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EDUCAÇÃO INFANTIL E AVALIAÇÃO: COMPROMISSO COM A QUALIDADE SOCIAL

EARLY CHILDHOOD EDUCATION AND ASSESSMENT: COMMITMENT TO SOCIAL QUALITY

RESUMO

Este ensaio apresenta a relação entre a avaliação na Educação Infantil e a avaliação formativa. Parte das orientações dos documentos oficiais produzidos pelo Ministério da Educação e das contribuições de pesquisadoras que defendem processos avaliativos mais democráticos, dialógicos e participativos. A diferença é considerada potente para a prática pedagógica, pois existem várias infâncias. O compromisso com os princípios da qualidade social amplia as relações pedagógicas para a formação humana, não restringindo as práticas avaliativas para a classificação.

Palavras-chave
Avaliação na Educação infantil; Diferença; Qualidade social

ABSTRACT

This essay presents the relationship between evaluation in Early Childhood Education and formative evaluation. It starts from the guidelines of official documents produced by the Ministry of Education and from the contributions of researchers who defend more democratic, dialogical, and participatory evaluation processes. The difference is considered powerful for pedagogical practice, as there are several childhoods. The commitment to the principles of social quality expands pedagogical relationships for human formation, not restricting evaluation practices for classification.

Keywords
Evaluation in Childhood Education; Difference; Social quality

Introdução

Cenas do cotidiano. Na época em que o fato narrado a seguir aconteceu, uma das autoras deste texto era professora em uma turma de pré-escola de uma unidade escolar da rede municipal carioca. As crianças estavam em atividade de Educação Física enquanto a professora estava organizando diferentes registros feitos por elas. Uma colega, professora dos anos iniciais do Ensino Fundamental, “puxou conversa” e, lá pelas tantas, decidiu pegar os desenhos das crianças para avaliá-los de maneira informal. “Este desenho aqui é de Marcelo, né?”, se limitou a perguntar. “Nossa, o desenho dele é muito “atrasado”, não é o desenho de uma criança de 4 (quatro) anos. Não tem jeito, ele é igual ao irmão dele, o Marcos1 1 Os nomes das crianças foram trocados, a fim de manter o anonimato. . Ele também vai para a Turma de Progressão2 2 Na época, o trabalho pedagógico realizado com os três anos iniciais da rede pública municipal carioca estava organizado em Ciclos de Formação (1º Ciclo). As Turmas de Progressão eram turmas de correção de fluxo destinadas às crianças que não haviam se alfabetizado no período. ”. Na ocasião, a pesquisadora tentou argumentar que a criança tinha apenas 4 (quatro) anos e que teria toda a trajetória educacional para se “desenvolver”. Mas logo a conversa foi interrompida pela chegada das crianças à sala onde as duas estavam. Alguns anos depois do ocorrido, a pesquisadora precisou retornar à escola para pegar documentação comprobatória de docência. Eis que, de repente, foi “surpreendida” com Marcelo na Turma de Progressão. Profecia autorrealizável? Com toda a certeza não!

O objetivo deste ensaio é discutir a relação entre a avaliação da aprendizagem na Educação Infantil e a avaliação formativa, indo na contramão dos princípios da avaliação classificatória, concepção ainda hegemônica no Ensino Fundamental que, infelizmente, ainda influencia o trabalho pedagógico realizado na primeira etapa da Educação Básica (HOFFMANN, 2014HOFFMANN, J. Avaliação na pré-escola: um olhar sensível e reflexivo sobre a criança. Porto Alegre: Editora Mediação, 2014.). Parte das orientações dos documentos oficiais produzidos pelo Ministério da Educação (MEC), tais como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2010BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Brasília, DF: MEC/SEB, 2010. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=9769-diretrizescurriculares-2012&category_slug=janeiro-2012-pdf&Itemid=30192. Acesso em: 16 ago. 2022.
http://portal.mec.gov.br/index.php?optio...
), e das contribuições de pesquisadoras da área de avaliação (HOFFMANN, 2014HOFFMANN, J. Avaliação na pré-escola: um olhar sensível e reflexivo sobre a criança. Porto Alegre: Editora Mediação, 2014.; ESTEBAN, 1993ESTEBAN, M. T. Jogos de encaixe: educar ou formatar a pré-escola? In: GARCIA, R. L. (org.). Revisitando a pré-escola. São Paulo: Cortez, 1993, p. 21-36.; FERNANDES, 2006FERNANDES, C. O. Avaliação sempre envolve uma concepção de mundo. Revista Criança, n. 41, p. 9-11, nov. 2006. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Educinf/revcrian_41.pdf. Acesso em: 31 mar. 2022.
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).

Para fins didáticos, organizamos o texto da seguinte forma: a) na primeira sessão abordamos a questão da avaliação da aprendizagem no contexto educacional brasileiro; b) a seguir, tratamos a relação entre a diferença e os processos de avaliação vivenciados no cotidiano escolar; c) por fim, assumimos o compromisso com uma avaliação educacional voltada para os princípios da qualidade social, a partir do diálogo entre a avaliação da aprendizagem e avaliação institucional.

Não é nosso objetivo culpabilizar a professora ou a escola pelo fracasso na trajetória escolar do menino, mas discutir como a avaliação, em sua perspectiva classificatória, vem se tornando em ferramenta de exclusão, a partir de normas e/ou padrões de desenvolvimento e aprendizagem, entendendo os processos infantis como lineares e a infância como universal.

Avaliação da aprendizagem na Educação Infantil e o contexto educacional brasileiro

Nos últimos anos muito se tem discutido a respeito da avaliação relacionada à Educação Infantil (EI), principalmente a partir do seu reconhecimento enquanto primeira etapa da Educação Básica (BRASIL, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 16 ago. 2022.
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; BRASIL, 1996BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 23 dez. 1996. Brasília, DF: MEC/SEB, 1996. Disponível em http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/lei9394_ldbn1.pdf. Acesso em: 16 ago. 2022.
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).

É possível observar que, de modo geral, as produções acadêmicas se dividem em duas vertentes: a) avaliação da EI; b) avaliação na EI. Entendemos que a avaliação da EI trata da avaliação de políticas públicas voltadas para esta etapa, enquanto a avaliação na EI aborda a avaliação no âmbito do cotidiano escolar, nos processos que envolvem a prática docente e as aprendizagens das crianças que frequentam instituições de EI, o que, na área da avaliação, entendemos como avaliação da aprendizagem.

Para este ensaio, o foco recai sobre a avaliação da aprendizagem e avaliação formativa, considerando que a temática ainda suscita concepções oriundas de outras etapas, como a avaliação classificatória e seletiva predominante nos Ensino Fundamental e Médio.

ScrivenSCRIVEN, M. Avaliação: um guia de conceitos. Trad. Marilia Sette Câmara. 1. Ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018. faz a seguinte distinção entre as duas modalidades de avaliação: a) avaliação formativa: “(...) é realizada durante o desenvolvimento ou melhoria de um programa ou produto (...) e é realizada, com frequência mais de uma vez, para o pessoal interno com vistas à melhoria” (2018, p. 106); b) avaliação somativa: “(...) é conduzida após o término de um programa” (Ibid., p. 182). Ainda segundo o autor, avaliação formativa diverge da avaliação somativa. Em se tratando da Educação Infantil, não cabe atribuir notas ou conceitos, tampouco reprovar crianças ao final do período, práticas comuns à avaliação somativa (também conhecida como classificatória). Sendo a avaliação formativa a concepção que baliza as práticas pedagógicas oferecidas às crianças de Educação Infantil, diz respeito ao acompanhamento dos processos de aprendizagem e desenvolvimento das crianças, tendo como parceiros nesta empreitada a observação e a utilização de múltiplos registros.

De acordo com Fernandes, a avaliação está diretamente relacionada às concepções de mundo que cada envolvido no processo educativo possui ou construiu ao longo de sua trajetória de vida, ainda baseadas “pela lógica da classificação e da seleção, no que tange à avaliação” (2006, p. 9). Menciona que há escolas privadas de Educação Infantil que incorporam tais práticas (provas e notas) como forma de angariar legitimidade e credibilidade junto às famílias. Concordamos com a autora, quando propõe que para reverter essa lógica tão consolidada nos contextos educativos é preciso considerar o papel social tanto das instituições, quanto das docentes e promover princípios que favoreçam à avaliação formativa.

Podemos entender que, na avaliação formativa, o professor não avalia com o propósito de dar uma nota. A avaliação acontece, pois se entende que ela é essencial para dar prosseguimento aos percursos de aprendizagem. Continuamente, ela faz parte do cotidiano das tarefas propostas, das observações atentas do professor, das práticas de sala de aula. Ainda para a autora: “(...) podemos dizer que avaliação formativa é aquela que orienta as crianças para a realização de seus trabalhos e de suas aprendizagens, ajudando-as a localizar suas dificuldades e suas potencialidades, redirecionando-as em seus percursos” (Ibid., p. 11).

Segundo o artigo 29 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN (BRASIL, 1996BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 23 dez. 1996. Brasília, DF: MEC/SEB, 1996. Disponível em http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/lei9394_ldbn1.pdf. Acesso em: 16 ago. 2022.
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), a Educação Infantil tem por objetivo “o desenvolvimento integral da criança de até 5 (cinco) anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade”. Determina ainda, em seu artigo 31, inciso I, que a “avaliação mediante acompanhamento e registro do desenvolvimento das crianças, sem o objetivo de promoção, mesmo para o acesso ao ensino fundamental”. Desta forma, fica evidenciado que a avaliação na EI deve privilegiar o processo de aprendizagem das crianças.

A avaliação é um tema complexo por si só por abarcar múltiplas concepções, valores (da instituição, dos professores, das famílias, da sociedade), além de experiências pessoais. Para Hoffmann (2014)HOFFMANN, J. Avaliação na pré-escola: um olhar sensível e reflexivo sobre a criança. Porto Alegre: Editora Mediação, 2014., é preciso considerar ainda a concepção de infância, as teorias do conhecimento, questões curriculares e o contexto de oferta da EI.

Avaliar na EI envolve, ainda, as especificidades que a constituem, como a vinculação entre o cuidar e educar, e a intencionalidade do trabalho pedagógico pautado nos eixos das interações e brincadeiras. Neste sentido, os documentos curriculares do MEC voltados para a Educação Infantil – tais como os Referenciais Curriculares para a Educação Infantil – RCNEI (BRASIL, 1998BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Brasília: MEC/SEF, 1998. 3v.) e as Diretrizes Nacionais para a Educação Infantil – DCNEI (BRASIL, 2010BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Brasília, DF: MEC/SEB, 2010. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=9769-diretrizescurriculares-2012&category_slug=janeiro-2012-pdf&Itemid=30192. Acesso em: 16 ago. 2022.
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) – reafirmam as especificidades da EI, tendo como objetivo principal orientar o trabalho pedagógico de modo que a aprendizagem e o desenvolvimento integral sejam garantidos.

Parte do trabalho do educador é refletir, selecionar, organizar, planejar, mediar e monitorar o conjunto das práticas e interações, garantindo a pluralidade de situações que promovam o desenvolvimento pleno das crianças.

É preciso acompanhar tanto essas práticas quanto as aprendizagens das crianças, realizando a observação da trajetória de cada criança e de todo o grupo – suas conquistas, avanços, possibilidades e aprendizagens. Por meio de diversos registros feitos em diferentes momentos, tanto pelos professores quanto pelas crianças (como relatórios, portfólios, fotografias, desenhos e textos), é possível evidenciar a progressão ocorrida durante o período observado, sem intenção de seleção, promoção ou classificação de crianças em “aptas” e “não aptas”, “prontas” ou “não prontas”, “maduras” ou “imaturas”.

Desta forma, os documentos citados, ao tratarem de avaliação, apontam a importância da observação, registro e reflexão para a avaliação e acompanhamento do trabalho pedagógico e do desenvolvimento infantil sem que haja objetivo de seleção, promoção ou classificação das crianças (BRASIL, 1998BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Brasília: MEC/SEF, 1998. 3v.; BRASIL, 2010BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Brasília, DF: MEC/SEB, 2010. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=9769-diretrizescurriculares-2012&category_slug=janeiro-2012-pdf&Itemid=30192. Acesso em: 16 ago. 2022.
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).

Concordamos com as pesquisadoras e estudiosas da temática (ESTEBAN, 1993ESTEBAN, M. T. Jogos de encaixe: educar ou formatar a pré-escola? In: GARCIA, R. L. (org.). Revisitando a pré-escola. São Paulo: Cortez, 1993, p. 21-36.; FERNANDES, 2006FERNANDES, C. O. Avaliação sempre envolve uma concepção de mundo. Revista Criança, n. 41, p. 9-11, nov. 2006. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Educinf/revcrian_41.pdf. Acesso em: 31 mar. 2022.
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; HOFFMANN, 2014HOFFMANN, J. Avaliação na pré-escola: um olhar sensível e reflexivo sobre a criança. Porto Alegre: Editora Mediação, 2014.) e em consonância com os documentos do MEC (BRASIL, 1998BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Brasília: MEC/SEF, 1998. 3v.; BRASIL, 2010BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Brasília, DF: MEC/SEB, 2010. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=9769-diretrizescurriculares-2012&category_slug=janeiro-2012-pdf&Itemid=30192. Acesso em: 16 ago. 2022.
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), entendemos que os processos avaliativos precisam se assumir mais democráticos, dialógicos e participativos, onde ambas, professoras e crianças, possam aprender em processos colaborativos e compartilhados. Neste sentido, entendemos que aceitação da diferença como elemento potente para os processos pedagógicos precisa ser assumida por professores/as, e que “a prioridade da heterogeneidade real sobre a homogeneidade idealizada seja assumida” (ESTEBAN, 2001/2002ESTEBAN, M. T. Muitos pontos de partida, muitos pontos de chegada – a heterogeneidade no cotidiano escolar. Educação em Foco, Juiz de For a, v. 6, n. 2, p. 49- 59, set/fev 2001/2002. Acesso em: 16 ago. 2022., p. 49).

Avaliação e diferença: tramas singulares para o cotidiano escolar

O fato narrado na introdução deste texto evidencia uma busca pela classificação da criança pequena, a partir de estágios de desenvolvimento biológicos e psicológicos (PIAGET, 1987PIAGET, J. O nascimento da inteligência na criança. 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.), que produz práticas pedagógicas que desconsideram as singularidades das crianças.

Segundo Esteban (2001/2002, p. 50)ESTEBAN, M. T. Muitos pontos de partida, muitos pontos de chegada – a heterogeneidade no cotidiano escolar. Educação em Foco, Juiz de For a, v. 6, n. 2, p. 49- 59, set/fev 2001/2002. Acesso em: 16 ago. 2022., “(...) avaliar vem de atribuir valor, o que nos remete aos consensos e tensões sociais”. Explicando melhor, não existe neutralidade no ato de avaliar. Avaliamos a partir das conceções que balizam nossas práticas pedagógicas, a nossa visão de mundo (FERNANDES, 2006FERNANDES, C. O. Avaliação sempre envolve uma concepção de mundo. Revista Criança, n. 41, p. 9-11, nov. 2006. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Educinf/revcrian_41.pdf. Acesso em: 31 mar. 2022.
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). Freitas et al. (2009)FREITAS, L. C. et al. Avaliação educacional: caminhando pela contramão. Petrópolis, RJ: Vozes: 2009. ampliam o debate quando esclarecem que no âmbito da avaliação informal – que diz respeito aos juízos de valor do/a professor/a sobre o/a estudante – estão os juízos de valor “invisíveis” que são construídos nas interações diárias e acabam influenciando os resultados das avaliações formais – técnicas e procedimentos como provas e trabalhos que conduzem a uma nota. Ou, no caso da Educação Infantil, em que não há atribuição de notas e conceitos (BRASIL, 2010BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Brasília, DF: MEC/SEB, 2010. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=9769-diretrizescurriculares-2012&category_slug=janeiro-2012-pdf&Itemid=30192. Acesso em: 16 ago. 2022.
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), mas a lógica da classificação acaba por influenciar a observação e o acompanhamento pedagógico, assim como os registros e as análises feitas a partir da observação cotidiana das aprendizagens infantis. Neste sentido, Hoffmann (2014)HOFFMANN, J. Avaliação na pré-escola: um olhar sensível e reflexivo sobre a criança. Porto Alegre: Editora Mediação, 2014. alerta sobre o perigo de reproduzir a lógica da classificação na escrita de relatórios descritivos, quando estes pouco dizem sobre as crianças e seus processos de aprendizagem, restringindo tais registros a questões comportamentais.

A forma como a colega enxerga a criança, comparando-a com o irmão, parte do princípio de que existem padrões de infância, de desenvolvimento e aprendizagem. Logo, se uma criança se apresenta diferente do esperado, significa que essa diferença precisa ser corrigida, uma vez que existe um padrão utilizado como referência para o processo de avaliação. Para Scriven “(...) padrões são prescritivos e, por conseguinte, são sempre normativos em um sentido.” (2018, p. 391). Ainda, de acordo com o autor, padrões são “conjuntos de princípios que guiam avaliadores” (Ibid., p. 392), embora “determinar quais fatores são relevantes e quais padrões são adequados é com frequência muito difícil. (Ibid., p. 34). Ainda nessa linha de raciocínio, Esteban (2001/2002, p. 54)ESTEBAN, M. T. Muitos pontos de partida, muitos pontos de chegada – a heterogeneidade no cotidiano escolar. Educação em Foco, Juiz de For a, v. 6, n. 2, p. 49- 59, set/fev 2001/2002. Acesso em: 16 ago. 2022. sinaliza que a “pela homogeneidade é uma das características centrais do processo ensino/aprendizagem realizado na escola”. No entanto, o cotidiano escolar é marcado pela heterogeneidade, o que nos abriga a substituir “a homogeneidade idealizada pela heterogeneidade real” (op. cit.).

Para Vigotski (1998, p. 110)VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998., “(...) o aprendizado das crianças começa muito antes delas frequentarem a escola”. Explicando melhor, qualquer situação de aprendizagem que ela vivencie na escola houve uma história prévia. A ideia do “in-fans” – o que não tem fala, herdada a partir da modernidade, como nos ensina Ariès (1979)ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979., contraria essa premissa e despotencializa a relação entre a criança e a professora de Educação Infantil. Neste sentido, Vigotski (1998)VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. nos alerta para o fato de que aprendemos uns com os outros. Segundo o autor (Ibid., p. 75), “um processo interpessoal é transformado num processo intrapessoal”, uma vez que todas as funções no desenvolvimento infantil aparecem duas vezes, inicialmente no nível social, para depois aparecer no nível individual. Assumir essa realidade para o trabalho pedagógico nos possibilita a trabalhar com crianças reais, não idealizadas. Ao enxergar as crianças como elas realmente são torna-se possível promover intervenções pedagógicas que dialoguem com os seus reais interesses e necessidades. Aprendizagem organizada de forma intencional e adequada resulta desenvolvimento mental (VIGOTSKI, 1998VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.).

Em diálogo com Vigotski, Esteban (2001/2002)ESTEBAN, M. T. Muitos pontos de partida, muitos pontos de chegada – a heterogeneidade no cotidiano escolar. Educação em Foco, Juiz de For a, v. 6, n. 2, p. 49- 59, set/fev 2001/2002. Acesso em: 16 ago. 2022. argumenta que o cotidiano escolar “traz a heterogeneidade como um dos seus traços principais, colocando muitos obstáculos para que o processo construído na perspectiva da homogeneidade se realize plenamente” (Ibid., p. 54). Professores/as despendem de um esforço hercúleo para tentar realizar algo que está, de antemão, fadado ao fracasso. Por conta disso, torna-se urgente e necessário abandonar o apreço pela homogeneidade, assumindo a diferença como potente para o trabalho pedagógico. Aprendemos uns com os outros justamente porque somos diferentes. Em vez de silenciar e apagar as diferenças, precisamos assumir essa premissa como ponto de partida para o trabalho realizado no cotidiano na escola.

Infelizmente a lógica da avaliação classificatória influencia o trabalho pedagógico desenvolvido na EI (FERNANDES, 2006FERNANDES, C. O. Avaliação sempre envolve uma concepção de mundo. Revista Criança, n. 41, p. 9-11, nov. 2006. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Educinf/revcrian_41.pdf. Acesso em: 31 mar. 2022.
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; HOFFMANN, 2014HOFFMANN, J. Avaliação na pré-escola: um olhar sensível e reflexivo sobre a criança. Porto Alegre: Editora Mediação, 2014.), embora não estejam de acordo com a proposta para esta etapa. A este respeito, Esteban (1993)ESTEBAN, M. T. Jogos de encaixe: educar ou formatar a pré-escola? In: GARCIA, R. L. (org.). Revisitando a pré-escola. São Paulo: Cortez, 1993, p. 21-36. utiliza a metáfora dos jogos de encaixe, tão presentes nas salas das instituições de EI, às práticas pedagógicas inadequadas, que tentam formatar as crianças de modo a prepará-las em alunos/as aptos a frequentarem as próximas etapas de ensino e tendo como foco os resultados a serem alcançados. Para a autora, a EI assume, portanto, a função preparatória e homogeneizante em detrimento da ludicidade e da potência das diferenças. A avaliação segue essa mesma lógica, partindo de padrões de desenvolvimento e de aprendizagem, realiza comparações entre modelos pré-estabelecidos.

Em contraposição, a autora aponta a possibilidade de que a EI seja espaço de construção de conhecimento pelas crianças o que suscita “a necessidade de uma reconstrução do significado e das práticas avaliativas. Este olhar para a pré-escola se fundamenta em outras concepções de criança, de aprendizagem e de desenvolvimento” (ESTEBAN, 1993ESTEBAN, M. T. Jogos de encaixe: educar ou formatar a pré-escola? In: GARCIA, R. L. (org.). Revisitando a pré-escola. São Paulo: Cortez, 1993, p. 21-36., p. 31). De acordo com essa concepção, a avaliação assume a função de acompanhar o processo vivenciado pelas crianças evidenciando os conhecimentos construídos, os em desenvolvimento ou os que ainda precisam ser aprofundados, potencializados pela diferença. A autora destaca,

O conhecimento da criança é trazido para a sala de aula e se toma conteúdo pedagógico. A preocupação do processo avaliativo é retirada da classificação das respostas da criança em “certas” ou “erradas” e deslocada para a investigação do processo ensino/aprendizagem como totalidade. A pré-escola torna-se mais um espaço de descoberta sobre a vida. Espaço privilegiado, pois ali se reúnem crianças diversas, com informações, realidades e curiosidades diferentes, que interagem entre si e com a professora, que também traz suas experiências e conhecimentos acumulados. Juntos, constroem novos conhecimentos e se apropriam dos conhecimentos disponíveis, que se revelam pertinentes para o grupo de crianças

(Ibid., p. 34).

A diferença é considerada potente para os processos de aprendizagem (ESTEBAN, 2001/2002ESTEBAN, M. T. Muitos pontos de partida, muitos pontos de chegada – a heterogeneidade no cotidiano escolar. Educação em Foco, Juiz de For a, v. 6, n. 2, p. 49- 59, set/fev 2001/2002. Acesso em: 16 ago. 2022.), pois entende-se que não existe uma infância única, no singular, mas várias infâncias (CORSARO, 1997CORSARO, W. The Sociology of Childhood. California: Pine Forge, 1997.; ABRAMOVICZ; LEVCOVITZ; CONSENTINO RODRIGUES, 2009ABRAMOWICZ, A.; LEVCOVITZ, D.; CONSENTINO RODRIGUES, T. Infâncias em Educação Infantil. Pro-Posições, Campinas, v. 20, n. 3 (60), p. 179-197, set./dez. 2009. https://doi.org/10.1590/S0103-73072009000300012
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). As infâncias são construídas e vividas de formas diferentes nos mais diversos contextos históricos, sociais, econômicos e culturais, sendo essa premissa pressuposto básico para a superação de qualquer forma de exclusão dentro das instituições de Educação Infantil, especialmente num país marcado pela desigualdade social, econômica e cultural, como é o nosso. Neste sentido, entendemos a potência do trabalho coletivo, através dos princípios balizadores da avaliação institucional, na tentativa de provocar fissuras na lógica da avaliação classificatória, rumo a processos avaliativos mais democráticos e participativos.

Educação Infantil e avaliação: compromisso com a qualidade social

Entendemos ser necessário ampliar a discussão sobre a questão da avaliação para além da sala de aula e da aprendizagem das crianças, uma vez que, a nosso entender, todo o contexto educativo é formativo. Tal premissa nos convoca a pensar o diálogo necessário com a avaliação institucional, como uma ação coletiva que envolve, de fato, o coletivo da escola e não como algo isolado, individual. A escola é habitada por diferentes sujeitos, com suas especificidades, com suas histórias e com seu entendimento de mundo. Diante disso, há uma necessidade urgente de se refletir sobre a avaliação como um compromisso de todos da escola, e não apenas da(o) professora(o). Observar e considerar os contextos vivenciados pelas crianças e suas famílias precisa ser considerado não somente na Educação Infantil, mas em todas as etapas da Educação, numa tentativa necessária, urgente e inegociável de compreender e acolher as singularidades de cada sujeito, sejam eles crianças ou não. Repensar a missão da escola, a responsabilidade com as infâncias e seu compromisso de sociedade vai ao encontro de um projeto político-pedagógico democrático e responsável, principalmente, com as classes populares.

A avaliação institucional da escola é um processo que envolve todos que a habitam com o intuito de negociar seu avanço e suas transformações, a partir de questões concretas vivenciados por elas, em seu cotidiano. É uma apropriação por parte de seus sujeitos de um projeto de escola e reafirmação com as classes populares e, no caso da Educação Infantil, um compromisso com as infâncias que se apresentam todos os dias nos espaços escolares. O objetivo da avaliação institucional é que o coletivo que habita a escola consiga localizar suas fragilidades e reflita sobre elas gerando, assim, possibilidades de superação, transformação. Bertagna et al. (2020)BERTAGNA, R. et al. Avaliação da qualidade social da escola pública: delineamentos de uma proposta referenciada na formação humana. Políticas Educativas, Paraná, v. 13, n. 2, p. 63-86, 2020. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/Poled/article/view/107364/58282. Acesso em: 22 ago. 2022.
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definem esse exercício coletivo como Avaliação Institucional Participativa (AIP), por possibilitar a participação democrática, o comprometimento com o desenvolvimento do projeto político-pedagógico da escola e a construção e manutenção da sua qualidade.

Assumir as práticas educacionais e pedagógicas para crianças de zero a cinco anos é considerá-las como atores sociais; é a defesa de estudos com e não sobre as crianças (CORSARO, 1997CORSARO, W. The Sociology of Childhood. California: Pine Forge, 1997.; DELGADO; MÜLLER, 2005DELGADO, A. C. C.; MÜLLER, F. Sociologia da Infância: pesquisa com crianças. Apresentação. Educação & Sociedade, Campinas, SP, v. 26, n. 91, p. 351-360, maio/ago. 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302005000200002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em: 16 ago. 2022.
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; NASCIMENTO, 2011NASCIMENTO, M. L. B. P. Reconhecimento da Sociologia da Infância como área de conhecimento e campo de pesquisa: algumas considerações. In: FARIA, A. L. G. de; FINCO, D. (Org.). Sociologia da Infância no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2011, p. 37-54.). Neste sentido, pensamos que, ao avaliar o contexto no qual trabalha, o educador da Educação Infantil tem a oportunidade de refletir a respeito de sua participação em relação às propostas desenvolvidas cotidianamente e, consequentemente, a um aprimoramento das práticas educativas. Um processo de avaliação que, para além de classificar, medir, rotular, tenha, por objetivo, propor uma reflexão em busca de práticas que façam sentido às crianças em creches e pré-escolas.

A concepção de gestão democrática é um princípio defendido na Constituição Federal (BRASIL, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 16 ago. 2022.
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) e na LDBEN (BRASIL, 1996BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 23 dez. 1996. Brasília, DF: MEC/SEB, 1996. Disponível em http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/lei9394_ldbn1.pdf. Acesso em: 16 ago. 2022.
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). Desta forma, temos a legitimação de que a educação é um processo colaborativo, que demanda a participação de todos os envolvidos. Sendo assim, é por meio dessa participação, organizada e compromissada, que resulta a qualidade de ensino para todos, princípio de democratização da educação. Justamente porque somos diferentes e ocupamos protagonismos diferenciados no ambiente escolar podemos ampliar o nosso olhar e a nossa escuta sobre o/a outro/a, entendendo a diferença como potência – e não como deficiência.

Vieira e Côco (2019)VIEIRA, M. N. de A.; CÔCO, V. Planejamento da avaliação institucional na educação infantil: movimentos participativos. Estudos em Avaliação Educacional, São Paulo, v.30, n. 74, p. 588-613, maio/ago. 2019. https://doi.org/10.18222/eae.v30i74.5882
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realçam a importância de marcarmos a dimensão formativa da avaliação institucional, que se dá nas instituições educativas, e que ela pode fortalecer os princípios de realização de processos compartilhados. As autoras destacam a importância dos encontros de formação como primordiais para a ação avaliativa.

Como um maestro, o gestor escolar, comprometido com a participação dos envolvidos, convida à uma avaliação do cotidiano, das práticas e crenças que, por meio de uma transformação nos sujeitos, possibilita uma mudança significativa na instituição escolar. Por isso, Bondioli (2013)BONDIOLI, A. Dos indicadores às condições do projeto educativo: um percurso pedagógico-político de definição da qualidade das creches na Região da Emília-Romanha. In: BONDIOLI, A. (Org.). O projeto pedagógico da creche e sua avaliação: a qualidade negociada. Tradução: Fernanda Landucci Ortale; Ilse Paschoal Moreira. 2 ed. rev. Campinas, SP: Autores Associados, 2013, p. 13-32. (Coleção educação contemporânea). considera a participação uma responsabilidade, isto é, mais do que um direito ou dever, significa uma condição inerente a qualquer processo educativo de qualidade. Sendo assim, pensamos que, ancorada nas reflexões da autora, não há qualidade sem a participação dos sujeitos envolvidos no processo. Processo este que a pesquisadora nomeia como qualidade negociada:

A qualidade não é um dado de fato, não é um valor absoluto, não é adequação a um padrão ou normas estabelecidas a priori e do alto. Qualidade é transação, isto é, debate entre indivíduos e grupos que têm um interesse na rede educativa, que tem responsabilidade para com ela, com a qual estão envolvidos de algum modo e que trabalham para explicitar e definir, de modo consensual, valores, objetivos, prioridades, ideias sobre como é a rede para a infância e sobre como deveria ou poderia ser

(BONDIOLI, 2013BONDIOLI, A. Dos indicadores às condições do projeto educativo: um percurso pedagógico-político de definição da qualidade das creches na Região da Emília-Romanha. In: BONDIOLI, A. (Org.). O projeto pedagógico da creche e sua avaliação: a qualidade negociada. Tradução: Fernanda Landucci Ortale; Ilse Paschoal Moreira. 2 ed. rev. Campinas, SP: Autores Associados, 2013, p. 13-32. (Coleção educação contemporânea)., p. 14).

Segundo Freitas et al. (2009)FREITAS, L. C. et al. Avaliação educacional: caminhando pela contramão. Petrópolis, RJ: Vozes: 2009., os sujeitos da escola têm um projeto e um compromisso social em comum. Sendo assim, além do seu próprio compromisso, necessitam do compromisso do Estado para com a Educação. Ao nos apropriarmos das questões da escola, nos apropriamos também para demandar do Estado as condições necessárias para o funcionamento dela. E reafirmamos aqui a importância do gestor escolar enquanto formador, enquanto alguém que conduzirá a equipe à participação responsável.

Assim como Bakhtin (2003)BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003., pensamos que o gestor escolar trará enunciados aos educadores que poderão responder, de forma transformadora, por meio de uma prática pedagógica consciente e participativa. A nosso ver, isso se traduz em responsividade.

Diante disso, fica evidente a necessidade de aprender a observar e registrar o contexto de forma que o planejamento proposto seja refletido. A partir de um olhar atento e sensível ao cotidiano de bebês e crianças de Educação Infantil torna-se possível conhecer suas experiências e vivências no contexto da instituição. Por meio da observação e dos registros, que se direcionam os fazeres pedagógicos, bem como na intencionalidade das ações ofertadas às crianças, contribuições reflexivas e posteriores replanejamentos serão possibilitados.

Diante disso, temos a necessidade de marcar uma avaliação na Educação Infantil sem perder de vista suas especificidades e seus objetivos. Pensar os processos de avaliação para além da verificação, contribuindo, de fato, para o desenvolvimento da escuta e observação atenta por parte dos educadores e para o conhecimento aguçado sobre as crianças, suas características e desejos, além do fortalecimento de vínculos com as famílias. Para tanto, reafirmar a importância das ações de formação continuada e em serviço como um espaço promissor para práticas significativas desenvolvidas com e para as crianças pode refletir ações potentes da práxis docente na Educação Infantil. Convidar à reflexão, e participar dessa discussão é tarefa de todos e todas que se comprometeram com as infâncias e o que elas representam.

Considerações finais

Os princípios que orientam o trabalho pedagógico na EI e a avaliação formativa precisam influenciar as práticas pedagógicas e avaliativas no Ensino Fundamental e não o contrário. De igual modo, os princípios da avaliação formativa precisam abalizar as relações pedagógicas entre a professora e a criança, assim como o espaço escolar precisa ser assumido, com toda a sua complexidade e potência, como espaço formativo por excelência, sendo a avaliação institucional a ferramenta que corrobora com esse contexto (FREITAS et al, 2009FREITAS, L. C. et al. Avaliação educacional: caminhando pela contramão. Petrópolis, RJ: Vozes: 2009.), na perspectiva de que todos/as aprendem uns com os/as outros/as, a partir do diálogo entre os diferentes protagonismos assumidos neste cotidiano.

Por fim, concorda-se com a defesa de uma perspectiva mais ampliada de formação humana, que se apresenta como horizonte para a “(...) a construção de possibilidades avaliativas diferenciadas e contra-hegemônicas que possam contribuir para a produção de uma qualidade socialmente referenciada” (BERTAGNA et al., 2020BERTAGNA, R. et al. Avaliação da qualidade social da escola pública: delineamentos de uma proposta referenciada na formação humana. Políticas Educativas, Paraná, v. 13, n. 2, p. 63-86, 2020. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/Poled/article/view/107364/58282. Acesso em: 22 ago. 2022.
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, p. 64), a partir do compromisso com uma avaliação educacional voltada para os princípios da qualidade social. Tal compromisso nos possibilita entender que a prática pedagógica não pode se restringir a obter melhores desempenhos nas avaliações internas e externas, mesmo no caso de crianças de Educação Infantil, que farão parte desse contexto no Ensino Fundamental. Que é necessário pensar todo o processo educativo em sua perspectiva formativa mais ampla.

Assumir como eixos para o trabalho pedagógico realizado na primeira etapa da Educação Básica as interações e brincadeiras (BRASIL, 2010BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Brasília, DF: MEC/SEB, 2010. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=9769-diretrizescurriculares-2012&category_slug=janeiro-2012-pdf&Itemid=30192. Acesso em: 16 ago. 2022.
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) se torna enfrentamento à lógica de que a Educação Infantil se configura como etapa preparatória para o Ensino Fundamental. Este posicionamento assume posicionamento contrário ao contexto educacional profundamente influenciado pelos reformadores empresariais (FREITAS, 2012FREITAS, L. C. Os reformadores empresariais da Educação: da desmoralização do magistério à destruição do sistema público de Educação. Educação & Sociedade, Campinas, v.33, n.119, p.379-404, abr.-jun. 2012. https://doi.org/10.1590/S0101-73302012000200004
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), uma vez que tal cenário é delimitado, entre outras iniciativas, pela compra de pacotes pedagógicos para a Educação Infantil, altamente prescritivos, que ignoram o processo formativo docente ao longo da trajetória profissional e que visam reduzir o fazer docente aos interesses, no caso da educação pública, do quase mercado, sendo a avaliação educacional, em sua lógica excludente e classificatória, importante ferramenta para que isto aconteça (SOUSA; OLIVEIRA, 2003SOUSA, S. Z. L.; OLIVEIRA, R. P. Políticas de avaliação da educação e quase mercado no Brasil. Educação & Sociedade, Campinas, vol. 24, n. 84, p. 873-895, setembro 2003. https://doi.org/10.1590/S0101-73302003000300007
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).

Notas

  • 1
    Os nomes das crianças foram trocados, a fim de manter o anonimato.
  • 2
    Na época, o trabalho pedagógico realizado com os três anos iniciais da rede pública municipal carioca estava organizado em Ciclos de Formação (1º Ciclo). As Turmas de Progressão eram turmas de correção de fluxo destinadas às crianças que não haviam se alfabetizado no período.

Agradecimentos

Não se aplica.

  • Número temático organizado por: Regiane Helena Bertagna https://orcid.org/0000-0003-4415-0978 e Maria Simone Ferraz Pereira https://orcid.org/0000-0001-7009-7571
  • Financiamento

    Não se aplica.

Disponibilidade de dados da pesquisa

Todos os dados foram gerados/analisados no presente ensaio.

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Editoras Associadas:

Ana Luiza Bustamante Smolka https://orcid.org/0000-0002-2064-3391 e Daniela Dias dos Anjos https://orcid.org/0000-0002-7695-835X

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    22 Nov 2022
  • Aceito
    21 Jun 2023
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