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PENSAMENTO COMPUTACIONAL PARA CRIANÇAS POR MEIO DO PROJETO DE EXTENSÃO ACADEMIA HACKTOWN

COMPUTATIONAL THINKING FOR CHILDREN THROUGH THE HACKTOWN ACADEMY EXTENSION PROJECT

RESUMO

Este trabalho apresenta o relato de experiência realizada no sertão de Pernambuco, por meio do Projeto Academia HackTown, que promove atividades de ensino que potencializam o pensamento computacional em crianças de 7 a 10 anos, em cursos de programação em jogos e robótica. Os cursos oferecidos fazem uso de metodologias como gamificação, computação desplugada, game learning, storytelling, clube de leitura, robótica educacional e programação, bem como adotam a ludicidade nas atividades propostas e compreendem que a diversidade metodológica promove a aprendizagem significativa.

Palavras-chave
Ensino lúdico; Metodologias; Autonomia digital

ABSTRACT

This paper presents the report of an experience carried out in the hinterland of Pernambuco, through the HackTown Academy Project, which promotes teaching activities that enhance computational thinking in children aged 7 to 10 years old, through programming courses in games and robotics. The courses offered make use of methodologies such as gamification, unplugged computing, game learning, storytelling, reading club, educational robotics, and programming, and they adopt the ludicity in the proposed activities and understand that methodological diversity promotes meaningful learning.

Keywords
Playful teaching; Methodologies; Digital autonomy

Introdução

Nas últimas décadas, as tecnologias digitais têm provocado uma intensa mudança no estilo de vida das pessoas. Essa transformação tem impactado diretamente a educação de crianças e jovens e vem requerendo habilidades relacionadas com o desenvolvimento cognitivo e lógico deles. Não basta apenas saber usar o computador ou softwares como editores de texto e de produtividade. Tecnologias como a impressão tridimensional, óculos de realidade virtual e aumentada, robótica, inteligência artificial e jogos eletrônicos já fazem parte do cotidiano e demandam dessa geração a capacidade de entendimento sobre o funcionamento dessas tecnologias para aplicação de maneira contextualizada.

Esse cenário tem levado educadores e gestores empresariais a refletirem sobre a importância da ciência da computação como um conjunto de habilidades básicas e necessárias para que os cidadãos do século XXI tenham oportunidades econômica e de mobilidade social. Blikstein (2008)BLIKSTEIN, P. O pensamento computacional e a reinvenção do computador na educação. 2008. Disponível em: http://goo.gl/0tZpGQ. Acesso em: 5 maio 2021.
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indica que entre essas habilidades o pensamento computacional talvez seja a mais importante. O autor define o termo como o uso de sistemas computacionais, visando ao aumento da capacidade cognitiva e operacional do ser humano, ou seja, aumento da produtividade, da inventividade e da criatividade para a realização de tarefas, ideia já proposta por Seymour Papert (1994)PAPERT, S. A máquina das crianças. Porto Alegre: Artmed, 1994..

Por outro lado, França e Tedesco (2015)FRANÇA, R.; TEDESCO, P. Desafios e oportunidades ao ensino do pensamento computacional na educação básica no Brasil. In: WORKSHOPS DO CONGRESSO BRASILEIRO DE INFORMÁTICA NA EDUCAÇÃO, 2015. Anais [...]. v. 4, n. 1, p. 1464, 2015. https://doi.org/10.5753/cbie.wcbie.2015.1464
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apontam que o ensino de habilidades ligadas ao pensamento computacional para crianças e jovens da educação básica no Brasil pode configurar-se como um desafio. Com isso, faz-se necessário buscar novas formas de aprender e ensinar especialmente em termos comportamentais, ambientais e de interação, de tal maneira que todo o processo seja centrado no aprendiz, com vistas a estimular os desenvolvimentos cognitivo e lógico e a inteligência criativa.

Isto posto, este estudo descreve a aplicação de atividades com potencial para o desenvolvimento do pensamento computacional em crianças da faixa etária de 7 a 10 anos, por meio do projeto de extensão tecnológica intitulado Escola Pública de Programação em Jogos e Robótica: Academia HackTown. Uma vez que o projeto vem sendo desenvolvido desde 2017 no sertão pernambucano empregando um mix de metodologias, tais como gamificação, computação desplugada, game learning, storytelling, clube de leitura, robótica educacional e programação, ele tem a concepção de que a aprendizagem pode ser lúdica, prazerosa, divertida e significativa para o aprendiz.

A Academia HackTown também tem como premissa o fato de que a criação de conteúdos e/ou tecnologias digitais proporciona autonomia ao aprendiz e pode abrir caminhos para a inserção de inovações tecnológicas no cotidiano das crianças de acordo com o seu desenvolvimento cognitivo. Esse pensamento está alinhado com o ensinamento de Freire (1982)FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982., que descrevia o ato de estudar não somente como consumir ideias, mas criar e recriar. Por isso a aplicação de metodologias como a robótica e o desenvolvimento de jogos podem proporcionar experiências de aprendizagem prazerosas e envolventes e, assim, contribuir para o desenvolvimento do pensamento computacional.

Nesse contexto, este estudo propõe-se a apresentar uma experiência na aplicação de cursos de formação inicial e continuada para crianças desenvolvida pelo Projeto de Extensão Academia HackTown, com foco no estímulo ao pensamento computacional. Para tanto, adotamos a abordagem qualitativa, que utilizou como fonte de dados a revisão bibliográfica sobre o tema, bem como planos de curso e de aula, com registros fotográficos realizados durante as aulas. Também empregamos outras produções científicas do projeto e ainda o relato dos instrutores e monitores que atuaram como bolsistas.

O trabalho inicia-se com a apresentação da definição de pensamento computacional, seguida de informações sobre o Projeto Academia HackTown e da sua proposta metodológica. Posteriormente, destacam-se os cursos selecionados para este estudo com a descrição de algumas atividades realizadas, seguidos das considerações finais e das referências utilizadas.

Pensamento Computacional

O conceito de pensamento computacional foi definido pela primeira vez em 2006 por Jeannette Wing como computational thinking. A autora define pensamento computacional como a solução de problemas, o projeto de sistemas e a compreensão do comportamento humano com base em conceitos fundamentais da ciência da computação. Para Wing (2006)WING, J. M. Computational thinking: the beginning. Communications of the ACM, v. 24, n. 3, p. 33-35, 2006. https://doi.org/10.1145/1118178.1118215
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e Blikstein (2008)BLIKSTEIN, P. O pensamento computacional e a reinvenção do computador na educação. 2008. Disponível em: http://goo.gl/0tZpGQ. Acesso em: 5 maio 2021.
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, o pensamento computacional não deve ser restrito a cientistas da computação; trata-se de uma habilidade fundamental a qualquer pessoa indistintamente do contexto social, econômico e ambiental.

O pensamento computacional é fundamentado em um conjunto de habilidades cognitivas. Entre elas, estão a abstração, o pensamento algorítmico, a decomposição de problemas e o reconhecimento de padrões (WING, 2006WING, J. M. Computational thinking: the beginning. Communications of the ACM, v. 24, n. 3, p. 33-35, 2006. https://doi.org/10.1145/1118178.1118215
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). Elas são inerentes à computação enquanto ciência, que conduz o estudante a ser autônomo e, ao mesmo tempo, promove a interlocução entre os indivíduos (BLIKSTEIN, 2008BLIKSTEIN, P. O pensamento computacional e a reinvenção do computador na educação. 2008. Disponível em: http://goo.gl/0tZpGQ. Acesso em: 5 maio 2021.
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; COSTA et al., 2016COSTA, T. A.; CRISTIANO, F.; MARTINS, D.; SILVA, W. A importância da computação para alunos do ensino fundamental: ações, possibilidades e benefícios. In: WORKSHOP DE INFORMÁTICA NA ESCOLA, 22., 2016. Anais [...]. 2016. Disponível em: https://bit.ly/3HgsXUj. Acesso em: 25 jul. 2021.
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).

A programação de computadores, um dos pilares da computação, possibilita a aprendizagem do pensamento computacional e, aliada à robótica e ao desenvolvimento de jogos, pode proporcionar benefícios ao desenvolvimento do pensamento crítico e reflexivo dos estudantes (CLEMENTS; GULLO, 1984CLEMENTS, D. H.; GULLO, D. F. Effects of computer programming on young children’s cognition. Journal of Educational Psychology, v. 76, n. 6, p. 1051-1058, 1984. https://doi.org/10.1037/0022-0663.76.6.1051
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). Além disso, contribui para o desenvolvimento do cidadão na economia digital, levando-o à autonomia na resolução de problemas da vida real. Embora pareça um pouco mais fácil treinar essa geração do conhecimento como produtores da economia digital, faz-se necessário pensar em como fazer e como prepará-los.

O ensino de programação permite ao estudante levantar e testar hipóteses, favorecendo a organização do pensamento com a possibilidade de novas inferências sobre um problema proposto (COSTA et al., 2016COSTA, T. A.; CRISTIANO, F.; MARTINS, D.; SILVA, W. A importância da computação para alunos do ensino fundamental: ações, possibilidades e benefícios. In: WORKSHOP DE INFORMÁTICA NA ESCOLA, 22., 2016. Anais [...]. 2016. Disponível em: https://bit.ly/3HgsXUj. Acesso em: 25 jul. 2021.
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). Já a robótica é considerada uma estratégia de aprendizagem interdisciplinar. A razão disso dá-se por abordar várias áreas do conhecimento como a programação de computadores, além de princípios de comunicação, eletricidade, eletrônica, matemática, artes, entre outros (PERALTA; GUIMARÃES, 2018PERALTA, D. A.; GUIMARÃES, E. C. A robótica na escola como postura pedagógica interdisciplinar: o futuro chegou para a Educação Básica? Revista Brasileira de Informática na Educação, v. 26, n. 1, p. 30-50, 2018. https://doi.org/10.5753/rbie.2018.26.1.30
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). Vale salientar que para a concepção de um protótipo de base robótica há a necessidade de definir a arquitetura do hardware, bem como desenvolver o software de controle dos componentes.

Com relação ao desenvolvimento de jogos, para Silveira, Rangel e Ciríaco (2012)SILVEIRA, S. R.; RANGEL, A. C. S.; CIRÍACO, E. D. L. Utilização de jogos digitais para o desenvolvimento do raciocínio lógico-matemático. #Tear: Revista de Educação Ciência e Tecnologia, v. 1, n. 1, p. 1-14, 2012. https://doi.org/10.35819/tear.v1.n1.a1690
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, a aprendizagem dessa habilidade auxilia na construção de interações lúdicas e cooperativas para favorecer a construção do raciocínio lógico e matemático. Também é trabalhado o pensamento abstrato, por meio da criação de histórias para a composição dos jogos, que envolve personagens, enredos, cenários, visões e conhecimentos de planejamento e técnicas de engenharia de software.

Projeto de Extensão Academia HackTown

Na perspectiva de promover a inclusão digital, em 2014 surgiu o Projeto Programadores do Futuro, com foco na preparação de crianças e jovens para participarem da Olimpíada Brasileira de Informática, que é realizada todos os anos pela Sociedade Brasileira de Computação, com o objetivo de descobrir talentos para a área da computação. A proposta contou com o apoio do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sertão Pernambucano, Campus Petrolina (PE), e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio da Chamada CNPq-Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (Setec)/Ministério da Educação (MEC) nº 17/2014.

Com base nessa experiência, uma nova proposta foi desenhada, visando à oferta de cursos de formação inicial e continuada a crianças e jovens dos 7 aos 17 anos de idade, prioritariamente matriculados na rede pública de ensino e integrantes de programas sociais. Deu-se então origem ao Projeto 1ª Escola Pública de Programação em Jogos e Robótica – Academia HackTown, que tem como premissa mitigar as barreiras de acesso às tecnologias modernas, bem como promover a iniciação tecnológica por meio do ensino do pensamento computacional e do estímulo à cultura digital, conforme preconizado pela Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2015BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2015. Disponível em: https://bit.ly/3DpH4o7. Acesso em: 20 out. 2022.
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).

Em 2017, a proposta recebeu apoio financeiro da Setec/MEC para ser expandida para o sertão pernambucano de julho de 2017 a dezembro de 2019, atendendo até 2022 mais de 2.200 crianças e jovens do sertão.

A oferta de cursos acontece por meio de edital público de seleção em dois momentos. No primeiro, entre janeiro e fevereiro se realiza a seleção dos cursos regulares como o Kids 0, Kids 1, Kids 2 (para crianças dos 7 aos 12 anos de idade), além dos Teens Juniors e Teens (para jovens dos 13 aos 17 anos). A duração dos cursos pode chegar a 60 horas, sendo 20 encontros, um por semana. O segundo momento de seleção é entre agosto e setembro e refere-se a cursos de curta duração, com até 21 horas e sete encontros, como: Youtuber, Iniciação à Robótica, Domótica e Internet das Coisas.

Os cursos são organizados em formato de jogos. Dessa forma, os módulos recebem a denominação de fases. Cada uma delas pode chegar a até três mil pontos, que são distribuídos entre as atividades didáticas, também chamadas de missões. À medida que a pontuação é conquistada, esta fica disposta em um ranking acessível ao aluno de maneira online e num cartaz dentro da sala. A Fig. 1 apresenta o ranking online e em cartaz de uma turma, no qual o nome do aluno é substituído por um nickname.

Figura 1
Ranking da turma online e em cartaz dentro da sala de aula.

Durante a realização das aulas, os alunos aprendem sobre programação de computadores, técnicas de desenvolvimento de jogos bi e tridimensionais e conceitos relacionados à robótica Lego e Arduíno. As aulas são ministradas por alunos bolsistas dos cursos de graduação em Computação e Técnico em Informática, que atuam como instrutores e monitores do projeto, respectivamente.

As atividades do projeto culminam com a Mostra de Jogos e Robótica na Semana Nacional de Ciência e Tecnologia, um evento científico que tem como objetivo apresentar os protótipos de jogos e robótica desenvolvidos ao longo do ano pelos alunos, aproximando-os dos pais e da comunidade, conforme apresentado na Fig. 2.

Figura 2
Cartaz de publicidade e atividade realizada na Mostra de Jogos e Robótica.

A Academia HackTown prioriza o lúdico e tem o ensino centrado no aluno, visando a uma abordagem pedagógica baseada na aprendizagem significativa de Ausubel (1982)AUSUBEL, D. P. A Aprendizagem significativa. São Paulo: Moraes, 1982. e na afetividade de Wallon (1982)WALLON, H. A evolução psicológica da criança. São Paulo: Martins Fontes, 2007.. Para tanto, emprega um conjunto de metodologias apresentadas no Quadro 1. Com o emprego simultâneo dessas metodologias e de protótipos, viabiliza-se ao aluno um processo de reflexão sobre as ações realizadas nas aulas, culminando em uma aprendizagem significativa por meio das tecnologias digitais, que para Klausen (2003)KLAUSEN, L. dos S. Aprendizagem significativa: um desafio. Educere, 2003. podem contribuir para a exploração, o fracasso, a correção, a obtenção de dados, a elaboração de conjecturas, a realização de testes e a construção de explicações, que por sua vez são resultados de inferências e comparações. Vale destacar que as ações de construir, praticar, refletir sobre o problema da comunidade e buscar uma solução mediante o desenvolvimento de um protótipo estão ao encontro dos pressupostos da aprendizagem significativa, mas também têm inspiração nos quatro pilares da educação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco): conhecer, fazer, conviver e ser.

Quadro 1
Metodologias empregadas na Academia HackTown.

Outro fator norteador no Projeto Academia HackTown é a afetividade com relação aos alunos, mediante o acolhimento em um espaço lúdico que estimule a criatividade, favorecendo as relações horizontais entre os envolvidos no processo educativo (LIMA, 2020LIMA, M. R. O. Lições dos games para se pensar a reconstrução do espaço escolar ou como Super Mario pode dialogar com a escola. In: MEIRA, L.; BLIKSTEIN, P. (org.). Ludicidade, jogos digitais e gamificação na aprendizagem. Porto Alegre: Penso, 2020. p. 3-12.). Para a recepção dos alunos, o instrutor prepara o ambiente antecipadamente, e ao adentrar na sala o aluno é recebido com uma música ligada ao mundo dos jogos digitais e animes. Além disso, o leiaute da sala conta com elementos que remetem a jogos populares, como o Minecraft, e a robótica, com os computadores organizados em formato de U, visando deixar o espaço central livre para as atividades lúdicas.

A Fig. 3a apresenta a porta da sala de aula, e, na Fig. 3b, demonstra-se como os computadores ficam dispostos. A Fig. 4 traz duas salas com atividades sendo realizadas no centro. Já para a sala dos encontros do clube de leitura, definiu-se o leiaute de uma sala com colchonetes, fronhas, alguns brinquedos, dependendo do eixo a ser trabalhado, bem como, antes de entrar na sala, ao longo do percurso, algumas dicas aguçando a curiosidade.

Figura 3
Espaço empregado para as aulas do Projeto Academia HackTown.
Figura 4
Atividades lúdicas sendo realizadas no centro da sala.

Dessa forma, proporcionou-se um espaço acolhedor que permitiu ao aluno sentir-se bem, brincar, locomover-se, interagir, um espaço propício para a criatividade, a produtividade e a inventividade. Faz-se importante destacar que para muitos alunos o projeto é o único espaço para acesso às tecnologias modernas. Com isso, a academia contribuiu para a inclusão, mitigando as desigualdades sociais no sertão do semiárido pernambucano.

A Dinâmica das Turmas Kids 0 e Kids 1 e o Pensamento Computacional

Este estudo destaca o relato das atividades desenvolvidas em turmas dos cursos regulares Kids 0 e Kids 1, formadas por crianças de 7 e 8 anos e de 9 e 10 anos de idade e carga horária total de 30 e 40 horas, respectivamente. As aulas acontecem uma vez por semana, com duração de até duas horas. Entre 2017 e 2022, o projeto atendeu cerca de 720 crianças dessas faixas etárias. Vale ressaltar que os módulos recebem a nomenclatura de fases, para que o aluno possa associar a essas fases a ideia de progressão no aprendizado, semelhantemente a um jogo. Em cada uma das fases são trabalhados conceitos inerentes ao ensino do pensamento computacional. O Quadro 2 relaciona o curso, a fase com a sua respectiva carga horária, o nome e o objetivo pretendido com os tópicos abordados.

Quadro 2
Fases, carga horária e objetivos.

As temáticas abordadas em cada fase foram pensadas para o desenvolvimento do pensamento computacional, observando a apresentação gradativa de conceitos complementares, possibilitando que um conhecimento seja ancorado no outro. Por exemplo, na fase dois da turma Kids 0, primeiramente o aluno aprende sobre os conceitos básicos de robótica e da plataforma Lego com o entendimento dos principais componentes e como estes se relacionam para o funcionamento do robô. Em seguida, na fase 3 o aluno é conduzido a aplicar na prática os conhecimentos adquiridos previamente, trazendo dessa forma significado para o aprendizado numa construção ativa do saber, conforme apontado por Moreira (2003)MOREIRA, M. A. Linguagem e aprendizagem significativa. In: ENCONTRO INTERNACIONAL SOBRE APRENDIZAGEM SIGNIFICATIVA, 4., 2003. Conferência de encerramento. Maragogi, 2003.. De maneira similar, isso também acontece na turma Kids 1.

Todas as fases dos cursos são encadeadas com conteúdos que se complementam e dão a fundamentação necessária para a compreensão das etapas seguintes, com o pensamento computacional sendo trabalhado de modo transversal ao longo do curso. Em cada aula, as habilidades relacionadas ao pensamento computacional são estimuladas e desenvolvidas. Por exemplo, na turma Kids 0, em uma atividade proposta para trabalhar a temática da estrutura condicional, o instrutor criou quatro comandos com cores diferentes. Depois disso, apresentou esses comandos aos alunos para memorização. Ao ser pressionado um dos botões desenhados no quadro construído em papel colorido, os alunos deveriam reagir aos comandos preestabelecidos. Caso contrário, deveriam permanecer parados. Exemplos de comandos criados são:

  • Botão azul: Diga “Woo!”;

  • Botão amarelo: Bata palmas;

  • Botão vermelho: Pule para cima e para baixo;

  • Botão verde: Dê uma voltinha.

O Quadro 3 apresenta um exemplo de atividade com as metodologias relacionadas e as habilidades do pensamento computacional associadas.

Já na turma Kids 1 é possível citar a atividade voltada ao ensino do conceito por trás do sistema de numeração binária. Aqui, a turma foi dividida em grupos de quatro alunos, que recebiam um quebra-cabeça desmontado, do tamanho de folha A4, e uma tabela com o código de conversão do binário para o alfabeto. À medida que concluíam a atividade, uma mensagem surgia para ser apresentada à turma. O Quadro 3 aborda a aplicação dessa atividade com as respectivas metodologias e habilidades estimuladas. É importante destacar que as atividades descritas foram desenvolvidas principalmente sem o uso do computador, conforme sugerido por Bell et al. (2011)BELL, T.; WITTEN, I. H.; FELLOWS, M.; ADAMS, R.; MCKENZIE, J. Ensinando ciência da computação sem o uso do computador. Computer Science Unplugged ORG, 2011. para o ensino de computação e, por conseguinte, do pensamento computacional.

Quadro 3
Atividade com metodologias associadas e habilidades estimuladas em aula.

Nas atividades que envolviam o Minecraft, foi aplicada a metodologia da aprendizagem baseada em jogos, ao utilizar o jogo como um complemento para determinado conteúdo escolar, ou, como destacam Barradas e Lencastre (2017)BARRADAS, R.; LENCASTRE, J. A. Gamification e game-based learning: estratégias eficazes para promover a competitividade positiva nos processos de ensino e de aprendizagem. Investigar em Educação, v. 2, n. 6, p. 11-37, 2017., para que os alunos pudessem resolver problemas ou responder a perguntas.

No caso específico vivenciado na Kids 1, ao fornecer uma experiência contextualizada no universo do Minecraft, os alunos tinham de viver em sociedade, construir um mundo, aprender a conviver com o outro no jogo e não matar ou destruir o universo do outro e edificar com o outro, com base nas regras estabelecidas na missão. Ao término da aula, era realizada uma reflexão sobre a prática, os erros cometidos na missão, o que era necessário melhorar para conviver em sociedade, dessa forma possibilitando não só o feedback do jogo, como também o do docente. Esse momento para os alunos era enriquecedor, pois tinham a oportunidade de avaliar os pontos em que poderiam melhorar, como um poderia ajudar o outro, trabalhando conceitos de convivência em sociedade que perpassam noções de disciplinas como sociologia, história e geografia.

No que se refere ao clube de leitura, estimularam-se a leitura, a escrita, a autonomia, o dividir, a criatividade, a troca de experiências, o interpretar, o saber escutar o outro, proporcionando aos alunos o contato e a exploração de diversos gêneros textuais mediante gibis e livros relacionados com cada perfil, desde Turma da Mônica ao universo geek como Star Wars (MARTINS, 2021).

À medida que as aulas foram sendo aplicadas, foi observado o envolvimento dos alunos, e surgiram identificações em cada uma das fases com as temáticas abordadas propostas nos cursos. Por exemplo, existiam alunos que se identificavam mais com a fase de robótica, outros alunos que gostavam mais das atividades propostas via uso do Minecraft. Esse resultado está em linha com a proposta da gamificação, pois se baseou no pressuposto de Meira e Blikstein (2020)MEIRA, L.; BLIKSTEIN, P. (org.). Ludicidade, jogos digitais e gamificação na aprendizagem. Porto Alegre: Penso, 2020., que descrevem que ao longo do jogo os desafios propostos devem estar em consonância com o jogador, não tão difíceis para que ele não desista nem tão fáceis para não se tornarem desestimulantes. Por isso, realizou-se a separação do curso em fases, e este tornou-se uma aventura.

Considerações Finais

Ao longo deste trabalho, foi perceptível a complementaridade das metodologias, ou seja, como a união delas possibilita que os alunos tenham uma aprendizagem significativa. Não necessariamente se precisa aplicar todas as metodologias em todas as aulas; elas devem ser aplicadas de forma que se complementem, considerando a temática abordada na aula e até mesmo a dinamicidade, para que o aluno se sinta surpreendido. Assim, pode-se afirmar que, independentemente da idade, no Kids 0 e Kids 1, os alunos se identificaram com a aplicabilidade de todas as metodologias propostas ao longo do curso.

No que se refere à contribuição do projeto para o desenvolvimento das habilidades do pensamento computacional, observou-se que as crianças conseguiram resolver os diversos problemas propostos nas missões HT Class ou HT House de forma individual ou colaborativa. Algumas atividades exigiam o uso da criatividade, inventividade e outras habilidades como cooperação, saber dividir tarefas, identificar o potencial do colega, ou mesmo dividir funções como quem se saía melhor montando Lego ou mesmo programando e se conseguiram se organizar e solucionar as missões propostas. Observou-se com o ranking que, dependendo da fase, os alunos avançavam mais rapidamente em determinada temática que outros, mostrando identificação com os conteúdos abordados naquela fase do curso, o que reforça a importância da dinamicidade e diversidade das fases.

Por fim, acredita-se que a Academia HackTown possibilita ao aluno o ingresso no universo do pensamento computacional, consolidando que se devem trabalhar com os alunos da educação básica conteúdos computacionais, como proposto neste estudo, desde os 7 anos, não se limitando ao uso do computador, promovendo um aprendizado prazeroso, divertido, criativo, que estimule o aprender brincando, jogando, gamificando, inserindo a criança em um universo virtual e outro real, que se completam, auxiliando assim sua aprendizagem.

Agradecimentos

À Reitoria do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sertão Pernambucano e às pró-reitorias de Extensão e de Orçamento e Administração, os suportes financeiro e institucional oferecidos para a realização deste trabalho. Também à Direção do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sertão Pernambucano, Campus Petrolina, e à Coordenação dos Cursos de Computação, o apoio logístico e o incentivo à pesquisa.

Disponibilidade de Dados da Pesquisa

Não se aplica.

Referências

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Editores Associados:

Ana Clara Bortoleto Nery https://orcid.org/0000-0001-6316-3243 e Eduardo Alessandro Kawamura https://orcid.org/0000-0002-0209-2282

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2022
  • Aceito
    01 Mar 2023
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