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O DESENHAR DAS CRIANÇAS* * NT: Embora as referências acessadas indicassem que o texto Kinderzeichnen, de Friedl Dicker-Brandeis, fora escrito originalmente em alemão (Fig. 1), o mesmo parece ter sido transcrito a partir de uma palestra por apresentar frases características da oralidade, trazendo determinados traços dessa, como orações sem conjunção. Na tradução, em alguns momentos, foi preciso realizar um trabalho de recriar as frases para que fizessem sentido no português. Quando viável, optou-se por deixá-lo o mais próximo possível do original, desde que a tradução para o idioma final fizesse sentido. Figura 1 Transcrição do Kinderzeichnen – texto original em alemão.

CHILDREN’S DRAWINGS

As aulas de desenho não pretendem fazer com que todas as crianças se tornem pintoras, mas sim levá-las a ser criativas, independentes para se desenvolver melhor ou buscar fontes de energia, encorajando a fantasia, fortalecendo o pensamento crítico próprio e a capacidade de observação.

O ensino de desenho, como era antes tratado, carrega uma grande culpa pelo empobrecimento da fantasia e pelo esgotamento da criatividade artística das pessoas jovens.

Os melhores aliados contra o produto pronto, contra a imaginação estética enrijecida e o mundo estagnado dos adultos, quando esses são despertados dos seus hábitos, são os verdadeiros artistas, as crianças elas mesmas.

No caso de uma criança com menos de dez anos — entenda-se aqui o nível de maturidade e não a idade —, o professor deve se preocupar principalmente para que ela não seja importunada no seu brincar e nas suas experiências. Ensiná-la não faz sentido, pois, nessa idade narcisista, ela responde a cada interferência fugindo da realização da atividade. Nessa idade, desenhar e pintar são os seus principais meios de expressão.

A criança acima de 10 anos começa a ficar insatisfeita com seus modos de expressão; o ambiente mais amplo ganha sentido para ela — não mais como aquele que existia em sua fantasia, mas como é na realidade —, e só então pode ser instaurado o “ensino da forma”, que não deve, porém, encobrir a sua espontaneidade expressiva. As técnicas de desenho e pintura devem ser apresentadas à criança conforme suas necessidades. Os elementos com os quais ela opera são por natureza os mesmos da “grande arte”, na medida em que leva a criança, por si, a ter consciência deles, abrindo o caminho da “grande arte” para ela: tamanhos, relações entre tamanhos (proporção), ritmo, claro, escuro — escultura — espaço, cor e o valor de expressão do exagero, da sutileza e da composição.

As ideias das crianças não devem ser dirigidas. Isso não somente seria uma renúncia à possibilidade de penetrar seu ideário, como também perder-se-ia a visão geral sobre o respectivo grau de sua receptividade, habilidade e sua condição psíquica. Caso o pedagogo tenha suficiente experiência para traduzir o objeto concreto para a ideia original, os desenhos oferecerão insights importantes e pistas sobre a vida interior das crianças. Senão, é melhor que ele confie em suas observações cotidianas. Embora a criança aceite cada expansão do seu mundo de ideias com animação e alegria, essa expansão não deve ser imposta. Conhecimentos trazidos à criança em um momento inadequado, acima de sua capacidade ou que sejam introduzidos no instante em que ela esteja ocupada com outros interesses, serão sentidos como uma ruptura no seu mundo e ela reagirá a eles com falta de vontade ou insucesso.

A dificuldade constituída, para o professor, pela falta de meios técnicos, transforma-se em um meio pedagógico quando aquele trava contato com as crianças. O começo é aqui o mais difícil, mas a pobreza dos materiais artísticos é algo que infelizmente continua.

É melhor ensinar um número maior de crianças do que um grupo menor ou apenas individualmente. Mais alunos animam uns aos outros, tornam o ambiente mais estável e quase sempre conseguem impor os bons sobre os ruins. As crianças se beneficiam das ideias umas das outras. Já que o professor não consegue sobrecarregar as crianças com a sua atenção, elas ficam mais voltadas para si mesmas e para as outras. Isso cria algo que mais tarde desempenhará um grande papel na vida, ou seja, o trabalho em grupo — e não indivíduos concorrentes —, visando uma realização coletiva. Por meio de intenso esforço coletivo, e mesmo com recursos pessoais, o grupo e os indivíduos alcançam melhores resultados. Sob essas condições, estão prontos para lidar com a escassez de materiais, a restringir-se, ajudando uns aos outros e se integrando.

A magnífica Casa VI1 1 A Casa VI era o alojamento dos meninos em Terezín. quer pintar. Há bem poucos pincéis, potes de tinta, superfícies para pintura. Os meninos que se juntaram a este grupo (independentemente do programa em que o propósito é pintar) devem saber que todos terão a oportunidade de pintar, não importando quão talentosos sejam; o próprio grupo propõe a sua divisão, embora isso signifique que 3/4 deles terá que esperar. Eles reconhecem a prioridade daqueles que se interessam apaixonadamente pela pintura, estão dispostos a aguardar atrás deles e se ocupam ajudando a preparar o material, contentando-se em misturar as tintas. Eles encontram por si, ou por uma sugestão, outro lugar para as suas variadas habilidades: um organiza uma lista de escala dos grupos; outro gerencia o material e quer ser responsável por isso. Aquele quer manter um diário de pintura, enquanto outros querem apenas pintar ou fazer esboços no papel. Outro está até mesmo pronto para vasculhar e adquirir material. Todas essas atividades não devem ser menos valorizadas; os meninos devem saber que todos terão sua vez.

O número de meninos dobra. Tantos quanto insuficientes pincéis têm que esperar por eles, que os emprestam entre si. Antigamente, costumavam desaparecer nessa casa papéis e papelão. Atualmente, todos os meninos são totalmente confiáveis (parece ser possível, aqui, alocar os mais talentosos para liderar o grupo artisticamente mais fraco).

As folhas, imaginadas como projetos, foram criticadas coletivamente e as melhores escolhidas com objetividade. As crianças, aquelas que trabalham, logo perdem a atitude de crítica cruel e maliciosa. Pode-se extrair muita coisa útil da alteridade e da vida dos que são diferentes e visivelmente não bem-sucedidos. As falhas, ou melhor, as partes insatisfatórias da tarefa dada, dão margem a novas ideias. Ao reconhecer a similaridade não com aquilo que foi pretendido, mas com o acidental, enriquece-se a amplitude de formas de todos. Elas tornam a criança crítica, mas não intolerante as suas próprias tentativas e às dos outros.

Como me perguntam frequentemente sobre o sentido dos exercícios rítmicos, eu quero aqui especialmente motivá-los. Eles se revelam (um resultado paralelo, eles devem submeter, de forma alegre, a mão e toda a pessoa do pintor à sua vontade) como um meio apropriado para transformar uma horda num grupo de trabalho pronto para se dedicar cooperativamente a uma causa, ao invés de se perturbarem mutuamente, culminando em última instância na destruição do seu trabalho. Ademais, isso tira as crianças dasua forma costumeira de pensar e de ver (veremos logo mais o quanto isso é necessário) e as coloca diantede uma tarefa que elas podem realizar com alegria e fantasia e ainda com grande precisão. O cumprimento deuma tarefa gera satisfação, e a concentração necessária para completar a tarefa torna-a capaz de acessar os exercícios para outras impressões. É obrigatório que a impressão seja exatamente auditiva? Não. Basta que seja simples, clara e deve ser variável. Além disso, com essa tarefa, todas as crianças começam do mesmo ponto de partida. O movimento não apenas torna a tarefa divertida, mas também as sintoniza.

Quanto entrave um hábito pode mostrar, isso vivenciei trabalhando com uma classe de meninas de 10 a 12 anos. Muitas delas brincavam com grandes bebês de celuloide. Um dia resolvemos fazer bonecas simplesmente para fazer alguma coisa em conjunto, por exemplo, brincar de teatro. As meninas tinham inibições muito fortes, não achavam nada legal, todas só queriam fazer princesas, estavam insatisfeitas com tudo o que faziam. Finalmente elas me mostraram os bebês — gordos, lisos, de cílios longos, maquiados. Bem, é claro que as suas bonecas de pano não conseguiriam competir. Sugeri então que elas as confeccionassem, com os objetos “feios” que encontraram, uma figura do Putzkolonne2 2 Putzkolonne foi o termo usado em Terezín para a brigada de limpeza, que trabalhava na limpeza de oficinas, alojamentos e banheiros. , e, logo depois, com bom humor, criaram então um Wassermann3 3 Wassermann, literalmente “homem d’água”, é uma figura mitológica da cultura eslovaca e germânica. Trata-se de um ser humanoide que é capaz de transmutação. , cozinheiras, um mágico, animais, bem como um boneco do serviço de banheiro.

A beleza sem contraste, sem conteúdo, aceita sem crítica, ao estilo antiquado4 4 O termo “anno Schnee” é uma expressão austríaca que se refere a algo antigo, antiquado ou ultrapassado. Significa literalmente, o ano da neve. rebuscado e pomposo” de [Hans] Makart5 5 Hans Makart (1840–1884) foi um artista plástico austríaco oitocentista que montou um estúdio que preencheu com suas enormes pinturas, além de inúmeros objetos de decoração incluindo tapeçarias, móveis de antiquários, peles de animais, antiguidades, vasos enormes com ramos secos e plumas, a ponto de não caber mais nada no espaço (ANDERSON, 2015). Seguindo esse estilo (Makartstil), ele desenhou outros interiores no final do século para empresas comerciais ou para membros da burguesia de Viena, especialmente os novos moradores das reformadas casas do Ringstrasse de Viena. Para alguns, o Makartstil representava uma experiência de fruição para o olhar, mas para os artistas que buscavam a elegância da linha na sua simplicidade, a eliminação do supérfluo na cor e na forma, como Friedl, que estudou na Bauhaus, o entulho desordenado de objetos destoava do caminho da arte moderna. assombra e inibe ainda hoje e aqui.

Tudo que se opõe ao produto pronto, mesmo ao preço da temporária perda das ricas formas, da beleza não experienciada, é ajuda nesta aula. (Primeiramente, a distância da casa dos pais). Elternhaus [campo de Terezín]. A arte popular, a arte primitiva, a pintura moderna, a escultura e, graças ao próprio discernimento, através dos antigos e compreendidos mestres.

Onde uma força reflete sobre si mesma e tenta existir por conta própria sem medo do ridículo, ali brota uma nova fonte da criatividade, e o intento das nossas aulas de pintura tem este objetivo.

Agradecimentos

Agradecemos ao Tomáš Krákora, coordenador do arquivo do Museu Judeu de Praga, pelo envio do link para o documento digitalizado na coleção do Museu. Na Fig. 1, o texto foi redigitado, com indicação de “sic” nas palavras com erros de datilografia. Ao redigitar o texto datilografado na imagem digitalizada, nota-se que a máquina de datilografia utilizada não contém a tecla para o Eszett (ß) e para Umlaut em vogais maiúsculas como “Ü”. Foram digitados respectivamente “ss” e “Ue” em substituição dos símbolos ausentes. Fonte: https://collections.jewishmuseum.cz/index.php/Detail/Object/Show/object_id/76332

Notas

  • 1
    A Casa VI era o alojamento dos meninos em Terezín.
  • 2
    Putzkolonne foi o termo usado em Terezín para a brigada de limpeza, que trabalhava na limpeza de oficinas, alojamentos e banheiros.
  • 3
    Wassermann, literalmente “homem d’água”, é uma figura mitológica da cultura eslovaca e germânica. Trata-se de um ser humanoide que é capaz de transmutação.
  • 4
    O termo “anno Schnee” é uma expressão austríaca que se refere a algo antigo, antiquado ou ultrapassado. Significa literalmente, o ano da neve.
  • 5
    Hans Makart (1840–1884) foi um artista plástico austríaco oitocentista que montou um estúdio que preencheu com suas enormes pinturas, além de inúmeros objetos de decoração incluindo tapeçarias, móveis de antiquários, peles de animais, antiguidades, vasos enormes com ramos secos e plumas, a ponto de não caber mais nada no espaço (ANDERSON, 2015ANDERSON, E. Hans Makart’s Technicolor Dream House: Decoration and Subjectivity in NineteenthCentury Vienna. West 86th: A Journal of Decorative Arts, Design History, and Material Culture, NovaIorque, v. 22, n. 1, p. 3-22, 2015. https://doi.org/10.1086/683078
    https://doi.org/10.1086/683078...
    ). Seguindo esse estilo (Makartstil), ele desenhou outros interiores no final do século para empresas comerciais ou para membros da burguesia de Viena, especialmente os novos moradores das reformadas casas do Ringstrasse de Viena. Para alguns, o Makartstil representava uma experiência de fruição para o olhar, mas para os artistas que buscavam a elegância da linha na sua simplicidade, a eliminação do supérfluo na cor e na forma, como Friedl, que estudou na Bauhaus, o entulho desordenado de objetos destoava do caminho da arte moderna.
  • Número temático organizado por: Lucia Reily e Selma Machado Simão
  • *
    NT: Embora as referências acessadas indicassem que o texto Kinderzeichnen, de Friedl Dicker-Brandeis, fora escrito originalmente em alemão (Fig. 1), o mesmo parece ter sido transcrito a partir de uma palestra por apresentar frases características da oralidade, trazendo determinados traços dessa, como orações sem conjunção. Na tradução, em alguns momentos, foi preciso realizar um trabalho de recriar as frases para que fizessem sentido no português. Quando viável, optou-se por deixá-lo o mais próximo possível do original, desde que a tradução para o idioma final fizesse sentido.
    Figura 1
    Transcrição do Kinderzeichnen – texto original em alemão.
  • Tradução: Ireô Lima (ireolima@gmail.com)

REFERÊNCIA

  • ANDERSON, E. Hans Makart’s Technicolor Dream House: Decoration and Subjectivity in NineteenthCentury Vienna. West 86th: A Journal of Decorative Arts, Design History, and Material Culture, NovaIorque, v. 22, n. 1, p. 3-22, 2015. https://doi.org/10.1086/683078
    » https://doi.org/10.1086/683078

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022
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