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CRIANÇAS CEGAS E SEUS ENCONTROS COM A CIDADE: PAISAGEM SONORA E EDUCAÇÃO MUSICAL EM FOCO

Blind children and their encounters with the city: soundscape and musical education

RESUMO:

Este artigo problematiza a importância da paisagem sonora para a experiência estética e a educação musical de crianças. Destaca a cidade como produto e produtora de subjetividades, com inúmeras oportunidades educativas. As discussões decorrem da análise, fundamentada em Vygotsky e Bakhtin, de acontecimentos protagonizados por crianças cegas em seus encontros com a cidade. O estudo aponta como fundamentais as experiências sonoras das crianças para a construção dos conhecimentos sobre os lugares visitados, bem como possibilita compreender a potência da cidade para a educação musical.

Palavras-chave:
Experiência estética; Experiência sonora; Educação musical; Paisagem sonora; Crianças cegas

ABSTRACT:

This article problematizes the importance of the sound landscape for the aesthetic experience and musical education of children. It highlights the city as product and producer of subjectivities with innumerable educational opportunities. Based on Vygotsky and Bakhtin, the discussions elapse from the analysis of occurrences starred by blind children in their encounters with the city. The study points out the sound experiences for children in the construction of knowledge about the visited places as fundamental, and they enable the comprehension of the city’s potency for musical education.

Keywords:
Aesthetic experience; Sound experience; Musical education; Sound landscape; Blind children

INTRODUÇÃO

Na sociedade contemporânea constituem-se modos de ser e viver pautados por uma lógica da visão. Imagens proliferam por todos os espaços, sendo constantemente substituídas ao ritmo da velocidade das tecnologias da informação e comunicação. São onipresentes e encontram-se em espaços de proporções díspares como edifícios, outdoors e smartphones, capturando a atenção dos transeuntes com seus apelos ao consumo, seja de mercadorias, de ideias, de estilos de vida e visões de mundo, disso tudo ao mesmo tempo.

Mas a cidade não é somente um lugar para se ver e ser visto(a). O caminhar por suas vias e vielas é interpelado por imagens, odores, texturas e uma profusão difusa de sons e ruídos, entremeados de alguns silêncios. Às próprias imagens no espaço urbano se amalgamam expressões sonoras as mais variadas. Porém, cotidianamente esses sons, ruídos e silêncios passam despercebidos aos ouvidos desacostumados e aos olhos doutrinados.

Nas cidades contemporâneas regidas por uma lógica em que a arquitetura atua predominantemente como “suporte de placas e letreiros” (NÓBREGA & DUARTE, 2009NÓBREGA, M.L.C.C.; DUARTE, C. Publicidade e Identidade na Arquitetura do Espaço Público Urbano. Urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, v. 1, n. 2, p. 223-233, 2009., p. 229), que possibilidades há para a escuta e valoração de seus sons, ruídos e silêncios, compreendendo-os como componentes de uma complexa dinâmica viso-acústica-corpórea?

Autores de variados campos do conhecimento indicam a importância da sonoridade urbana para a experiência estética dos sujeitos, tendo como ponto de partida a paisagem sonora. Reconhecendo essa importância, problematizamos neste trabalho as possibilidades sonoras presentes na cidade, apostando na ideia de uma educação musical em que se possa conhecer a cidade pelos ouvidos (SCHAFER, 2003SCHAFER, R.M. O ouvido pensante. 2. ed. São Paulo: Editora da Unesp, 2003.).

Essa temática emergiu em um contexto de pesquisa de doutorado da primeira autora, ao investigar o processo de constituição de olhares de crianças cegas em Florianópolis, Santa Catarina (MATTOS, 2015MATTOS, L.K. Olhos abertos para ouvir, sentir, pensar: crianças com deficiência visual fotografando a cidade. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015.). No encontro com a cidade, a relevância da sonoridade urbana para a experiência estética e sua importância para uma educação musical foi evidenciada, porém não analisada.

A discussão aqui apresentada, fundamentada em Vygotsky (2001VYGOTSKY, L.S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2001.) e Bakhtin (2010BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2010.), considerou o andar como prática estética (CARERI, 2002CARERI, F. Walkscapes: El andar como práctica estética - Walking as an a esthetic practice. Espanha: Gustavo Gili, 2002.) e possibilitou compreender a potência da cidade para a educação musical. Uma educação sensível fundada nos encontros tecidos no decorrer do pesquisar; educação estética como processo de formação que investe em relações outras com a cidade.

SONS E SILÊNCIOS NA/DA CIDADE

Compreendemos a cidade como possibilidade pulsante para a educação estética, pois as relações complexas e dinâmicas que ali ocorrem são constitutivas de diferentes modos de vida e de subjetividades (SENNETT, 2010SENNETT, R. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2010.; BAPTISTA & FERREIRA, 2012BAPTISTA, L.A.; FERREIRA, M.S. Por que a cidade? Escritos sobre a experiência urbana e subjetividade. Niterói: Editora da UFF, 2012.; ZANELLA, 2014ZANELLA, A.V. Vygotsky: contexto, contribuições à psicologia e o conceito de zona de desenvolvimento proximal. Itajaí: Editora da Univali, 2014.). Essas relações consistem, portanto, em oportunidades para uma educação integral e inclusiva, que considere a pluralidade do humano e seus modos de vida.

Toda cidade apresenta demandas e necessidades de educação e, ao mesmo tempo, contém dispositivos educativos. Em outras palavras, se toda cidade é educativa ao propor modos de ser e aprender, pode converter-se em educadora se assumirmos como proposta os dispositivos educativos nela existentes (ALDEROQUI, 2006ALDEROQUI, S. Educação na cidade: responsabilidade contemporânea e solidariedade institucional. Cadernos Cenpec, v. 1, n. 1, 2006. http://dx.doi.org/10.18676/cadernoscenpec.v1i1.144
http://dx.doi.org/10.18676/cadernoscenpe...
).

A cidade educa nossa sensibilidade em vários aspectos, sendo o sonoro um deles. Como podem, os sons da cidade, virem a ser suporte para uma educação musical que considere as relações entre música e contextos urbanos, entre arte e vida? Schafer (2003SCHAFER, R.M. O ouvido pensante. 2. ed. São Paulo: Editora da Unesp, 2003.) criou o termo paisagem sonora - tradução do termo em inglês soundscape - a partir do neologismo com o conceito de landscape para referir-se ao universo de sonoridades que transfiguram e condensam a paisagem da cidade. Valoriza-se, assim, a importância de uma educação estética que contemple essa paisagem sonora, que sensibilize cada pessoa a observar e ouvir o entorno, compreender os sons, ruídos e silêncios e sua importância para a experiência intersubjetiva.

EXPERIÊNCIA ESTÉTICA, MÚSICA E CEGUEIRA

A psicologia histórico-cultural e o Círculo de Bakhtin apresentam contribuições significativas sobre a linguagem, a mediação semiótica e os processos de constituição do sujeito (PINO, 2005PINO, A. As marcas do humano: as origens da constituição cultural da criança na perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo: Cortez, 2005.; FARACO, 2009FARACO, C.A. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola, 2009.). No que tange à linguagem verbal, para Vygotsky (1997bVYGOTSKY, L.S. Historia del desarrollo de las funciones psíquicas superiores. Madri: Editorial Pedagógica , 1997b. v. 3. (Obras Escogidas)., p. 108) “a palavra vence a cegueira”. Ou seja, a mediação pelo signo verbal é uma possibilidade social que favorece a superação dos limites impostos pela restrição da experiência visual, viabilizando a inserção no universo simbólico. Nesse sentido, para os cegos é pela palavra que as imagens são (re)conhecidas e compartilhadas.

O psiquismo de uma pessoa cega desenvolve-se do mesmo modo que outra sem deficiência, apenas por meio de vias alternativas à dimensão visual (VYGOTSKY, 1997aVYGOTSKY, L.S. Fundamentos de defectología. Madri: Editorial Pedagógica, 1997a. v. 5. (Obras Escogidas).; 1997bVYGOTSKY, L.S. Historia del desarrollo de las funciones psíquicas superiores. Madri: Editorial Pedagógica , 1997b. v. 3. (Obras Escogidas).). A mediação semiótica, ou, dito de outro modo, o uso de signos como mediações das relações humanas, é o que torna possível superar as limitações decorrentes da restrição da visão física. Os processos de significação são, portanto, indispensáveis para a constituição das pessoas com deficiência visual, pois atuam no enfrentamento das dificuldades vivenciadas no acesso à informação imagética. Assim, as limitações orgânicas, quaisquer que sejam, podem ser superadas por processos de natureza social, mediados simbolicamente (NUERNBERG, 2008NUERNBERG, A.H. Contribuições de Vigotski para a educação de pessoas com deficiência visual. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 13, n. 2, p. 307-316, 2008. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-73722008000200013
http://dx.doi.org/10.1590/S1413-73722008...
).

Nesse âmbito, concordamos com Sacks (2010SACKS, O. O olhar da mente. São Paulo: Companhia das Letras, 2010., p. 210), quando postula que “a linguagem, a mais humana das invenções, pode possibilitar o que, em princípio, não deveria ser possível. Pode permitir a todos nós, inclusive os cegos congênitos, ver com os olhos de outras pessoas”. Desse modo, um cego, ao criar imagens dos aspectos visuais de sua experiência, pautados por outros canais perceptivos que não a visão, pode ver com a imaginação. Imaginar tem um papel diferenciado, pois possibilita “ver”, “transver” e transformar o mundo, criando imagens com base em outras informações sensoriais, mediadas principalmente pela linguagem verbal em sua capacidade de conferir ao mundo uma existência simbólica.

Quanto ao olhar estético, é ininterruptamente constituído, compondo modos de ver e viver o mundo. O estético não é uma propriedade inerente aos objetos, mas emerge nas relações entre pessoas e destas com o mundo (SANCHEZ VÁZQUEZ, 1999SANCHEZ VÁZQUEZ, A. Origens e natureza da relação estética. In: SANCHEZ VÁZQUEZ, A. Convite à Estética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. p. 73-103.; ZANELLA, 2006ZANELLA, A.V. “Pode até ser flor se flor parece a quem o diga”: reflexões sobre educação estética e o processo de constituição do sujeito. In: DA ROS, S.Z.; MAHEIRIE, K.; ZANELLA, A.V. (orgs.). Relações estéticas, atividade criadora e imaginação: sujeitos e(em) experiência. Florianópolis: Editora da UFSC, 2006. p. 33-48.). A estética com a qual operamos diz respeito, por conseguinte, às relações, necessariamente mediadas, constitutivas dos próprios sujeitos e da realidade. Trata-se, portanto, de relações estéticas, ou seja, modos específicos de nos relacionarmos com o contexto social balizados por relações sensíveis, de afecção que mobilizam em direção à produção de novos sentidos e, consequentemente, novas possibilidades de estar em relação com outros, com o mundo, com nós mesmos.

Considerando-se essa dimensão inexoravelmente relacional da estética, compreendemos que uma relação estética pode emergir em situações variadas e cotidianas, no encontro com pessoas, objetos, música, som e ruído. É nessa perspectiva da dimensão estética das relações das crianças cegas que nos propomos a analisar um acontecimento em que a paisagem sonora da cidade constituiu-se como foco.

AS OFICINAS

O acontecimento eleito para discussão foi produzido a partir de um percurso metodológico de pesquisar no trajeto, com a produção de narrativas fotográficas e audiovisuais. Para tanto, foram organizados processos educativos com crianças cegas sob a forma de oficinas estéticas, ou seja, intervenções psicossociais baseadas em um fazer criativo mediado por recursos variados (MATTOS, 2015MATTOS, L.K. Olhos abertos para ouvir, sentir, pensar: crianças com deficiência visual fotografando a cidade. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015.).

As linguagens artísticas têm sido privilegiadas nos trabalhos de pesquisa, extensão e/ou ensino que vimos desenvolvendo, em razão da potência da arte para o processo de reinvenção de si e da própria existência. Como destaca Vygotsky (1998VYGOTSKY, L.S. Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes , 1998., p. 320), “a arte é antes uma organização do nosso comportamento visando ao futuro, uma orientação para o futuro, uma exigência que talvez nunca venha a se concretizar, mas que nos leva a aspirar acima da nossa vida o que está por trás dela”.

As oficinas estéticas foram organizadas em três encontros. No primeiro, realizado na sede da Associação Catarinense para Integração do Cego (ACIC), foram trabalhados alguns conceitos de fotografia e audiovisual por meio do encontro das crianças cegas com a equipe da pesquisa e com os equipamentos fotográficos e de filmagem. As crianças experimentaram esses recursos, fotografando instalações multissensoriais que simulavam espaços da cidade. No segundo encontro, em suas casas ou escolas, foram apresentados a cada criança recortes do registro de áudio do primeiro momento e suas fotos produzidas naquela ocasião, para que elas decidissem qual seria o local para suas incursões na cidade. As crianças escolheram os espaços e nos inserimos na urbe para criar as narrativas fotográficas e audiovisuais. Após essa atividade, foram apresentadas para cada criança e sua família, em um terceiro encontro, nas suas casas, as narrativas criadas. Todos os encontros foram registrados e documentados em áudio e vídeo para a composição de narrativas de cada criança. Exploramos tecnologias audiovisuais e digitais como ferramentas de pesquisa, criando possibilidades outras de narrar experiências (JOBIM E SOUZA, 2011JOBIM E SOUZA, S. Por uma epistemologia da imagem técnica. Pesquisas e Práticas Psicossociais, São João Del-Rei, v. 6, n. 2, p. 206-210, 2011.).

As intervenções na cidade foram alicerçadas no trabalho de Bavčar (2010BAVČAR, E. Celebración de Evgen Bavčar. Diecisiete, ano 1, n. 2, p. 6-43, 2010.), que compreende a fotografia como diálogo para um cego, pois tem uma existência interativa. Unindo pesquisadora, auxiliares de pesquisa, acontecimento do pesquisar e a pessoa com quem se pesquisa, imbricados e objetivados nas produções realizadas, possibilitamos às crianças apropriarem-se de instantes da paisagem sonora da cidade, objetivando-os em imagens. O uso da câmera fotográfica e filmadora como uma espécie de prótese dos olhos lhes permitiu produzir imagens desenhadas por seus olhares.

Cada criança criou fotos podendo utilizar, além da câmera amadora digital, uma filmadora portátil e uma câmera lomográfica analógica de lente fisheye (olho de peixe), na qual não há um visor para o controle da imagem a ser capturada. Ainda, as distorções causadas na imagem devido à sua ampla angulatura, cujo efeito se assemelha ao de um “olho mágico” (instalados em portas de entrada), apresentam ambientes e objetos a partir de uma perspectiva diferente da registrada por olhares constituídos pela perspectiva de um foco específico e da dinâmica figura e fundo.

Na interação com espaços desconhecidos as crianças capturaram o que dali lhes era significativo. Assim, deram visibilidade às experiências com a paisagem sonora da cidade, o que não foi possível analisar naquele momento. Retomamos essas experiências para pensar sobre o que podemos aprender com essas crianças: o que nos ensinam sobre a sonoridade da/na cidade? Que possibilidades a paisagem sonora oferece para a educação musical?

CRIANÇAS CEGAS E A CIDADE: ENCONTROS

Para este artigo, analisamos um acontecimento, qual seja, a apropriação do microfone por uma das crianças que passa a brincar de repórter e narra sua experiência a partir de um evento sonoro1 1 . A narrativa dos encontros de cada criança com a cidade podem ser consultadas em Mattos (2015), disponível em: <http://tede.ufsc.br/teses/PPSI0644-T.pdf>. Acesso em: 30 ago. 2018. . Esse acontecimento ocorreu no segundo encontro da oficina estética, instantes antes de nos inserirmos na cidade. Ainda em sua casa, foram mostrados os equipamentos, incluindo o gravador de áudio. A criança demonstrou interesse e pediu para ser a responsável por gravar o som. Em seguida, gravou o início da sua experiência, anunciando: “repórter por um dia: jornal da Record, está começando ao vivo, com as reportagens de todos os “Brasius” e de todos os jornais da TV, primeira edição, aqui ao vivo... de um lugar…” A entonação expressiva de um repórter e a ênfase nas últimas sílabas de cada palavra deram um colorido emocional ao enunciado (BAKHTIN, 2010BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2010.). A criança assumiu, a partir desse momento, o lugar social de jornalista.

As crianças são protagonistas de suas existências, têm muito a contar, e a pesquisa pode ser um dos meios de serem ouvidas (FERREIRA, 2008FERREIRA, M.M.M. “Branco demasiado” ou... Reflexões epistemológicas, metodológicas e éticas acerca da pesquisa com crianças. In: SARMENTO, M.; GOUVEA, M.C.S. Estudos da infância. Educação e práticas sociais. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 143-162.). Assim como o cineasta Eduardo Coutinho (2002COUTINHO, E. Revelações sobre a vida e ponto final. 2002. Entrevista realizada por Daniel Schenker, Luciano Trigo, Marcelo Janot e Maria Silvia Camargo.), ao afirmar “eu não dou voz a ninguém. [...] Eu faço filme não sobre os outros, mas com os outros”, a criança repórter protagonizou um outro lugar para si e o compartilhou com outras pessoas:

Allan: ô, Vó, olha só o repórter! Vamos aqui conversar com a Dona Josiane. Dona Josiane, a senhora está ouvindo esse programa há tempos?

Mãe: já, já tô ouvindo há tempo!

Allan: como que a senhora sabe, assim desse jeitinho... (mãe sorri), é que hoje a senhora viu o barulho que teve hoje, aquele barulho lá zzzzzzzzz...

Mãe: ah sim, dos fios que se picou aqui na nossa rua.

Allan: sim, senhora! (em tom de euforia), eles chamaram os jornalistas tudo, chamaram eu, eu era repórter! Tchau, mãe, eu vou brincar de repórter!

Allan assumiu o discurso de um jornalista e o seu corpo de repórter foi assim se constituindo. O tom de sua enunciação foi jornalístico, gênero do discurso que ele assimilou, imitou, reelaborou e reacentuou. Seu discurso foi composto com palavras que advêm de outros, apropriadas no seu círculo social. Ao entrevistar sua testemunha a respeito de um evento recém-ocorrido em sua rua, o qual alterou a rotina da família, enunciou seu modo de ver e viver o mundo. O barulho (zzzzz) que ele viu e que chamou a sua atenção e a de sua família foi o disparador do acontecimento, e a possibilidade de uso do microfone foi a oportunidade para a vivência de um lugar social outro.

Quando nos inserirmos na urbe para visitar o local escolhido por Allan, seu olhar de repórter continuou se constituindo. Filmou todo o percurso, utilizando uma filmadora portátil fixada em sua testa e recorreu ao recurso da imagem para comprovar o que dizia. Demonstrou que conhecia o funcionamento dos jornais televisivos: em sua narrativa audiovisual ele explicitou a relação entre o tangível, o dizível e o visível, bem como o lugar social de repórter responsável por noticiar os fatos. Ao compartilhar sua intervenção fotográfica evidenciou o que lhe foi possível conhecer por meio de imagens-palavras constitutivas da paisagem sonora da cidade.

Vygotsky (2009VYGOTSKY, L.S. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico - livro para professores. São Paulo: Ática, 2009.) enfatiza o papel da imitação na atividade criadora, pois em todas as brincadeiras as crianças reproduzem algo que viram, ouviram, sentiram. No entanto, esses elementos não são uma simples recordação do vivido, mas sua reelaboração criativa. No acontecimento aqui apresentado, a criança juntou fragmentos de situações diversas - do jornalismo televisivo e dos fios da rede elétrica que, ao que é possível entender, provocaram um curto-circuito - para constituir a pauta de sua narrativa. O brincar de repórter possibilitou visibilizar sua inserção na cultura, a interação com a paisagem sonora e o processo de sua apropriação e reinvenção.

Esse processo criativo da imaginação acontece em um movimento cíclico: elementos da realidade são imaginativamente reelaborados, compondo uma forma outra (VYGOTSKY, 2009VYGOTSKY, L.S. Imaginação e criação na infância: ensaio psicológico - livro para professores. São Paulo: Ática, 2009.). No acontecimento em questão, esse processo objetivou-se na criança repórter que, em sua entrevista, pergunta sobre o barulho.

Consoante com essa compreensão, Benjamin (1987BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987. v. 1. (Obras Escolhidas).) afirma que a brincadeira está na base de todos os hábitos, como comer, dormir, vestir-se. O brincar cumpre importante função na constituição da subjetividade, pois é por seu intermédio que a criança se apropria da cultura. Também para Benjamin, assim como para Vygotsky, nos espaços de brincadeiras e jogos infantis o ato mimético vai além da simples imitação. As crianças não imitam o “mundo dos adultos”, mas criam relações novas e originais com ele.

O som produzido com o rompimento dos fios chamou a atenção de Allan e configurou-se como foco do seu brincar, assim como a chegada do caminhão com escadas e técnicos para consertá-los; eis os novos elementos que imaginativamente ele resgatou para recriar, no lugar social de repórter, o contexto no momento exato em que consertavam os fios da sua rua. Portanto, as experiências que lhe foram significativas constituíram-se como alicerces da sua atividade criadora.

Os sons ali ouvidos foram sendo amalgamados a sons de tempos e espaços outros, a compor uma tessitura de experiências objetivada na partitura da própria vida da criança, evidenciando a polissemia do ouvir e da vida emergindo do encontro com a polifonia da cidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É cada vez mais frequente o caminhar pelas vias das cidades capturado(a) pelas possibilidades de comunicação mediadas por aparelhos de tecnologia avançada. Se há ganhos com essa conectividade incessante, há outros efeitos que a eles se imbricam: um deles, a desconexão com o contexto próximo, o alheamento em relação ao contexto imediato. Nesse cenário, distâncias geográficas e temporais se esvaem ao mesmo tempo em que outras distâncias se instituem, relativizando noções de presença/ausência, próximo/distante, local/global.

As crianças com as quais pesquisamos nos mostraram, em contrapartida, as possibilidades e a importância de conexões com o supostamente familiar que geralmente passa despercebido ou é desvalorizado: no caso, a paisagem sonora da cidade. A análise do acontecimento evidencia as sonoridades urbanas presentes nas narrativas audiovisuais das crianças com as quais se pesquisou e indica que signos sonoros implicam relação com outros signos, sempre conectados às dimensões volitivas, afetivas e interpessoais.

São múltiplas as vozes que compõem a paisagem sonora, há muitos outros presentes ou ausentes que a constituem. E são os signos em sua significação, em um determinado contexto cultural, que possibilitam a comunicação entre as pessoas, a conectividade que as possibilita estar com e produzirem condições outras para si mesmas, para todos(as).

Barulhos, sons, ruídos e silêncios da cidade, constitutivos da paisagem sonora geralmente despercebida por aqueles que priorizam a visão para construir sentidos relativos às suas experiências urbanas, cativaram a atenção das crianças cegas com as quais realizamos a pesquisa. Consideramos, pois, com a análise do acontecimento aqui apresentado, a importância de valorizar em pesquisas e intervenções o encontro com a sonoridade da cidade, a composição da paisagem sonora e sua potência para a educação musical de crianças.

REFERÊNCIAS

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    » http://dx.doi.org/10.18676/cadernoscenpec.v1i1.144
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  • ZANELLA, A.V. Vygotsky: contexto, contribuições à psicologia e o conceito de zona de desenvolvimento proximal. Itajaí: Editora da Univali, 2014.

NOTA

  • 1
    . A narrativa dos encontros de cada criança com a cidade podem ser consultadas em Mattos (2015), disponível em: <http://tede.ufsc.br/teses/PPSI0644-T.pdf>. Acesso em: 30 ago. 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Maio 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    24 Ago 2018
  • Aceito
    11 Dez 2018
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