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Educação, escolarização e trabalho em prisões: apontamentos teóricos e reflexões do cotidiano

E

ducação, escolarização e profissionalização de pessoas em situação de privação de liberdade se constituem em condições relevantes para o (re)ingresso no mundo do trabalho e, consequentemente, no convívio social. Cientes dessa condição, temos identificado a necessidade de se envidar esforços em investigações que ofereçam encaminhamentos à questão, articulando subsídios teóricos e práticas cotidianas que venham a alavancar iniciativas em unidades prisionais, bem como subsidiar políticas públicas para a área.

Considerando-se que o Brasil já ultrapassou a etapa de discussão quanto ao direito à educação e à profissionalização nos espaços de privação de liberdade, nos parece importante organizar pontos de convergência de estudos e experiências que consolidem programas e políticas de Estado. Cientes de que os egressos do sistema prisional encontrarão dificuldades em sua inserção no mercado de trabalho em face das altas taxas de desemprego do país e, principalmente, do estigma que os acompanhará em suas vidas, torna-se fundamental encaminhar essa proposição. Por outro lado, não basta pensar uma escola que contribua para o desenvolvimento de potencialidades que favoreçam a mobilidade social - trata-se de investir em uma escolarização que privilegie a formação de um sujeito consciente de sua realidade e de sua capacidade de nela intervir. Há que se investir na busca de correspondências da legislação de ensino com a legislação penal e com a execução penal para que ocorram impactos na educação, tomada em seu sentido amplo, na relação educação/trabalho e na qualificação profissional, a fim de que o indivíduo se insira em atividades de trabalho ainda durante o cumprimento da pena. Trata-se, portanto, de pensar o futuro conectado ao presente, mas enraizado a um passado.

Nesse sentido, este número temático do Cadernos Cedes sobre Educação, Escolarização e Trabalho em prisões: apontamentos teóricos e reflexões do cotidiano tem como objetivo reunir artigos inéditos, produzidos por experientes pesquisadores nacionais e internacionais, bem como aproximar autores de diferentes instituições e expressar a diversidade teórico-metodológica existente nesta área. Não existem consensos simplistas num campo complexo e polêmico por natureza; no entanto, há dois elementos comuns a todos os autores: o reconhecimento do poder da educação sobre a mudança de perspectivas de vida e o direito inalienável de todos à educação, entendida crescentemente como aprendizagem ao longo da vida (IRELAND, 2011IRELAND, T. D. (Org). Educação em prisões no Brasil: direito, contradições e desafios. Em Aberto , v. 24, n. 86, p. 19-39, 2011.).

Os estudos têm revelado também, enfoques diferenciados para o trabalho nas prisões - este aparece como um instrumento disciplinador ora para condicionar a pessoa em situação de privação de liberdade a receber ordens e cumpri-las, ora para mantê-la ocupada e ora como mão-de-obra barata. Apesar disso, quando a questão da (re)inserção social é discutida, as atividades profissionalizantes são apresentadas como ferramentas relevantes, que podem garantir bem-estar no presente e garantir que ele adquira competências mínimas para ingressar, permanecer e ter sucesso no mundo do trabalho, capacitando-o para a empregabilidade e/ou trabalhabilidade (JULIÃO, 2012JULIÃO, E. F. Sistema penitenciário brasileiro: a educação e o trabalho na Política de Execução Penal. Rio de Janeiro: DePetrus et Alii, 2012.).

O grupo de autores que partilha este número temático reconhece que educação e trabalho sejam fenômenos complexos, multidimensionais, cambiantes, contraditórios e históricos quando discutidos em diversos espaços, inclusive o de privação de liberdade. Apesar disso, constituem-se em dimensões importantes e que devem ser discutidas de maneira articulada em programas e políticas de Estado que almejem a democracia e a garantia dos direitos humanos.

Este Caderno inicia-se tematizando as relações entre as diversas áreas de conhecimento e os respectivos profissionais que atuam na execução penal no sistema penitenciário brasileiro. Os pesquisadores Roberto da Silva, Carolina Bessa Ferreira de Oliveira e Fábio Aparecido Moreira (Universidade de São Paulo - USP) anunciam no primeiro artigo, intitulado Ciências, trabalho e educação no sistema penitenciário brasileiro , que o tema proposto é relevante porque parte do pressuposto de que a ressignificação destas áreas de conhecimento pode alterar expressivamente a forma como se fazem a educação e a gestão do trabalho na prisão. Os autores problematizam a subordinação epistemológica das ciências humanas, sociais e biológicas às ciências jurídicas como causa da fragmentação do conhecimento, à qual corresponde a fragmentação das especialidades profissionais, das políticas, programas, projetos e ações destinadas ao tratamento dado às pessoas em privação de liberdade. Apontam também para a necessidade de um projeto político-pedagógico que articule e integre os diversos saberes existentes na prisão e o trabalho dos diferentes profissionais, sobretudo em virtude da mudança do perfil da população atendida e do entendimento de que todos os saberes são úteis e necessários à educação da pessoa em privação da liberdade.

Articulando as discussões acerca do conhecimento produzido recentemente na área em questão, Elionaldo Fernandes Julião (Universidade Federal Fluminense - UFF), autor do artigo Escola NA ou DA prisão? , ressalta que, embora algumas experiências de Educação para Jovens e Adultos (EJA) em situação de restrição e privação de liberdade remontem há algumas décadas, somente a partir de 2005 é que se iniciam no Brasil encaminhamentos para a prática de uma política propriamente nacional, quando os Ministérios da Educação e da Justiça iniciaram uma proposta de articulação para implementação e formulação das diretrizes do Programa Nacional de Educação para o Sistema Penitenciário. Este artigo propõe a discussão sobre o papel da educação no sistema penitenciário, mais precisamente sobre a escola localizada no espaço carcerário, fundamentado em uma concepção crítica sobre o papel deste sistema na sociedade contemporânea; para isso, o autor analisa as perspectivas políticas e pedagógicas articulando os conceitos de garantias de direitos, políticas públicas, incompletude institucional e socialização.

Elenice Maria Cammarosano Onofre (Universidade Federal de São Carlos - UFSCar) dá continuidade às reflexões no artigo A prisão: instituição educativa? , no qual discute a instituição prisão como espaço de promoção de experiências educativas aos indivíduos em privação de liberdade. O artigo caminha por três eixos: transversalidade no sistema prisional, nas práticas sociais e nas ações educativas, atrelando o entendimento de que a educação acontece ao longo da vida (em um tempo) e em todo lugar (em um espaço). Assim, pensar a educação em um tempo transitório - durante a privação de liberdade - se constitui em uma falácia, pois ela se faz na relação presente-passado-futuro. Nessa perspectiva, analisar o sistema penitenciário e a instituição prisão em diálogo com outros sistemas e espaços é uma forma de abrir pequenas fendas que anunciem possibilidades de enfrentamento do paradoxo entre punir e educar e de anunciar que a instituição pode promover aprendizagens significativas.

O artigo de Timothy Denis Ireland e Helen Halinne Rodrigues de Lucena (Universidade Federal da Paraíba - UFPB), intitulado Educação e Trabalho em um Centro de Reeducação feminina: um estudo de caso, traz para a discussão do tema a singularidade das prisões femininas a partir de resultados obtidos em uma pesquisa realizada em 2013. Os autores enfatizam que a desarticulação dos processos de escolarização e formação profissional se constituem nas principais responsáveis ao se tentar explicar a alta taxa de reincidência no Brasil (em torno de 65%). Embora a oferta educativa e de formação profissional ganhem prioridade nas propostas de reinserção ou ressocialização de encarcerados, na prisão, educação e trabalho mais competem do que se complementam. Com base em uma pesquisa realizada com 133 mulheres encarceradas em 2013 no Centro de Reeducação Feminina de João Pessoa (PB), os pesquisadores analisam o princípio de que educação e trabalho são fontes potenciais de aprendizagem e devem ser mais acessíveis e complementares no contexto da prisão, em particular nas prisões femininas, considerando-se as especificidades de gênero nelas envolvidas.

Odair França de Carvalho (Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP) apresenta um recorte de seu estudo de doutorado no artigo A educação que leva ao trabalho - o trabalho que leva à escola: superando a dicotomia entre educação e trabalho . Nele, narrativas dos monitores-educadores revelam que a dicotomia entre educação e trabalho é marcante no sistema prisional paulista e que o trabalho é a atividade mais procurada pelos detentos em detrimento da escola. Por outro lado, os educadores foram unânimes em afirmar que a educação é a única saída para a mudança, podendo levar o homem em privação de liberdade à reflexão e à conscientização. Nessa perspectiva, o autor enfatiza a relevância da superação da dicotomia educação-trabalho nos espaços de privação de liberdade.

Francisco José Scarfò, Maria Eugenia Cuellar e Deborah Sabrina Mendoza, (Grupo de Estudios sobre Educación en Cárceles - GESEC, Salta, Argentina), no artigo Debates: sobre el rol de la escuela y del educador/a de adultos en las cárceles , evidenciam que as questões educacionais encontradas nas prisões brasileiras são mundialmente comuns. Para os autores, é importante pensar a formação do(a) educador(a) articulando-se uma série de componentes básicos como a adaptabilidade e/ou contextualidade da educação como um direito humano, com vistas a atender o papel pedagógico do profissional que atua em espaços prisionais. Destacam dois elementos fundamentais na formação docente: as condições da apropriação dos conhecimentos desde a perspectiva de quem aprende (no caso, um jovem adulto privado de sua liberdade), e as características das situações específicas em que o ensino tem lugar, em função dos contextos concretos de atuação (no caso, a prisão).

Em diálogo com o artigo anterior, Marieta Gouvêa de Oliveira Penna, Alexandre Filordi de Carvalho e Luiz Carlos Novaes (Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP), em A formação do pedagogo e a educação nas prisões: reflexões acerca de uma experiência, problematizam a formação do educador para atuar no contexto das Diretrizes Curriculares Nacionais, tendo como referência as diretrizes que orientam e organizam o Curso de Pedagogia e a oferta da EJA nas escolas regulares e nos estabelecimentos penais. A partir de pesquisas realizadas sobre a temática, os autores promovem um debate teórico-crítico em torno dos limites e das possibilidades implicados no exercício da docência em estabelecimentos penitenciários, bem como das condições de contratação de professores, no Estado de São Paulo, para este tipo de atuação docente.

Na seção Caleidoscópio, Aline Campos (UFSCar) apresenta a resenha do livro O espaço da prisão e suas práticas educativas: enfoques e perspectivas contemporâneas , organizado por Arlindo Lourenço da Silva e Elenice Maria Cammarosano Onofre e publicado pela EdUFSCar em 2011. De maneira clara e concisa, o texto traduz a intenção do grupo de pesquisadores na busca de responder algumas questões: Educação na prisão? Podem essas duas palavras, carregadas de concepções tão distintas, serem postas lado a lado? Para a autora, os artigos que compuseram o livro permitem a compreensão de como a educação permanece nas prisões como possibilidade e potência, apesar dos limites impostos pela cultura prisional. A pesquisadora enfatiza também que, embora reconhecendo os desafios postos pelo contexto, os autores convidam a pensar a prisão sob perspectivas menos exploradas a partir de diferentes experiências e enfoques, buscando visibilizar as possibilidades de humanização desencadeadas por processos educativos em espaços nos quais historicamente predomina a desumanização.

Em um tempo no qual o Brasil apresenta a quarta maior população encarcerada do mundo e enseja debates em torno da redução da maioridade penal, o dossiê Educação, Escolarização e Trabalho na prisão: apontamentos teóricos e reflexões do cotidiano se constitui como construção de um grupo de pesquisadores que busca sinalizar caminhos, dialogar e alimentar debates na perspectiva dos direitos humanos.

Concluímos agradecendo aos autores pela disponibilidade e pelas valiosas contribuições a este Número Temático, e ao Comitê Editorial Cedes por ter aceitado a proposta sobre uma temática que, neste momento, carece de visões convergentes e de unidade na diversidade.

Que a leitura seja proveitosa, reflexiva e encoraje ações de enfrentamento em planos de luta pela transformação nos/dos espaços de privação de liberdade.

Referências

  • IRELAND, T. D. (Org). Educação em prisões no Brasil: direito, contradições e desafios. Em Aberto , v. 24, n. 86, p. 19-39, 2011.
  • JULIÃO, E. F. Sistema penitenciário brasileiro: a educação e o trabalho na Política de Execução Penal. Rio de Janeiro: DePetrus et Alii, 2012.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016
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