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AS POLÍTICAS DE AVALIAÇÃO E A QUALIDADE EDUCACIONAL NO BRASIL SOB A PERSPECTIVA DE LUIZ CARLOS DE FREITAS

POLICIES EVALUATION AND THE EDUCATIONAL QUALITY IN BRAZIL FROM THE PERSPECTIVE BY LUIZ CARLOS DE FREITAS

RESUMO

Analisa-se a produção intelectual de Luiz Carlos de Freitas com o objetivo de apreender a concepção de qualidade educacional que ele defende. Adota-se revisão da literatura, abrangendo artigos sobre o tema da qualidade educacional associado às políticas de avaliação. Freitas defende a concepção de qualidade social sob o enfoque da qualidade negociada e crítica em contraposição à concepção empresarial, que enfatiza redução de recursos e de conteúdos, favorecendo interesses de corporações e a meritocracia na educação.

Palavras-chave
Luiz Carlos de Freitas; Avaliação educacional; Qualidade educacional; Qualidade empresarial; Qualidade negociada

ABSTRACT

The intellectual production of Luiz Carlos de Freitas is analyzed with the goal of learning the conception of educational quality that he defends. A literature review is adopted, covering papers in educational quality with evaluation policies. The author defends the conception of social quality under the focus of negotiated quality and criticism in contrast to the business conception that emphasizes the reduction of resources and contents, favoring interests of corporations and the meritocracy in education.

Keywords
Luiz Carlos de Freitas; Educational evaluation; Educational quality; Business quality; Negotiated quality

Introdução

A qualidade educacional é um tema complexo e multifacetado, cuja concepção se altera conforme o tempo e o lugar, de modo que diferentes concepções se expressam nas políticas públicas. No cenário das políticas educacionais brasileiras, as discussões acerca dessa qualidade denotam o embate entre os que defendem projetos societários e educacionais distintos.

Na discussão sobre a qualidade articulada à temática da avaliação educacional, destaca-se a produção científica de Luiz Carlos de Freitas. Na obra do autor, encontram-se tanto críticas à concepção de qualidade educacional – formada sob a hegemonia neoliberal – quanto caminhos para a melhoria qualitativa da educação, considerada atributo para a conquista da justiça social.

Mestre em Educação e Doutor em Ciências (Psicologia Experimental), com Pós-Doutorado pela Universidade de São Paulo (USP), a base epistemológica de Luiz Carlos de Freitas é marxista, de onde se depreende o seu compromisso com a educação pública e com uma concepção de qualidade compromissada com a transformação social. Constitui-se em um intelectual orgânico que emprega sua competência e capacidade de fazer ciência nas lutas cotidianas, em favor de mudanças sociais e educacionais.

Sua vasta produção compreende artigos publicados em eventos científicos e institucionais, periódicos qualificados, capítulos de livros e obras autorais, grande parte informada ou disponibilizada no “Avaliação Educacional – Blog do Freitas”. Esse blog tem como finalidade discutir e divulgar temas acadêmicos que abordam, particularmente, a avaliação educacional e alcança não só professores da educação básica, mas também do ensino superior que se posicionem “Contra a destruição do sistema público de educação e contra a desmoralização dos professores pelas políticas de responsabilização” (FREITAS, 2023FREITAS, L. C. Avaliação educacional – Blog do Freitas. Disponível em: https://avaliacaoeducacional.com/. Acesso em: 11 jun. 2023.
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). Esse blog é um espaço formativo onde profissionais têm acesso a reflexões e leituras qualificadas que constituem referencial nas lutas em favor da escola pública de qualidade.

Considerando a importância acadêmica e política de Freitas, especialmente seu engajamento nos processos de formação e luta dos profissionais da educação, é imprescindível revisitar suas produções que clarificam concepções de qualidade educacional em disputa. Assim, este trabalho objetiva analisar concepções de qualidade educacional discutidas por esse intelectual, debatendo tanto a que defende quanto a crítica realizada à qualidade empresarial, que pauta as atuais políticas educacionais.

O estudo das formulações do autor sobre a qualidade educacional tem por base revisão da literatura centrada em artigos publicados em periódicos científicos, por sua ampla circulação e fácil acesso. Dos 25 artigos relatados no Currículo Lattes do professor, no período de 2000 a 2019, foram lidos títulos e resumos de 19 artigos que enfocam as temáticas qualidade e avaliação educacional. Foram eleitos 10 artigos para leitura integral, publicados no período de 2002 a 2016, nos periódicos Cadernos CEDES (1), Cadernos de Pesquisa (1), Educação e Sociedade (6), Educação: Teoria e Prática (1) e Em Aberto (1), todos indexados na base de dados do Scientific Electronic Library Online (SciELO).

Na análise do material selecionado, adotou-se como procedimento a elaboração de grelha de leitura, seguindo orientações de Quivy e Campenhoudt (2013)QUIVY, R.; CAMPENHOUDT, L. V. Manual de investigação em Ciências Sociais. 6. ed. Tradução de João Minhoto Marques, Maria Amália Mendes e Maria Carvalho. Lisboa: Gradiva, 2013.. Assim, foram destacadas as ideias principais de cada parágrafo para a elaboração de resumos dos textos e se buscou apreender: a visão de conjunto da obra, as convergências entre os textos e com outros autores; as divergências com outros autores e entre concepções educacionais; e as complementaridades com relação às ideias do autor. A partir das categorias qualidade e avaliação educacionais, buscou-se identificar sentidos e articulações que possibilitassem reunir trechos sobre os juízos formulados.

O artigo está organizado em dois tópicos, além da introdução e das considerações finais. No primeiro tópico, discute-se a concepção de qualidade educacional defendida pelo autor e, no tópico seguinte, sua visão crítica quanto à qualidade ancorada na lógica empresarial.

Qualidade educacional: concepção, críticas e desafios

Luiz Carlos de Freitas não discute a temática da qualidade educacional de forma isolada, mas a partir de uma compreensão do contexto social e da defesa de projetos de educação e de sociedade que atendam aos anseios da classe trabalhadora. Sua obra remete à percepção de que a educação de qualidade deve se voltar à aprendizagem de todos; ter a realidade social como referência de análise; aspirar a participação ampla nos processos decisórios; e visar à transformação social. Embasa-se, assim, na concepção de escola unitária de Gramsci, na qual todos e cada um (FREITAS, 2007FREITAS, L. C. Eliminação adiada: o ocaso das classes populares no interior da escola e a ocultação da (má) qualidade do ensino. Educação & Sociedade, Campinas, v. 28, n. 100, p. 965-987, out. 2007. https://doi.org/10.1590/S0101-73302007000300016
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) têm direito a apreender criticamente os conhecimentos produzidos e acumulados pela humanidade.

Freitas (2014)FREITAS, L. C. Os reformadores empresariais da educação e a disputa pelo controle do processo pedagógico na escola. Educação & Sociedade, Campinas, v. 35, n. 129, p. 1085-1114, out./dez., 2014. https://doi.org/10.1590/ES0101-73302014143817
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considera que, historicamente, as elites sonegaram o conhecimento às camadas populares ou relegaram a elas uma educação de baixa qualidade, como meio de manutenção do poder. Explica que, com a hegemonia neoliberal, embora os alunos pobres sejam mantidos no interior da escola, não lhes são garantidas condições de aprendizagem assentadas em investimentos e ações que atendam suas especificidades e repercutam na sua aprendizagem (FREITAS, 2007FREITAS, L. C. Eliminação adiada: o ocaso das classes populares no interior da escola e a ocultação da (má) qualidade do ensino. Educação & Sociedade, Campinas, v. 28, n. 100, p. 965-987, out. 2007. https://doi.org/10.1590/S0101-73302007000300016
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).

Freitas (2007)FREITAS, L. C. Eliminação adiada: o ocaso das classes populares no interior da escola e a ocultação da (má) qualidade do ensino. Educação & Sociedade, Campinas, v. 28, n. 100, p. 965-987, out. 2007. https://doi.org/10.1590/S0101-73302007000300016
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elucida que ensinar aos estudantes de famílias pobres demanda estratégias pedagógicas mais caras e personalizadas, número reduzido de alunos em sala de aula e mais escolas, entre outros investimentos. Isso porque os conhecimentos que esses estudantes possuem não são aqueles valorizados pela escola e, consoante Bourdieu (2004)BOURDIEU, P. Os três estados do capital cultural. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. (Org.). Pierre Bourdieu: escritos de educação. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 71-79., a dimensão cultural do estudante constitui-se um tipo de capital que influencia o sucesso escolar, sendo necessário considerar as diferenças socioeconômicas e culturais na explicação das diferenças de desempenho dos estudantes.

Entende que é preciso reconectar a escola com a realidade social, a cultura e as manifestações locais, que devem ser objeto das diversas disciplinas para que estas sejam compreendidas. Isso pode se dar pela intermediação da prática (realidade social) com a teoria (sistematização), por meio de oficinas, laboratórios e visitas aos espaços sociais; organização dos estudantes em grupos variados, nos quais desfrutem de tempo para a aprendizagem, com apoio da solidariedade do grupo (FREITAS, 2010FREITAS, L. C. Avaliação: para além da “forma escola”. Educação: Teoria e Prática, v. 20, n. 35, p. 89-99, jul./dez., 2010. Disponível em: https://www.periodicos.rc.biblioteca.unesp.br/index.php/educacao/article/view/4086. Acesso em: 10 set. 2018.
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).

Tudo isso requer responsabilidades compartilhadas, desencadeadas por políticas de Estado com ações locais nos municípios, concatenando-se avaliações externas com controle coletivo da escola, mediado pela avaliação institucional (FREITAS, 2007FREITAS, L. C. Eliminação adiada: o ocaso das classes populares no interior da escola e a ocultação da (má) qualidade do ensino. Educação & Sociedade, Campinas, v. 28, n. 100, p. 965-987, out. 2007. https://doi.org/10.1590/S0101-73302007000300016
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). Caberia aos sistemas federais e estaduais a aplicação de avaliações bianuais com finalidade de monitorar tendências globais do sistema. Os municípios, pela sua proximidade com as escolas, as avaliariam para acompanhar resultados anuais dos projetos político-pedagógicos, cuja (re)elaboração seria impulsionada pelas redes de ensino. Por fim, ressalta a importância de “[...] definir a obrigatoriedade de que esse processo seja democrático, na forma de avaliação institucional escolar participativa, por meio da qual os que constroem a vida da escola tenham voz” (2007, p. 977).

Assim, a avaliação externa às instituições teria a finalidade de subsidiar processos de planejamento e de avaliação internos às instituições. No âmbito nacional e estadual, assumiria funções de monitoramento, servindo à previsão de políticas e de ações suportadas por essas esferas. No âmbito municipal, teria finalidade reguladora, visando fomentar o desenvolvimento de cada instituição, considerando sua realidade socioeconômica e cultural.

Para Freitas (2005)FREITAS, L. C. Qualidade negociada: avaliação e contrarregulação na escola pública. Educação & Sociedade, v. 26, n. 92, p. 911-933, out. 2005. https://doi.org/10.1590/S0101-73302005000300010
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, as avaliações externas não devem ter a finalidade de premiar ou punir, mas orientar políticas e ações, bem como fomentar reflexão no interior das unidades. As escolas devem validar os resultados das avaliações externas e encontrar formas de melhorá-los por meio da autoavaliação institucional (FREITAS, 2005FREITAS, L. C. Qualidade negociada: avaliação e contrarregulação na escola pública. Educação & Sociedade, v. 26, n. 92, p. 911-933, out. 2005. https://doi.org/10.1590/S0101-73302005000300010
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). Essa avaliação provê informações necessárias à redefinição do projeto político-pedagógico, elaborado e executado com participação escolar a fim de que dados coletados colaborem para superar dificuldades, considerando-se padrões de qualidade coletivamente definidos.

Nessa concepção, a avaliação deve ser embasada no referencial democrático que valoriza a participação social na construção e execução do projeto educacional, com enfoque na autoavaliação, combinada a procedimentos de avaliação externa. É um procedimento necessário à construção da qualidade social da educação, discutida, desde a década de 1990, por autores que se contrapõem aos parâmetros neoliberais.

Como parte dessas discussões, Freitas (2005FREITAS, L. C. Qualidade negociada: avaliação e contrarregulação na escola pública. Educação & Sociedade, v. 26, n. 92, p. 911-933, out. 2005. https://doi.org/10.1590/S0101-73302005000300010
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; 2007)FREITAS, L. C. Eliminação adiada: o ocaso das classes populares no interior da escola e a ocultação da (má) qualidade do ensino. Educação & Sociedade, Campinas, v. 28, n. 100, p. 965-987, out. 2007. https://doi.org/10.1590/S0101-73302007000300016
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assume o enfoque da qualidade negociada proposto por Bondioli (2004)BONDIOLI, A. A qualidade negociada. In: BONDIOLI, A. (Org.). O projeto pedagógico da creche e sua avaliação: a qualidade negociada. Campinas: Autores Associados, 2004 (Coleção educação contemporânea). a partir de experiências desenvolvidas em creches da região italiana da Emília-Romanha na década de 1990. Na concepção de Bondioli (2004)BONDIOLI, A. A qualidade negociada. In: BONDIOLI, A. (Org.). O projeto pedagógico da creche e sua avaliação: a qualidade negociada. Campinas: Autores Associados, 2004 (Coleção educação contemporânea)., a qualidade educacional tem natureza: transacional, visto que não possui valor absoluto, mas se constrói no debate entre os envolvidos, com a finalidade de definir valores, objetivos e prioridades; participativa, para que se validem critérios que embasam a qualidade, criando sinergias necessárias às ações; autorreflexiva, uma vez que as práticas educativas, os contextos, os hábitos, os usos, os programas precisam ser analisados; contextual, pois a qualidade se enriquece dos significados locais, visto que as realidades e as histórias são diferenciadas; processual, já que qualidade é construção contínua; transformadora, porque o conjunto desses atributos transforma os implicados, produz cultura, consciência, reflexões e trocas de saberes (BONDIOLI, 2004BONDIOLI, A. A qualidade negociada. In: BONDIOLI, A. (Org.). O projeto pedagógico da creche e sua avaliação: a qualidade negociada. Campinas: Autores Associados, 2004 (Coleção educação contemporânea).).

Nessa perspectiva, Freitas (2005)FREITAS, L. C. Qualidade negociada: avaliação e contrarregulação na escola pública. Educação & Sociedade, v. 26, n. 92, p. 911-933, out. 2005. https://doi.org/10.1590/S0101-73302005000300010
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assevera a importância de que as políticas públicas induzam a construção social de indicadores de qualidade educacional a partir de significados compartilhados pelos sujeitos escolares. É fundamental mobilizar a escola a construir melhorias, organizar os trabalhadores da educação, sensibilizar a comunidade para refletir sobre si e seu futuro. Esse desafio pode ser mediatizado pelas redes e universidades, mas não pode ser concretizado por eles sem a reflexão participativa da comunidade interna, motivada pelo gestor escolar (FREITAS, 2005FREITAS, L. C. Qualidade negociada: avaliação e contrarregulação na escola pública. Educação & Sociedade, v. 26, n. 92, p. 911-933, out. 2005. https://doi.org/10.1590/S0101-73302005000300010
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).

No âmbito escolar, Bondioli (2004)BONDIOLI, A. A qualidade negociada. In: BONDIOLI, A. (Org.). O projeto pedagógico da creche e sua avaliação: a qualidade negociada. Campinas: Autores Associados, 2004 (Coleção educação contemporânea). e Freitas (2005)FREITAS, L. C. Qualidade negociada: avaliação e contrarregulação na escola pública. Educação & Sociedade, v. 26, n. 92, p. 911-933, out. 2005. https://doi.org/10.1590/S0101-73302005000300010
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defendem que o projeto político-pedagógico se constitua no instrumento de construção da qualidade negociada, de modo que cada escola tenha liberdade para delineá-lo, considerando contextos, limites e virtudes. Esse projeto, segundo Freitas (2016b)FREITAS, L. C. A importância da avaliação: em defesa de uma responsabilização participativa. Em Aberto, Brasília, v. 29, n. 96, p. 127-139, maio/ago. 2016b. https://doi.org/10.24109/2176-6673.emaberto.29i96.3156
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, deve ser divulgado para demonstrar o engajamento da escola com sua execução, o que demanda que órgãos públicos e gestores das redes de ensino assumam compromissos recíprocos, pois a “[...] responsabilidade não só é da escola, naquilo que lhe é devido, mas também é relativa ao que a escola necessita dispor para garantir a exequibilidade do seu projeto” (FREITAS, 2005FREITAS, L. C. Qualidade negociada: avaliação e contrarregulação na escola pública. Educação & Sociedade, v. 26, n. 92, p. 911-933, out. 2005. https://doi.org/10.1590/S0101-73302005000300010
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, p. 922).

Sendo a educação responsabilidade social, cada instância envolvida deve zelar para que todos cumpram a parte que lhes toca. Nesse contexto, cabe lutar para a recuperação do papel do Estado como financiador e articulador dos serviços educacionais, por mais verbas para a educação, por melhores condições de trabalho e remuneração profissional (FREITAS, 2005FREITAS, L. C. Qualidade negociada: avaliação e contrarregulação na escola pública. Educação & Sociedade, v. 26, n. 92, p. 911-933, out. 2005. https://doi.org/10.1590/S0101-73302005000300010
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). Os serviços públicos devem ser protegidos da ameaça da privatização e, inclusive, da atuação de servidores lenientes que usam a estabilidade funcional para faltar com suas responsabilidades (FREITAS, 2005FREITAS, L. C. Qualidade negociada: avaliação e contrarregulação na escola pública. Educação & Sociedade, v. 26, n. 92, p. 911-933, out. 2005. https://doi.org/10.1590/S0101-73302005000300010
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).

A qualidade educacional, na concepção de Freitas, é responsabilidade pública, envolvendo gestores e servidores que atuam nas diversas instâncias. A avaliação constitui-se etapa fundante para a consecução do planejamento educacional que subsidia a constituição de políticas e orienta ações em diferentes instâncias para a concretização do compromisso da educação como direito, portanto, pautada em valores como igualdade, autonomia e participação.

Com essa concepção, Freitas tornou-se veemente crítico das políticas decorrentes da reforma educacional brasileira da década de 1990, que, sob a influência neoliberal, busca transformar a educação em quase-mercado, emprestando à qualidade e à avaliação características condizentes com essa lógica, conforme se discute a seguir.

Crítica à qualidade empresarial: avaliação, privatização, meritocracia e responsabilização

As demandas por maior qualificação dos trabalhadores, em função da complexificação das redes produtivas e do próprio consumo, têm sido assumidas pelo Estado neoliberal a partir da perspectiva de quase-mercado educacional. A concepção de quase-mercado denota, segundo Freitas (2005)FREITAS, L. C. Qualidade negociada: avaliação e contrarregulação na escola pública. Educação & Sociedade, v. 26, n. 92, p. 911-933, out. 2005. https://doi.org/10.1590/S0101-73302005000300010
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, mudança na regulação estatal da educação, que não se opõe ao mercado. Souza e Oliveira (2003, p. 876)SOUZA, S. Z. L.; OLIVEIRA, R. P. Políticas de avaliação da educação e quase mercado no Brasil. Educação & Sociedade, v. 24, n. 84, p. 873-895, set. 2003. https://doi.org/10.1590/S0101-73302003000300007
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explicam que o quase-mercado educacional introduz “concepções de gestão privada nas instituições públicas sem alterar a propriedade” destas, cria controle externo das instituições com base em sistemas de avaliação que difundem ideia de qualidade escolar que supõe diferenciações no interior dos sistemas públicos de ensino.

Os defensores do quase-mercado educacional advogam a privatização das escolas ponderando que a instância pública não tem qualidade porque sua gestão é ineficaz (FREITAS, 2016aFREITAS, L. C. Três teses sobre as reformas empresariais da educação: perdendo a ingenuidade. Cadernos Cedes, Campinas, v. 36, n. 99, p. 137-153, maio/ago., 2016a. https://doi.org/10.1590/CC0101-32622016160502
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). Assim, para tornar as escolas eficazes, reformadores empresariais – termo cunhado por Ravitch, nos Estados Unidos da América, para designar uma coalisão de forças compostas por lideranças políticas, mídia, empresariado, instituições privadas e pesquisadores – defendem a implantação da organização privada na esfera pública, incluindo reestruturação da gestão e investimento em tecnologia, tal como, tradicionalmente, empresários modificam a produção (FREITAS, 2012FREITAS, L. C. Os reformadores empresariais da educação: da desmoralização do magistério à destruição do sistema público de educação. Educação & Sociedade, Campinas, v. 33, n. 119, p. 379-404, jun. 2012. https://doi.org/10.1590/S0101-73302012000200004
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).

O autor observa que a privatização do ensino ocorre de diversas formas, de modo que os recursos migram para a esfera privada e a escola pública recebe cada vez menos recursos, criando-se uma espiral negativa de resultados. Desde a década de 1990, a privatização dos serviços públicos no país tem ocorrido, em particular, pela adoção de parâmetros da gestão empresarial e pela atuação de organizações não governamentais na instância pública, com ações financiadas por esta.

Freitas (2013)FREITAS, L. C. Políticas de responsabilização: entre a falta de evidência e a ética. Cadernos de Pesquisa, v. 43, n. 148 p. 348-365 jan./abr. 2013. https://doi.org/10.1590/S0100-15742013000100018
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demonstra, no entanto, que o público e o privado têm objetivos diversos. As empresas querem obter lucros e se conservar no mercado, superar concorrentes e derrubar custos para se manterem competitivas, como em um jogo no qual a existência de ganhadores e perdedores é não só inevitável, como necessária. A instância pública, em sentido oposto, deve ser presidida pela concepção de direito, que não comporta essa lógica e se orienta pela necessidade de garantias e benefícios coletivos. As empresas se orientam por princípios como individualismo, hierarquização, concorrência e meritocracia, opostos a valores como coletivismo, participação e igualdade, próprios da ação pública. Assim, a concepção de qualidade privada que se busca instituir no público não atende sua especificidade.

A qualidade educacional defendida pelos reformadores empresariais atrela-se à lógica do custo-benefício, difunde conhecimentos mínimos a partir de uma visão instrumental e produtivista da educação (FREITAS, 2002FREITAS, L. C. A internalização da exclusão. Educação & Sociedade, Campinas, v. 23, n. 80, p. 299-325, set. 2002. https://doi.org/10.1590/S0101-73302002008000015
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). Essa concepção fundamenta-se no neotecnicismo, constituindo-se como uma racionalidade técnica que alia testes ao gerenciamento da força de trabalho escolar e baseia-se no behaviorismo, na econometria e nas ciências da informação e de sistemas, tendo como cerne “[...] a ideia do controle dos processos, para garantir certos resultados definidos a priori como standards, medidos em testes padronizados” (FREITAS, 2012FREITAS, L. C. Os reformadores empresariais da educação: da desmoralização do magistério à destruição do sistema público de educação. Educação & Sociedade, Campinas, v. 33, n. 119, p. 379-404, jun. 2012. https://doi.org/10.1590/S0101-73302012000200004
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, p. 383).

Freitas (2007)FREITAS, L. C. Eliminação adiada: o ocaso das classes populares no interior da escola e a ocultação da (má) qualidade do ensino. Educação & Sociedade, Campinas, v. 28, n. 100, p. 965-987, out. 2007. https://doi.org/10.1590/S0101-73302007000300016
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observa que os sistemas de avaliação integrantes das políticas educacionais de diversos países, segundo essa visão instrumental, cumprem a função manifesta de prestar contas à sociedade acerca do emprego dos recursos públicos, conferindo transparência aos resultados obtidos e comprometendo pessoas com a melhoria da qualidade educacional. Mas esses propósitos aparentemente virtuosos ocultam que esses sistemas impulsionam mudanças marcadas pela assepsia política dos conteúdos escolares; responsabilizam profissionais e instituições por resultados; escoam recursos públicos para a esfera privada; e reduzem os parâmetros de qualidade do ensino.

Segundo essa lógica, os resultados de avaliações externas às escolas e a criação de índices educacionais passam a expressar o padrão de qualidade alcançado pela instituição. Freitas (2016a)FREITAS, L. C. Três teses sobre as reformas empresariais da educação: perdendo a ingenuidade. Cadernos Cedes, Campinas, v. 36, n. 99, p. 137-153, maio/ago., 2016a. https://doi.org/10.1590/CC0101-32622016160502
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e Almeida, Dalben e Freitas (2013)ALMEIDA, L.C.; DALBEN, A., FREITAS, L.C. O Ideb: limites e ilusões de uma política educacional. Educação & Sociedade, Campinas, v. 34, n. 125, p. 1153-1174, out./dez. 2013. https://doi.org/10.1590/S0101-73302013000400008
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criticam o fato de se considerar o alcance das metas do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) – indicador sintético criado em 2007, calculado a partir de dados de rendimento escolar e de desempenho de estudantes em testes padronizados de Língua Portuguesa e Matemática – como melhoria da qualidade educacional, visto que esta depende de múltiplos fatores não abarcados pelo índice. Freitas (2016a)FREITAS, L. C. Três teses sobre as reformas empresariais da educação: perdendo a ingenuidade. Cadernos Cedes, Campinas, v. 36, n. 99, p. 137-153, maio/ago., 2016a. https://doi.org/10.1590/CC0101-32622016160502
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entende que testes não conseguem avaliar adequadamente o desempenho das escolas, pois avaliar todo o trabalho educativo implicaria grande dispêndio de recursos e de tempo, além de que existem objetivos formativos (criatividade, afetividade, capacidade artística, desenvolvimento corporal entre outros) que, dificilmente, seriam captados por meio de testes. Pondera, ainda, que a associação dos testes a recompensas busca induzir a escola a focar seu trabalho nos aspectos por eles enfatizados, produzindo estreitamento curricular e exacerbando o preparo para os exames em detrimento dos processos educativos (FREITAS, 2016aFREITAS, L. C. Três teses sobre as reformas empresariais da educação: perdendo a ingenuidade. Cadernos Cedes, Campinas, v. 36, n. 99, p. 137-153, maio/ago., 2016a. https://doi.org/10.1590/CC0101-32622016160502
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).

O estreitamento e a uniformização curricular também acontecem pela definição de currículos nacionais centrados em competências de ensino, com base nas quais são definidas matrizes avaliativas de referência. A noção de competência originou-se na esfera produtiva e compreende a capacidade de o trabalhador mobilizar conhecimentos e habilidades para resolver problemas da produção em tempo real. Encontra-se, portanto, em relação direta com a concepção empresarial de qualidade, que reduz a educação do trabalhador às demandas do capital. Daí o alerta de Freitas (2016a)FREITAS, L. C. Três teses sobre as reformas empresariais da educação: perdendo a ingenuidade. Cadernos Cedes, Campinas, v. 36, n. 99, p. 137-153, maio/ago., 2016a. https://doi.org/10.1590/CC0101-32622016160502
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quanto ao perigo da crença de que a boa educação esteja contemplada na matriz de referência das avaliações externas nacionais, criando-se uma identidade entre boa educação, competências e habilidades.

O autor adverte, ainda, que o monitoramento do desempenho escolar por avaliação externa não implica que os alunos tenham acesso a conteúdos importantes para sua formação, tampouco à igualdade de resultados. O sistema de avaliação monitora o desempenho global dos estudantes, mas não o que cada um aprende. Além disso, a elevação dos índices de um subconjunto de escolas é suficiente para que as demais continuem no mesmo patamar sem comprometer a média do sistema de ensino, legitimando-se a exclusão de estudantes pobres no interior do sistema pela positividade estatística. A desigualdade educacional continua existindo nas escolas que concentram estudantes, cujos resultados não importam porque nada se espera daqueles que as frequentam (FREITAS, 2007FREITAS, L. C. Eliminação adiada: o ocaso das classes populares no interior da escola e a ocultação da (má) qualidade do ensino. Educação & Sociedade, Campinas, v. 28, n. 100, p. 965-987, out. 2007. https://doi.org/10.1590/S0101-73302007000300016
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).

Assim, a desigualdade educacional é legitimada pela lógica meritocrática, segundo a qual se compreende que permanecer na escola básica e concluir estudos posteriores dependem, unicamente, da aptidão, do dom, do esforço ou do mérito de cada um, transferindo-se aos estudantes a responsabilidade por sua exclusão. A perspectiva liberal admite a igualdade de oportunidade de acesso, mas não de resultado, transmutando diferenças sociais em diferenças de desempenho, negando-se a relação entre alta proficiência e alto nível socioeconômico do aluno (FREITAS, 2012FREITAS, L. C. Os reformadores empresariais da educação: da desmoralização do magistério à destruição do sistema público de educação. Educação & Sociedade, Campinas, v. 33, n. 119, p. 379-404, jun. 2012. https://doi.org/10.1590/S0101-73302012000200004
https://doi.org/10.1590/S0101-7330201200...
; 2014FREITAS, L. C. Os reformadores empresariais da educação e a disputa pelo controle do processo pedagógico na escola. Educação & Sociedade, Campinas, v. 35, n. 129, p. 1085-1114, out./dez., 2014. https://doi.org/10.1590/ES0101-73302014143817
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).

A responsabilização dos implicados é a base das avaliações educacionais de cunho tecnocrático, tornando-se importante mecanismo de accountability que, conforme Dias Sobrinho (2003, p. 101)DIAS SOBRINHO, J. Avaliação: políticas educacionais e reformas da educação superior. São Paulos: Cortez, 2003., se refere à “[...] comprovação dos resultados obtidos em comparação com as metas ou objetivos estabelecidos antecipadamente no tocante a rendimentos educacionais e a prestação de contas da utilização do dinheiro público com que a instituição contou”. As avaliações educacionais externas às escolas, portanto, proveem resultados por meio dos quais profissionais e instituições prestam contas ao governo e à sociedade acerca dos investimentos realizados, bem como são responsabilizados pelos resultados obtidos. E ainda que existam diferentes e contraditórios modelos de accountability, como lembra Afonso (2010)AFONSO, A. J. Gestão, autonomia e accountability na escola pública portuguesa: breve diacronia. Revista Brasileira de Políticas e Administração da Educação, v. 26, n. 1, jan./abr. 2010. p. 13-30. Acesso em: 11 jun. 2023., o que se baseia no mercado privilegia a comparação e o controle de resultados articulados à divulgação pública.

Essas políticas voltadas para o mercado têm sido implementadas em diferentes países. Ravitch (2011)RAVITCH, D.Vida e morte do grande sistema escolar americano: como os testes padronizados e o modelo de mercado ameaçam a educação. Tradução de Marcelo Duarte. Porto Alegre: Sulinas, 2011. e Freitas (2014)FREITAS, L. C. Os reformadores empresariais da educação e a disputa pelo controle do processo pedagógico na escola. Educação & Sociedade, Campinas, v. 35, n. 129, p. 1085-1114, out./dez., 2014. https://doi.org/10.1590/ES0101-73302014143817
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relatam que nos Estados Unidos, onde o regime de contratação profissional não garante estabilidade no emprego, a responsabilização por resultados inclui demissão de professores ineficazes; fechamento de escolas com baixos resultados; bem como concessões de escolas à iniciativa privada via organizações sociais.

No Brasil, segundo Freitas (2013)FREITAS, L. C. Políticas de responsabilização: entre a falta de evidência e a ética. Cadernos de Pesquisa, v. 43, n. 148 p. 348-365 jan./abr. 2013. https://doi.org/10.1590/S0100-15742013000100018
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, o avanço das políticas de accountability estava sendo impulsionado por questões econômicas e políticas, primeiro porque o mercado educacional vinha crescendo pela atuação de empresas nacionais e internacionais no campo da avaliação e da consultoria; e, segundo, porque a tentativa dos governos de responderem com rapidez às demandas educacionais favorecia uma accountability verticalizada, o que denota responsabilização profissional ancorada em sistemas de recompensas e/ou sanções (FREITAS, 2013FREITAS, L. C. Políticas de responsabilização: entre a falta de evidência e a ética. Cadernos de Pesquisa, v. 43, n. 148 p. 348-365 jan./abr. 2013. https://doi.org/10.1590/S0100-15742013000100018
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; 2016a).

Num texto em que polemiza com Nigel Brooke – defensor de políticas de accountability como condição de melhoria da qualidade educacional –, Freitas (2013)FREITAS, L. C. Políticas de responsabilização: entre a falta de evidência e a ética. Cadernos de Pesquisa, v. 43, n. 148 p. 348-365 jan./abr. 2013. https://doi.org/10.1590/S0100-15742013000100018
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refuta essa prerrogativa analisando as consequências da consolidação dessas políticas, em países como os EUA e o Chile. Aponta que, no Chile, muitas escolas não atendiam estudantes com dificuldades de aprendizagem para não comprometerem seu desempenho médio, levando à exclusão dos pobres ou ao deslocamento dos alunos com piores desempenhos para determinadas instituições, criando-se um sistema que segrega os estudantes pobres na escola pública, os de classe média nas subvencionadas e os ricos nas privadas.

Conforme Freitas (2014)FREITAS, L. C. Os reformadores empresariais da educação e a disputa pelo controle do processo pedagógico na escola. Educação & Sociedade, Campinas, v. 35, n. 129, p. 1085-1114, out./dez., 2014. https://doi.org/10.1590/ES0101-73302014143817
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, pesquisas demonstram que a responsabilização educacional tem consequências não controladas no processo educativo, podendo romper a confiança que sedimenta as relações dos profissionais entre si e destes com os estudantes. Os professores atribuem grande importância psicológica ao próprio trabalho, cuja dinâmica combina quatro fatores: respeito, competência, consideração com os outros e integridade. A concorrência por resultados pode comprometer o conjunto, rompendo com a confiança dos envolvidos, que podem recorrer a fraudes para obter os fins desejados. No que se refere ao sistema, Freitas (2012)FREITAS, L. C. Os reformadores empresariais da educação: da desmoralização do magistério à destruição do sistema público de educação. Educação & Sociedade, Campinas, v. 33, n. 119, p. 379-404, jun. 2012. https://doi.org/10.1590/S0101-73302012000200004
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alerta para a possibilidade de mudanças de notas, níveis de testes rebaixados, fraude das prestadoras de serviços que constroem, aplicam e corrigem testes, entre outros. No âmbito escolar, Freitas (2013)FREITAS, L. C. Políticas de responsabilização: entre a falta de evidência e a ética. Cadernos de Pesquisa, v. 43, n. 148 p. 348-365 jan./abr. 2013. https://doi.org/10.1590/S0100-15742013000100018
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atenta para o risco de restrição do currículo escolar ao nacional; treino de estudantes para os exames; atenção do professor nos alunos próximos ao nível de proficiência, pelo pouco tempo disponível para atendimento individualizado, descomprometendo-se com os que estão muito acima ou abaixo dessa faixa.

As políticas neoliberais de responsabilização profissional por resultados educacionais vinculam-se à precarização da atuação do professor, que tanto legitima a privatização do ensino quanto barateia a força de trabalho. Essa precarização se constrói, entre outras formas, pelo aligeiramento da formação; desqualificação profissional perante a sociedade; cerceamento da autonomia para decidir rumos do trabalho pedagógico; imposição de lógica concorrencial que individualiza e enfraquece a luta por melhores condições de trabalho e valorização profissional.

Precarizar a formação do professor é condição para maior controle sobre seu trabalho. Nesse sentido, Freitas (2014)FREITAS, L. C. Os reformadores empresariais da educação e a disputa pelo controle do processo pedagógico na escola. Educação & Sociedade, Campinas, v. 35, n. 129, p. 1085-1114, out./dez., 2014. https://doi.org/10.1590/ES0101-73302014143817
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assevera que afastar a formação de professores das universidades, direcionando-a para instituições que proveem uma base teórica restrita e pragmática, dificulta que o docente tenha formação avançada e crítica que lhe permita agir com autonomia e questionar relações. O professor perde o controle sobre seu trabalho quando perde de vista o que ensina, seguindo apostilas que preveem o que deve realizar; quando se premia a performance dos mais competentes em criar resultados a partir de parâmetros externos às escolas; quando se terceiriza classes ou programas de reforço on-line, que liberam o professor da necessidade de adequar processos pedagógicos aos ritmos de aprendizagem dos estudantes.

Todos esses mecanismos cerceiam os limites da qualidade educacional, enquadrando-a na lógica minimalista do mercado. A avaliação, distante de se constituir em mecanismo de melhoria qualitativa do trabalho escolar, constitui-se meio de legitimação da desigualdade e da meritocracia, de responsabilização profissional, de subordinação da educação às demandas do capital e de precarização do trabalho do professor.

Face a esse cenário, Freitas (2005, p. 912)FREITAS, L. C. Qualidade negociada: avaliação e contrarregulação na escola pública. Educação & Sociedade, v. 26, n. 92, p. 911-933, out. 2005. https://doi.org/10.1590/S0101-73302005000300010
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conclama os trabalhadores da educação a implementarem processos de contrarregulação, que consistem “na resistência propositiva que cria compromissos ancorados na comunidade mais avançada da escola (interna e externa), com vistas a que o serviço público se articule com seus usuários para, quando necessário, resistir à regulação”. Resiste-se à qualidade empresarial na educação, isso não implica recusar a avaliação e nem a responsabilização profissional em si.

Freitas (2016b, p. 135)FREITAS, L. C. A importância da avaliação: em defesa de uma responsabilização participativa. Em Aberto, Brasília, v. 29, n. 96, p. 127-139, maio/ago. 2016b. https://doi.org/10.24109/2176-6673.emaberto.29i96.3156
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advoga a necessidade de “criar uma cultura de responsabilização baseada na participação, que tenha durabilidade para lidar com problemas que afetam o dia a dia das escolas e sua micropolítica local”. Isso requer, segundo o autor, que o poder público se responsabilize pela qualificação institucional e por uma escola pública de gestão pública. Também deve construir visão alargada de sistema de avaliação nacional, pautada em responsabilidades compartilhadas entre a esfera federal e os sujeitos escolares (FREITAS, 2016bFREITAS, L. C. A importância da avaliação: em defesa de uma responsabilização participativa. Em Aberto, Brasília, v. 29, n. 96, p. 127-139, maio/ago. 2016b. https://doi.org/10.24109/2176-6673.emaberto.29i96.3156
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). À primeira cabe avaliações externas amostrais, capazes de aferir conhecimentos de forma aprofundada e diferenciada, implementando políticas significativas ao incremento da qualidade educacional. Na escola, porém, deve estar o centro do processo avaliativo, pautado na participação dos sujeitos, provendo informações, criando sinergias no trato dos problemas escolares e desenvolvendo ações duráveis, baseadas na autonomia profissional e na negociação coletiva.

Considerações finais

A produção científica de Luiz Carlos de Freitas publicada em periódicos nacionais demonstra o posicionamento crítico do autor acerca de assuntos variados da política educacional e, em particular, relacionados à qualidade e à avaliação educacional e denuncia a coexistência de referenciais de qualidade educacional ancorados em concepções de ciência, sociedade e educação contrapostos. Sem descuidar da crítica ao sistema capitalista e de suas consequências funestas na educação, artigos da primeira década do século XXI apresentam o referencial de educação, qualidade e avaliação que advoga, pautado na defesa da participação, da igualdade e da garantia de direitos.

Qualidade educacional, na concepção do autor, demanda compromisso do Estado e do servidor para que se constitua, de fato, em direito, garantindo igualdade de acesso, permanência e sucesso escolar, sem descuidar das especificidades das classes sociais e dos sujeitos. A qualidade constrói-se a partir de parâmetros negociados coletivamente para que sentidos e responsabilidades sejam partilhados, mediados por processos de planejamento e avaliação institucional, articulados entre as instâncias decisórias, internas e externas à escola.

Cabe ao poder público, entre outras funções, assegurar condições de trabalho profissional, mobilizar os sujeitos locais atribuindo-lhes liberdade para legitimar e refletir sobre a melhoria da qualidade escolar, tendo como base o projeto político-pedagógico. As avaliações nacionais devem orientar melhoria da ação pública, de modo que processos de responsabilização incidam, em particular, sobre profissionais da mesma esfera de atuação, visto que a proximidade das relações permite melhor análise das ações, considerando parâmetros acordados coletivamente.

A crítica à qualidade educacional pautada nas políticas educacionais neoliberais, permeia a obra analisada, sendo enfatizada, particularmente, na crítica aos reformadores empresariais da educação da segunda década do século XXI. Denuncia que, sob essa lógica, o objetivo da educação nacional consiste em conformar-se às necessidades do capital, bem como em adaptar os sujeitos à subordinação e à exclusão. Para tanto, fomenta-se o neotecnicismo, que esvazia a educação de conteúdo teórico e político e enfatiza a gestão, o uso de tecnologias, as políticas de avaliação externas e de responsabilização. Sob essas bases, as políticas educacionais implicam diminuição de recursos nas escolas públicas; estreitamento curricular; controle ideológico da educação; acesso a conhecimentos básicos; atendimento aos interesses das corporações; concorrência e meritocracia. Tudo isso amplia as desigualdades e retira da juventude condições para compreender e transformar sua própria realidade.

Em contraposição a essa lógica excludente, Freitas defende um referencial de qualidade escolar que se coloque a serviço da transformação social, mobilizando a escola para a construção de alternativas sociais baseadas na solidariedade, na auto-organização profissional e estudantil, no respeito à diversidade cultural. Para tanto, a escola deve ocupar-se de ampla formação humana, organizando seu trabalho pedagógico de modo a proporcionar acesso a diferentes dimensões do conhecimento, valorizando a cultura, a história, o trabalho e as lutas sociais em favor dessa transformação, o que requer profissionais qualificados para tal propósito.

Agradecimentos

Não se aplica.

  • Número temático organizado por: Regiane Helena Bertagna https://orcid.org/0000-0003-4415-0978 e Maria Simone Ferraz Pereira https://orcid.org/0000-0001-7009-7571
  • Financiamento

    Não se aplica.

Disponibilidade de dados da pesquisa

Todos os dados foram gerados/analisados no presente artigo.

Referências

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Editoras Associadas:

Ana Luiza Bustamante Smolka https://orcid.org/0000-0002-2064-3391 e Daniela Dias dos Anjos https://orcid.org/0000-0002-7695-835X

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    22 Nov 2022
  • Aceito
    21 Jun 2023
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