retido por tal instância; ou seja, atos de lembrança, reminiscência e recordação, que designam a ação de recuperar um determinado conteúdo, como resultado da ação mnemônica.

Fica bastante claro que esses dois sentidos do termo "memória" não só se aplicam, exclusivamente, ao humano (o único ser vivo capaz de pensar e assimilar ideias) como, também, indicam (implicitamente) que a memória, tanto como instância quanto como conteúdo, é de origem e natureza exclusivamente individuais, mesmo quando se leva em consideração a ação do meio. Em tratados de psicologia fisiológica, por exemplo, a memória está associada ao processo de aprendizagem (Grossman, 1967), da qual, dependendo do paradigma epistemológico, ela é condição ou efeito.

Mais recentemente, com o desenvolvimento das novas tecnologias de informática e com o avanço das pesquisas nos campos da biogenética e da neurologia, o estudo sobre a memória tornou-se central, de um lado, para designar o dispositivo eletrônico capaz de armazenar, conservar e restituir dados (metáfora técnica de uma função biológica) e, de outro, para explicar a estrutura molecular dos organismos e a atividade do cérebro no campo cognitivo, afetivo e volitivo.

Embora o avanço das pesquisas em biogenética e neurologia torne perfeitamente admissível considerar que a memória seja uma função biológica (presente no mundo da vida, permitindo a conservação da identidade das espécies e sua continuidade no processo evolutivo), de uma forma geral, ela é vista como função do sistema nervoso central (SNC). Está, portanto, presente em organismos cuja evolução na escala das espécies torna essa função um processo cada vez mais complexo; fundamental para a adaptação desses organismos às condições mutantes do meio.

Dentre as espécies portadoras de SNC, destaca-se a homo, particularmente, o homo sapiens sapiens; homem moderno cuja adaptação mais eficiente ao ambiente o tornou capaz de transformar esse meio, criando suas próprias condições de existência. Desse processo resulta uma relação singular entre ele e o meio, pois quanto mais o homem transforma o ambiente, humanizando-o, ele atinge patamares mais complexos de humanização.

Trata-se, sem dúvida, do maior acontecimento na evolução dos seres vivos: a transformação de um ser biológico em um ser cultural, ou simbólico. Nesse processo transformador da espécie humana, a memória biológica atinge uma nova configuração na evolução: torna-se uma função de representação, que permite ao homem não só representar-se mentalmente a realidade e as próprias experiências vividas ao longo do tempo, como também representar-se na realidade e nas experiências ainda não vividas. Em outras palavras, a partir da experiência humana emerge não só a memória do passado, mas também a memória do futuro; dois tipos de memórias que se retroalimentam, compondo dimensões do ato criador.

Na experiência humana, a função biológica da memória torna-se uma função simbólica essencialmente dinâmica, que se faz no próprio funcionar, ou seja, no ato de lembrar, de rememorar e de recordar o passado e o futuro. Algo, entretanto, bem diferente daquela função mental estática que a psicologia tradicional conceituou.2 2 . Entende-se por "psicologia tradicional" não só aquela ligada à filosofia chamada escolástica, que falava das funções humanas como uma "faculdade" da alma, portanto algo estável, mas também às correntes modernas que conservam a ideia de memória como uma faculdade de registro estável da mente; noção que passou ao campo da informática.

Não é de se estranhar, portanto, que ainda existam correntes psicológicas e pesquisas bioneurológicas contemporâneas que se refiram à memória como uma faculdade mental puramente orgânica e de caráter exclusivamente individual; um mero complexo de operações psicofisiológicas que permitem o registro e o armazenamento de informação, à maneira da metáfora da memória eletrônica. O problema maior dessa forma tão difundida de conceber a memória humana (algo que vale também para as outras funções psicológicas) é ver nela o resultado do mero desenvolvimento orgânico do indivíduo em interação com o meio, ignorando as condições culturais e históricas da constituição do humano, em que a cultura e a realidade social desempenham papel fundamental.

É aqui que a contribuição dos estudos de Vigotski e dos seus colegas, que constituem a chamada corrente histórico-cultural de psicologia, revela sua importância e seu valor de contemporaneidade.

Como Vigostki (1997) sustenta no seu estudo sobre a gênese das funções mentais superiores, uma das suas obras mais importantes que a natureza humana é constituída de duas séries de funções: as elementares (de origem natural ou biológica) e as superiores (de origem cultural ou simbólica). Aquelas estão na linha do processo evolutivo; estas, no viés do processo transformador operado pelo homem na natureza e nele mesmo; as primeiras constituem o fundamento das funções superiores, que transformam o funcionamento elementar, ao conferir-lhe uma nova forma de existência: a existência cultural ou simbólica.

Desse modo, a memória, como função psicológica superior, deve ser estudada, fundamentalmente, em sua gênese histórica, em que as dimensões culturais e biológicas se integram de forma contraditória e interdependente. Esse posicionamento conceitual implica, sem dúvida, uma revisão epistemológica da temática.

Vigotski (2007, 2008) identifica dois tipos de memória: a memória natural, atrelada às percepções vinculadas ao ambiente externo e seus estímulos (funcionamento psíquico elementar) e a memória mediada, estruturada por signos, mais especificamente, a palavra (funcionamento psíquico de ordem superior). O segundo tipo de memória mereceu esforços teóricos do autor, pois Vigotski observou em suas pesquisas com crianças e adultos diferentes modos de se memorizar e relacionar os atos de lembrar ao modo de usar e de se apropriar dos signos. A palavra, portanto, é o elemento fundamental para a organização da memória humana e, sendo o signo vinculado às práticas coletivas, a memória passa a ser entendida, nessa perspectiva, como atrelada às dinâmicas discursivas. O que se lembra e como se lembra (aspectos da narrativa) são questões relacionadas ao âmbito social. Dessa maneira, conteúdo (o que) e forma (como) precisam ser investigados em função do impacto que produzem no desenvolvimento ontogenético, pois os atos de narrar e lembrar o vivido estão diretamente implicados, no que tange a constituição subjetiva, à forma como nos tornamos humanos, nos apropriamos da experiência alheia e a convertemos em algo que produz sentido pessoal e nos constitui (Smolka, 2000).

Memória, narrativa e escrita: aspectos estéticos e conceituais da construção de memoriais

Desde os tempos mais remotos, o homem sempre sentiu a necessidade de contar o vivido e conservar a lembrança dos principais acontecimentos da sua vida por meio de recitados míticos, de rituais e danças, de formas gráficas nos muros das cavernas, monumentos, entre outros. Todas essas formas são canais simbólicos pelos quais se perpetuam as memórias de um povo, sendo que essa perpetuação ocorre por meio da atribuição de novas significações aos eventos comemorados ao longo das gerações.

As diferentes formas de representar e expressar dos povos foram marcando o espaço natural (o ambiente) e configurando-lhe aspecto cultural e estético. A configuração de narrativas está inscrita no homem e no tornar-se homem, consolidando o contato com o outro (em sua coletividade), pela dinâmica discursiva. De fato, marcas e pistas são deixadas nas palavras que traduzem tradições, crenças e valores; um desejo intenso de pensar sobre algo que se consolidou no passado; uma forma de viver a memória (lembrança).

No posfácio do livro organizado por memoriais docentes, Silva (2005b) apresenta a aventura de Renato Barbieri (1992), na direção do documentário Atlântico negro na rota dos orixás, em que o diretor evidencia as relações (contínuas e descontínuas) entre a religião dos orixás na África e no Brasil, no cruzamento negreiro/escravo pelo Atlântico. O documentário escuta mestres religiosos de ambos os continentes e problematiza a ideia de que, apesar do tempo e das condições injustas de expressão da cultura orixá, há uma verdade comum aos povos preservada nas tradições e práticas orais. Entre muitos aspectos, surpreende o depoimento de um africano da tribo de Benim sobre a captura dos negros para o comércio escravista. Explica o depoente que, no caminho ente as aldeias do interior até o litoral, os futuros escravos tinham que dar voltas na árvore do esquecimento as mulheres davam sete voltas e os homens, nove voltas, com o objetivo que nada fosse levado (lembrado?) para o outro lado do Atlântico; nenhuma recordação da África. Para os comerciantes, a memória era um entrave à expansão do comércio escravo.

Para além das tradições orais, com o surgimento da escrita, os modos de contar foram ampliados, implicando alterações nas configurações narrativas. Entre as produções, que marcam a memória estruturada em textos, destacam-se: as cartas de viajantes, os diários de meninas, as biografias de heróis (reais ou imaginários), as autobiografias e os memoriais. Na composição estética de textos, divulga-se um novo modo de estruturar a memória e compor a lembrança narrada.

Bakhtin (2003) comenta que as formas originais de textos autobiográficos aparecem no fim da Idade Média e no início do Renascimento, apresentando-se, num primeiro momento, em forma mista; do texto confessional (dirigido a Deus), para o documento autobiográfico (no qual o homem ocupa um lugar de não Deus antropomaquia). O autor se remete, como exemplo, ao texto de Abelardo História calamitarum mearum em que, a partir do estilo confessional, manifestam-se os primeiros valores biográficos.

No livro Estética da criação verbal, Bakhtin (1985) apresenta a relação entre o autor e seu herói (protagonista) como uma questão central da criação literária, reveladora das questões implicadas na autoria. Tais questões trazem desdobramentos para uma compreensão do efeito estético produzido pelas biografias, o que responde centralmente a preocupação levantada na introdução desse artigo sobre memória, narrativa e identidade profissional.

Para compreensão dos aspectos levantados pelo autor acerca do texto biográfico, faz-se necessário entender os conceitos de autor-criador, extralocalidade (exotopia) e efeito estético, promovidos por Bakhtin. Para ele, o autor-criador (categoria construída para identificar a diferença do autor-pessoa) é aquele que vive a criação, na construção de um texto literário. Sua relação com o texto é de alguém que está de fora, não como uma pessoa, mas sim como aquele que estabelece um vínculo com o texto, num plano diverso dos personagens que estão no próprio texto. É a posição de alguém que está fora contraditoriamente, estando dentro, de modo invisível (Clark & Holquist, 1997). Isso significa dizer que a posição do autor-criador se dá num ponto a partir do qual o espaço (exterioridade na configuração espacial; a exterioridade do ato; o corpo etc.) e o tempo (ritmo; a memória do passado; a memória do futuro etc.) se integram e se dimensionam na extralocalidade do autor diante do seu próprio texto (Silva, 2005).

Esse distanciamento possibilita ao autor-criador dar acabamento aos personagens, na medida em que ele se apropria de forma bem-sucedida das limitações do horizonte do próprio personagem (o outro), configurando detalhadamente o contorno de sua paisagem. Para Bakhtin, a melhor percepção sobre o outro/personagem (incluindo a sua inconsciência) permite ao autor-criador se deslocar para o seu horizonte, ver o mundo com os olhos do personagem. A partir desse deslocamento, o autor retorna à sua consciência e consegue, num segundo momento, significar de fora o que o personagem sentia e vivia por dentro; o personagem é objetivado na relação com o autor, o que possibilita o efeito estético.

Para Bakhtin não há uma distinção muito clara entre autobiografia e biografia, no que tange à discussão sobre a orientação da consciência. Isso porque, na organização estética do texto, a relação comigo mesmo (o eu-para mim) não é um elemento constitutivo e organizador da forma artística (efeito estético). De fato, a narrativa da (minha) vida é uma forma de objetivação do acontecimento vivido em formato artístico e, no âmbito da auto-objetivação, há uma (quase) coincidência entre autor e herói. Em outros termos, Bakhtin (1985, p. 165) verifica que há uma relação coincidente entre "a pessoa de que se fala e a pessoa que fala".

O autor não sabe mais sobre o seu herói, não constitui com ele uma exotopia. O grau de exotopia que envolve a construção de um texto autobiográfico é o íntimo intercâmbio entre autor e herói, numa configuração peculiar de acabamento (o não acabamento). A dimensão estética está marcada pela forma como a vida do herói é percebida, ou, em outros termos, como o próprio autor configura o seu herói. Ou seja, na biografia existe uma interrelação entre aquilo que é desejado para o herói e o que é desejado para o autor. Não há uma oposição complementar autor/herói, pois ambos pertencem ao mesmo plano de valores. Bakhtin (1985, p. 178) comenta: "Há duas consciências, sem haver duas posições de valores; há duas pessoas e, em vez de eu e o outro, há dois outros".

A colocação de Bakhtin refere-se precisamente à impossibilidade alteritária e, portanto, ao impedimento da constituição estética do texto autobiográfico. O encontro de duas consciências que não se opõem compromete a conclusão e o acabamento, pois não há uma extralocalidade do autor com relação ao seu herói.

Nesse sentido, a biografia seria ingênua (uma não obra), estando atrelada às paixões e sentimentos emanados dos acontecimentos vividos pelo herói-narrador. O autor não consegue se distanciar de seu herói, ambos estão imersos no mundo da existência, situado fora das fronteiras da obra.

Contudo, para Bakhtin, no caso dos textos biográficos, o leitor é aquele que compartilha de uma intimidade com o material biografado, tomando a posição do autor. O leitor crítico, portanto, é convidado a dar uma forma ao texto biográfico (efeito estético), por meio de um acabamento. Ele possui a visão de fora, da extralocalidade. Isso significa dizer que, ao ler as memórias, o leitor é introduzido a uma percepção exotópica que configura o acabamento artístico dos memoriais. Lendo-os, ele confere contornos que não estão objetivamente presentes, mas que trafegam pela esfera do implícito e do sentido atribuído; traços cuja existência nem mesmo as personagens-heroínas-narradoras percebem.

O texto em formato de memorial está aberto; o acabamento do leitor é uma possibilidade de interpretação; de um sentido que se constrói em função da sua história pessoal, das suas próprias memórias, da posição que ele ocupa diante do texto. No caso específico dos memoriais docentes, a leitura imprime ao leitor-professor, por exemplo, a possibilidade de se reposicionar diante de suas trajetórias profissionais, identificando aspectos comuns e dissonantes; esferas da própria identidade. No estudo aqui realizado sobre os memoriais escritos por educadoras, da rede pública de ensino, evidenciam-se os aspectos comuns (gerais) e pessoais (particulares) de composição da trajetória docente no que tange aos: a) elementos que as levaram (nos levam) à escolha profissional e b) aos aspectos da vida que as mantêm (nos mantém) nessa profissão.

Metodologia para análise de memoriais

O debate em torno das contribuições das pesquisas quantitativas e qualitativas para as Ciências Sociais e Humanas é, ainda, inacabado. Enquanto as primeiras atuam em esferas de realidade, das quais os dados se apresentam em campo de práticas e objetivos reveladores ou indicadores de fenômenos observáveis, a investigação qualitativa se pauta em representações de fatos e processos específicos a indivíduos e grupos, que exigem interpretação dos pesquisadores (Chartier, 1996). Alguns autores (Denzim, 1984; Soares, 1994) avaliam metodologicamente que não existe contradição e nem continuidade entre as duas formas investigativas, ambas diferem apenas em suas naturezas. Dessa maneira, por não se excluírem mutuamente e não haver complementaridade necessária de uma à outra na compreensão de uma dada realidade, surge a possibilidade de se avaliar, conforme o objeto de pesquisa, qual metodologia se faz mais conveniente.

Existem diversos métodos para a coleta e análise de dados na abordagem qualitativa. Entre eles, a história de vida ocupa numa posição de destaque. Essa metodologia permite a captação dos fenômenos por trás da interseção do individual com o social, possibilitando também a verificação dos modos como elementos do presente fundam-se em evocações passadas dos indivíduos (Queiroz, 1988).

Conforme Denzim (op. cit.), a vida pessoal de um indivíduo pode ser mapeada de acordo com episódios cruciais, cuja experiência gera seus significados específicos. A história de vida torna-se, então, um instrumento significativo para análise e interpretação metodológicas, pois incorporam experiências subjetivas atreladas aos contextos sociais. Tem-se, assim, uma estrutura consistente para a compreensão dos fenômenos históricos em suas relações com os componentes individuais. As narrativas de cunho autobiográfico podem ser encontradas em memoriais, que têm configurado como campo fértil de análise, pois revelam essas situações cruciais e estruturantes na determinação de escolhas e projetos de vida.

Os memoriais configuram-se como instrumentos que podem possibilitar reflexões sociais, educativas e culturais. Nesses instrumentos, os sujeitos reelaboram e ressituam suas vidas em relação à sociedade e outros indivíduos. Por definição, o memorial pode representar um mapa de expressão da vida escolar, social e cultural de cada sujeito, que possui a sua história, com memórias suas e da sociedade. Esse mapa representativo compreende a realidade social, histórica e cultural, conjuntamente no itinerário vivido que se resgata mediante a memória, que marca os sujeitos (Tavira, 2010).

Constituindo-se como uma autobiografia, o memorial se configura em modo de narrativa simultaneamente histórica e reflexiva. Sendo assim, ele é composto no formato de relato histórico, analítico e crítico, incluindo acontecimentos que constituíram a trajetória de vida dos sujeitos. As significações de determinados momentos, as representações de fatos cruciais situam-se no contexto histórico-cultural mais amplo em que se inscrevem os sujeitos. A história particular de cada indivíduo se relaciona à história da coletividade. Desse modo, faz-se importante a ênfase nas marcas das influências compartilhadas nas trocas sociais ou nas situações culturais, expressando a evolução que caracteriza a história individual e vice-versa (Severino, 2000).

Caracterizando o espaço investigativo: o texto escrito

Como já foi dito, o estudo foi desenvolvido a partir da leitura e análise dos memoriais que compõem o livro Educação especial: memórias e narrativas docentes (Silva, 2005a), produzido pela Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, no Instituto Helena Antipoff (IHA).

Em linhas gerais, os memoriais pesquisados se caracterizam pela diversidade de estilos literários. Algumas autoras optaram por uma escrita cronológica da experiência docente; outros relatos apresentaram uma narrativa entremeada por: a) personagens reais ou fictícios; b) fotos/imagens da infância na escola e c) articulação narrativa entre prosa e verso.

Em geral, os textos indicam aspectos das políticas e programas educacionais que foram desenvolvidos no Rio de Janeiro (estado/município), a partir da metade do século passado até o começo do século XXI, apresentando experiências escolares que revelam decisões, atitudes e questionamentos profissionais advindos da vivência na escola, especialmente na sala de aula.

Tratamentos dos dados para composição das análises

Com base na leitura de todos os memoriais, foi realizado um primeiro levantamento sobre temas comuns às autoras.3 3 .A análise dos memoriais contou com a colaboração de Fabrício Dias de Abreu (bolsista de Iniciação Científica/CNPq graduação de Pedagogia, UnB) e Rafael Gabriel Assis (bolsista Reuni graduação de Psicologia, UnB). Nesse estudo preliminar, destacaram-se três elementos gerais de composição dos memoriais: a) a escolha profissional; b) articulação entre políticas públicas educacionais e atuação docente (relação micro e macroestrutura) e c) impacto da escrita dos memoriais na atuação das professoras-escritoras.

Contudo, a partir de uma releitura minuciosa dos dados, observou-se a necessidade de recomposição dos eixos de análise, em função do detalhamento na interpretação do texto, derivando na estruturação de outros temas, tais como: a) marcadores de entrada na profissão docente (interconexão dos aspectos globais e dos aspectos particulares) e b) marcadores de permanência na atividade docente. Esses dois aspectos serão analisados a seguir.

a) Marcadores de entrada na profissão docente (interconexão dos aspectos globais e dos aspectos particulares da vida no magistério)

Com base nos memoriais analisados, os eventos que significaram a escolha docente (marcadores de entrada e permanência) esbarram em imposições histórico-culturais que determinaram, nos contextos específicos, o magistério como a única opção de profissionalização das professoras memorialistas.

Embora não tenha sido algo propositado, os memoriais recolhidos para esta análise foram constituídos apenas por mulheres. Esse fator, no entanto, não evidencia ser algo aleatório, mas resultante de um processo histórico da profissionalização das mulheres, que inicialmente tinham como uma das únicas possibilidades a atuação docente.

Conforme a análise realizada por Campos (2002), sob uma perspectiva histórica, o processo de profissionalização no magistério estabeleceu-se no século XIX (Brasil), período em que surgiram as primeiras Escolas Normais, cujo objetivo era a formação de professores.

De acordo com Apple (1986), com as escolas específicas para a educação de meninos ou meninas, surgiu a necessidade de admissão de mulheres para lecionar em turmas femininas. Nesse contexto, as primeiras vagas para o magistério foram criadas, como oportunidade para que elas prosseguissem nos estudos. De fato, a escola era um espaço de formação socialmente aceito, que facultava ao público feminino a possibilidade de transcender o âmbito doméstico na busca de realização e certa independência econômica e social.

Esse processo de feminilização da carreira docente se alia, por um lado, às condições objetivas da estrutura econômica e social, mas, também, se vincula aos papéis aceitáveis de atuação do feminino na sociedade. As esferas da maternidade (o cuidado, a atenção, entre outras) são elencadas como fundamentais para o ofício docente (Campos, 2002) e estão presentes nos memoriais transcritos a seguir:

"Na época, a maioria das jovens optava pela função de professora, o que as colocava próximas do papel de mãe e mais adequadas às experiências vinculadas ao âmbito doméstico". (Trompieri, 2005, p. 25)

"Naquela época, ser professora ainda conferia um bom 'status' social, uma remuneração razoável e, além disso, alunos de escolas normais da rede pública, ao concluírem o curso, tinham emprego garantido no Estado. Aliado a isso estava contido o desejo da minha mãe, que havia sido professora leiga, de se realizar por meio da minha formação. Para o meu pai, por outro lado, era uma oportunidade de eu ser economicamente independente" (Gomes, 2005, p. 42)

"Nunca desejei ser professora (...). Porém, minha mãe achou por bem que suas filhas, todas mulheres, fossem professoras. Era uma carreira seguida por mulheres em sua maioria e que, logo a seguir, possibilitaria ingressar no mercado de trabalho e conseguir independência financeira; sonho de minha mãe e meta imposta para uma família que sempre enfrentou dificuldades financeiras" (Magalhães, 2005, p. 124)

Além das questões socioeconômicas e dos aspectos relacionados ao feminino e à maternidade, outro sinal que explica a entrada no magistério (a própria opção profissional) relaciona-se às experiências positivas que marcaram as primeiras vivências escolares das memorialistas dentro da escola, especialmente com relação ao aproveitamento escolar, em que obtiveram destaque nos processos de avaliação e de realização de tarefas, que apresentavam características relacionadas à ação docente. Ou seja, muitas autoras apontam em seus textos que eram boas explicadoras ou mesmo porta-vozes da sua turma, quando alunas. Rosa (2005, p. 74) e Abdalla (2005, p. 86) escrevem, respectivamente:

"Em 1972, 'Menina' entra na escola (...). Deste período guarda boas recordações (...). Tornou-se representante de turma. Ficou mais responsável. Anotava tudo das aulas. Era porta-voz de um grupo".

"Continuava tímida, mas me destacava pelo desempenho escolar, pois tirava ótimas notas e auxiliava aqueles que não compreendiam os conteúdos. Fui denominada 'explicadora' do grupo".

Ademais, os modelos de professoras que marcaram as vidas das memorialistas, quando estas eram alunas, são elementos importantes de entrada no magistério; a professora do primário, a tia que lecionava informalmente em casa ou a mãe que era, também, educadora são personagens que vão costurando os sentidos da docência, dando suporte afetivo à escolha profissional. Sobre isso, indica Gomes (op. cit., p, 41 e 46):

"A primeira escola, marcada pelo meu contato com o mundo das letras escritas, foi a casa da minha madrinha Gina. Professora, ela dava aulas particulares (...). Sentia-me fascinada pelo que via e ouvia. Achava que ela era mágica, uma espécie de fada".

"(...) Nas minhas primeiras turmas, os alunos já tinham a idade de 13 e 14 anos, histórias de repetência, vida marcada pela violência. Por isso, lembrei-me da minha primeira professora, Vera Lúcia, que também dava aulas para alunos dessa faixa etária. Lembrando da minha professora, tornava-me professora".

Ao narrar a sua infância, Borges (2005, p. 49) recorda: "Desde sempre quis ser professora. Portas, paredes, pequenas placas de madeira, qualquer material era pra mim um quadro. Neles reproduzia as aulas da escola para minha turminha de faz- de- conta".

Abdalla (2005, p. 87) indaga-se:

"O que teria feito minha mãe presentear-me com um pequenino quadro-negro aos oito anos de idade? E seus relatos como professora leiga substituta no interior do estado do Espírito Santo? E seu desejo, transformado em memória, de uma escola que ela não pode ter pleno acesso, em sua infância/juventude vivida na roça?".

Esses depoimentos revelam que há uma relação entre a escolha profissional e dimensões afetivas nas experiências das memorialistas na relação com pessoas que, em suas trajetórias de vida, foram identificadas como referências do ato de ensinar. Como pode ser observado na análise dos dados, tais referências atrelavam-se aos espaços formais e não formais de educação.

Os dados apresentados nessa primeira unidade de análise indicam que a opção docente não é algo atrelado a um princípio vocacional anterior ao magistério, ou uma vocação adquirida no período de formação (individual), conforme aponta Mauricio (2009). Aqui, numa linha contrária, assume-se que a escolha profissional se dá no intermédio entre condições socioeconômicas articuladas (de forma contraditória) às experiências de vida (dimensões subjetivas, portanto, afetivas) que vão dando sentido à experiência de ensinar. Sobre isso, Cunha (p. 60) sintetiza:

"Os motivos que me levaram a escolher o Curso Normal não foram o de idealismo ou 'vocação'. Analiso que houve uma forte influência familiar. Tinha total clareza que precisava começar a trabalhar cedo, para poder ter dinheiro para as despesas pessoais e custear os estudos da faculdade, que ainda não sabia qual seria. Minha mãe cursou até o ginasial e foi convidada em sua cidade para dar aulas no grupo escolar. Parou de trabalhar quando casou e veio morar no Rio de Janeiro. Ela falava que, com o Curso Normal, eu teria mais chances de começar logo a trabalhar. Além disso, minha irmã já era professora e eu a ajudava na escola, que funcionava nos fundos de nossa casa, depois num dos cômodos da própria casa, e, finalmente, em uma casa que se tornou uma escola particular".

b) Marcadores de permanência na atividade docente

Em relação aos marcadores que indicam a permanência na carreira docente, em todos os memoriais tem-se a nomeação das Escolas Normais como espaços fundamentais para a formação no magistério. Tal fenômeno pode ser interpretado como o delineamento de uma relação significativa, no sentido de que a referência à instituição se constitui como uma marca visível que pode configurar um fator de permanência profissional. Dessa forma, para consolidação da carreira docente, a nomeação da instituição formadora se estabelece como um aspecto de destaque, conforme explicita o memorial de Noemia (Trompieri, 2005).

Outro elemento que se mostrou presente em todos os memoriais, como marcador de permanência no magistério, foi o (re)encontro das memorialistas com as desigualdades sociais emergentes nos espaços públicos de educação. Essas experiências parecem balizar uma dimensão de responsabilidade social, cujo envolvimento docente indicaria um compromisso social de transformação, a partir da educação. Tal evento é destacado por Abdalla (op. cit., p. 87):

"Por meio de inúmeros gestos familiares, das palavras não ditas, das vivências nas escolas e das professoras inspiradoras, fui me constituindo como professora, sem saber. Ao ver e ouvir relatos dos adultos sobre o que era ser docente, fui desenvolvendo o 'gosto por sonhar em ser professora', acreditando na educação como possibilidade de transformação social, por meio de uma emancipação daqueles que, como eu, freqüentavam os bancos escolares das classes populares".

A grande maioria das professoras, em seus memoriais, também faz alusão ao impacto da vivência com os alunos, em especial aqueles do ensino público, que eram tidos como problemáticos, infratores, repetentes etc. A partir da convivência na sala de aula, as memorialistas demonstram reconhecer que esses alunos, embora submetidos às diversas desvantagens sociais, podem ter suas condições alteradas por meio das ações educacionais. Essa dimensão revolucionária (transformadora) pode explicar a permanência dessas mulheres-professoras na carreira docente, como se pode verificar nas seguintes falas:

"O primeiro contato como professora de rede pública em uma comunidade de baixa renda, com uma clientela que têm negados os seus direitos básicos de cidadania, fora impactante. Possibilitou-me uma reflexão sobre minha trajetória escolar e a formação de professores". (Abdalla, op. cit., p. 89)

"Por meio da convocação ao Município, precisei aprender a ensinar na diversidade, o que, para mim, era um grande desafio. Estava lecionando para um grupo de 3ª série, contendo muitos alunos renitentes. A dificuldade em leitura e escrita imperava. Minha preocupação era modificar aquela condição". (Borges, op. cit., p. 103)

Em linhas gerais, o sentido de responsabilidade social e a convivência com alunos na esfera pública se mostraram como elementos da permanência dessas professoras na carreira docente. As situações vividas concretamente, na trajetória profissional, costuram as memórias que marcam a opção pelo magistério. O contato com crianças em desvantagens, deficientes, sujeitos marginalizados, entre outros, delineiam a identidade profissional dessas educadoras, revelando de forma contundente as razões que as levaram a permanecer numa profissão tão plena de contradições. Para além de uma prática sacerdotal, os memoriais indicam a concepção política dessas educadoras em compreender a escola como espaço de transformação social, o que implica uma necessidade de mudança nas formas de ensinar e aprender.

Considerações finais

Os memoriais, por serem lembranças de fatos e/ou experiências vividas no passado, são documentos que revelam dimensões da vida que não retornam mais. Essas dimensões são revisitadas no momento em que o autor inicia a construção de seu texto e estão imersas nas recordações mais significativas em que os fatos ocorreram na sua concepção.

Entretanto, as impressões vividas no passado (percepção dos fatos, sentimentos provocados, emoções, entre outras, determinados pelas condições da sua existência) tendem a sofrer alterações na ocasião da sua recordação, uma vez que são evocadas em condições novas. Isso explica que a lembrança dos fatos não é a realidade desses fatos, ficando uma ampla margem aberta a todas as formas de ação da imaginação e da interpretação do próprio conteúdo vivido.

Sem dúvida, a narrativa sobre os acontecimentos passados atravessam os crivos do estado psicológico da pessoa, em função das maneiras de (se) ver (no momento presente) diante desses acontecimentos. Estes, por sua vez, dialogam com a vida concreta daquele que narra, produzindo o próprio conteúdo narrativo, que sempre é um lugar de reflexão e análise.

Em linhas gerais, pode-se afirmar que os memoriais analisados no presente artigo indicaram como fatores cruciais aos marcadores de entrada na carreira docente: a situação socioeconômica, a influência dos modelos e as experiências positivas das primeiras vivências escolares das autoras na infância. Para além, os dados também apontaram que o fazer na sala de aula, o encontro com os alunos em situações adversas, a própria cultura escolar (relações interpessoais) são esferas fundamentais para explicar a manutenção dessas educadoras no magistério, na medida em que elas percebiam no seu ofício a possibilidade de mudar trajetórias discentes (transformação), o que lhes trazia satisfação pessoal.

Essas análises demonstram (entre outros) dois impactos produzidos na escrita e leitura do memorial, especialmente quando se pensa em ações planejadas de formação continuada para os professores que atuam na rede de ensino: a) a escrita do memorial reposiciona o autor-professor na interpretação de sua própria trajetória profissional e b) a leitura de memoriais abre possibilidades do leitor-professor refletir sobre a sua própria experiência, a partir da história alheia.

O eixo teórico-conceitual, aqui apresentado, parte do princípio de que a memória e a narrativa são esferas indissociáveis de constituição da identidade. Na forma de memorial, a articulação dessas duas dimensões se faz constitutivamente presente, podendo ser instrumento político interessante (por que não dizer, transformador) de trajetórias subjetivas, na medida em que reposiciona o educador frente ao seu ofício.

Recebido em 1º de setembro de 2010.

Aprovado em 17 de março de 2011.

Notas

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  • 1
    . Em 2005, o Instituto Helena Antipoff (IHA) era o órgão da Secretaria Municipal de Educação responsável pela educação especial no Rio de Janeiro (Magalhaes, 2005).
  • 2
    . Entende-se por "psicologia tradicional" não só aquela ligada à filosofia chamada escolástica, que falava das funções humanas como uma "faculdade" da alma, portanto algo estável, mas também às correntes modernas que conservam a ideia de memória como uma faculdade de registro estável da mente; noção que passou ao campo da informática.
  • 3
    .A análise dos memoriais contou com a colaboração de Fabrício Dias de Abreu (bolsista de Iniciação Científica/CNPq graduação de Pedagogia, UnB) e Rafael Gabriel Assis (bolsista Reuni graduação de Psicologia, UnB).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Dez 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      01 Set 2010
    • Aceito
      17 Mar 2011
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