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O TEXTO LIVRE COMO INSTRUMENTO PEDAGÓGICO NA ALFABETIZAÇÃO DAS CRIANÇAS

TEACHING WORK AND FREINET PEDAGOGY FREE TEXT AS A PEDAGOGICAL TOOL IN CHILDREN’S LITERACY

RESUMO

O presente texto tem como objetivos: apresentar o texto livre, proposto por Célestin Freinet, como instrumento pedagógico relevante no processo inicial de alfabetização das crianças; apontar para a fecunda interlocução de Freinet com Lev Vigotski, tendo em vista sua concepção de instrumento técnico e semiótico; analisar os processos de apropriação da escrita pelas crianças, tomando como base os registros de trabalho realizados durante os dois primeiros anos da escolarização, em uma escola municipal de ensino fundamental, cujo destaque foi o texto livre. Ressaltam-se ainda, nas análises, aspectos da mediação pedagógica ao mesmo tempo em que se procura dar visibilidade a percursos singulares vivenciados pelas crianças nas suas relações com os outros e com a escrita.

Palavras-chave
Pedagogia Freinet; Texto livre; Instrumento técnico-semiótico

ABSTRACT

This text aims to present the free text, proposed by Célestin Freinet, as a relevant educational tool in the initial process of children’s literacy; to discuss Lev Vigotski’s contributions on technical and semiotic instruments in the dialogue with Freinet pedagogy; to analyze children’s writing appropriation processes, based on the records of work carried out during the first two years of schooling, in a municipal elementary school, in which the free text is highlighted. In the analysis, aspects of pedagogical mediation are also emphasized, while seeking to give visibility to singular paths experienced by children in their relations with others and with writing.

Keywords
Freinet pedagogy; Free text; Technical-semiotic instrument

Introdução

Este texto tem como objetivo discutir a proposta de Célestin Freinet sobre o texto livre como instrumento pedagógico no ensino inicial da forma escrita de linguagem apontando para a fecunda interlocução dela com os argumentos de Lev Vigotski sobre os instrumentos técnicos e semióticos. Os dois autores nasceram no mesmo ano, em 1896, o primeiro na França e o segundo na Bielorrússia. Ambos, nas suas condições geográficas e políticas específicas, se dedicaram à educação, foram professores engajados e assumiram o materialismo histórico e dialético como orientadores de suas práticas pedagógicas. Enfrentaram muitas condições adversas de vida, entre elas restrições orgânicas, de saúde: Freinet ficou lesado de guerra, com problemas pulmonares graves; Vigotski conviveu com a tuberculose dos 20 aos 34 anos, quando veio a falecer da doença.

Do ponto de vista da pedagogia, Freinet propõe instrumentos técnicos voltados ao trabalho em sala de aula e argumenta sobre eles. Esses instrumentos conferem às relações entre as crianças e entre professor e aluno lugar de relevância. Ao trazer a cooperação como um princípio de sua teoria, ele explicita a importância do outro, do fazer junto, do fazer com, para que o sujeito possa alcançar novas aprendizagens. Essas ideias vêm ao encontro das teorizações de Vigotski sobre a mediação, a natureza social do desenvolvimento humano, a importância das relações que permeiam o ato de ensinar.

Ao tomarmos como base os registros de trabalho realizados com um grupo de crianças durante os dois primeiros anos do ensino fundamental em uma escola municipal, buscamos, no presente artigo, analisar os processos de apropriação da escrita pelas crianças, colocando em destaque o texto livre como instrumento pedagógico na alfabetização. Ressaltamos nas análises aspectos da mediação pedagógica, ao mesmo tempo em que procuramos dar visibilidade aos percursos singulares vivenciados pelas crianças nas suas relações com os outros e com a escrita.

O texto livre como instrumento pedagógico

Observando sua sala de aula no pequeno vilarejo de Le Bar-sur-Loup, nas primeiras décadas do século XX, após a Primeira Guerra Mundial, o professor Célestin Freinet percebeu que suas crianças pouco se interessavam pelos manuais escolares, chamados por ele de “escolásticos”1. Estavam mesmo atentas a tudo aquilo que acontecia para além dos muros escolares: o voo das borboletas, o andar lento dos caramujos do jardim, a vida que pulsava lá fora.

Freinet resolveu então produzir textos com as crianças sobre os passeios e, ao trazer a imprensa para a sala de aula, viu a possibilidade de as crianças escreverem seus próprios textos. “A minha feliz descoberta – mas muito natural e eivada de bom senso – foi, nessa fase convencer-me de que, diga-se o que disser, a criança era capaz de produzir assim textos válidos, dignos de influenciar a nossa escolástica” (FREINET, 1975FREINET, C. As técnicas Freinet da escola moderna. Lisboa: Editoral Estampa, 1975., p. 26).

Pensado, portanto, em dar vez e voz à criança, o texto livre surgiu como proposta para possibilitar a livre expressão da criança por meio da escrita.

Como instrumento pedagógico, o texto livre marca a sua oposição às redações escolares, tão banalizadas nas escolas tradicionais, escritas de forma obrigatória pelas crianças, que muitas vezes se sentem tolhidas e até acuadas ao produzi-las, tornando-se meras reprodutoras das histórias contidas nos manuais escolares. Na pedagogia do bom senso, Freinet apontava para a importância de a criança dizer o que tem a dizer:

Precisam sentir que encontraram, em você e na sua escola, a ressonância de falar com alguém que as escute, de escrever a alguém que as leia ou as compreenda, de produzir alguma coisa de útil e de belo que é a expressão de tudo o que trazem nelas de generoso e de superior

(FREINET, 2004FREINET, C. Pedagogia do bom senso. São Paulo: Martins Fontes, 2004., p. 129).

Nesse sentido, o texto livre pretende dar a ver o que a criança traz de suas experiências de vida para a sala de aula, seja qual for essa experiência. Trata-se de um lugar da autoria, da escuta sensível e também de (re)existência. Por ele se explicita o real vivido, especialmente por aquelas crianças que vivem em situação de maior precariedade. A possibilidade de escolher – o que, como e quando escrever – abre às crianças um espaço mais flexível de produção de texto, convidando-as a falar daquilo que faz sentido para elas, suas vidas, suas vivências. O texto livre é um instrumento de escrita que prioriza a comunicação, possibilitando à criança a experiência e a elaboração de por que e para que escrever.

Apesar de a proposta de Freinet ter sido gestada nos anos de 1920, podemos perceber como as condições diante das quais o pedagogo se posiciona ainda persistem ao longo do século XX. Nas palavras de Smolka (2003, p. 112)SMOLKA, A. L. B. A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como processo discursivo. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2003.:

[A] escola tem ensinado às crianças a escrever, mas não a dizer – e sim, repetir – palavras e frases pela escritura; não convém que elas digam o que pensam, que elas escrevam o que dizem, que elas escrevam como dizem (porque o “como dizem” revela as diferenças) de classe, geográficas, etc.

Militante e engajado na luta por uma escola para o povo, Freinet defendia que “este instrumento (Texto Livre) permite que os alunos das camadas populares se apropriem da escrita, da competência de escrever com suas próprias palavras, vivendo uma situação real de trabalho, não reificado” (OLIVEIRA, 1995OLIVEIRA, A. M. Célestin Freinet: raízes sociais e políticas de uma proposta pedagógica. Rio de Janeiro: Papéis e Cópias de Botafogo e Escola de Professores, 1995., p. 49). Ou seja, atribuía ao texto livre caráter libertário: impulsionar as classes populares a uma ruptura com as amarras sociais que lhes são impostas, tendo as palavras como arma. “A palavra é uma porção de nós próprios, e a mais nobre, que lançamos para frente, ou para cima, para procurar um ponto de apoio como ressonância” (FREINET, 1977FREINET, C. Método natural III: a aprendizagem da escrita. São Paulo: Estampa, 1977., p. 164).

Ao produzir seu texto, a criança produz a si mesma e revela sua individualidade. É sobretudo nesse aspecto que o texto livre se mostra profundamente libertador: permite a afirmação de outra visão de mundo, a do oprimido. Por ser autenticamente pessoal, essa afirmação não é menos social, pois, na concepção marxista, todo ser humano se constitui também na singularidade do seu ser, num feixe de relações sociais que ele reflete e exprime (OLIVEIRA, 1995OLIVEIRA, A. M. Célestin Freinet: raízes sociais e políticas de uma proposta pedagógica. Rio de Janeiro: Papéis e Cópias de Botafogo e Escola de Professores, 1995., p. 148). Em sua obra intitulada Texto livre, Freinet (1976)FREINET, C. Texto livre. Lisboa: Dinalivro, 1976. afirma que os textos, o pensamento e as obras das crianças têm direitos de cidadania, conferindo, portanto, à palavra escrita, à alfabetização, o estatuto de direito.

Instrumentos pedagógicos, instrumentostécnico-semióticos

As técnicas e os instrumentos pedagógicos propostos por Freinet – livro da vida, jornal de parede, aula passeio, texto livre etc. – que surgiram da vivência do autor com seus alunos nos mobilizaram no sentido de aprofundar a interlocução com Vigotski, na busca de adensar a compreensão de sua contribuição teórica a respeito do estatuto do instrumento e do signo no desenvolvimento humano.

Se Freinet nos inspira ao descrever e apresentar elementos para a organização da prática pedagógica, os estudos e reflexões de Vigotski convidam-nos a indagar sobre o que ocorre na apropriação desses instrumentos, ou seja, move-nos no sentido de atentar não só para o que professor e crianças fazem com esses instrumentos, mas orientam nosso olhar para o que esses instrumentos fazem com professor e crianças nas relações de ensino. De outro modo, podemos perguntar: como esses instrumentos pedagógicos que integram a prática dos professores se tornam constitutivos da atividade das crianças, dos modos de participação das crianças nas práticas escolares? Como tais instrumentos viabilizam modos de apropriação da cultura, de elaboração do conhecimento historicamente produzido?

De fato, como já apontado:

O uso de instrumentos é um dos assuntos mais relevantes na obra de Vigotski (1995)VIGOTSKI, L. S. Obras escogidas. Madri: Visor, 1995. v. 3.. O caráter basilar atribuído a este tema deve-se à função transformadora possibilitada não apenas pela utilização, mas pela criação de artefatos como meio e modo de apropriação da natureza e constituição da atividade simbólica, viabilizada pela produção de signos. Assim, na filogênese do homem, a (condição de) criação de instrumentos técnicos e semióticos apresenta-se como definidora e constituidora dos aspectos humanizadores da espécie

(SMOLKA et al., 2012SMOLKA, A. L. B. et al. Condições de desenvolvimento humano e práticas contemporâneas: as relações de ensino em foco. Programa Fapesp – Projeto Melhoria do Ensino Público. Relatório Final. Campinas, 2012.).

Ao produzir as condições de sua própria existência, o homem produz-se, portanto, nessas condições. Desse modo, a criação e o uso de instrumentos caracterizam a atividade social do ser humano e integram a cultura como produto e produção da vida social (VIGOTSKI, 1995VIGOTSKI, L. S. Obras escogidas. Madri: Visor, 1995. v. 3.; PINO, 2000PINO, A. O social e o cultural na obra de Vigotski. Educação e Sociedade, v. 21, n. 71, p. 45-78, 2000. https://doi.org/10.1590/S0101-73302000000200003
https://doi.org/10.1590/S0101-7330200000...
). Há, nesse processo, uma intrínseca relação entre produção material (ferramentas) e produção simbólica (signos), que se mostra interconstitutiva das/nas ações humanas.

Como podemos compreender as técnicas ou os instrumentos pedagógicos propostos por Freinet em diálogo com as elaborações vigotskianas? Que relações podemos estabelecer entre os instrumentos pedagógicos de Freinet e os instrumentos técnicos e semióticos, tais como concebidos por Vigotski? Como esses instrumentos – pedagógicos, técnico-semióticos – resultantes da ação e da produção humana atuam sobre o funcionamento mental, o comportamento, as formas de atividade e ação das crianças? Como afetam as funções psíquicas, suas especificidades, suas (inter)relações?

Sem pretendermos dar conta de responder a todas essas questões, mas indicando um fecundo trabalho investigativo que fica como indicação de pesquisa posterior, compartilhamos aqui três histórias de alfabetização de crianças que trazem indícios do diálogo proposto com Freinet e Vigotski. Procuramos ressaltar, nos relatos analíticos, o papel do instrumento pedagógico do texto livre, bem como as formas de mediação possíveis, a importância do outro e do signo na relação de ensino. Levando-se, ainda, em conta que o lugar de produção do texto livre é a escola, outras questões que se colocam são: como mobilizar as crianças para a escrita? Como encorajá-las a escrever no processo inicial, quando elas ainda não sabem?

A proposta do texto livre no processo inicial dealfabetização das crianças

As três histórias aqui narradas fazem parte da investigação realizada pela professora pesquisadora, uma das autoras do presente texto, e são baseadas em seus registros diários da produção cotidiana das 25 crianças da turma de uma escola pública municipal. Ela acompanhou o desenvolvimento e os modos de apropriação da escrita de todas e de cada uma, pelo período de dois anos letivos.

A professora organizava seu trabalho pedagógico com base nas ideias de Freinet e Vigotski. Ela faz parte do movimento Freinet há 20 anos e, antes de ingressar nessa escola, já tinha experiência de oito anos em uma escola Freinet. Outros instrumentos, como roda de conversa, livro da vida, correspondência interescolar, aula-passeio, jornal de parede, plano de trabalho, fichário autocorretivo, bem como a organização da sala em ateliês de trabalho, compõem o cenário da sala de aula aqui investigada. Optamos por enfatizar no presente artigo o instrumento texto livre, mas cabe destacar que a prática pedagógica pautada na pedagogia Freinet afeta e impacta todo o trabalho que discutiremos a seguir.

Para introduzir o texto livre com as crianças do 1º ano, ela planejou com sua parceira de trabalho do 5º ano rodas de leitura entre as crianças de ambas as turmas, de maneira que elas pudessem compartilhar os textos já produzidos.

Cada criança tinha seu caderno de texto livre e era incentivada a escrever nele nos momentos de ateliê. As rodas mobilizaram as crianças em processo de alfabetização a produzir seus próprios textos. Desde as primeiras tentativas de escrita das crianças e com base na “leitura” ou no relato oral da criança sobre o seu próprio texto, a professora procedia à reescrita do texto conforme as normas da convenção. A criança era convidada a copiá-lo posteriormente. Aos poucos, as crianças do 1º ano passaram a também ler seus textos nas rodas. Questões como autoria, escolha do título, a experiência vivida registrada por escrito, a própria elaboração da escrita etc. eram comentadas nessas rodas, como podemos observar no diálogo2 transcrito a seguir, que aconteceu após a leitura de texto livre feita por Paulo:

  • Sofia (5º ano): De onde você tirou esse texto?

  • Paulo (1º ano): Eu fiz aqui mesmo...

  • Ana (professora): Mas de onde vieram as ideias do seu texto?

  • Paulo: Ah! Eu pensei com o cérebro!

  • Ana: Pensou já é um texto?

  • Wellington (5º ano): Pensou, pensou, pensou mais um pouco e aí vira um texto.

  • Ana: Como assim?

  • Wellington: Primeiro tem que pensar, aí você vai escrevendo o texto na mente, vê como fica melhor e aí escreve no papel...

Como nasce o texto? De onde vem a ideia? No momento da roda, pelo questionamento do outro, o aluno do 1º ano depara com a possibilidade de pensar sobre essa elaboração, sobre sua autoria, suas ideias e sua escrita.

As produções das crianças eram compartilhadas também em álbuns e no jornal escolar, ampliando os sentidos dos textos e o diálogo com outras crianças da escola. O olhar investigativo da professora, atento às nuanças e à heterogeneidade dos modos de apropriação da escrita pelas crianças, articulava-se às mais diversas formas de mediação, como veremos a seguir3 3 Mais informações sobre as crianças, a sala de aula e o trabalho da professora podem ser encontradas em sua dissertação de mestrado (BUSCARIOLO, 2015). .

As tensões entre gestos e palavras: interações, (in)comunicações e interpretações

Giovana chegou ao 1º ano com a escrita “pré-silábica”4 4 Apesar de a professora em questão assumir radicalmente a proposta pedagógica Freinet, a perspectiva construtivista era referência na rede municipal de ensino, norteando a organização das crianças com base nos níveis de escrita apontados por Emilia Ferreiro e Ana Teberosky. O diálogo entre posicionamentos teóricos e metodológicos indica que o movimento de elaboração do conhecimento da escrita pelas crianças implica um complexo de fatores que vai muito além da classificação estabelecida pelas referidas autoras da psicogênese da língua escrita. , misturando letras e números em suas produções. Ela é a terceira filha de uma família de quatro irmãos. Foi uma das últimas crianças da turma a consolidar o processo de alfabetização, teve um processo demorado e difícil. Sua história é marcada, principalmente, por sua relação com os irmãos mais velhos: Jhane e Jeferson, que são deficientes auditivos. São eles os responsáveis por cuidar de Giovana enquanto ela não está na escola. Eles também a auxiliam na realização das lições de casa, já que sua mãe não sabe ler nem escrever. É Jhane, a irmã mais velha, quem mais a orienta com relação aos trabalhos da escola. Muitas vezes, ela faz o trabalho por Giovana. A professora tentou explicar que não seria necessária a ajuda da irmã e que Giovana poderia fazer “do jeito dela”, mas sem muito sucesso.

Demorou mais de um ano para que a professora se atentasse ao fato de que suas dificuldades no tocante à alfabetização estavam ligadas a, em casa, Giovana ter poucas referências sonoras, já que os irmãos que a acompanham não falam, a mãe passa o dia trabalhando e o irmão mais novo ainda é um bebê. Era comum que, durante suas tentativas de escrita, mostrasse a letra de determinada palavra que queria escrever desenhando-a no ar, fazendo gestos, esforçando-se ao máximo para se fazer entender, o que nem sempre era possível.

Em seus estudos acerca da pré-história da linguagem escrita, Vigotski afirma: “O gesto é o signo visual inicial que contém a futura escrita da criança, assim como uma semente contém um futuro carvalho. Como se tem corretamente dito, os gestos são a escrita no ar, e os signos escritos são, frequentemente, simples gestos que foram fixados” (VIGOTSKI; LURIA; LEONTIEV, 1998VIGOTSKI, L. S.; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone, 1998., p. 141, grifo nosso).

Como podemos observar, o processo de aprendizagem de Giovana mostra a ligação entre o sinal escrito e o gesto – gesto que significa, que auxilia na compreensão dessa linguagem escrita, gesto como tentativa de representação, gesto que atribui sentido. O gesto de desenhar as letras no ar faz com que Giovana vá, pouco a pouco, aprendendo as letras. Gesto que, de fato, antecede a escrita.

Na Fig. 1 temos um texto livre produzido no início do 1º ano: as letras ainda estavam bem soltas no papel. A dificuldade não se limitava à dimensão sonora da escrita, e sim se estendia à organização topográfica do texto, que, para ela, se revelava um desafio, o que é comum nas produções das crianças que estão começando o processo de alfabetização.

Figura 1
Produção de Giovana, março de 2012.
Figura 2
Texto de Giovana, setembro de 2012.

Depois de escrever “do seu jeito”, Giovana recorreu, como de costume, à intervenção da professora, que se dá por meio da reescrita. Nesse processo de reescrita, a criança conta o que escreveu. A professora explicita para ela que não consegue ler todos os “jeitos de escrita”, que os alunos estão aprendendo e precisam ajudá-los a descobrir, lendo/contando suas histórias, para que possam reescrevê-las de uma maneira que todos possam compreender. Constrói-se, assim, uma relação de confiança, para que a criança se sinta segura em explicitar suas hipóteses sem medo ou cobranças. Depois da reescrita, as crianças copiam, logo nas linhas abaixo, seu próprio texto.

É sabido que a aprendizagem da língua escrita necessita de diversos aspectos, entre eles a compreensão da importância da língua em funcionamento, seus usos sociais e, também, as relações existentes entre as unidades sonoras da palavra e sua grafia, a consciência fonológica. No caso de Giovana, vemos que essa relação entre a representação gráfica da palavra e seu som ficava bastante truncada, apesar de o sentido social da escrita estar presente.

Ao perceber essa condição concreta da vida de Giovana, de ter como referência o gesto e não a dimensão sonora da escrita, foi necessária uma reorganização do fazer da professora em sala de aula; fez-se preciso repensar como chegar à criança, verbalizando todas as palavras que queria escrever, dando ênfase ao som ao pronunciar as palavras para ela, orientando-a a pensar nesse som, a aprender a ouvir.

A organização da sala em ateliês possibilitou que a professora estivesse mais perto, se sentasse ao lado de Giovana para fazer com ela. Enquanto a professora trabalhava com ela e com outras crianças que estavam com maior dificuldade, num pequeno grupo de quatro ou cinco, os demais alunos estavam envolvidos em outros ateliês, que propiciavam um trabalho de maior autonomia, tendo os colegas como parceiros de trabalho.

Essas relações ofertadas pelo trabalho em ateliês explicitam um ponto fundamental na pedagogia Freinet: o trabalho cooperativo. Quem sabe mais ensina a quem sabe menos. Diferentemente dos modelos tradicionais que priorizam a competição, essa proposta convoca a criança a trabalhar com o amigo. Outro aspecto que podemos destacar com base nas relações estabelecidas no trabalho em ateliês pelas crianças vem ao encontro dos estudos de Vigotski: a passagem do desenvolvimento proximal ao desenvolvimento real faz-se por interação humana. Assim, a criança que “sabe mais” ajuda o colega nessa passagem, faz essa mediação, impulsionando o seu desenvolvimento.

A Fig. 2 mostra uma produção de Giovana feita no ateliê de texto livre em setembro de 2012. É interessante observar que, um semestre após seus primeiros tateios sobre a aprendizagem da língua escrita, suas produções ainda não trazem grandes avanços no que se refere à base alfabética da escrita. Seus escritos pautam-se na repetição de letras, na escrita de letras desconectas. No começo do texto, aparece, porém, o nome da professora, cuja grafia talvez tenha sido memorizada por ela.

O que marca a diferença entre a primeira escrita apresentada e a da Fig. 2 é a quantidade de letras que a criança usa para escrever. Inicialmente, Giovana acreditava que, para escrever, precisava de muitas letras; na produção a seguir, no entanto, podemos notar que ela usa poucas letras para expressar sua ideia, começando a perceber que a escrita tem relação com os sons, mudança que indica aproximações com a escrita convencional.

Esse tipo de produção assemelha-se às escritas de crianças ainda no início do processo de alfabetização, apesar de no caso de Giovana esse texto ter sido elaborado quase no fim do seu 1º ano escolar. O processo de aprendizagem da língua escrita nem sempre é linear, tranquilo; ao contrário, é complexo, permeado pelas relações que a criança estabelece com a linguagem escrita dentro e fora da escola.

Olhar para esse processo evidencia a importância de respeitar, mas também estimular o caminho de cada criança. Entende-se a palavra estimular como o ato de instrumentalizar a criança para que ela adquira elementos técnicos para dominar o código da escrita e possibilitar que tenha acesso à língua em movimento, em uso, para que a escrita faça sentido, para além de trabalhar a base alfabética da língua.

Nesse processo de alfabetização, muitas vezes, a professora observou que a necessidade de Giovana era simplesmente a presença, o estar junto... Vigotski afirma: “A criança domina então alguns ‘saber-fazer’ no campo da linguagem, mas não sabe que os domina” (apud FRIEDRICH, 2012FRIEDRICH, J. Lev Vigotski: mediação, aprendizagem e desenvolvimento – uma leitura filosófica e epistemológica. Tradução: Anna Rachel Machado e Eliane Lousada. Campinas: Mercado de Letras, 2012., p. 107). Ela precisava que se confirmasse sua hipótese. Por exemplo, queria escrever casa e perguntava: “Ca... Ca... É C com A?”. Ou seja, ela já sabia a relação grafema-fonema, mas necessitava da confirmação do adulto, para passar a “saber que sabe”.

Foram muitas as vezes que se fez necessário a professora se sentar ao lado de Giovana para trabalhar. Foi esse trabalho individualizado, o tête-à-tête, que garantiu que a criança terminasse o 2º ano alfabetizada.

A Fig. 3 mostra a elaboração de Giovana com relação à escrita. Podemos observar o avanço. Nessa produção, já se percebe uma elaboração com maior preocupação com a correspondência entre som e letra. Ela passa a perceber que a escrita também representa os sons da fala, o que, para o caso dela, é uma conquista importante.

Figura 3
Giovana, outubro de 2013.

Nota-se, no entanto, que no momento da reescrita, quando ela conta/lê sua história para a professora, ela traz novos elementos, amplia a história que escreveu, fazendo a professora de escriba de suas ideias, já que sozinha não deu conta de colocar no papel tudo o que havia pensado. Esse tipo de situação mostra-se recorrente quando a criança está em processo de alfabetização.

É importante que, nesse momento, a professora verbalize para a criança o que está acontecendo, apontando para ela o que ela escreveu sozinha e que continue a escrita de acordo com os seus dizeres, explicitando esse exercício de ser escriba, informando a criança que parte da história que ela está contando ainda não está no papel.

O tema pode estar apenas esboçado. Então interrogamos a criança para enriquecer a sua ideia e o seu pensamento. Ajudamo-la a exprimir melhor este pensamento, retomando e completando as frases escritas, ordenando-as melhor, embelezando-as se possível. De início, não devemos recear dar aos principiantes, àqueles que por diversas razões se exprimem dificilmente, a nossa grande ajuda de professor, talvez 80 por cento. O essencial é que a criança tenha o sentimento de que o que está escrito são seus pensamentos e as suas próprias ideias, que foi ela que o disse.

[...] O autor irá então copiar cautelosamente no caderno o seu texto preparado desta forma. Lê-lo-á com certo orgulho, e por vezes até com êxito pois, assim preparado e valorizado tem naturalmente mais oportunidade de ser adoptado

(FREINET, 1976FREINET, C. Texto livre. Lisboa: Dinalivro, 1976., p. 38-39).

Nessa produção, podemos perceber avanços, ainda que sutis. No início do texto, temos o “Era uma vez” – expressão bastante utilizada pelas crianças, que se ancoram na leitura dos contos de fadas para criarem suas histórias – escrito pelas letras: “E LA U Z E V”. Ao observarmos a grafia da palavra menina – M N A –, evidencia-se o movimento que Giovana fez de perceber a relação entre a letra grafada e o seu som.

O texto da Fig. 4 foi elaborado durante o ateliê de texto livre. No momento de escritura, Giovana necessitou ainda da confirmação do adulto, mas os questionamentos passaram a ser mais elaborados. Suas dúvidas eram outras: enquanto no início de seu processo ela perguntava se C com A formava CA, nessa última produção ela questionava, por exemplo, se a palavra princesa se escreve com S ou com Z.

Figura 4
Texto livre de Giovana, dezembro de 2013.

O processo de Giovana mostrou-se lento no início, marcado por todas as condições adversas (ou singulares) que afetam sua existência, mas, de repente, com o intervalo de dois meses (se observarmos as datas das últimas produções aqui apresentadas), ela se mostrou alfabetizada. Esse salto qualitativo, porém, que se explicitou em dois meses, é resultado de dois anos de trabalho, de investimento nas potencialidades de Giovana, de respeito ao seu ritmo, da busca por compreender a sua história, da tentativa de entender o melhor caminho a explorar com ela, o que torna o trabalho com alfabetização um projeto para a turma toda e para cada um.

Quero escrever “que nem” a Manu

Emanuelle é a filha do meio de uma família de três irmãos. Mora com a mãe e com seus dois irmãos, um de 19 e outro de 5 anos. Sua mãe é bastante presente e extremamente preocupada com o desempenho escolar da menina. Emanuelle demonstra ser uma criança bastante ansiosa, gosta de ter atenção o tempo todo, traz características de liderança. Em muitas situações, tentava impor suas vontades, e o fato de ter na turma outra menina que já escrevia, enquanto ela ainda não o fazia, a deixava ainda mais ansiosa.

No início do 1º ano, em 2012, suas produções escritas eram as de uma criança que começava seu processo de alfabetização, como mostram seus textos livres (Fig. 5), ambos escritos em fevereiro desse mesmo ano.

Figura 5
Texto livre de Emanuelle, fevereiro de 2012.

Observa-se que, no primeiro mês de trabalho, suas produções já evoluíram. No primeiro texto livre que Emanuelle escreveu, usava muitas letras para exprimir suas ideias – característica comum nesse processo de alfabetização. No segundo texto, apesar de vermos letras desconexas, percebemos o uso repetitivo das letras que compõem o seu nome e podemos notar, também, algumas mudanças em sua escrita: ela já não usa tantas letras para escrever, percebeu que não é o número de letras que faz com que a escrita faça sentido. Esse tipo de descoberta, para a criança que está se alfabetizando, mostra que ela está pensando sobre sua escrita.

Estimulada pela escrita de sua amiga Manuela, Emanuelle sempre escolhia os ateliês de escrita, sobretudo o de texto livre, porque, para ela, não bastava escrever palavrinhas, ela queria escrever texto! E escrevia-o juntamente com Manu.

Faz parte do processo de aprender a ler e a escrever esse movimento de ser ajudado e, também, de ajudar. Tomando como ancoragem teórica a perspectiva histórico-cultural, consideramos o processo de alfabetização como algo compartilhado, que pressupõe o fazer com ajuda, numa relação não apenas entre a criança e a escrita em si, mas sim que passa pelo outro, seja esse outro o professor, seja um colega “mais experiente”.

Com isso, pode-se observar o intenso esforço de Emanuelle para aprender a ler e a escrever, já que ela tinha pressa, queria escrever “igual a Manu”, e isso a impulsionava a tentar: ter o outro como modelo.

Em agosto de 2012 sua escrita já estava alfabética, como podemos observar no texto da Fig. 6.

Figura 6
Texto livre de Emanuelle, agosto de 2012

O processo de alfabetização, tomando como ponto de partida a escritura de texto livre, contribuiu para que Emanuelle se aventurasse pelo mundo da palavra escrita errando, acertando, tornando-se protagonista de sua história de alfabetização e constituindo-se enquanto autora, o que podemos verificar em suas próprias palavras.

Nas palavras de Emanuelle, o texto livre personifica-se: “Ele ensina a gente a escrever”. O instrumento toma o lugar central em seu processo de alfabetização, mas fica evidente que é a relação com o outro proporcionada por esse instrumento que é essencial para se ensinar a ler e escrever: “Quando alguém tá ensinando a gente”. Em sua fala, ela traz o outro – o outro que ensina, que aponta, que nomeia as letras, que responde às inquietações das crianças que estão em processo de elaboração da escrita e necessitam dessa mediação.

Emanuelle remete-se ao contexto de produção de seus textos livres, especialmente na fase inicial, momento em que a criança está tateando acerca da linguagem escrita, aprendendo aspectos das relações fonema-grafema, necessitando do encorajamento do adulto.

Nesses momentos, tentamos garantir, nos ateliês de textos livres, a presença de um adulto ou de um colega mais experiente em relação ao conhecimento da forma escrita de linguagem, para que esse outro possa instrumentalizar a criança que está aprendendo a escrever.

Os textos da Fig. 7 mostram as últimas produções de textos livres de Emanuelle, já no fim do 2º ano, em 2013. Podemos observar avanços significativos no que tange à organização textual, ortografia e gramática e ao conteúdo de suas produções.

Figura 7
Texto livre de Emanuelle, outubro de 2013.

No texto da Fig. 8, constatamos que Emanuelle passa a utilizar letra cursiva. O trabalho com a grafia desse tipo de letra geralmente acontece quando a criança já consolidou o seu processo de alfabetização, pois acreditamos que o esforço para desenhar a letra cursiva seja um trabalho árduo para as crianças que estão ainda aprendendo a escrever.

Figura 8
Texto livre de Emanuelle, novembro de 2013.

E quando a escrita não faz sentido, ou da resistência ao escrever

Marco Antônio é filho único em uma família aparentemente bem estruturada e preocupada com a educação de “Marquinho” – como o garoto é chamado por seus pais. Mora com seus pais e passa as tardes sob os cuidados da avó paterna. Frequentou a escola municipal de ensino infantil situada ao lado da escola desde os 3 anos de idade, como a maioria das crianças da turma, e, por isso, já estava bem integrado ao grupo.

Logo nas primeiras semanas de aula em 2012, a professora que havia trabalhado com Marco no ano anterior procurou a professora atual para uma conversa sobre o comportamento dele. Nessa conversa, ela relatou que o menino se mostrava bastante agressivo com as outras crianças e que, em algumas situações, chegou até a agredi-la. Essas informações já haviam sido mencionadas pelas crianças, apareceram até mesmo em bilhetes de jornal de parede5, demonstrando medo de Marco, e diziam-me para “tomar cuidado com ele”.

A adaptação de Marco na escola não foi muito tranquila. No início, ele chorava muito na hora da entrada, segurava forte no portão para não ter de entrar na escola. Era o pai que sempre o levava e, todos os dias, explicava calmamente ao filho o porquê de ele ter de ir para a escola. Muitas vezes, chegava a ceder às pressões que Marco exercia, levando-o de volta para casa. A postura da professora era sempre de encorajar pai e filho, dizendo que a escola era um lugar bom, que o menino já conhecia quase toda a turma e que tinha muita coisa para aprender.

Na sala de aula, muitas vezes, Marco ameaçava os colegas, mas nunca chegou a agredir ninguém fisicamente, a não ser de modo verbal; nesses rompantes de descontrole, ele proferia inúmeras palavras de baixo calão. Esse comportamento rude foi se minimizando, apesar de o garoto ser enfático em dizer que “odiava a escola” durante todo o 1º ano.

Seu processo de alfabetização também foi mais lento, pois o menino simplesmente se recusava a escrever. Dizia que odiava escrever, que não escreveria, que não queria aprender. Era difícil descobrir quais eram seus conhecimentos sobre a escrita, pois, nas atividades de sondagem6 6 As atividades de sondagem são práticas comuns em turmas de alfabetização, com o intuito de diagnosticar em que nível se encontra a escrita da criança para que o professor possa pensar no trabalho pedagógico a ser realizado com ela. , quando ele não se recusava a fazê-las, usava como estratégia copiar as palavras escritas por algum colega ou mesmo colocava qualquer letra no papel com o intuito de se livrar da tarefa.

Depois de alguns meses de trabalho, Marco escreveu sua primeira frase, “do seu jeito”, com as marcas da hipótese silábica da escrita, de acordo com a classificação de Ferreiro e Teberosky (1999)FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artmed, 1999,. Ele escreveu: “Eu odeio a escola”. E foi mostrar para a professora, com um gesto provocativo.

O que chamou a atenção em suas produções foi o fato de o menino sempre escrever sobre temas que considerava ofensivo, como a raiva da escola, vaca, cocô e pipi. O texto da Fig. 9 foi escrito em parceria com o amigo Leonardo, que na ocasião era o mais experiente em relação à escrita. Era com ele que Marco gostava de trabalhar, quando ainda se recusava a escrever sozinho. Geralmente a ideia era de Marco; Léo servia de escriba. Eles escreviam para ler nas rodas de leitura de texto livre. O fato de poder ler os textos na roda fez com que Marco se animasse a começar a escrever, e os textos sobre vacas e cocôs arrancavam risos dos colegas. O compartilhamento do texto no espaço coletivo fez o caráter ofensivo do texto ganhar outros sentidos, que acabaram animando Marco para outra postura no tocante à escrita e à aprendizagem na escola.

Figura 9
Texto Livre de Marco e Leonardo, novembro de 2013.

Era possível notar certa tentativa de Marco de provocar a professora com a escrita. Ele sempre perguntava: “Prô, eu posso escrever sobre o que eu quiser? Qualquer coisa mesmo?”, como se solicitasse o aval para escrever suas ideias, sabendo que as palavras escolhidas nem sempre eram as aceitas pela escola. Como a proposta de texto livre é sustentada pela ideia de livre expressão, cabia sim o garoto escrever sobre “as vacas” e “os cocôs voadores que explodiam o mundo”, como no texto da Fig. 10, que, apesar de ter uma escrita que necessitava de muitas intervenções para que correspondesse à escrita convencional, já explicitava os seus dizeres.

Figura 10
Texto livre de Marco, fevereiro de 2013.

A escrita escolástica não fazia sentido para Marco, mas, quando ele deparou com a escrita livre de preconceitos, a escrita como forma de dizer o que se tem a dizer – mesmo sabendo que suas palavras não eram as mais aceitas socialmente, que seus dizeres não eram o esperado pela escola –, ele se permitiu escrever e acabou consolidando seu processo de alfabetização na e pela escrita livre.

O texto da Fig. 11 mostra o quanto Marco aprendeu e avançou, trazendo uma escrita bem mais próxima à convencional, embora com alguns erros ortográficos e necessidade de maior organização topográfica de seu texto.

Figura 11
Texto livre de Marco, novembro de 2013.

A escrita é uma atividade criadora e constitutiva de conhecimento. Por isso, a escola deve ser o espaço de criação, de elaboração, da possibilidade de dizer/escrever o que se tem a dizer. Enquanto elabora os seus dizeres pela palavra escrita, enquanto escolhe as letras que deve grafar para comunicar-se, a criança aprende a escrever, alfabetiza-se.

O desafio aqui com Marco foi não só trabalhar a necessidade, mas despertar o desejo de escrever, e isso só aconteceu quando ele deparou com a possibilidade de ler as suas produções para os outros nas rodas de leitura.

A alfabetização não implica, obviamente, apenas a aprendizagem da escrita de letras, palavras e orações. Nem tampouco envolve apenas uma relação da criança com escrita. A alfabetização implica, desde a sua gênese, a constituição do sentido. Desse modo, implica, mais profundamente, uma forma de interação com o outro pelo trabalho de escritura – para quem eu escrevo o que escrevo e por quê? A criança pode escrever para si mesma, palavras soltas, tipo lista, para não esquecer; tipo repertório, para organizar o que já sabe. Pode escrever, ou tentar escrever um texto, mesmo fragmentado, para registrar, narrar, dizer... Mas, essa escrita precisa sempre ser permeada por um sentido, por um desejo, e implica ou pressupõe, sempre, um interlocutor

(SMOLKA et al., 2012SMOLKA, A. L. B. et al. Condições de desenvolvimento humano e práticas contemporâneas: as relações de ensino em foco. Programa Fapesp – Projeto Melhoria do Ensino Público. Relatório Final. Campinas, 2012., p. 69, grifos do original).

Considerações finais

O diálogo que fazemos com Freinet e Vigotski sobre as técnicas pedagógicas e os instrumentos técnicos semióticos contribui para pensar possibilidades para a prática pedagógica. Nas histórias de alfabetização apresentadas, pudemos acompanhar alguns aspectos da elaboração do conhecimento das crianças mediada pela professora – conhecimentos sobre a escrita, sobre a experiência vivida, sobre os próprios instrumentos.

Pensar o caderno de texto livre como instrumento pedagógico, mas pensar também a própria escrita nele produzida como instrumento técnico semiótico, nos ajuda a redimensionar as possibilidades de mediação desses instrumentos, seus sentidos na própria alfabetização, bem como a ressaltar a importância da mediação do professor. A complexidade da mediação implicada nas relações de ensino nos alerta para a relevância de se avançar nas formas de atuação na prática e do incansável trabalho demandado do professor nas condições concretas que ele vivencia.

É nas relações de ensino com as crianças que o/a professor/a elabora (sobre) a sua prática. Exemplar dessa situação é a produção de uma das crianças participantes da turma do 1º ano mencionada (Fig. 12), que nos deixa aqui o convite para continuar refletindo acerca do trabalho de ensinar, o trabalho de alfabetizar, o trabalho de escrever nas con(tra)dições das transformações históricas.

Figura 12
Texto livre Rafael.

Notas

  • 1
    Encontramos muitas vezes a palavra escolástica nos escritos de Freinet. Ele utiliza esse termo como crítica à escola tradicional, que prioriza a repetição, a memorização e o ensino centrado no professor, em que este é o detentor de todo o saber, desconsiderando as necessidades das crianças.
  • 2
    Diálogo transcrito do material videogravado de um momento de roda de leitura de texto livre.
  • 3
    Mais informações sobre as crianças, a sala de aula e o trabalho da professora podem ser encontradas em sua dissertação de mestrado (BUSCARIOLO, 2015BUSCARIOLO, A. F. V. T. O texto livre como instrumento pedagógico na alfabetização de crianças. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2015.).
  • 4
    Apesar de a professora em questão assumir radicalmente a proposta pedagógica Freinet, a perspectiva construtivista era referência na rede municipal de ensino, norteando a organização das crianças com base nos níveis de escrita apontados por Emilia Ferreiro e Ana Teberosky. O diálogo entre posicionamentos teóricos e metodológicos indica que o movimento de elaboração do conhecimento da escrita pelas crianças implica um complexo de fatores que vai muito além da classificação estabelecida pelas referidas autoras da psicogênese da língua escrita.
  • 5
    Jornal de parede é mais um instrumento da pedagogia Freinet. Consiste numa reunião cooperativa que acontece semanalmente nas classes Freinet visando à boa convivência do grupo. Nessa reunião as crianças partem de bilhetes que elas mesmo escrevem, de acordo com a necessidade delas, sobre fatos do cotidiano escolar. Os bilhetes podem ser críticas, felicitações, propostas ou perguntas. No momento da reunião cooperativa de jornal de parede, as crianças leem seus bilhetes e discutem sobre os problemas e situações que aparecem, tendo a professora como mediadora nesse momento de escuta. Por meio dessa escuta, coletivamente elaboram os combinados que norteiam a boa convivência da turma.
  • 6
    As atividades de sondagem são práticas comuns em turmas de alfabetização, com o intuito de diagnosticar em que nível se encontra a escrita da criança para que o professor possa pensar no trabalho pedagógico a ser realizado com ela.
  • Financiamento

    Não se aplica.
  • Declaração de disponibilidade de dados

    Não se aplica.
  • Número temático organizado por: Ana Flávia Valente Buscariolo e Daniela Dias dos Anjos

REFERÊNCIAS

  • BUSCARIOLO, A. F. V. T. O texto livre como instrumento pedagógico na alfabetização de crianças Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2015.
  • FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita Porto Alegre: Artmed, 1999,
  • FREINET, C. As técnicas Freinet da escola moderna Lisboa: Editoral Estampa, 1975.
  • FREINET, C. Método natural III: a aprendizagem da escrita. São Paulo: Estampa, 1977.
  • FREINET, C. Pedagogia do bom senso São Paulo: Martins Fontes, 2004.
  • FREINET, C. Texto livre Lisboa: Dinalivro, 1976.
  • FRIEDRICH, J. Lev Vigotski: mediação, aprendizagem e desenvolvimento – uma leitura filosófica e epistemológica. Tradução: Anna Rachel Machado e Eliane Lousada. Campinas: Mercado de Letras, 2012.
  • OLIVEIRA, A. M. Célestin Freinet: raízes sociais e políticas de uma proposta pedagógica. Rio de Janeiro: Papéis e Cópias de Botafogo e Escola de Professores, 1995.
  • PINO, A. O social e o cultural na obra de Vigotski. Educação e Sociedade, v. 21, n. 71, p. 45-78, 2000. https://doi.org/10.1590/S0101-73302000000200003
    » https://doi.org/10.1590/S0101-73302000000200003
  • SMOLKA, A. L. B. A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como processo discursivo. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2003.
  • SMOLKA, A. L. B. et al. Condições de desenvolvimento humano e práticas contemporâneas: as relações de ensino em foco. Programa Fapesp – Projeto Melhoria do Ensino Público. Relatório Final. Campinas, 2012.
  • VIGOTSKI, L. S. Obras escogidas Madri: Visor, 1995. v. 3.
  • VIGOTSKI, L. S.; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem São Paulo: Ícone, 1998.

Editado por

Editoras Associadas:

Izabel Galvão e Maria Silvia Pinto de Moura Librandi da Rocha

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Maio 2021
  • Aceito
    30 Out 2021
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