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A CASA E A CIDADE COMO ESPAÇOS PLURAIS PARA ENCONTROS COM A ARTE

THE HOME AND THE CITY AS PLURAL SPACES FOR ENCOUNTERS WITH ART

RESUMO

Encontrar a arte nas casas e nas cidades, às vezes escondida ou não percebida, como espaço e lugar da cultura, da vida é o foco de questões que são refletidas a partir de duas ações poéticas vividas com estudantes do curso de Pedagogia e com crianças a partir de uma pesquisa sob minha orientação. A a/r/tografia — unindo o artista criador (a), a pesquisadora (r) e a professora (t) — se faz metodologia apropriada para mergulhos conceituais, poéticos e em ação, na intrínseca relação entre práticas, fundamentos teóricos, a linguagem da fotografia para além do registro e as ações mediadoras.

Palavras-chave
Arte; Casa; Cidade; Mediação cultural; Interdisciplinaridade

ABSTRACT

Finding art that is sometimes hidden or not perceived in homes and in cities as a space and place of culture, of life—that is the focus of issues reflected in two poetic actions experienced by Pedagogy students and children as part of research under my guidance. A/r/tography—bringing together the artist creator (a), the researcher (r) and the teacher (t)—is an appropriate methodology for conceptual dives, that are poetic and in action, in the intrinsic relation between practices and theoretical foundations.

Keywords
Art; House; City; Cultural mediation; Interdisciplinarity

Porta de Entrada

A casa e a cidade. O artigo definido aponta que é uma, específica, singular, única. Uma casa e uma cidade. Qual ou quais? A subjetividade traz à tona o colorido pessoal sobre a casa e a cidade em que cada ser humano habita. Dar a ver esses ângulos pessoais nos coloca no interstício, no entre o público e o privado, nas fronteiras diluídas de vidas que se cruzam na escola. Escola como espaço e lugar dos entres, do estar no meio do que trazemos, do que os outros trazem, do que os contextos móveis nos impulsionam, amedrontam, afetam. A arte ali está, nas casas e nas cidades, às vezes escondida ou não percebida como espaço e lugar da cultura, da vida.

Neste artigo, essas questões são refletidas a partir de três ações poéticas vividas em dois projetos com aspirantes a professores, ou seja, estudantes do Curso de Pedagogia na disciplina “Fundamentos teóricos e metodológicos do ensino de Arte” e do “Projeto Ambiências Educadoras” que, interdisciplinarmente, articula disciplinas voltadas a Arte, Educação Física, Letramento, Educação Infantil, Língua Portuguesa e História e Geografia em um curso de Pedagogia na cidade de São Paulo. Também se enriquece com uma das ações realizadas por Dilma Ângela da Silva (2020)SILVA, D. A. Andarilhar e perceber a cidade com crianças da educação infantil: cortejo, arte e mediação cultural. 2020. 148 f. Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2020. em sua dissertação sob minha orientação, com caminhadas-cortejos com crianças em uma escola de Educação Infantil que faz parte do projeto Território das Travessias. Nessas três ações poéticas, os espaços plurais intimistas ou públicos geraram produções voltadas à percepção de um olhar ampliado pela linguagem fotográfica e à criação de materiais a partir do Projeto Ambiências Educadoras.

Pensar nesses espaços plurais carregados de subjetividades se faz ainda mais necessário nos inesquecíveis anos de 2020 e 2021. Há outros olhares e outras escutas para as casas e as cidades, em viagens internas ou percorrendo espaços de modo presencial ou virtualmente, como estrangeiros em nossa própria pátria. Um novo sabor ao percebermos o que pouco víamos, ao encontrarmos amigos e colegas em outro modo de estar perto e longe...

Mergulho no vivido para visualizar conceitos que fundamentam a prática e convido para adentrarmos nesses espaços plurais da casa e da cidade, antes, porém, mirando os territórios metodológicos habitados.

Arquitetura A/r/tográfica

Um número temático lança uma questão para leitores e estudiosos e nos faz enveredar por caminhos que vão sendo trilhados na própria reflexão. Trago, no desejo da partilha do sensível, a “recomposição da paisagem do visível, da relação entre o fazer, o ser, o ver e o dizer” (RANCIÈRE, 2009RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: Estética e política. São Paulo: 34, 2009., p. 69) ao refletir sobre as práticas aqui revividas e repensadas.

Pensar os espaços plurais focalizando suas ações poéticas me colocou na situação de a/r/tógrafa, pois este não é um relato de experiência ou um artigo levantando o estado da arte. É sim uma reflexão que se fundamenta no próprio conceito de a/r/tografia, onde o “a” se refere à arte, ao criador, o “r” ao researcher, o pesquisador e o “t” a teacher, o(a) professor(a).

Para dizer de uma forma simples, o trabalho dos a/r/tógrafos é reflexivo, recursivo, autorreflexivo e sensível. Reflexivo, porque reconsideram e revisam o que ocorreu e o que pode ocorrer; recursivo, porque permitem que sua prática se desenvolva em espiral por meio da evolução de ideias; autorreflexivo, porque questionam seus próprios preconceitos, suposições e crenças; e sensível porque se responsabilizam em atuar eticamente com os participantes e colegas. Tendo em conta estes conceitos, a A/r/tografia se envolve de uma maneira particular em atividades artísticas como um modo de recolher informação, analisar ideias e criar novas formas de conhecimento.

(IRWIN, 2017IRWIN, R.; GOLPARIAN, S.; BARNEY, D. A/r/tografía como metodologia para a investigação visual. In: VIADEL, R. M.; ROLDÁN, J. Ideas Visuales. Investigation basada em Arte e investigação artística. Visual Ideas. Arts Based Research and Artstic Research. Granada: Editorial Universidad de Granada, 2017. p.134-164., p. 137, tradução nossa)

Com uma metodologia onde a mestiçagem soma as três categorias aristotélicas — teoria, prática e poiesis — revistas por Rita Irwin (2008)IRWIN, R. A/r/tografia: uma mestiçagem metomínica. In: BARBOSA, A. M.; AMARAL, L. Interterritorialidade: mídias, contextos e educação. São Paulo: Senac São Paulo, 2008. p. 87-104., conecta-se o professor e o pesquisador à dimensão da poiesis, da criação, da arte, do corpo que vive a experiência compartilhada. Assim, é pesquisa como processo, pesquisa viva, pesquisa-ação com a imensa potência da arte como base e fundamento, como suporte e impulso para criação. Como a/r/tógrafos, colocamo-nos abertos e sensíveis ao outro, ao contexto, ao que vamos descobrindo no caminhar. Valoriza-se a reflexão, um bate e volta de conceitos que vão amadurecendo no ir e vir de objetividades e subjetividades. Aprofundamos conceitos e os fazemos ressoar em nós, também em estado de difração, contornando obstáculos, entrando em frestas para se propagar em novas ondas.

É como criadora, pesquisadora e professora que escrevo esse texto que tenta respirar por entre espaços plurais, trazendo a linguagem da fotografia para além do registro. O ato de fotografar alimenta o olhar para ver o não visto e provocar a atenção de si, do contexto e das possíveis leituras feitas também pelo educador que as provoca. Nesse sentido, a mediação cultural é vivida nos encontros provocados pela casa, pelos museus, pela cidade, enfim.

A Casa: Um Olhar que Fotografa

Um olhar estrangeiro. Um olhar de primeira vista tornando estranho o que é familiar. Um olhar sob a mira do celular em zoom, perscrutando o que está próximo de si. Foi esse o primeiro pedido para um pequeno projeto para aspirantes a professores na disciplina “Fundamentos teóricos e metodológicos do ensino de Arte” no Curso de Pedagogia. Uma disciplina do segundo semestre que é, infelizmente, a única disciplina responsável por oferecer arte e provocar o pensar sobre arte e o seu ensino. Tarefa difícil.

Ao lado de questões relativas ao desenvolvimento expressivo das crianças, a encomenda de fotografar em zoom algo que está perto arrastou o olhar para ver o que parecia invisível. Como que furando as fronteiras da tela do celular, o zoom pareceu mirar pelas frestas para encontrar algo que chamasse a atenção do vidente.

Por um grupo no aplicativo WhatsApp que une toda a turma, as fotografias foram enviadas. Surpresas ao olhar de todos na diversidade de elementos que chamaram a atenção como mouse, caderno, concha, vaso de flores e de plantas sobre as mesas, enfeites e livros nas estantes, bichinho de pelúcia e imagem religiosa, uma nécessaire e a própria imagem refletida na maçaneta da porta.

Novo convite para fotografar. A encomenda era de vestir o olhar do fotógrafo, olhando para omesmo objeto e explorando alguns códigos da linguagem fotográfica: os planos buscando o corte,o enquadramento; o foco e o ângulo atentando para a melhor posição da câmera e a forma percebendo o contorno e o espaço. Utilizando o WhatsApp para ver as imagens enviadas e trabalhando com o aplicativo do Moodle para conversar com a turma, fomos orientando para que buscassem outros modos de fotografar o objeto. Descoberta não só da linguagem fotográfica, mas também da prazerosa estesia de reolhar para capturar melhor e dar a ver o objeto em sua plenitude e graça. Havia um desejo de encontrar a forma mais adequada. Compartilhar fazia parte do jogo de descobertas.

Com o tempo de uma semana, a segunda encomenda trazia mais um código da fotografia: a iluminação (Fig. 1). Com a luz do sol, com velas e lâmpadas, a iluminação possibilitou um novo olhar. Na apresentação das duas imagens somada a este novo pedido foi desvelado o cuidado e a criação. A nova imagem quase que acarinhava o objeto inicial.

Figura 1
Foto ensaio composto de três fotografias digitais de Ana Clara Freitas, Carolina Ramos e Ana Carolina de Andrade.

É possível acompanhar o processo de Carolina Ramos (Fig. 2) em sua criação. Há uma transformação no olhar que fotografa e que se aproxima de um objeto tão utilizado em seu cotidiano.

[...] o olhar não acumula e não abarca, mas procura; não deriva sobre uma superfície plana, mas escava, fixa e fura, mirando as frestas deste mundo instável e deslizante que instiga e provoca a cada instante sua empresa de inspeção e interrogação. [...] a simples visão, supõe e expõe um campo de significações, ele, o olhar — necessitado, inquieto e inquiridor — as deseja e procura, seguindo a trilha do sentido. O olhar pensa; é a visão feita interrogação.

(CARDOSO, 1988CARDOSO, S. O olhar viajante (do etnólogo). In: NOVAES, A. (org.). O olhar. São Paulo: Companhia das Leras, 1988. p. 347-360., p. 379, grifo do autor)
Figura 2
Processo de criação nas fotos digitais de Carolina Ramos mirando um objeto próximo de si com zoom.

Não podemos confirmar o quanto o olhar de Carolina, assim como de suas colegas, foi ampliado pela conversa sobre as imagens realizadas ao provocar um olhar mais crítico, analítico e interpretativo, aberto às significações possíveis e aos meandros da linguagem fotográfica: a visão tornada interrogação. Entretanto podemos perceber que na continuidade da proposta novos olhares foram descobertos.

O foco dessa segunda série de fotos foi ir até a janela e fotografar o exterior. Maria Isabelli estava desconcertada com a proposta. Não havia nada para ver ali, apenas o carro na garagem.

Novamente uma surpresa quando a proposta foi olhar mais detalhadamente o que viam e Maria Isabelli aos poucos se apropriou de um olhar sensível do fotógrafo. Não era mais a foto documental do que via de sua janela, mas a foto como a descoberta de uma ideia que vai além do documento e entra na fabulação da imagem (Fig. 3).

Figura 3
Processo de criação nas fotos digitais de Maria Isabelli de Oliveira fotografando de sua janela.

A proposta continuou com outras ações poéticas, ainda on-line. Olhar pela janela e coletar o movimento que se percebe — uma bicicleta que passa, uma luz que pisca, por exemplo, e transformá-los em movimento pela provocação de Adriana Liza. De olhos fechados, abrir a janela, coletar sensações e transformá-las em expressões faciais exploradas pela provocação de Lelê Ancona. De olhos fechados, pensar em uma janela interna aberta para as canções de infância recolhidas por Jéssica Makino. Três professoras parceiras que possibilitaram adentrar em outras linguagens da arte.

Não cabe aqui detalhar todas as propostas, mas enfatizo aqui a tentativa de compreensão dos códigos das linguagens da arte e focalizo a linguagem da fotografia. O tempo é sempre nosso grande carrasco para o aprofundamento, entretanto a experiência deixou marcas que apareceram no portfólio final de avaliação do semestre.

Para Arnheim (1989, p. 117)ARNHEIM, R. Intuição e Intelecto na Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1989.: “para dar sentido às fotografias devemos tratá-las como encontros entre a realidade física e a mente criativa do homem”. Assim, trazer esta experiência de um olhar a partir da casa, dos objetos próximos ou de vistas das janelas e a potência do compartilhamento problematiza o quepoderia ainda se tornar mais claro: a atenção de si, do corpo que vive a experiência e produz sentidosque escorregam para a compreensão das linguagens e também da potência da própria experiência que é estética porque é uma experiência, como diria Dewey (2010)DEWEY, J. Arte como experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010..

“Aprender a fazer fotografia, ao menos no contexto de formação de futuros docentes de educação geral, não significa tanto instruir-se na técnica da fotográfica, mas sobretudo desenvolver o pensamento fotográfico”, afirmam Roldán e Viadel (2012, p. 206, tradução nossa)ROLDÁN, J.; VIADEL, R. M. Metodologías artísticas de Investigación en educación. Mágala: Ediciones Aljibe, 2012.. “Pensamento fotográfico” pois não documenta apenas o que vê, mas um pensamento visual porque é uma ideia. Ideia que no processo de criar vai sendo elaborada e explorada. E nesse processo não se produzem apenas as fotografias, mas se exercita a atenção que encontra no contexto da própria casa a sua significação e que se depara no exercício com o ensino e sua aprendizagem docente.

A Cidade: Espaços Plurais para Descobertas Mesmo On-line

Deixemos a casa e busquemos a cidade e seus espaços plurais que poderiam gerar aventuras pedagógicas saindo dos muros da escola. Mas basta uma simples pergunta para descobrir que os estudantes de Pedagogia, de modo geral, não têm o hábito de visitar museus e bibliotecas, ou mesmo de buscar na cidade elementos para construírem seus projetos pedagógicos.

A disciplina “Fundamentos teóricos e metodológicos do Ensino de Arte” sempre trabalhou com visitas a museus e centros culturais, pelo menos quatro em cada semestre, mas ganhou novo fôlego quando iniciamos em 2019 o Projeto Ambiências Educadoras para ir além dos muros das escolas. A palavra ambiência tem origem no termo em francês ambiance e carrega em seu significado a ideia de meio ambiente, indo além das concepções em relação apenas ao meio material e estrutural, ampliando-se para reflexões a respeito também das condições sociais, culturais, estéticas e afetivas que envolvem as pessoas e nelas podem influir. Como utilizar didaticamente espaços e seu entorno? Como potencializar uma ambiência (espaço/lugar) com intenção educativa refletindo, planejando e implementando processos metodológicos e ações?

Considerando as ambiências educadoras como lugares que podem germinar ideias pedagógicase experiências significativas na formação inicial de professores, iniciamos o projeto com quatro professores e duas turmas do segundo e terceiro semestre. Hoje o projeto atua com seis professores1 e cinco turmas do Curso de Pedagogia, do segundo ao quinto semestre. Em 2020 entramos no Edital do MackPesquisa e recebemos apoio para compra de materiais e livros para o Laboratório de Inovação Pedagógica e bolsistas, sendo dois da graduação do Curso de Pedagogia e um do Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura, além de muitos pesquisadores voluntários.

A busca, investigação, análise e descobertas de potencialidades criativas em ambiências educadoras tenta impulsionar caminhos para o estudo e criação de propostas de intervenções pedagógicas que contribuam com a formação docente, com base na concepção interdisciplinar e valorização de múltiplos lugares de ensinar e aprender. Nesse contexto é relevante a investigação da ambiência educadora e criadora na relação do meio em que pode acontecer a aprendizagem pensando nos aspectos estruturais físicos, recursos e materiais oferecidos, mobilidade e acessibilidade, nas relações entre as possibilidades de experiências sensoriais, cinestésicas, estésicas e estéticas, além das atribuições simbólicas sociais, culturais e educacionais.

Em 2019 e até março de 2020, o projeto propunha visitas a museus, bibliotecas e centros esportivos, além de oficina e a produção de vivências lúdicas, mas com a pandemia tudo teve de ser replanejado. O mundo virtual se tornava o espaço para navegar...

Para a primeira ação do projeto foi escolhido o Museu do Futebol, que já havia sido visitado por alguns estudantes. Além de ter um bom site com muitas informações, ele permitiu trabalhar sobre esportes, artes e também com a biblioteca pelo rico acervo como um centro de referência. Na segunda ação, o foco se ampliou com ampla pesquisa pelos bolsistas e pesquisadores voluntários com a escolha de seis territórios sendo que cada um era iniciado por um ambiente educador específico. Foram selecionados museus (partindo do Museu AfroBrasil); bibliotecas (iniciando pela Biblioteca Nacional); espaços multidisciplinares (Instituto Inhotim); centros de convivência (Centro Paraolímpico); natureza (site Mata Atlântica) e cidade (vários vídeos sobre São Paulo). Cada grupo deveria criar um projeto para uma faixa etária específica. Em ambas as ações a questão da acessibilidade a todos os possíveis educandos deveria ser levada em conta. Estamos neste momento trabalhando na terceira ação que focaliza bairros que estão sendo escolhidos pelas diversas turmas.

Muitos aspectos poderiam ser levantados e problematizados a partir deste projeto e as produções de estudantes do Curso de Pedagogia, mas pinço aqui um dos aspectos que une as descobertas de espaços públicos, mesmo que virtuais, com possíveis ações docentes no futuro. Focalizo aqui a mediação cultural provocada pela produção de materiais que apresentam um dos roteiros selecionados do Museu do Futebol.

A produção de materiais didáticos é um exercício de transposição didática entre a pesquisa feita sobre o tema escolhido e a criação tendo em vista um determinado público e uma forma de dar a ver. Os recursos técnicos, de modo geral, são hoje de domínio dos estudantes e podem ser provocados por nossas propostas. Foi uma boa surpresa verificar os aportes que foram buscar: vídeos, livros, histórias em quadrinhos, narrativa histórica, projeto, poema, guia para professores, informações, além de um site e um blog sobre o Museu do Futebol. Trago aqui três exemplos (Fig. 4).

Figura 4
Produções a partir de visitas virtuais ao Museu do Futebol realizadas por Ana Carolina Guedes de Andrade e Maria Isabelli Nuci de Oliveira (a); Ana Júlia Araújo e Vanessa Santos (b); Manuela Nunes e Julia Schmitt (c).
  • Uma história em quadrinhos foi criada por Ana Carolina Guedes de Andrade e Maria Isabelli Nuci de Oliveira — “O encontro das gerações das chuteiras”. Uma celebração em volta de uma mesa onde a família de chuteiras rememora suas histórias. Um modo de contar trazendo a ideia de família e valorizando as diferentes épocas.

  • Ana Júlia Araújo e Vanessa Santos criam um vídeo para “A arte do futebol feminino” apresentado por elas utilizando também imagens, trazendo um tema que foi muito escolhido pelas estudantes. A luta pela presença das mulheres na plateia ou no campo é uma perspectiva singular para uma batalha que a ultrapassa.

  • Um site foi proposto por Manuela Nunes e Julia Schmitt — “Estilo em campo: Acessórios, cores e tecnologia no futebol”. A história dos uniformes de futebol trazendo também a questão da tecnologia é visibilizada por uma linha do tempo, por fotografias, textos e áudios sobre moda, infância, futebol no campo profissional e na escola e uma entrevista com uma especialista em moda.

Muitos outros aspectos poderiam ser trabalhados a partir desses materiais que trazem em si uma natureza interdisciplinar e todos apresentam uma preocupação com a acessibilidade, utilizando gravações de áudio junto das imagens e até mesmo a possível tradução em sistema braile.

Um conceito fundamentava essa ação: a mediação cultural. Materiais didáticos que deveriam funcionar como objetos propositores (MARTINS, 2012MARTINS, M. C. Objetos propositores. In: MARTINS, M. C.; PICOSQUE, G. Mediação cultural para professores andarilhos na cultura. São Paulo: Intermeios, 2012. p. 77-113.). Essa terminologia nasce da artista que se denomina propositora: Lygia Clark (1997)CLARK, L. Catálogo. Barcelona: Fundació Antoni Tàpies, 1997. em texto da década de 1960:

Nós somos os propositores: nós somos o molde, cabe a você soprar dentro dele o sentido da nossa existência.

Nós somos os propositores: nossa proposição é o diálogo. Sós, não existimos. Estamos à sua mercê.

Nós somos os propositores: enterramos a obra de arte como tal e chamamos você para que o pensamento viva através de sua ação.

Nós somos os propositores: não lhe propomos nem o passado, nem o futuro, mas o agora.

(CLARK, 1997CLARK, L. Catálogo. Barcelona: Fundació Antoni Tàpies, 1997., s/p)

Como diálogo com o outro, como o aqui e o agora, como provocador de um pensamento reflexivo, os objetos propositores são dispositivos para gerar encontros, experiências estésicas, significativas. A estesia, ao contrário da anestesia, é impulsionada pela produção, tanto para que a produz como para quem é dirigida e, nesse sentido, é aprendizagem e leitura de mundo.

Não tenho como aferir se o conceito de mediação cultural ou de objetos propositores, como tenho denominado, tenham sido de fato apropriados. Essa sensação me causa incômodo, pois imagino hoje que poderia ter aprofundado esses conceitos, embora os tivesse vivido na experiência de criá-los. Refletir sobre esses aspectos, entretanto, ajuda-me para a continuidade do projeto.

A Cidade pelo Olhar da Criança: Travessias pelos Territórios Educativos

O encantamento pelas fotografias realizadas pelas crianças (Fig. 5) acompanhadas por Dilma Ângela da Silva (2020)SILVA, D. A. Andarilhar e perceber a cidade com crianças da educação infantil: cortejo, arte e mediação cultural. 2020. 148 f. Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2020. em sua dissertação de mestrado, que tive a alegria de orientar, são convocadas neste texto não apenas pela ação poética realizada, mas também pela potência do projeto Território Educativo. Nascido do “Cortejo Poético das Infâncias Paulistanas” realizado em 2014, o Projeto Virada Educação se consolidou como “uma prática de território educativo, um pretexto para um território aprofundar vínculos, com dias em que as escolas e outros espaços transbordam aprendizados em oficinas, cortejos, rodas, piqueniques, entre outras atividades coletivas”, como dizem André Gravatá e Aline Oliveira (2019, p. 72)GRAVATÁ, A.; OLIVEIRA, A. Políticas públicas: tudo se move em um território educativo. São Paulo: Edição dos Autores, 2019. do Coletivo Entusiasmo.

Figura 5
Ampliando a percepção: modos de olhar a cidade. Foto-ensaio composto por fotografias digitais.

Participam do projeto quatro escolas municipais de educação infantil situadas no centro da cidade de São Paulo: EMEI Gabriel Prestes, EMEI Armando de Arruda, EMEI Patrícia Galvão e EMEI Monteiro Lobato. As práticas das caminhadas-cortejos habitaram o cotidiano das escolas, inspiradas nas manifestações da cultura popular do Maracatu e do Boi-bumbá, enlaçando crianças, professores, comunidade na descoberta e apropriação do território que se torna também educativo.

Caminhar, cortejar a cidade com as crianças e não simplesmente se deslocarem para museus ou espaços culturais, mas explorar seus signos, vivenciar diferentes experiências estéticas e práticas culturais que estão para além dos muros da escola, entendendo a cidade como fonte de saber, local de encontro e vidas compartilhadas.

(SILVA, 2020SILVA, D. A. Andarilhar e perceber a cidade com crianças da educação infantil: cortejo, arte e mediação cultural. 2020. 148 f. Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2020., p. 141)

Saídas com as motocas pelas praças próximas, com máquinas fotográficas e materiais para registro, com fantasias e performances no cortejo inspirado no Boi-bumbá. Saídas para observar flores, árvores, sentir os cheiros, andar a pé ou mesmo de transporte coletivo, provocaram curiosidade e descobertas na diversidade viva de ruas e praças.

Dentre as várias proposições mediadoras realizadas na pesquisa da dissertação aqui focalizada, trago o registro fotográfico de Ametista (nome fictício) em seus cinco anos. Como outras crianças convidadas a fotografar, ela nos revela seu olhar singular (Fig. 6): o micro e o macro, o distante e o próximo, as linhas cruzadas, os planos diagonais, a geometria no/do espaço, o tempo fluido...

Figura 6
Registros fotográficos de uma criança de 5 anos em sua caminhada-cortejo com sua escola.

Mais uma vez a fotografia é revelação não apenas de um olhar, mas de um corpo brincante descobrindo o mundo de outro modo. Como diz Marcia Gobbi (2017, p. 96)GOBBI, M. Crianças, fotografias, derivas. In: CUNHA, S. R. V; CARVALHO, R. S. (orgs.). Arte contemporânea e educação infantil: crianças observando, descobrindo e criando. Porto Alegre: Mediação, 2017.: “Fotografias e desenhos podem vir a estabelecer um diálogo entre os mundos adultos e infantis, compreendendo as crianças como criadoras e partícipes desse universo representativo até então prevalentemente adulto”. Um diálogo que Dilma soube articular em sua dissertação.

Assim, as caminhadas-cortejos conectam educação, arte e cidade, “priorizando o processo, o percurso, mais do que os resultados, a partir da relação dialética em que as crianças caminham transformando a paisagem ao mesmo tempo em que são transformadas por ela”, como declara Dilma Ângela da Silva (2020, p. 50)SILVA, D. A. Andarilhar e perceber a cidade com crianças da educação infantil: cortejo, arte e mediação cultural. 2020. 148 f. Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2020..

Ao retomar este trabalho que acompanhei de perto, reafirmo o intenso aprender com alunos e orientandos e encontro fios que têm tecido também minha trajetória educadora, que tem, cada vez mais, se preocupado com os contextos que se expandem para além de nossas próprias barreiras físicas e culturais. A leitura de mundo que precede a leitura das palavras, como nos ensinou Paulo Freire (1987)FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1987., também alimenta o estar no mundo e descortiná-lo cotidianamente para nós e nossos aprendizes.

Considerações Provisórias

Três ações. Ao trazê-las, ampliam-se possibilidades da práxis que une teoria e prática. No testemunho do vivido estão engendrados afectos, perceptos e conceitos (DELEUZE; GUATTARI, 1992DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Percepto, Afecto e Conceito. In: DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é filosofia? São Paulo: 34, 1992. p. 211-255.) provocados pelo usufruir da casa e da cidade como espaços plurais. O engajamento de estudantes evidencia que a experiência alimentou a ação, pois havia também um envolvimento afetivo com o espaço particular e com o espaço público, atento também ao outro. Perceptos foram instigados no exercício de perceber, criar, fotografar, com articulação de conceitos já trabalhados ou que ainda poderiam ser mais desenvolvidos.

No caminhar a/r/tográfico, as considerações são e ainda serão provisórias na potência recursiva e reflexiva de nossa ação mediadora que “há de ser um convite à aesthesis, desarmando a anestesia que leva à indiferença” (MARTINS, 2018MARTINS, M. C. Mediação. In: INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS. Caderno da Política Nacional de Educação Museal – PNEM. Brasília, DF: IBRAM, 2018. p. 84-88. Disponível em: https://www.museus.gov.br/wp-content/uploads/2018/06/Caderno-da-PNEM.pdf. Acesso em: 21 set. 2021.
https://www.museus.gov.br/wp-content/upl...
, p. 85). Um convite sempre aberto a rever, reinterpretar e aprender ampliando diálogos na multiplicidade de camadas interdisciplinares disparadas pela arte.

“O modo estético do pensamento é bem mais do que um pensamento da Arte. É uma ideia do pensamento, ligada a uma ideia da partilha do sensível”, como nos ensina o filósofo Jacques Rancière (2009, p. 68)RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: Estética e política. São Paulo: 34, 2009.. Nestes difíceis tempos de pandemia, a casa e a cidade, a natureza e as amizades nos alimentam em diálogos que também fortalecem encontros sensíveis com a vida!

Agradecimentos

Um especial agradecimento a todas(os) as(os) estudantes do Curso de Pedagogia que vivenciaram os projetos na minha disciplina e no Projeto de Ambiências Educadoras juntamente com os professores e pesquisadores que dele fizeram parte, além de Dilma Ângela Silva que tive a honra de orientar em seu Mestrado.

  • Financiamento

    Não se aplica.
  • MackPesquisa
    Grant no.: 201018

REFERÊNCIAS

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  • CARDOSO, S. O olhar viajante (do etnólogo). In: NOVAES, A. (org.). O olhar São Paulo: Companhia das Leras, 1988. p. 347-360.
  • CLARK, L. Catálogo Barcelona: Fundació Antoni Tàpies, 1997.
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    » https://www.museus.gov.br/wp-content/uploads/2018/06/Caderno-da-PNEM.pdf
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Editado por

Editoras Associadas:

Elizabeth dos Santos Braga e Silvia Cordeiro Nassif

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    06 Maio 2020
  • Aceito
    11 Dez 2021
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