Acessibilidade / Reportar erro

Imagens em guias alimentares como recursos para a educação alimentar em aulas de ciências: reflexões a partir de uma análise visual

Food guides images as resources for food education in science classes: reflections from a visual analysis

Resumos

A presença de imagens em materiais didáticos e seus diversos usos em contextos de ensino-aprendizagem vêm sendo discutidos pela pesquisa em educação em ciências. Diante da importância e uso frequente dessas imagens e das escassas discussões promovidas em torno do seu uso como ferramenta didática no contexto do ensino de ciências, o presente trabalho se propõe a contribuir na ampliação dessas discussões. Elegemos o tema alimentação, que está presente de forma marcante no debate contemporâneo e nos currículos. Para tal, alguns guias alimentares usados como recurso didático em um curso de formação continuada de professores foram analisados para ressaltar os limites e as possibilidades do uso dessas imagens para a educação alimentar de alunos do ensino fundamental. A análise demonstrou contradições e questões que abrangem os contextos sociais e culturais de produção e leitura dessas imagens, cuja relevância é inquestionável para as práticas educativas no ensino de ciências.

Educação alimentar; Ensino de ciências; Análise visual; Guias alimentares


The presence of images in educational materials and their uses in teaching-learning contexts have been discussed by Science education research. Given the importance and frequent use of these images and sparse discussions around such use as a didactic tool in the context of Science education, this paper aims at contributing to the expansion of these discussions. Food education was selected as the main thematic context for its recurring presence in contemporary educational debate and curricula. To this end, food guides which were used as a teaching resource in a continuing education course for teachers were analyzed to highlight the limits and possibilities of the use of these images for nutritional education in elementary schools. The analysis showed contradictions and questions covering social and cultural contexts of production and reading of these images, whose relevance is unquestionable for educational practices in Science education.

Food education; Science education; Visual analysis; Food guides


ARTIGOS

Imagens em guias alimentares como recursos para a educação alimentar em aulas de ciências: reflexões a partir de uma análise visual* * As autoras agradecem ao CNPq e à Capes pelo auxílio financeiro para realização da pesquisa.

Food guides images as resources for food education in science classes: reflections from a visual analysis

Mônica Lobo; Isabel Martins

Programa de Pós-Graduação Educação em Ciências e Saúde, Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (Nutes) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro (RJ) – Brasil

Contato com as autoras

RESUMO

A presença de imagens em materiais didáticos e seus diversos usos em contextos de ensino-aprendizagem vêm sendo discutidos pela pesquisa em educação em ciências. Diante da importância e uso frequente dessas imagens e das escassas discussões promovidas em torno do seu uso como ferramenta didática no contexto do ensino de ciências, o presente trabalho se propõe a contribuir na ampliação dessas discussões. Elegemos o tema alimentação, que está presente de forma marcante no debate contemporâneo e nos currículos. Para tal, alguns guias alimentares usados como recurso didático em um curso de formação continuada de professores foram analisados para ressaltar os limites e as possibilidades do uso dessas imagens para a educação alimentar de alunos do ensino fundamental. A análise demonstrou contradições e questões que abrangem os contextos sociais e culturais de produção e leitura dessas imagens, cuja relevância é inquestionável para as práticas educativas no ensino de ciências.

Palavras-chave: Educação alimentar. Ensino de ciências. Análise visual. Guias alimentares.

ABSTRACT

The presence of images in educational materials and their uses in teaching-learning contexts have been discussed by Science education research. Given the importance and frequent use of these images and sparse discussions around such use as a didactic tool in the context of Science education, this paper aims at contributing to the expansion of these discussions. Food education was selected as the main thematic context for its recurring presence in contemporary educational debate and curricula. To this end, food guides which were used as a teaching resource in a continuing education course for teachers were analyzed to highlight the limits and possibilities of the use of these images for nutritional education in elementary schools. The analysis showed contradictions and questions covering social and cultural contexts of production and reading of these images, whose relevance is unquestionable for educational practices in Science education.

Key words: Food education. Science education. Visual analysis. Food guides.

Contexto, justificativa e objetivo

A presença de representações imagéticas em materiais didáticos e seus diversos usos em contextos de ensino-aprendizagem vêm sendo discutidos em práticas educativas no ensino de ciências (CARVALHO et al., 2004; MARTINS; GOUVÊA, 2005), nos livros didáticos (CARVALHO; SILVA; CLÉMENT, 2007; PRALON; GOUVÊA, 2009) e a respeito do uso dos textos de divulgação científica como recurso de apoio didático (PEREIRA; TERRAZZAN, 2011; FERREIRA; QUEIROZ, 2012). O tema alimentação está presente de forma marcante na abordagem do tema transversal saúde em muitos desses suportes materiais. Textos escritos e imagens sobre questões alimentares compõem o conteúdo de livros didáticos, apostilas, textos de divulgação científica, aumentando a riqueza do material, mas também a complexidade do trabalho do educador em ciências.

Embora essas imagens possam ilustrar, enriquecer ou colaborar no entendimento de determinado conteúdo, também podem promover entendimentos equivocados ou contraditórios se não forem bem articuladas à proposta do texto escrito. Tratando-se do tema alimentação, de sua multiplicidade de entendimentos e vivências e do caráter sedutor das imagens relacionadas aos processos envolvendo as práticas alimentares, é de grande relevância o investimento em discussões a esse respeito.

A representação da pirâmide alimentar é instrumento didático de uso bastante frequente para práticas de educação alimentar de crianças (BARBOSA; SALLES-COSTA; SOARES, 2006). A imagem da pirâmide alimentar e de outros guias alimentares constitui-se como recurso visual que demonstra de maneira esquemática a forma mais adequada de um indivíduo saudável se alimentar. Todavia, essas imagens pouco são discutidas quanto a sua leitura, produção de sentidos e representações do que seja essa alimentação dita como saudável, tampouco o próprio conceito do que seja saudável (SICHIERI; NASCIMENTO; MOURA, 2002; AZEVEDO, 2008).

Diante da importância e uso frequente dessas imagens e das escassas discussões promovidas em torno do seu uso como ferramenta didática no contexto do ensino de ciências, o presente trabalho se propõe a contribuir na ampliação dessas discussões. Para tal, algumas imagens utilizadas como recurso didático em um curso de formação continuada de professores foram analisadas, com a finalidade de ressaltar os limites e possibilidades do seu uso para a educação alimentar de alunos do ensino fundamental. Esse curso de formação continuada, intitulado "Discursos e imagens sobre alimentação nos textos de divulgação científica: dúvidas, questões e propostas de atividades mediadas por TICs voltadas para classes hospitalares", foi oferecido a professores de classes hospitalares do município do Rio de Janeiro, em seis módulos, durante os quais foram desenvolvidas atividades de leitura, discussão e escrita de textos sobre o entendimento das questões abordadas em textos de divulgação da ciência sobre o tema alimentação que foram utilizados como material didático (LOBO; MARTINS; CARVALHO, 2013).

As imagens analisadas neste trabalho estão presentes em guias alimentares produzidos por pesquisadores e/ou instituições que oficialmente orientam e regulam práticas alimentares voltadas para a promoção de saúde da população.1 1 . Por questões legais e técnicas, as imagens analisadas não puderam ser reproduzidas neste artigo. Contudo, o leitor poderá visualizá-las a partir dos seguintes links: São elas: a pirâmide alimentar brasileira adaptada a partir da pirâmide alimentar do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (Usda) (PHILIPPI et al., 1999), que convencionamos chamar aqui de Figura 1; a "MyPyramid-steps to a healthier you 2005", que chamaremos de Figura 2; a pirâmide alimentar da Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard (WILLET; STAMPFER, 2003), referida neste trabalho como Figura 3; a " Roda de Alimentos" (FCNAUP, 2004), denominada aqui como Figura 4. Estas imagens foram escolhidas devido a sua ampla divulgação e disseminação em materiais e práticas educativas.

A Figura 1 representa um triângulo equilátero dividido em quatro níveis da base para o topo, sendo os três níveis próximos da base na forma de trapézios e o nível mais alto na forma de um pequeno triângulo equilátero. Dentro do trapézio da base encontram-se desenhos de alguns exemplos de "cereais, tubérculos, pães e raízes". Essas palavras compõem uma legenda encontrada logo abaixo da imagem, completada pela indicação "5-9 porções". O trapézio superior ao da base, mais estreito, é dividido ao meio e composto por desenhos de hortaliças e frutas, apresentando as legendas "hortaliças 4-5 porções" do lado esquerdo e "frutas 3-5 porções"do lado direito da imagem. Esse padrão de desenho dentro da pirâmide e legendas na lateral do lado de fora se repete em todos os níveis até o topo. O terceiro trapézio, de baixo para cima, é dividido em três partes da esquerda para a direita, que contém: desenhos de "leites e derivados 3 porções", de "carnes e ovos 1-2 porções" e desenhos de "leguminosas 1 porção", com estas legendas. A parte superior da Figura 1 apresenta-se como um pequeno triângulo equilátero dividido ao meio, contendo "óleos e gorduras 1-2 porções" do lado esquerdo e "açúcares e doces 1-2 porções" do lado direito da imagem, com estas respectivas legendas.

A Figura 2 representa uma pirâmide vista em ângulo oblíquo. Contudo, diferente das Figuras 1 e 3, a Figura 2 é divida na direção vertical, em cinco triângulos isósceles. Da esquerda para a direita, tem-se a parte de cor laranja representando os grãos; a verde, os vegetais; a vermelha, as frutas; a parte amarela representando os óleos; a azul, os laticínios e a última e roxa, contendo as carnes e leguminosas (legendas e desenhos dos alimentos na base). O triângulo mais estreito da Figura 2 é o amarelo, seguido pelo roxo. Os demais têm espessuras semelhantes, com destaque para os grãos e laticínios. Na lateral esquerda da pirâmide há uma escada por onde o simulacro de uma pessoa sobe os degraus. Ao fundo, a representação de um céu azul com algumas poucas núvens.

A Figura 3 é vista também num ângulo oblíquo, com o lado esquerdo projetado para quem lê a imagem. Esta pirâmide está dividida em sete níveis representados como se fossem gavetas transparentes. A base da pirâmide é o nível mais estreito no sentido vertical e o mais largo no sentido horizontal, representando: "exercícios diários e controle de peso". O segundo nível de baixo para cima encontra-se dividido em duas partes e contém, à esquerda, os "alimentos integrais: na maioria das refeições", com esta legenda e desenhos do alimentos no interior da pirâmide e, à direita, os "óleos vegetais". Esse padrão de desenho dentro da pirâmide e legendas na lateral do lado de fora se repete em todos os níveis até o topo. O nível três é dividido de forma igual em duas partes. À esquerda, "verduras e legumes: em abundância" e à direita da imagem "frutas: de 2 a 3 vezes por dia". O quarto nível de baixo para cima é composto por "Castanhas e amendoim. Feijão, ervilha, grão de bico: de 1 a 2 vezes por dia". O quinto nível é formado por "peixe, frango, ovos: de 0 a 2 vezes por dia". O sexto nível é constituído por "laticínios ou suplemento de cálcio: de 1 a 2 vezes por dia", acompanhado pela imagem de um frasco de "suplemento vitamínico" ao lado, incluindo a legenda. O topo da pirâmide é dividido ao meio e composto por "carne vermelha, manteiga: uso moderado" à esquerda e, à direita, "arroz branco, pão branco, batata, macarrão, doces: uso moderado".

Um círculo dividido em oito partes compõe a Figura 4. No centro deste é possível observar um pequeno circulo preenchido pela imagem de um copo sendo enchido de água. A partir deste pequeno círculo central, o círculo que compõe a Figura 4 inteira é dividido em sete fatias de larguras desiguais. Fazendo uma leitura da esquerda para a direita, o círculo é composto por uma fatia grande de frutas, seguida por uma estreita de óleo. Após esta última, uma fatia grossa contendo fotos de laticínios, que é seguida por uma estreita contendo fotos de peixe, carne, frango e ovo e outra de leguminosas. A fatia mais grossa, localizada na parte inferior direita do círculo, apresenta fotos de tubérculos, cereais e massas. A fatia seguinte, localizada entre esta última e a primeira citada, é constituída por legumes e verduras e mostra-se tão grossa quanto a de frutas. Todas essas fatias são preenchidas por imagens fotográficas dos referidos alimentos, sem legenda.

Neste texto, com base referenciais do campo dos Estudos da Multimodalidade (KRESS, 2010), buscamos, a partir da análise dos possíveis sentidos produzidos na leitura destas imagens, trazer à discussão a relevância e os limites do uso dessas representações como ferramenta didática para a promoção de hábitos alimentares saudáveis no contexto do ensino de ciências.

Quadro teórico-metodológico

Pessoas, lugares e objetos se combinam na produção de sentido em textos visuais. O foco da gramática visual de Kress e van Leeuwen (1996) aponta para a leitura das imagens para além do aspecto estético e figurativo. Estes autores propõem um estudo sobre a estrutura visual e as formas como as imagens são utilizadas para produzir sentidos. Neste processo, o indivíduo produtor de sentido o faz a partir da representação de um objeto ou entidade, utilizando-se de um sistema complexo de representação, que inclui influências culturais, sociais, psicológicas e históricas, e focando no momento preciso do ato da representação.

Para analisar as representações construídas pelo produtor da imagem e possíveis sentidos produzidos pelo observador, este trabalho recorre a algumas categorias da gramática de design visual de Kress e van Leeuwen (op. cit.), tais como: os tipos de participantes e a relação entre eles; a relação entre enquadramento e distância social; a perspectiva; o ângulo escolhido; a narrativização da imagem.

Para a análise das representações e interações, Kress e van Leeuwen (op. cit.) propõem que as imagens se constituem, na interação, por dois tipos de participantes: representados e interativos. Os participantes representados são pessoas, lugares e coisas presentes na imagem. Os participantes interativos são o produtor e o observador da imagem. Outra característica importante da imagem é a relação entre o tamanho do enquadramento e a distância social. O close, a tomada à média distância e à longa distância representam diferentes relações entre os participantes da imagem e os observadores e conduzem a diferentes significados. O uso da perspectiva em uma imagem e a seleção do ângulo expressam subjetividade ou objetividade, envolvimento ou distanciamento. Ângulos e perspectivas indicam a narrativização da imagem.

Resultados e discussão

Com base nas categorias de Kress e van Leeuwen (1996), as imagens utilizadas no curso foram analisadas e seus resultados são discutidos a seguir.

As Figuras 1 e 3 apresentam os alimentos como participantes representados pelos produtores da imagem, separados hierarquicamente de forma a sugerir para o observador uma organização determinada de conduta alimentar. A relação entre o espaço atribuído na pirâmide e a quantidade de alimento a ser ingerida parece clara se for considerada a forma da pirâmide. Entretanto, o conceito de porção não é claro, ficando sugerido que se trata de conhecimento pré-estabelecido e que deve ser suposto pelo participante interativo, neste caso, o leitor da imagem. A presença do texto ainda sugere limitações no entendimento da imagem por si só, o que denota a importância dos participantes interativos, quais sejam: o produtor da imagem (pesquisadores, as instituições de saúde pública) e o observador (educador, nutricionista, aluno) para o entendimento destes guias alimentares. Neste caso, os nutricionistas costumam agir como intérpretes mais frequentes destas representações semióticas, conferindo legitimação aos sentidos sobre saúde e alimentação produzidos por estas: "O princípio semiótico de uma pirâmide alimentar é (ou deveria ser) a simultaneidade entre regras nutricionais emanadas do consenso técnico-científico e respeito aos aspectos culturais do sistema de significações que representam a alimentação de uma comunidade" (LANZILLOTTI; COUTO; AFONSO, 2005 p. 786).

Ainda segundo este autor, a pirâmide alimentar é uma imagem icônica que tem como função ser a representação de um objeto real, produzindo sentidos desejados naqueles que a interpretam. A pirâmide emana sentidos pré-estabelecidos e legitimados pela produção científica. Entretanto, essa funcionalidade não pode ser levada ao limite, fazendo dessas representações sobre alimentação equilibrada ferramentas que produzem em seus intérpretes sentidos padronizados e hegemônicos. Como ferramenta consensual de hábitos que promovem a saúde e previnem doenças, os guias alimentares devem ser ponto de partida de discussões e não a conclusão em si.

É questionável, inclusive, a forma destas representações, todas importadas de outros países para a realidade brasileira (SICHIERI; NASCIMENTO; MOURA, 2002). Será que uma pirâmide, por exemplo, é a forma mais adequada para a orientação alimentar no Brasil? Quais os sentidos culturais desta imagem? Podemos considerar a pirâmide alimentar um ícone canônico (GOULD, 1995), isto é, uma imagem que ocorre de forma regular e padronizada e que se refere a conceitos-chave da vida social e intelectual. Para o autor, essas imagens, a despeito de serem, em teoria, apenas uma entre as muitas possibilidades de representação, influenciam nosso entendimento de forma subliminar. Neste caso específico, dentro do discurso da educação alimentar e nutricional, a pirâmide não só constrói sentidos para alimentação, bem como carrega significados de hierarquia e de importância relativa dos alimentos nela representados.

Além disso, a pirâmide representa os alimentos de forma ideal, de modo que estes podem, ou não, corresponder aos exemplares que as pessoas experienciam no seu cotidiano. Se, por um lado, um certo grau de idealização é inerente à própria ideia de uma representação, é inegável que a escolha por representar o grupo dos alimentos ricos em proteína, por exemplo, utilizando-se a carne vermelha como referência, impõe contornos específicos à leitura desta imagem que podem não corresponder à realidade econômica de indivíduos ou a tradições regionais brasileiras.

Outra característica que não é objeto de ressignificação (ou transgressão?) na apresentação desta imagem é o fato de que ela apresenta alimentos de maneira isolada, isto é, não enfatiza relações ou possíveis combinações entre alimentos. Estas imagens poderiam resgatar o arroz com feijão, por exemplo, uma interação entre alimentos de classificações diferentes, favorável à saúde e tão tradicional na cultura brasileira. Nota-se assim, mais uma vez, a força do ícone canônico, que impede não só sua contextualização e adaptação a uma dada cultura, como também sua ampliação para além da representação de objetos. De fato, estas imagens, como guias alimentares, representam a alimentação de forma vinculada aos alimentos, entendidos como objetos materiais, e suas propriedades. Renunciam assim ao compromisso de retratar a alimentação em sua complexidade, como um conjunto de processos e interações, contribuindo para a construção de sentidos reducionistas do conceito.

Os diferentes níveis de importância e a sugestão de que há alimentos que trazem mais benefícios que outros criam uma hierarquização que, inclusive, não se articula com os alimentos processados. Se a Figura 1 demonstra que os óleos devem ser pouco consumidos, essa afirmação tem um sentido quando diz respeito a biscoitos recheados e batata frita, mas o sentido é outro se diz respeito ao consumo de azeite. Embora estes alimentos sejam ricos em gorduras, são gorduras de composição diferente, interagindo com nutrientes diferentes, em contextos diversos. Aliás, a presença residual de alimentos processados nestas representações imagéticas sobre alimentação pode produzir sentidos de que só é preciso regular justamente aqueles alimentos que são ditos como saudáveis. Os alimentos que sofrem diferentes graus de processamentos – e tão consumidos atualmente – estão ausentes nestas representações, embora configurem um cenário alimentar no qual geralmente são encarados como prejudiciais à saúde. Apesar de muitos destes alimentos processados conterem excesso de açúcar, sal, gordura e aditivos com interações obscuras com o organismo humano, eles não podem representar ausências, como se houvesse um consenso de que não se deve comê-los e assim todos o fazem.

A forma objetiva destas imagens, em perspectiva centralizada e enquadramento fechado, oferece ao leitor uma informação descontextualizada e não negociada. Tudo o que precisa ser conhecido está expresso de modo a não haver distrações do objetivo principal de demonstrar, de maneira organizada e calculada, a forma mais equilibrada de alimentação. O ângulo horizontal aproxima o leitor da imagem, sugerindo um ponto de vista direto, íntimo, com exceção da Figura 3, que se apresenta com um ângulo mais oblíquo, produzindo um certo afastamento do leitor em relação à imagem.

A Figura 3 traz uma inovação em relação às demais: a sugestão de consumo de suplementos vitamínicos como integrante de uma alimentação balanceada. No entanto, a ideia de alimentação balanceada já tem como objetivo ser suficiente para suprir as necessidades diárias de ingestão de nutrientes; ou este detalhe denota algum consenso de que os indivíduos não são capazes de conseguir a ingestão destes nutrientes por meio dos alimentos em si. Esta novidade na pirâmide estaria legitimando uma tendência atual de medicalização da alimentação, afastando ainda mais os objetivos propostos de alimentação equilibrada da ideia de consumo de alimentos, para o consumo de produtos (AZEVEDO, 2008).

Na Figura 4, a ingestão de água aparece como componente central da alimentação equilibrada, estando esta circundada por alimentos. Seguindo uma tendência ocidental de leitura da esquerda para a direita e de cima para baixo, pode-se observar que frutas, verduras e cereais estão em destaque, havendo uma menor ênfase aos alimentos do grupo das proteínas e das gorduras. O formato do prato pode aproximar as recomendações dos hábitos cotidianos pela familiaridade do formato da imagem. Ainda assim, trata-se de uma representação que expressa proporcionalidade e um equilíbrio calculado para a alimentação diária, não sendo a descrição literal de uma refeição presente nos pratos dos indivíduos em suas práticas alimentares. Esta imagem da Figura 4, aliás, chama mais atenção para a possível dificuldade dos leitores de reproduzirem no cotidiano as porções de alimentos aparentemente sugeridas.

A Figura 2 é a que emana o sentido de narrativização da imagem de forma mais evidente (KRESS; VAN LEEUWEN, 1996). Os alimentos representam fontes de nutrientes que dinamizam o indivíduo, sugerindo serem estes a energia que permite ao indivíduo alcançar objetivos, superar fisicamente os obstáculos cotidianos ou alcançar um lugar mais preciso no que se propõe a fazer. A pirâmide integra um cenário, aproximando esta representação de um possível contexto mais cotidiano. Por outro lado, a representação das frações da pirâmide – com cores diversas se elevando até o ápice e deixando os alimentos na base – sugere um afastamento entre o indivíduo e o alimento em si. Os nutrientes e o indivíduo se encontram no alto da pirâmide, ficando os alimentos na posição subalterna de fonte de nutrientes, extraídos dos contextos culturais e sociais de produção e consumo.

Lanzillotti, Couto, Afonso (2005, p. 786) afirmam em seu trabalho que uma das razões para a elaboração da pirâmide alimentar "é prevenir excessos e carências nutricionais, uma vez que a essencialidade de sua mensagem é a moderação e a proporcionalidade". As autoras relatam também a forma como as porções foram calculadas, considerando médias de consumo populacional, tradição alimentar e parâmetros técnicos da ciência da Nutrição. Diante de tais questões, parecem sobressair objetivos de normalização de hábitos alimentares baseados em conhecimentos científicos para o equilíbrio dietético. Todavia, estas representações expressam também as flutuações das recomendações, que, em um momento, dispõem as gorduras vegetais em destaque na base da pirâmide (Figura 3) e, noutro momento, condenam todas as gorduras, localizando-as no lugar mais alto da pirâmide (Figura 1) ou em porções quase imperceptíveis nas imagens das Figuras 2 e 4. Flutuação semelhante ocorre com a importância e localização dos cereais e grãos.

Essas discrepâncias descritas representam os descompassos e flutuações da própria produção científica. Na medida em que estas imagens são produzidas com base em recomendações organizadas por pesquisadores e entidades que utilizam os dados científicos como referência, não é de se surpreender que haja diferenças entre elas. As questões envolvidas nessas diferenças e as motivações que baseiam a produção das representações imagéticas devem ser discutidas, especialmente se essas imagens forem utilizadas como ferramenta para a educação alimentar na escola. Os professores de ciências, como educadores que são, se empenham para articular os sentidos produzidos por essas imagens com práticas do ensino de ciências e educação alimentar. Entretanto, é essencial que os próprios educadores disponham de oportunidades para refletir sobre as condições de produção e os objetivos que estão impregnados nessas representações imagéticas.

Conclusões

As imagens analisadas são exemplos desse recurso que chegam à sala de aula para compor práticas de educação alimentar, sejam na forma de figuras em livros didáticos ou em materiais de apoio como os textos de divulgação científica.

No contexto do ensino fundamental, esses recursos imagéticos constituem valiosos aliados às práticas educativas, pois trazem às aulas de ciências uma abordagem mais lúdica, rica e atualizada, se considerarmos os textos e divulgação científica, por exemplo. Por outro lado, essas imagens podem também reforçar contradições quanto às questões alimentares, questões estas que, se não forem problematizadas, podem desfavorecer o desenvolvimento de práticas alimentares que integrem o conhecimento e as questões sociais e culturais pertinentes.

Imagens que sugerem o uso de suplementos alimentares ou que privilegiam demais a categorização dos alimentos podem produzir sentidos de uma alimentação inacessível a quem não possui conhecimentos técnicos muito específicos. Ao invés de promover a autonomia dos sujeitos, reafirma um padrão alimentar descolado da vida cotidiana, representando um ideal de alimentação pouco praticável. Além disso, ao invés de reforçar hábitos que incluem alimentos frescos como fontes de vitaminas de minerais, a referência a suplementos pode estimular o consumo de produtos e os modismos alimentares, sugerindo que as práticas de alimentação para a saúde são caras e disponíveis para aqueles que possuem os recursos financeiros necessários. Estas discussões são muito importantes, considerando-se que as questões sobre saúde e consumo são componentes dos temas transversais orientados pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997).

As imagens dos guias analisados podem, portanto, ser úteis no aprendizado isolado das classificações dos nutrientes e de suas funções no ensino de ciências. Esses conhecimentos são relevantes, sobretudo, na interação com textos de divulgação científica e os textos midiáticos mais gerais, assim como são necessários para a leitura de rótulos de alimentos industrializados e reflexões acerca de suplementos e questões relativas à alimentação e saúde. Entretanto, conhecer a composição nutricional dos alimentos dessa forma não é suficiente para a promoção de práticas de alimentação que proporcionam benefícios à saúde. É preciso que essas informações, assim como são referidas nos guias alimentares, sejam articuladas aos contextos sociais e culturais. É preciso que esses conhecimentos sejam articulados ao modo de vida do aluno, aos hábitos alimentares de sua família e que essas questões sejam também articuladas à ideia da ciência como produção de conhecimento contínuo e dinâmico. Dessa forma, os conhecimentos científicos e as práticas alimentares e de educação alimentar, dentro e fora da escola, podem compor as diversas dimensões da alimentação, orientando formas reflexivas do comer, de educar e de aprender.

Nota

Figura 1: <http://www.scielo.br/pdf/rn/v12n1/v12n1a06>

Figura 2: <http://www.cnpp.usda.gov/myplate.htm>

Figura 3: <http://www.revistadeguarulhos.com.br/lermais_materias.php?cd_materias=2191>

Figura 4: <http://rodadosalimentos.net>

Contato com as autoras:

<monicalobonutes@gmail.com>

Recebido em 12 de maio de 2013.

Aprovado em 11 de outubro de 2013.

  • AZEVEDO, E. Reflexões sobre riscos e o papel da ciência na construção do conceito de alimentação saudável. Revista de Nutrição, Campinas, v. 21, n. 6, p. 717-723, 2008.
  • BARBOSA, R.M.S.; SALLES-COSTA, R.; SOARES, E.A. Guias alimentares para crianças: aspectos históricos e evolução. Revista de Nutrição, Campinas, v. 19, n. 2, p. 255-263, 2006.
  • BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: meio ambiente, saúde. Brasília, DF: MEC/SEF, 1997. 128p.
  • CARVALHO, G.S.; SILVA, R.; CLÉMENT, P. Historical analysis of Portuguese primary school textbooks (19202005) on the topic of digestion. International Journal of Science Education, London, v. 29, n. 2, p. 173-193, 2007.
  • CARVALHO, G.S. et al. Portuguese primary school children's conceptions about digestion: identification of learning obstacles. International Journal of Science Education, London, v. 6, n. 9, p. 1111-1130, 2004.
  • FCNAUP. Instituto do Consumidor. Os alimentos na roda [guia]. Lisboa, 2004. Disponível em: <http://rodadosalimentos.net/>. Acesso em: mar. 2012.
  • FERREIRA, L.N.A.; QUEIROZ, S.L. Textos de divulgação científica no ensino de ciências: uma revisão. Alexandria: Revista de Educação em Ciência e Tecnologia, Campinas, v. 5, n. 1, p. 3-31, 2012.
  • GOULD, S.J. Ladders and cones: constraining evolution by canonical items. In: SILVERS, R.B. (Ed.). Hidden histories of science London: Granta, 1995. p. 37-67.
  • KRESS, G. Multimodality: a social semiotic approach to contemporary communication. London: Routledge, 2010
  • KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. London: Routledge, 1996.
  • LANZILLOTTI, H.S.; COUTO, S.R.M.; AFONSO, F.M. Pirâmides alimentares: uma leitura semiótica. Revista de Nutrição, Campinas, v. 18, n. 6, p. 785-792, nov./dez. 2005.
  • LOBO, M.; MARTINS, I.; CARVALHO, G.S. Práticas de educação alimentar no contexto do ensino de ciências em classe hospitalar: relato de um curso de formação. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE EDUCAÇÃO FÍSICA, LAZER E SAÚDE, 9., 2013, Braga. Atas... Braga: Ciec, 2013. p. 885-897.
  • MARTINS, I.; GOUVEA, G. Analisando aspectos da leitura de imagens em livros didáticos de ciências por estudantes do ensino fundamental no Brasil. Enseñanza de las Ciências, Barcelona, v. extra, p. 1-3, 2005.
  • PEREIRA, A.G.; TERRAZZAN, E.A. A multimodalidade em textos de popularização científica: contribuições para o ensino de ciências para crianças. Ciência e Educação, Bauru, v. 17, n. 2, p. 489-503, 2011.
  • PHILIPPI, S.T. et al. Pirâmide alimentar adaptada: guia para a escolha dos alimentos. Revista de Nutrição, Campinas, v. 12, n. 1, p. 65-80, 1999.
  • PRALON, L.H.; GOUVEA, G. Imagens da saúde no livro didático de ciências. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS (ENPEC), 7, 2009, Florianópolis. Atas... Florianópolis: Enpec, 2009.
  • SICHIERI, R.; NASCIMENTO, S.; MOURA, A.S. Algumas reflexões sobre o uso público do conhecimento gerado pela epidemiologia nutricional. Physis, Rio de Janeiro, v. 12, p. 109-20, 2002.
  • UNITED STATES DEPARTMENT OF AGRICULTURE (USDA). Disponível em: <http://www.cnpp.usda.gov/myplate.htm>. Acesso em: mar. 2012
    » link
  • WILLET W.C.; STAMPFER, M.J. As novas bases da pirâmide alimentar 2003. Disponível em: <http://www.revistadeguarulhos.com.br/lermais_materias.php?cd_materias=2191>. Acesso em: abr. 2014.
  • 1
    . Por questões legais e técnicas, as imagens analisadas não puderam ser reproduzidas neste artigo. Contudo, o leitor poderá visualizá-las a partir dos seguintes links:
  • *
    As autoras agradecem ao CNPq e à Capes pelo auxílio financeiro para realização da pesquisa.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Maio 2014
    • Data do Fascículo
      Abr 2014

    Histórico

    • Recebido
      12 Maio 2013
    • Aceito
      11 Out 2013
    CEDES - Centro de Estudos Educação e Sociedade Caixa Postal 6022 - Unicamp, 13084-971 Campinas SP - Brazil, Tel. / Fax: (55 19) 3289 - 1598 / 7539 - Campinas - SP - Brazil
    E-mail: revistas.cedes@linceu.com.br