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O MODELO PEDAGÓGICO DA ESCOLA OFICINA Nº 1: CORPO, REGRAS E PRÁTICAS NO QUOTIDIANO DE UMA INSTITUIÇÃO ALTERNATIVA

The pedagogical model of the Professional School no. 1: body, rules and practices in the daily life of an alternative institution

RESUMO:

Neste artigo abordamos o quotidiano escolar nessa instituição, nas suas primeiras duas décadas e meia de existência, analisando como o modelo pedagógico alternativo se refletiu no controle dos corpos e das almas, nos uniformes, nas noções e práticas de higiene, na limpeza e saúde e como essa dimensão contribuiu para a educação integral dos alunos. O estudo foi desenvolvido com base no espólio documental da própria instituição, assim como na bibliografia publicada sobre o tema, recorrendo também a entrevistas, fotografias e objetos materiais que contribuem para uma compreensão adequada dessa escola nova e inovadora.

Palavras-chave:
Escola Oficina; Inovação; Práticas quotidianas; Património cultural

ABSTRACT:

In this paper, we discuss the school daily life of this institution during its first two and a half decades of existence, analyzing how the alternative pedagogical model has been reflected in the control of bodies and souls, uniforms, notions and practices of hygiene, cleaning and health, and how this dimension has contributed to the comprehensive education of students. The study was developed using the institution’s documental collection, as well as the published literature on the theme, also using interviews, photographs and material objects that contribute to an adequate comprehension of this new and innovative school.

Keywords:
Professional School; Innovation; Daily practices; Cultural heritage

ORIGEM, PRINCÍPIOS PEDAGÓGICOS E FONTES DE INFORMAÇÃO

A transição do século XIX para o século XX foi marcada, em Portugal, por um intenso debate pedagógico, pela discussão do lugar da escola no desenvolvimento e progresso do país e pela necessidade de formar a população para os desafios económico-sociais. As diferentes propostas ideológicas que se confrontaram na arena política cruzaram-se com os modelos pedagógicos existentes, dos mais tradicionais aos que apresentavam um cunho vincadamente inovador. Foi nesse contexto, com origem e financiamento da maçonaria, que surgiu a Escola Oficina nº 1, fundada em 1905 pela Sociedade Promotora de Asilos, Creches e Escolas, ficando instalada, no ano seguinte, no conhecido edifício do Largo da Graça, nº 58, em Lisboa. Nascida à sombra das relações entre o movimento operário de expressão anarcossindicalista e a educação, teve como base as práticas educativas libertárias do princípio do século XX, em Portugal. Essas, por sua vez, reconheciam-se nas experiências pedagógicas inovadoras além-fronteiras, nomeadamente nas que decorriam na Europa e na América. A Escola-Oficina nº 1 deu corpo ao modelo educativo libertário, desenvolvido em articulação com a Educação Nova, que colocava a centralidade do processo educativo na liberdade e autonomia da criança, na sua relação com a natureza e o meio e na importância da formação moral. Esse modelo privilegiava o ensino manual, em estreita articulação com a dimensão teórica e mais tradicional. A Escola Oficina nº 1 representou um caso de “fusão” entre a ação de políticos e pedagogos maçons, republicanos e anarquistas e o seu objetivo era a formação integral dos alunos, ultrapassando o decadente modelo de ensino oficial em vigor.

A importância dessa instituição foi sublinhada por Fernandes (1979FERNANDES, R. A pedagogia portuguesa contemporânea. Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa, 1979.), que a considerou “digna de registo” na pedagogia contemporânea portuguesa e, por seu lado, Candeias consagrou-a definitivamente em 1994, ao publicar a sua tese de doutoramento com o título Educar de Outra Forma - A Escola Oficina nº 1 de Lisboa (1905-1930). Figueira (2004FIGUEIRA, M. H. Um Roteiro da Educação Nova em Portugal. Escolas Novas e Práticas Pedagógicas Inovadoras (1882-1935). Lisboa: Livros Horizonte, 2004.) incluiu-a no conjunto das escolas novas e nas práticas pedagógicas inovadoras, na sua obra sobre o tema.

Atualmente essa escola é estudada no âmbito do projeto de investigação PTDC/MHC-CED/0893/2014: INOVAR - Roteiros da inovação pedagógica: escolas e experiências de referência em Portugal no século XX, coordenado por Joaquim Pintassilgo e sediado no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa (2016-2019), com financiamento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), e este artigo faz parte desse projeto.

O estudo da Escola Oficina nº 1, nomeadamente a organização do seu arquivo e materiais pedagógicos, foi desenvolvido com base no espólio documental da própria instituição, assim como na bibliografia publicada sobre o tema, recorrendo também a entrevistas, fotografias e objetos materiais que contribuem para uma compreensão adequada dessa escola nova e inovadora. Além do arquivo próprio, existem espólios muito significativos em outros arquivos, com destaque para o que está depositado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em parte usado por Candeias (1994CANDEIAS, A. Educar de outra forma - A Escola Oficina nº 1 de Lisboa (1905-1930). Lisboa: Instituto de Inovação Educacional, 1994.), que publicou algumas das fontes de informação, nomeadamente fotografias.

O legado dessa instituição é constituído por um importante património, de natureza arquivística, bibliográfica, material e iconográfica que nos permite estabelecer o seu itinerário, compreender aos atores educativos que a marcaram e reconstituir o funcionamento interno e institucional.

O próprio edifício conserva na sua fachada as inscrições do tempo da República, conferindo assim visibilidade e significado ao espaço que é hoje um lugar da memória educacional.

FASES DE DESENVOLVIMENTO DA ESCOLA OFICINA Nº 1

Importa inserir o período que privilegiamos neste texto na evolução da instituição, que se inscreve num arco temporal muito longo, entre 1876 (se considerarmos os seus primórdios) e 1987. Candeias (1994CANDEIAS, A. Educar de outra forma - A Escola Oficina nº 1 de Lisboa (1905-1930). Lisboa: Instituto de Inovação Educacional, 1994.) considera cinco fases.

A primeira, entre 1876 e 1904, correspondeu a uma pré-etapa, com a constituição, em 1876, da Sociedade Promotora de Creches e o desenvolvimento de atividades, essencialmente com um espírito caritativo e de beneficência, que pretendiam melhorar as condições de vida das mães trabalhadoras e pobres da zona da Graça, em Lisboa; uma crise financeira e a falência da creche promovida pela instituição marcaram o final dessa fase.

A segunda fase, de 1904 a 1907, teve o seu início com a constituição da Sociedade Promotora de Asilos, Creches e Escolas e a fundação da Escola Oficina nº 1, em 1905, com uma estrutura de ensino clássico e tradicional, que correspondia ainda ao espírito de beneficência que caracterizava a maçonaria. A Escola Oficina nº 1 era uma escola profissional de Marcenaria/Carpintaria que tinha o objetivo de formar “bons artistas” (leia-se artesãos).

A terceira fase, que nos interessa principalmente neste estudo, localizou-se entre 1907 e 1918 e foi marcada pela implementação e consolidação do modelo libertário da escola. Essa fase correspondeu à aprovação e implementação de planos de estudo libertários (1907, 1912), de raiz anarquista, matriz de onde foram lidos os princípios da Educação Nova. Os seus autores principais tiveram um papel de liderança na escola e foram principalmente Adolfo Lima (que abandona a escola em 1914), um dos principais pedagogos portugueses da Educação Nova, muito preocupado com as questões sociológicas; e Luís da Matta, que foi diretor e permaneceu na instituição até 1918.

As duas fases seguintes são menos interessantes para este estudo. A quarta, entre 1918 e 1930, assistiu à decadência do modelo pedagógico, motivada em grande parte por conflitos internos. A quinta fase, de 1930 até o final, em 1987, correspondeu a um processo de acomodação ao modelo tradicional de ensino. O Estado Novo proibiu a coeducação nessa escola em 1941 e encerrou as suas oficinas, que tinham sido o seu símbolo e o seu orgulho. A Escola Oficina nº 1 passou a ser uma escola normal para as crianças do bairro da Graça, em Lisboa.

Neste texto, centramos a nossa atenção na terceira fase (1907-1918), durante a qual a escola desenvolveu o modelo pedagógico que a consagrou como uma escola inovadora e alternativa às escolas oficiais. Nessa terceira fase, a escola teve como professores, além das figuras mais carismáticas de Adolfo Lima e Luís da Matta, com posições fortes de liderança, personalidades como António Lima, César Porto e Deolinda Lopes Vieira Quartin (NÓVOA, 2003NÓVOA, A. (Org.). Dicionário de Educadores Portugueses. Porto: ASA Editores, 2003.). Foram professores importantes das correntes inovadoras em Portugal e destacados militantes da Educação Nova.

O MODELO PEDAGÓGICO LIBERTÁRIO E OS PLANOS DE ESTUDO DE 1907 E 1912

Face ao seu objeto de estudo, Candeias (1993CANDEIAS, A. A Escola Oficina nº 1 de Lisboa 1905-1930: Mudar a escola para mudar o mundo. Análise Psicológica, n. 4, v. XI, p. 447-463, 1993.; 1994CANDEIAS, A. Educar de outra forma - A Escola Oficina nº 1 de Lisboa (1905-1930). Lisboa: Instituto de Inovação Educacional, 1994.) sentiu a necessidade de clarificar e definir o modelo pedagógico libertário. Para ele, o modelo educativo libertário é uma síntese entre os conceitos metodológicos e pedagógicos da Educação Nova do princípio do século XX e os planos educativos de tradição socialista que veem na educação integral uma forma de combater a desigualdade social, traduzida pela existência, desde sempre, nos sistemas educativos ocidentais de vias profissionalizantes, por um lado, e académicas, por outro.

Da Educação Nova, os libertários dessa escola mobilizaram: o rigor no estudo do desenvolvimento físico e intelectual da criança; a necessidade de, na base dos processos educativos, existirem motivações “naturais” da criança, incompatíveis com a repressão física e intelectual. Da tradição socialista da educação, os anarquistas salientaram a necessidade dos processos educativos serem tanto mais globais quanto possível, articulando os aspetos técnicos e de aprendizagem profissional, com os aspetos científicos, artísticos e culturais característicos de uma “boa educação tradicional”.

Para esses pedagogos anarquistas, a educação era muito mais que ensinar a ler, escrever e contar - educar era sobretudo fornecer as bases espirituais, culturais e técnicas para a libertação do homem, no sentido de lhe dar os instrumentos que lhe permitissem conceber uma análise da vida e do mundo que os apetrechasse para a possibilidade de escolherem de forma livre e autónoma, com base no máximo de informação adquirida, entre as opções possíveis, o caminho que queriam para a sua vida e para a sociedade em que se inseriam.

Os planos de estudos da Escola Oficina nº 1 consagram, em grande parte, esses princípios. O plano de estudos de 1907 anuncia uma profunda mudança nas práticas de ensino da escola e expressa claramente uma visão integral da educação. Nele, destacam-se as seguintes componentes:

  • Matérias típicas do anterior curso de marcenaria, na especialização de “entalhador”, que continuam a integrar o currículo: desenho, construção de mobiliário e trabalho de talha; mantém-se também o português e a aritmética;

  • Acrescentam-se novas componentes, como: ginástica e francês; noções práticas de ciências (estudo da Zoologia, da Botânica, da Física, da Química e da higiene); Sociologia (continuada pelo ensino da Geografia, de forma articulada entre as duas matérias, ao longo dos anos do curso); os estudos eram completados com missões escolares tendentes a desenvolver os conhecimentos dos alunos e a sua educação profissional e artística.

Os alunos entravam na escola com seis anos e frequentavam um curso de seis anos. Em 1912, com o novo plano de estudos, o curso passa a ser de oito anos e bifurca-se em dois ramos: um de aprendizagem profissional, herdeiro da tradição da escola; outro designado de curso especial primário, para atrair crianças da classe média. Mas as disciplinas comuns continuavam a ser dominantes, face às disciplinas específicas de cada um dos ramos.

Nessa terceira fase da sua existência, em 1912, a Escola Oficina nº 1 é reconhecida pelo Estado Republicano (1910-1926) como uma instituição de utilidade pública e é lhe atribuído um financiamento para custear uma parte importante das suas despesas; também lhe é reconhecida qualidade e dada equivalência aos seus diplomas. É o auge da vida dessa escola.

OS ATORES, AS ATIVIDADES ESCOLARES, O ESPAÇO E A SUA ORGANIZAÇÃO

Neste tópico, seguiremos algumas imagens que são acessíveis, por terem sido publicadas por Candeias (1994CANDEIAS, A. Educar de outra forma - A Escola Oficina nº 1 de Lisboa (1905-1930). Lisboa: Instituto de Inovação Educacional, 1994., p. 677-689) e por existirem no espólio da Escola Oficina nº 1 no Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

Sobre os alunos, a sequência de três fotos permite-nos visualizar os grupos de alunos que frequentaram a instituição: em outubro de 1905, 7 alunos fizeram o exame de aproveitamento; entre 1906 e 1912, o grupo de alunos aproximava-se da meia centena; depois de 1912, surgem fotos com mais de 100 alunos e alunas, pois a coeducação passa a existir a partir de 1913. Um aspecto que se destaque nas imagens é a cor das batas, que no início eram mais escuras e foram ficando mais claras, principalmente com o regime de coeducação.

Quanto ao espaço e a sua organização, um exemplo paradigmático é o da sala de desenho, com o seu estrado e os usos que lhe foram destinados. Numa primeira aula (foto tirada entre 1906 e 1907), o estrado suporta a cadeira e secretária do professor, numa sala rigidamente ordenada segundo padrões tradicionais; na segunda aula (foto tirada entre 1907 e 1912), a mesma sala está ocupada por muitos mais alunos, empenhados em atividades de disciplinas diferentes e o estrado serve de base a obras artísticas.

Em outra sala de aula, uma primeira foto, tirada entre 1906 e 1907, apresenta o espaço, os equipamentos e os materiais organizados de forma tradicional, com os alunos sentados em carteiras típicas da época e dispostas em fila, uns atrás dos outros; na segunda foto, tirada entre 1907 e 1912, a mesma sala apresenta o professor (identificado como Adolfo Lima) e os alunos sentados em volta de uma mesa, em trabalho de grupo, numa sala muito decorada com materiais didáticos da época. Após 1912, a mesma sala reordena-se: mais alunos em grupos, menos materiais didáticos.

O riquíssimo espólio patrimonial da Escola Oficina nº 1, exposto em duas fotos sobre o Museu Laboratório (uma tirada entre 1907 e 1912; a outra, após 1912), revela o investimento feito em materiais didáticos adequados ao ensino inovador que se pretendia desenvolver. Juntamente com as oficinas, os laboratórios eram espaços essenciais para a concretização das concepções pedagógicas dominantes na escola. Nessas duas fotos identifica-se o professor António Lima. Desse património resta hoje o espólio material, testemunho de uma das obras mais interessantes do universo pedagógico português do início do século XX.

A importância do exercício físico e do controle dos corpos por aquele tipo de exercícios surge nas fotos sobre o ginásio exterior, onde se apresentam os alunos perfilados durante uma visita do Presidente da República, Manuel de Arriaga, certamente após 1913, pois também se observam alunas nas fotos, vestindo saia em vez de calças - elemento integrante do uniforme de treino.

As atividades escolares são o tema de várias fotografias, como nas aulas de marcenaria numa foto tirada entre 1905 e 1912 e em uma outra, posterior a 1913, na qual se evidencia a presença do género feminino no corpo discente e nas atividades de carpintaria, a que as alunas também se dedicavam. Aliás, raparigas e rapazes aprendiam a coser e a cozinhar, mesmo que os alunos gostassem pouco dessas atividades. Em várias outras fotos mostram-se trabalhos de alunos, em marcenaria, escultura e talha, alguns de grande qualidade. Outras atividades escolares são apresentadas, como a iniciação à leitura pelo método da Escola Oficina nº 1 (aluno escreve no quadro) e exposições de trabalhos no final do ano letivo, em que surgem alunos de ambos os géneros e professores em volta dos trabalhos produzidos e colocados em exposição.

Uma das características importantes da Escola Oficina nº 1 foi ter funcionado em regime de coeducação, o que constituiu “uma revolução no sistema educativo na altura”, como salientou a atriz Glicínia Quartim (antiga aluna, falecida em 2006, em entrevista dada, em 1999, à revista Noesis). Ela acrescenta que nessa escola “não havia carpintaria para os meninos e lavores para as meninas… Era uma escola privada, que em todo o seu funcionamento procurava que a criança se sentisse livre e, ao mesmo tempo, responsável. As aulas eram dadas em volta de uma mesa grande onde, nós e o professor, nos sentávamos. Havia a integração das disciplinas curriculares, normais do ensino primário, ao mesmo tempo que havia oficinas e actividades de carácter artístico”.

“A SOLIDÁRIA”: ASSOCIAÇÃO ESCOLAR DE ALUNOS DA ESCOLA OFICINA Nº 1, UMA OUTRA FORMA DE ASSOCIATIVISMO

“A Solidária” foi a Associação Escolar de Alunos da Escola Oficina nº 1 (1909-1920), que manteve várias seções e onde os alunos geriam as atividades desenvolvidas. Representou uma das formas de autonomia mais interessantes dos alunos, elegendo os seus dirigentes, gerindo o seu dinheiro e regulando valores, comportamentos e atitudes entre os próprios alunos. As seções mais importantes foram: Lanche Escolar/Almoço, Desportiva, Dramática, Capoeiras e Pombal. Existiram ainda, mais efémeras, seções como Dança, Ciclismo, Natação e Excursões (também chamada “Um Mês no Campo”).

As atividades em que os alunos se empenhavam no âmbito de “A Solidária” revelam a importância atribuída a uma boa alimentação (especialmente dos alunos desfavorecidos, que encontravam na escola a comida que rareava em suas casas), ao exercício físico e à prática do desporto (ginástica, nomeadamente), à representação de peças dramáticas (muitas de autoria dos professores) e à educação do gosto artístico, aos cuidados com os animais domésticos e à gestão de recursos (para a cantina) e ao contacto direto com a natureza, por meio de excursões.

Algumas fotos destacam o papel de “A Solidária”, quando retratam a sua Comissão Diretiva para o ano de 1916, destacando entre os seus elementos a aluna Fernanda Matta, uma das líderes mais marcantes da associação; e quando apresentam o seu grupo de natação.

Apesar de tudo (nas atas) afirmar a autonomia dos alunos, o seu self government, na gestão da associação e nas tomadas de decisão, os professores estão subliminarmente por trás, sugerindo o que deve ser feito. O seu nome nunca aparece até 1920, mas sabe-se que estavam presentes nas assembleias (assinavam a presença, embora não sejam referidos nas atas e provavelmente não intervinham) e que Adolfo Lima assume a sua orientação “oculta” em artigos publicados posteriormente (A autonomia dos educandos, em Educação Social, 1925).

O CONTROLE DO CORPO E DAS ALMAS, AS NOÇÕES E PRÁTICAS DE HIGIENE, LIMPEZA E SAÚDE

Os uniformes, ou batas/blusas de trabalho, que todos os alunos usavam, consagravam a uniformidade e a igualdade entre os diferentes elementos e faziam dos alunos membros de uma comunidade de iguais entre si, abolindo simbolicamente as diferenças sociais pelo vestuário usado na escola. Essas fardas também protegiam os fatos de cada um durante as atividades de trabalho. Inicialmente escuros, os uniformes tornaram-se mais claros a partir de 1913, deixando de apresentar o ar inicial de verdadeiros “sacos” e ganharam forma e elegância; no caso das meninas, adquiriram a forma de vestidos cintados e com golas de renda. Os alunos (aliás, “A Solidária”) definiram o que queriam vestir, escolhendo também os uniformes de saída, mais elegantes (brancos e cinzentos) e com chapéu de abas. Pelos uniformes, define-se também o género, distinguem-se por peças específicas as alunas dos alunos e também dos professores.

As batas ocultavam os físicos e uniformizavam a visão sobre o indivíduo e o grupo: eram a afirmação de uma imagem escolhida pela instituição, agregavam corpos e almas que se espelhavam nessa forma específica de vestir, esbatendo diferenças sociais e pessoais, ocultando outros símbolos que marcassem diferenças, agregando todos os atores educativos numa imagem institucional que os uniformes transmitiam.

Os professores também usavam, nalguns casos, uniformes/batas de trabalho, principalmente para se protegerem (e aos seus fatos) nas atividades profissionais regulares.

Numa instituição onde as punições físicas estavam proibidas (como castigos recorria-se a repreensões, suspensões e, nos casos mais graves, a expulsões), as noções de higiene faziam parte das matérias a estudar, mas eram também uma exigência da escola, que estabeleceu que os alunos deveriam apresentar-se “limpos e de cabelo cortado”. A palavra “sujo” surge de forma permanente nos documentos internos da escola (como, por exemplo, nos relatórios e nas atas dos conselhos escolares) e nas suas publicações, associadas a outras expressões que caracterizam as péssimas condições de saúde em que viviam as famílias dos alunos. Assim, verificada pela escola a impossibilidade de obrigar as famílias a enviarem os seus filhos limpos, instituem-se os banhos na escola para os alunos que não apresentassem cuidados de higiene, como forma de os educar nos preceitos higiénicos necessários e defendidos por professores e médicos, na época, marcada por um forte discurso higienista que os dirigentes dessa escola claramente defendiam e pelos quais lutavam de forma militante.

A necessidade dos alunos manterem a cabeça limpa (e desparasitada) é um dos temas de saúde mais comentados, face aos inúmeros casos problemáticos que se apresentavam e que requeriam a intervenção dos professores e da direção, face à impossibilidade de conseguir que no meio familiar seguissem as normas de higiene e mantivessem as diferentes partes do corpo limpas. Por isso, a direção estabelecia, como normas, o cabelo curto, a regularidade no seu corte (uma vez por mês, na primeira segunda-feira de cada mês), num esforço de implementação de normas de higiene, mas também de imposição de hábitos de regularidade e de disciplina nos(as) alunos(as), que também estavam subjacentes nas regras de pontualidade e de comportamento.

CONCLUSÃO

A Escola Oficina nº 1 protagonizou, nas duas primeiras décadas do século XX, uma experiência pedagógica alternativa e inovadora, assente num projeto libertário que lhe permitiu conciliar vários contributos e que promoveu a educação e autonomia dos seus alunos, oriundos de estratos socioeconómicos operários e desfavorecidos, no sentido de lhes dar uma educação integral, embora com um forte sentido de preparação para o mundo do trabalho. Este projeto traduziu-se em planos de estudos e numa política institucional que desenvolveu estratégias para, a par das aprendizagens formais, moldar corpos e almas segundo regras de autonomia, disciplina e controle. Nesse sentido, foram implementadas normas de higiene, limpeza e saúde, formas de convivência social e o desenvolvimento de modalidades de autogoverno por parte dos alunos na sua associação escolar, que espelham a inovação e exemplaridade desse projeto no seu tempo.

REFERÊNCIAS

  • CANDEIAS, A. A Escola Oficina nº 1 de Lisboa 1905-1930: Mudar a escola para mudar o mundo. Análise Psicológica, n. 4, v. XI, p. 447-463, 1993.
  • CANDEIAS, A. Educar de outra forma - A Escola Oficina nº 1 de Lisboa (1905-1930). Lisboa: Instituto de Inovação Educacional, 1994.
  • FERNANDES, R. A pedagogia portuguesa contemporânea Lisboa: Instituto de Cultura Portuguesa, 1979.
  • FIGUEIRA, M. H. Um Roteiro da Educação Nova em Portugal Escolas Novas e Práticas Pedagógicas Inovadoras (1882-1935). Lisboa: Livros Horizonte, 2004.
  • NÓVOA, A. (Org.). Dicionário de Educadores Portugueses Porto: ASA Editores, 2003.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    24 Abr 2017
  • Aceito
    12 Set 2017
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