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Memórias da tragédia: masculinidade e envelhecimento na Copa do Mundo de 1950

Memories of the tragedy: masculinity and ageing in the 1950's World Cup

Memorias de la tragedia: masculinidad y envejecimiento en la Copa del Mondo de 1950

Resumos

O artigo tem como proposta refletir sobre o processo de construção da masculinidade no campo esportivo e a percepção do envelhecimento a partir das lembranças e esquecimentos da Copa do Mundo de 1950. Foram utilizados como fontes de análise os discursos produzidos pela mídia escrita - jornal Estado de Minas e revista O Cruzeiro - e os relatos de atores que presenciaram e/ou escreveram sobre o evento. Aponta-se que, apesar de as acusações de ausência de virilidade e degerenescência racial serem frequentemente evocadas e lembradas para justificar a derrota, outras acusações tão significativas quanto estas, como é o caso do envelhecimento, foram esquecidas

Masculinidade; envelhecimento; Copa do Mundo; discursos e memória


The intention of this article is to reflect on the making of the masculinity and perceptions of ageing in the sport field through the 1950's world cup's remembrances. In order to reveal the discourses produced by the written media were used as documents the Estado de Minas journal, O Cruzeiro magazine and the accounts of actors that somehow attended and/or wrote about the event. We point out that although the main accusations made to justify the defeat were linked to racial deficiency and virility loss, other accusations so important as the previous were inexplicably forgotten, such as the ageing deficiency and shame

Masculinity; ageing; World Cup; discourses; memory


La intención de este artículo es reflejar su la fabricación de la masculinidad y las percepciones de lo envejecimiento en el campo del deporte, específicamente en la Copa del Mondo de 1950. Para revelar los discursos producidos, por los medios de comunicaciones escritos, fueron utilizados como documentos el periódicos Estado de Minas, O cruzeiro y los recuerdos de los agentes que atendieron y escribieron sobre el acontecimiento trágico. Precisamos que aunque las acusaciones principales hechas para justificar la derrota fueron ligadas a la deficiencia racial y la ausencia de la virilidad, otras importantes acusaciones fueron olvidadas, como la acusación de lo envejecimiento

Masculinidad; envejecimiento; Copa del Mondo; discursos; memorias


ARTIGOS ORIGINAIS

Memórias da tragédia: masculinidade e envelhecimento na Copa do Mundo de 1950* * O presente artigo não contou com apoio financeiro de nenhuma natureza, tampouco houve conflitos de interesess para a sua realização.

Memories of the tragedy: masculinity and ageing in the 1950's World Cup

Memorias de la tragedia: masculinidad y envejecimiento en la Copa del Mondo de 1950

DR. Leonardo Turchi Pacheco

Doutor em história social da cultura pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor efetivo do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) (Minas Gerais - Brasil). E-mail: leonardoturchi@gmail.com

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Leonardo Turchi Pacheco Rua Dois, 38 (final Rua Santa Maria, esq., 1.340) Bairro Panorama Montes Claros-MG CEP 39401-701

RESUMO

O artigo tem como proposta refletir sobre o processo de construção da masculinidade no campo esportivo e a percepção do envelhecimento a partir das lembranças e esquecimentos da Copa do Mundo de 1950. Foram utilizados como fontes de análise os discursos produzidos pela mídia escrita - jornal Estado de Minas e revista O Cruzeiro - e os relatos de atores que presenciaram e/ou escreveram sobre o evento. Aponta-se que, apesar de as acusações de ausência de virilidade e degerenescência racial serem frequentemente evocadas e lembradas para justificar a derrota, outras acusações tão significativas quanto estas, como é o caso do envelhecimento, foram esquecidas.

Palavras-chave: Masculinidade; envelhecimento; Copa do Mundo; discursos e memória.

ABSTRACT

The intention of this article is to reflect on the making of the masculinity and perceptions of ageing in the sport field through the 1950's world cup's remembrances. In order to reveal the discourses produced by the written media were used as documents the Estado de Minas journal, O Cruzeiro magazine and the accounts of actors that somehow attended and/or wrote about the event. We point out that although the main accusations made to justify the defeat were linked to racial deficiency and virility loss, other accusations so important as the previous were inexplicably forgotten, such as the ageing deficiency and shame.

Key words: Masculinity; ageing; World Cup; discourses; memory.

RESUMEN

La intención de este artículo es reflejar su la fabricación de la masculinidad y las percepciones de lo envejecimiento en el campo del deporte, específicamente en la Copa del Mondo de 1950. Para revelar los discursos producidos, por los medios de comunicaciones escritos, fueron utilizados como documentos el periódicos Estado de Minas, O cruzeiro y los recuerdos de los agentes que atendieron y escribieron sobre el acontecimiento trágico. Precisamos que aunque las acusaciones principales hechas para justificar la derrota fueron ligadas a la deficiencia racial y la ausencia de la virilidad, otras importantes acusaciones fueron olvidadas, como la acusación de lo envejecimiento.

Palabras claves: Masculinidad; envejecimiento; Copa del Mondo; discursos; memorias.

INTRODUÇÃO

A história da derrota brasileira na Copa do Mundo de 1950 foi contada por múltiplos ângulos e abordada por diversas perspectivas.

Filho (2003), Muylaerte (2000), Perdigão (1986), Heizer (1997), Nogueira et al. (1994), Glanville (1973) e Galeano (2004) são alguns dos autores que se preocuparam em entendê-la. Todos eles enfocaram, com maior ou menor intensidade, os motivos que fizeram desse fracasso esportivo um trauma de proporções nacionais. Um trauma que ficou conhecido pelo epíteto de Tragédia do Maracanã e de tão significativo instaurou o marco zero para se entender todas as derrotas inexplicáveis no campo esportivo - o fracasso de todos os fracassos subsequentes. Aqueles que fazem da equipe considerada superior perderam mesmo tendo a seu favor a melhor campanha, a torcida da casa, jogando no seu território, possuindo os melhores jogadores e o estilo de jogo mais bonito.

As narrativas, os relatos e os discursos que dão conta do desempenho brasileiro na Copa de 1950 acusam o homem brasileiro de covardia, degenerescência racial, de falta de controle emocional e excesso de civilidade. Para compreender a construção da identidade do homem brasileiro a partir do campo esportivo, algumas dessas acusações serão revistas, pois são inegavelmente muito importantes. Pretende-se, além disso, apontar e debater uma acusação que ficou esquecida no meio de tantas outras, qual seja, a vergonha da derrota imputada por uma equipe fraca e envelhecida. Acusação que aparece por meio de um discurso contraditório e tem uma figura-chave: Obdulio Varela, el Gran Capitan uruguaio - o homem que fez o Brasil silenciar e chorar.

O artigo está dividido em três momentos. No primeiro explora-se, mediante os discursos produzidos pela mídia escrita - jornal Estado de Minas e revista O Cruzeiro -, a construção de uma nova imagem civilizada da nação brasileira destinada ao progresso e à ascensão do homem brasileiro. No segundo momento, com a derrota consumada, essa autoimagem é transformada e justificada pela incapacidade do homem negro de se libertar do estigma de passividade. Por fim, observa-se que o discurso acusatório do envelhecimento, apesar de presente, durante toda a competição, nos periódicos e nos relatos, é esquecido.

EM BUSCA DA CIVILIZAÇÃO

O jogo de abertura da Copa aconteceu no Maracanã, estádio especialmente construído para sediar os jogos do Brasil. Os cariocas assistiram aos brasileiros vencerem sem convencer a equipe mexicana. O placar elástico - 4 x 0 - não foi suficiente para agradar aos espectadores presentes. O jornal Estado de Minas, no domingo dia 25 de junho, trazia os comentários de seu enviado especial, José Augusto: "não foi o espetáculo que todos esperavam". O jornalista reconhecia que, apesar de o jogo não ter sido de todo decepcionante, a vitória não era referência para maiores avaliações, já que o México era uma equipe fraca. Elogiava alguns jogadores pela sua ascendência mineira, como Bigode: "o vigoroso [...] mineiro foi um dos melhores elementos dentro do campo, enquanto na ofensiva Jair e Ademir foram as grandes figuras. Os demais nacionais atuaram bem" (Estado de Minas, 25 jun. 1950). Ainda comentava sobre o grande público e a expressiva arrecadação. No segundo jogo o empate entre brasileiros e suíços aumentava a desconfiança da opinião pública sobre os jogadores.

Seriam eles dignos e capazes de representar a nação em uma competição na qual estava em jogo não somente uma taça, mas todo o imaginário de um país que se queria civilizado?

A importância de afirmar uma postura civilizada e de construir uma ideia de país civilizado por meio do comportamento de seus cidadãos está ligada à tentativa de construir uma autoimagem de nação predestinada ao progresso e desenvolvimento nas esferas políticas, econômicas e sociais. Nesse sentido, ser civilizado é participar de um seleto grupo e desfrutar dos prestígios dessa participação. Prestígios que estão certamente ligados à dinâmica das relações de poder e influência entre as nações. Um país que se qualifica e é qualificado como civilizado pode fazer frente e se equiparar a outros que possuem a mesma designação. Essa associação entre prestígio, relação de poder e civilização é uma das questões abordadas na teoria de processos civilizadores proposta por Norbert Elias (1994). No sentido eliasiano do termo, ser civilizado é ser visto, julgado e participar do mundo em uma posição superior. Portanto, ao ser designada como uma nação civilizada prenhe de homens civilizados, o Brasil entraria em um seleto grupo que compactua com o desenvolvimento, o progresso e se beneficiaria com as mudanças proporcionadas ao seguir nessa direção. Era essa a expectativa dos governantes e da elite brasileira, ao sediar a Copa do Mundo, mostrar que o povo brasileiro era capaz de promover, participar e vencer de forma civilizada esse evento. Reforçando assim a sua autoimagem de maneira positiva, pois possuía o estilo de vida condizente com esse seleto grupo superior - europeu.

Depois do empate contra a Suíça, a classificação só seria alcançada se os brasileiros vencessem os temíveis, enormes e viris iugoslavos. O pânico tomou conta da opinião pública, dúvidas pairavam no ar. O jornal Estado de Minas de 30 de junho dedicava a primeira página aos preparativos da partida. Alternando entre a confiança e o respeito ao adversário, a reportagem enfatizava que os iugoslavos eram os "adversários mais categorizados da chave A", ainda possuíam grande vantagem em decorrência dos resultados anteriores em que bateram o Brasil por 2 x 1 e 8 x 4.

A notícia informa que

[...] a impressão que os balcânicos deixaram nestas duas oportunidades (referência aos jogos contra México e Suíça) foi das melhores e provaram que são perfeitamente capazes de sobrepujar o escrete do Brasil. Possuem um quadro bem armado que joga sobretudo para o goal, num estilo caracteristicamente europeu, onde não se desperdiça energias e onde todos os figurantes da equipe atuam num ritmo preciso, mecânico mesmo (Estado de Minas, 30 jun. 1950).

É relevante notar que, ao descrever os iugoslavos como típicos europeus, o jornal faz uma série de referências que possibilita associar a conduta do homem europeu em campo com sua conduta na labuta cotidiana. A construção da imagem desse homem passa pela percepção da importância da disciplinarização, racionalização e autocontrole de sua conduta e consequentemente de sua mentalidade para o sucesso ser alcançado. Foucault (1987) entende a construção do homem moderno a partir de um processo que implica a fabricação de sujeitos pela disciplinarização, controle, esquadrinhamento dos seus corpos. Corpos que são ao mesmo tempo úteis e dóceis, sendo submetidos por um mecanismo estratégico de poder que visa ordenar e otimizar a produção-exploração econômica, política, ideológica, entre outras. A descrição da maneira de atuar dos iugoslavos vai ao encontro com a percepção de Foucault do sujeito moderno: aquele que tem seu corpo controlado pelo ritmo de trabalho, pelo tempo de trabalho sincronizado, que evita o desperdício e aprende a melhor maneira para empreender aquilo que foi previamente planejado.

O respeito e o temor pelo adversário europeu podem ser entendidos pela perspectiva do controle/eficiência, da ocupação e conquista racional do espaço, o poder do conjunto em oposição ao descontrole, a confusão, improdutividade e individualismo que foram a marca do jogo brasileiro contra os suíços. A crítica da imprensa estava alocada nessas características e é a partir delas que se justificaria a superioridade dos europeus. Crítica que dá lugar a efusivas manifestações do brilhantismo do indivíduo brasileiro após a vitória.

RENEGOCIANDO A MASCULINIDADE NA VITÓRIA

O jogo contra os eslavos marcou o início da escalada ascendente da equipe brasileira. Os brasileiros começavam a se sentir parte da civilização, ao vencerem os imensos e disciplinados iugoslavos. E, para reforçar essa sensação, o técnico iugoslavo, Ljubischa, ainda afirma nos jornais que o mérito da vitória foi dos brasileiros. Não houve sorte, e sim mérito. Ademais, sugere que os brasileiros são favoritos ao título máximo e ainda ressalta que estes são superiores aos suecos, os próximos adversários. "Repito que o Brasil venceu merecidamente e não tenho dúvida em admitir que, da maneira porque o jogo transcorreu, a vitória poderia se ter marcado por contagem bem elevada [...] a meu ver o Brasil será fácil vencedor. É o meu grande favorito." E ainda aponta que o selecionado brasileiro, "é mais técnico, mais rápido e agressivo e dispõe de insuperável material humano, com jogadores de classe verdadeiramente notável [...] julgo que os maiores adversários destes serão os uruguaios" (Estado de Minas, 5 jul. 1950).

Como um profeta, ainda adverte que os uruguaios deviam ser temidos, mas isso ninguém deve ter levado em conta, pois os elogios eram predominantes e essa advertência não parecia convincente. Afinal o homem brasileiro estava sendo designado por um europeu como "técnico, rápido e agressivo", ou seja, um verdadeiro sujeito da modernidade. E para completar o Brasil ainda possuía um "insuperável material humano", não havia nada que pudesse desqualificá-los como inferiores, bugres e subdesenvolvidos. O destino estava traçado, eram predestinados ao progresso e à civilização.

Na partida seguinte contra os suecos, o numeroso público assistiu ao inesperado: uma goleada de 7 x 1. Mário Provenzano, da revista O Cruzeiro, assina a matéria que tem como título "O Brasil dá uma lição de futebol: os suecos não tiveram pernas para acompanhar a mobilidade dos brasileiros", afirmando a superioridade e a impecabilidade do futebol brasileiro e de seu maestro Zizinho. O Estado de Minas corrobora essa visão com uma matéria intitulada "Envolvente e irresistível o onze da CBD assinalou 7 x 1 contra a Suécia", na qual afirma que a exibição brasileira foi sem falhas e que Zizinho foi o "homem do jogo". Na mesma reportagem Flávio Costa assinala que o time vai manter o mesmo ritmo de jogo contra a Espanha e o Uruguai, aumentando ainda mais o otimismo. O médico da seleção aponta que não há problemas físicos nem maiores preocupações, tudo está bem. Por fim o próprio técnico sueco reconhece, apesar de seus comandados não terem feito uma boa partida, a superioridade do adversário, como o fez o técnico iugoslavo, afirmando que é "impossível resistir a um quadro tão perfeito como os brasileiros".

Ao vencer dois europeus de forma convincente, uma nova imagem do homem brasileiro estava sendo inventada a partir do desempenho no campo de futebol.

E foi mais um europeu que, impressionado e maravilhado com o desempenho brasileiro, escreve a matéria definitiva para a invenção dessa identidade na revista O Cruzeiro. E não era qualquer europeu, mas um representante da civilização francesa: o repórter Jean Eskenazi, que não poupa elogios ao estilo de jogo dos brasileiros. O título da matéria é superlativo: "'Grandioso' - O futebol brasileiro é como música: irresistível!".

Eskenazi afirma, para delírio dos leitores, que, em toda sua vida, nunca viu um time assim, tão perfeito quanto uma orquestra: O jogo da equipe do Brasil contra a da Suécia foi a mais deslumbrante exibição de futebol que já foi possível alguém assistir. Ainda esfrego os olhos de estupefação: um verdadeiro festival, um inigualável carrossel [...] (O Cruzeiro, 22 jul. 1950, p. 22).

Não bastasse os elogios ao sistema de jogo, ainda observou que os jogadores brasileiros estavam conscientes do papel que deviam representar, respeitavam a autoridade do técnico e possuíam inigualável disciplina. Não podemos afirmar se Eskenazi era um leitor de Comte ou de Darwin, no entanto, a retórica utilizada para elogiar o desempenho brasileiro no campo de futebol, ao finalizar a matéria, remete a esses autores: "o ataque é a defesa dos fortes!", afirmaria Eskenazi. E dessa forma dá o seu veredicto sobre a superioridade dos brasileiros, que jogam para fazer gols, enquanto os europeus jogam para não tomá-los, ao afirmar que "a reação instintiva do homem moderno deve ser a de ir sempre para frente atacar para vencer o destino".

O jogo seguinte contra os espanhóis só fez reforçar essa percepção. O placar de 6 a 1 contra a "fúria" foi tão surpreendente quanto o que aconteceu nas arquibancadas no decorrer da partida. Ainda no primeiro tempo com o placar apontando 3 a 0, a torcida brasileira começou a balançar lenços brancos e a cantar em coro a marchinha composta por João de Barros: "Touradas em Madri"1 1 . "Eu fui às touradas em Madri. Parará-tchim-bum-bum-bum. Parará-tchim-bum-bum-bum. E quase não volto mais aqui. Pra ver Peri. Beijar Ceci [...]. Eu conheci uma espanhola. Natural de Cataluuuuunha. Queria que tocasse castanhola. E pegasse touro a uuuuuunha [...]. Caramba, caracoles. Sou do samba. Não me amoles. Pro Brasil eu vou fugir. Isso é conversa mole. Para boi dormir" (Placar, n. 508, 25 jan. 1980, p. 56). . Quem puxou o samba ninguém sabe, o fato foi que todos cantavam. Segundo os relatos, os "uuuuus" simulavam o som de uma ventania e se prolongavam, enquanto os brasileiros tocavam a bola de pé em pé. Nesse instante de puro improviso coletivo, pode-se pensar na reinvenção da masculinidade por meio do carnaval - do samba e da malandragem - e da sedução. A marchinha nos permite observar um deslocamento da masculinidade do polo da disciplina, do decoro civilizador, do respeito à autoridade e às regras hierárquicas para o polo do improviso, da alegria, da subversão da autoridade e da aproximação da igualdade. É como se o Caxias houvesse internalizado o Malandro e nessa complementaridade surgisse um novo tipo de masculinidade (DaMatta, 1997). E essa nova masculinidade utiliza referências do carnaval, do samba e da malandragem para criar uma unidade nacional, definir um ethos e um caráter do ser brasileiro no campo esportivo. Noto que a marchinha é de carnaval e se refere ao samba, "sou do samba", em oposição à castanhola, para marcar identidades e diferenças. A referência à agressividade da masculinidade europeia representada pela "fúria" espanhola dá lugar ao modus vivendi, ao ethos da malandragem que usa de outros modos para resolver os conflitos e tensões. Assim o protagonista se propõe a reverter uma desvantagem, quando prefere "beijar Ceci" e "fugir para o Brasil" do que "pegar touro à unha", pois essa é uma atitude de otário - "conversa mole para boi dormir". Afinal ele é do samba e não precisa pegar o touro à unha para provar sua masculinidade, mesmo que às vezes utilize a força física para controlar suas mulheres.

RELATOS DESENCONTRADOS: UM TAPA, UM FRANGO E UM CONSELHO

No dia seguinte ao jogo contra os espanhóis, era impossível conter a euforia. Os jornais glorificavam a vitória. As manchetes estavam recheadas de elogios, os jogadores eram festejados à exaustão: Zizinho, Chico, Ademir, Jair e Baeur foram eleitos os melhores da partida. Essa parece que foi jogada em ritmo de treinamento de tão sensacional. A cidade do Rio de Janeiro não dormiu, fez do futebol um culto religioso (Filho, 2003). Esse excesso de confiança se estendeu por vários dias, como se o campeonato tivesse terminado com a vitória sobre a Espanha. A ascensão estava completa - o "ideal nós" de povo e nação já havia sido construído satisfatoriamente. O jogo seguinte nem precisava ser realizado, pois já estava sendo considerado um jogo amistoso da entrega da taça. Não havia mais dúvidas, depois de derrotarem a Iugoslávia por 2 a 0, a Suécia por 7 a 1 e a Espanha por 6 a 1, os brasileiros estavam destinados à hegemonia esportiva. Embevecidos com o desempenho nas partidas anteriores, nem os jogadores, nem os cronistas e muito menos a torcida deu importância para o adversário. Afinal era consenso que o jogo era apenas pro forma, o título estava garantido. Discurso atrás de discurso, a aura de virtual campeões do mundo estava sendo construída. Zizinho, "impetuoso atacante e maestro da orquestra sinfônica", já se havia convencido de que era campeão do mundo. Declarou à imprensa: "farei todo o possível para conquistar mais um tento e com isso dar o triunfo ao Brasil". Jair não só estava convencido de que seria campeão, mas também tinha a certeza de que marcaria gols: "Estou em forma. Farei todo o possível para marcar alguns goals que darão o triunfo a nossa seleção". Baeur, de início um pouco mais lúcido, afirmava que "o match será duro, os orientais tem o mesmo padrão do nosso", para logo depois demonstrar um descuidado excesso de confiança: "mas, graças ao preparo invejável de nossa equipe, o Brasil conquistará amanhã mais um triunfo" (Estado de Minas, 16 jul. 1950). Esses sentimentos se justificavam porque um empate garantiria o título e os uruguaios, se comparados com os brasileiros, tiveram muitas dificuldades para chegar à final.

A festa já estava preparada, mas esqueceram de avisar aos uruguaios que eles seriam coadjuvantes e não protagonistas. Um dos pontos observados por Vogel (1982) para explicar a derrota do Brasil em 1950, foi a inversão do ritual motivada pelo excesso de confiança. A festa antecipada, o "já ganhou", é, segundo faz crer Vogel, uma incorreção ritualística, em que o prestígio é adquirido antes da cerimônia e não depois de os indivíduos passarem por um rito de mudança de status, que geralmente é agonístico e implica desafio, e provação. O excesso de confiança e a festa antecipada fazem parte da "máscara" - termo utilizado para designar aqueles que são presunçosos, poucos humildes e sem nenhuma autoconsciência de seu lugar e de seus direitos no mundo cotidiano. Assim a glória antecipada de algo que deveria ser conquistado pelo esforço, a pretensa superioridade, a desmesurada soberba e a deselegância, ao menosprezar o adversário, se constituíram como violações do "ritual da vitória" e contribuíram para fazer da decisão uma decepção dolorosa.

O jogo final foi marcado por um tapa, por um frango e por um conselho de disciplina que não se sabe se houve ou não2 2 . Além do tapa, do frango e do conselho, aparece outra dúvida nas narrativas de Muylaerte (2000), Heizer (1997) e Perdigão (1986) sobre o evento. Esses autores contam que no trajeto o ônibus que levava toda a delegação brasileira sofreu um pequeno acidente. Os relatos dão conta de coisas diversas. Em um desses relatos fica-se sabendo que os jogadores tiveram que descer do ônibus para empurrá-lo. Em outro, que os jogadores não desceram do ônibus, mas, no entanto, Augusto, capitão da equipe, sofrera hematomas e um corte na cabeça. Ou seria no supercílio? O fato foi que os jogadores chegaram mais de uma hora depois do previsto no estádio. E ele já estava lotado; 10% da população do Rio de Janeiro acomodada nas arquibancadas, nas cadeiras e na geral entoava diversos baiões, acompanhando o sonoro alto-falante. . A dúvida construída a partir dos relatos e das lembranças das pessoas que viveram ou não o evento, reside no fato de não se saber ao certo se o tapa foi mesmo um tapa, se o gol que Barbosa levou foi mesmo um frango, se o conselho dado por Flávio Costa a Bigode e Juvenal teve um teor que contribuiu para inibir esses jogadores mais viris.

O tapa foi tido como fator decisivo para modificar todo o panorama da partida. O Brasil dominava o primeiro tempo e já havia chutado 12 vezes ao gol de Máspoli, o goleiro uruguaio. Aos 28 minutos, Bigode e Ghiggia haviam disputado a bola pela segunda vez na partida. Eles se defrontariam outras 17 vezes durante o decorrer da partida. Em 2 delas o Uruguai marcaria os 2 gols decisivos. Mas nesse instante Bigode superou de maneira viril Gigghia, que passa a bola para Obdulio Varela, que perde para Jair. Com a bola fora do gramado, Obdulio se aproxima de Bigode e o pretenso tapa acontece. Perdigão, ao transcrever toda a narração do jogo feita pela Rádio Nacional do Rio (PRE-8), não chega à conclusão se foi um tapinha ou uma bofetada que Bigode recebeu. A narração que se segue aponta: "Obdúlio atingiu agora Bigode com um pontapé. E depois, com aquela mania de dar tapinhas na cabeça do jogador, atingiu também Bigode com a mão no pescoço. Agora, o juiz chama a atenção e obriga os jogadores a se abraçarem" (Perdigão, 1986, p. 113). Barbosa relatou a Muylaerte que o bofetão de Obdulio em Bigode na realidade foi uma palmadinha no pescoço acompanhada da frase: "calma muchacho". No entanto, "a palmadinha se transformou em bofetão no rosto e o Bigode teria afinado". O próprio Bigode nega que teria levado um bofetão, pois não era "homem de tomar bofetões e não reagir".

Mário Filho viu de outra forma a bofetada e entendeu porque não houve reação do jogador brasileiro a agressão:

Quando Bigode, duro, dando aqueles botes de cobra, começou a dominar Gigghia. Obdúlio Varela primeiro foi para cima de Gigghia. Deu-lhe uns gritos, uns empurrões. Para Gigghia deixar de ser covarde. Depois, logo em seguida, Obdúlio Varela agarrou Bigode pelo pescoço. Não lhe meteu a mão na cara. Mas que o balançou em safanões, balançou. Bigode, que era uma fera, ficou quieto, sem uma reação. Não houve ninguém no Maracanã que não compreendesse Bigode, a passividade de Bigode. Se Bigode reagisse seria expulso, o Brasil ficaria com dez (Filho, 2003, p. 287).

A descrição de Mário Filho faz crer que houve um entendimento do motivo da não reação de Bigode diante da provocação de Obdulio Varela. Esse possível entendimento da plateia não eximiu Bigode do estigma de covarde. Além da percepção de Mário Filho, a opinião pública creditou a passividade de Bigode aos conselhos dados a ele por Flávio Costa. O então técnico do selecionado brasileiro nunca confirmou que havia mandado Bigode ou Juvenal jogarem de forma civilizada, sem dar pontapés, porque sabia que era a única forma que eles sabiam jogar. Barbosa relembra que Flávio Costa chamou Bigode de lado e sugeriu que ele não desse pontapés, no entanto acrescentou: "disse também para ele não esquecer que futebol é coisa para homem, mas achou que a segunda parte ele não entendeu, porque de fato ele só deu uma pernada no Gigghia [...]" (Muylaerte, 2000, p. 80). Bigode deve ter obedecido a Flávio Costa, porque, como assinala Vogel (1982), esse era o momento de mostrar para o mundo que "não éramos bugres" e que devíamos jogar respeitosamente. Assim Bigode não reagiu, porque sabia que o que estava em jogo não dependia só dele. Ele estava amarrado por relações de interdependência que ligavam o seu comportamento a algo bem maior; um "ideal-nós" de civilidade que não podia ser usurpado. No entanto, a sua passividade, o controle das emoções e da agressividade contribuiu para desmoronar com outro ideal: o "ideal-nós" de masculinidade.

A acusação sobre Bigode foi exatamente esta: ele não foi homem como Obdulio Varela. David Nasser escreveu reportagem sobre a final, na qual identifica Obdulio como "corajoso, malcriado e incansável, um grande capitão". Malandro, perspicaz, utilizava como tática reclamação para "ferir os nervos dos brasileiros", "passava a mão ironicamente no queijo de Zizinho, atordoava Chico, dizia coisas". "Reclamava por nada". "Quando Ademir caiu, contundido Obdulio, sorriu. Sorriu na cara de Jair. Este se controlou [...]" (O Cruzeiro, 29 jul. 1950, p. 20). Obdulio foi tudo aquilo que esteve ausente aos homens brasileiros, diziam as manchetes.

Na terça feira 18 de julho de 1950, o Estado de Minas saiu às ruas com a seguinte manchete: "Verdadeira catástrofe para o 'esporte nacional' estarrecido o Brasil ante o 2x1 que nos roubou o título". Entre as justificativas para a derrota, lê-se: "um frango de Barbosa e uma falha de Bigode permitiram os orientais assinalar a vantagem fatal". O mesmo acontece em reportagem de Jean Eskenazi para O Cruzeiro, de 29 de julho de 1950; ao se referir à atuação dos uruguaios, com o título "Fibra, força e peito", aponta que "Bigode proporcionou os 'frangos' que Barbosa engoliu". Nelson Rodrigues inventou a frase o "frango eterno de Barbosa". A imagem do frango adveio, possivelmente, da percepção de que a bola era defensável. Essa devia ser a sensação de todos, presentes e ausentes, inclusive a de Barbosa, a de que o chute era defensável, pois não fora muito potente, ou que iria para fora. O fato é que esse gol estigmatizou Barbosa e Bigode. Os dois foram acusados pelo fracasso brasileiro, por serem negros. Essa discussão da deficiência racial não é elaborada pelas notícias veiculadas pela imprensa. Nem o Estado de Minas e muito menos O Cruzeiro se remetem ao termo raça para desqualificar os brasileiros. Quando aparece, raça tem o sentido de vontade de vencer, gana, garra. O termo mais utilizado pela imprensa foi a da "derrota da máscara". Os relatos, no entanto, como o de Mário Filho, Paulo Perdigão, Roberto Muylaerte, Teixeira Heizer levam a crer que as acusações da deficiência raciais foram amplamente utilizadas. Apesar de as teorias racistas já estarem em desuso nos anos de 1950, com a derrota do Brasil houve uma recuperação das ideias deixadas de lado no início do século XX sobre a inferioridade das raças. É importante notar que as ideias um dia hegemônicas não desaparecem com a revolução e mudança do pensamento, elas podem até ficar em algum canto obscuro e perderem a força que um dia tiveram, mas sempre subsistem em paralelo com novas formas de pensamentos. Assim a correlação entre identidade racial e identidade nacional voltou a ser tema de debate. Desse modo, apesar de não terem sido escritas em jornais e revistas, a acusação da deficiência da raça negra foi utilizada para explicar a derrota de 1950, é isso que os relatos dos narradores sobre o evento permitem afirmar3 3 . No debate realizado entre Soares (1999a, 1999b) e Helal e Gordon Jr. (1999) sobre a utilização da obra, O negro no futebol brasileiro, de Mário Filho, como documento histórico e sociológico das relações raciais brasileiras no campo de futebol, uma, dentre as diversas, questões levantadas reside na relevância e na autenticidade de se abordar as tensões raciais para se justificar a derrota de 1950. Nessa perspectiva os estudos de Soares indicam que, nos jornais da época, o sentido de raça não estava vinculado à deficiência racial, mas sim à ausência de vigor esportivo para superar adversidades. Helal e Gordon Jr., em contrapartida, entendem que, apesar da questão da tensão racial não se apresentar explicitamente nos periódicos, isso não significa dizer que ela não existia e não foi utilizada para dar sentido à derrota. Como Helal e Gordon Jr., acredito que a tensão racial é um fator importante para se entender as acusações pela derrota, mas não o único. Diria que, conjuntamente à tensão racial, também "aparecem" pistas sobre acusações diversas, como a ausência de masculinidade da equipe brasileira, a tensão geracional - explicitada, como se verá, na vergonha de ser superado por uma equipe de velhos, entre outras. .

VELHICE E DECADÊNCIA

Paulo Perdigão teve uma percepção muito interessante sobre os jogadores que atuaram naquela partida. Ele aponta que os jogadores pareciam velhos. Há que se relativizar que quem observava a partida era um menino de 11 anos de idade. Curioso é que, passados 36 anos, quando escreve A anatomia de uma derrota, a mesma sensação permanece: os jogadores pareciam velhos.

Em suas próprias palavras:

Não sei se porque vi esses jogadores quando tinha onze anos de idade e eles já eram adultos, ou porque me acostumei a vê-los desse modo durante todos esses anos, ou porque de fato a aparência das pessoas na época as fazia mais velhas do que realmente eram (na verdade, porque os jogadores eram então bem mais velhos do que eu, posso dizer que eles são mais velhos do que eu jamais serei, ainda pudesse ter o dobro de sua idade na ocasião), o certo é que os brasileiros e uruguaios nessa partida não parecem gente jovem. No Brasil, os mais velhos (Barbosa, Augusto, Jair) tinham 29 anos, e o mais novo, Bauer, 24. No Uruguai, Gambetta era o mais velho, com 34, e Morán, o mais jovem, com apenas dezenove. A mim parecem senhores na faixa dos quarenta para cima. Obdúlio Varela, por exemplo, não lhe daria menos de cinquenta anos (Perdigão, 1986, p. 21).

Noto, ao utilizar os dados sobre as idades dos jogadores que atuaram na partida entre Brasil e Uruguai, fornecidos por Perdigão, que a média de idade das duas equipes não era muito alta. Somando as idades de todos os jogadores e dividindo por 22, o resultado atingindo é 26,68 anos. A média das idades dos brasileiros que participaram da partida tem como resultado 27,18 anos, enquanto a média de idade dos jogadores uruguaios tem como resultado 26,18 anos. Apesar de não serem equipes com média de idade elevada, se observadas pelo olhar contemporâneo, não foram consideradas equipes joviais naquele momento4 4 . Ressalto, embasado em Barros (2004) e Debert (2004), que o envelhecimento é uma categoria relacional, experimentada, compreendida, representada e imaginada de maneiras heterogêneas e plurais. Certamente a percepção do envelhecimento em 1950 é diferente da percepção dos anos 2000. Os discursos sobre envelhecimento, assim como a expectativa de vida, se modificaram nesse intervalo. Os discursos de perdas foram reinventados, revalorizados e substituídos por discursos de ganhos e retomada de sonhos e prazeres esquecidos. Verifica-se também que em 1950 a expectativa de vida era em média de 46 anos, em 2000 a expectativa de vida passa a ser de 60 anos. Observando estatisticamente e levando em conta a expectativa de vida de 1950, pode-se afirmar que os jogadores eram velhos. Mas, independentemente do envelhecimento real desses atores, o que me interessa aqui são as percepções, o imaginário, as representações e os discursos sobre o envelhecimento. . O então secretário da Associação de Futebol da Argentina, José Covatto, ao ser entrevistado pelo Estado de Minas, de 6 de julho de 1950, reforça essa percepção. Além de tecer comentários bastante negativos quanto à qualidade do jogo e da atuação das equipes na competição, adotando uma postura favorável à volta do amadorismo, o dirigente argentino ainda apontava que a equipe brasileira estava envelhecida. Em um tom provocativo e pretensioso, afirma que, se a Argentina não houvesse boicotado o mundial, certamente seriam os campeões, pois utilizariam um time jovem e veloz.

No conjunto brasileiro, a maioria de seus elementos são conhecidos do público argentino, alguns já veteranos, sem velocidade que era a principal característica adquirida pelo futebol daquele país [...] se a Argentina tivesse tomado parte do certamente - disse - com uma equipe integrada de elementos jovens, bem treinados e praticando um jogo a base da velocidade, a Argentina teria todas as possibilidades a seu favor (Estado de Minas, 6 jul. 1950).

Apesar da declaração adquirir ares de ressentimento motivado, certamente pelos argentinos terem sido preteridos aos brasileiros para sediar o mundial, pode-se notar que José Covatto e Paulo Perdigão tiveram a mesma impressão no que tange à sensação de envelhecimento e juventude. A imprensa brasileira em 1950 compartilhava da mesma sensação de Perdigão. Obdulio Varela, como outros jogadores da equipe uruguaia, foram tidos como velhos e decadentes antes da vitória consumada. Tanto é que ele sempre era designado nas reportagens como "urso velho", "velho guerreiro", "como vinho, quanto mais velho melhor". O texto assinado por David Nasser, "A derrota da máscara", aponta entre outras coisas para essa percepção do envelhecimento. Ao tentar convencer o leitor que todos têm uma parcela de culpa pela derrota do time brasileiro, inclusive o próprio leitor, por terem criado a ideia de invencibilidade, acusa os dirigentes brasileiros de subestimarem o time uruguaio com declarações de "que os uruguaios eram homens velhos e cansados". O sentimento de Nasser é de vergonha. Vergonha de ter sido derrotado por um "bando de fracos" e ainda por cima velhos.

Nasser acusa:

Pergunta-se como um "team" inegavelmente fraco e inexpressivo, como o atual "scrath" uruguaio, de pobres campanhas, tal qual dois empates em Montevidéu com o Fluminense (chegou a estar perdendo de 3x0) conseguiu realizar a extraordinária façanha. De Máspoli, um guardião inseguro, que solta a bola, a Tejera, um "back", quarentão ao velho Obdulio Varela, os pontos vulneráveis da defesa do Uruguai eram muitos (O Cruzeiro, 29 jul. 1950).

Apesar de conter algumas imprecisões, o texto de Nasser é importante para entender a vergonha da derrota. Ele aponta que a defesa era vulnerável porque os backs eram velhos e o goleiro, que também era velho, inseguro. Nasser deve ter confundido Tejera com Gambetta, pois o segundo poderia ser considerado "um quarentão" no alto dos seus 34 anos. Tejera tinha 28 anos. Obdulio, como já foi mencionado, era considerado velho, mas, quando designado de velho, sempre um adjetivo remetendo à agressividade e à combatividade o acompanhava, seja velho urso, seja velho general, seja velho guerreiro.

A vergonha de Nasser era a de perder para esses velhos. Como era possível perder para uma equipe uruguaia envelhecida, que não conseguia fazer frente nem a outra regional? Afinal, eles haviam empatado com o Fluminense em Montevidéu. Nesse sentido, pode-se afirmar que não era a variável raça que o incomodava e o deixava indignado, mas sim a variável idade. O que é curioso nisso tudo foi que a ideia de velhice e decadência foi esquecida ao longo do tempo, apesar de abordada à exaustão durante toda a competição, em vez disso tentou-se entender a derrota a partir das ideias racistas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo teve como objetivo refletir sobre a masculinidade e o envelhecimento nos momentos de derrota esportiva. Nesse sentido foi realizada outra leitura do evento que ficou conhecido como a "Tragédia do Maracanã". Em vez de explicar a derrota de 1950 enfocando somente questões que enfatizassem a tensão racial, optou-se por resgatar pistas que pudessem elucidar o fracasso por outros caminhos. Um dos caminhos foi pensar a construção da masculinidade brasileira fazendo parte de um processo de aquisição de civilidade. Nos momentos de vitória foram elogiadas as características do homem brasileiro, foram reconhecidos seus feitos esportivos e renegociada a sua masculinidade. No entanto, com a derrota na partida final o discurso mudou: o processo de glorificação da civilidade foi rompido e a masculinidade desconstruída. Nesse instante, é possível afirmar que a tensão racial e a desconstrução da masculinidade se aproximam, amalgamando, assim, as acusações - segundo os narradores e os relatos produzidos, covardia, passividade, descontrole emocional e degenerescências raciais são percebidas como sinônimos.

Outro caminho foi pensar o envelhecimento dos jogadores uruguaios como um dos motivos do sentimento de vergonha pela derrota. Se por um lado a questão racial não aparece explicitamente nos periódicos para justificar o fracasso, por outro a referência à idade avançada dos jogadores da equipe uruguaia, especialmente Obdulio Varela, é bastante enfatizada. Verifica-se que os discursos mobilizados para dar conta do envelhecimento são ambíguos. Existem momentos em que o envelhecimento é associado à agressividade - aqui são destacados os aspectos relacionados à virilidade e à experiência -, em outros é associado à fragilidade e insegurança - aqui se destaca a decadência. Por fim, verifica-se que, mesmo mobilizados e presentes nas matérias e nos relatos, os discursos (acusatórios) sobre o envelhecimento não são privilegiados para entender aspectos da derrota de 1950.

Recebido: 20 maio 2009

Aprovado: 19 abr. 2010

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  • Endereço para correspondência:
    Leonardo Turchi Pacheco
    Rua Dois, 38 (final Rua Santa Maria, esq., 1.340) Bairro Panorama
    Montes Claros-MG CEP 39401-701
  • *
    O presente artigo não contou com apoio financeiro de nenhuma natureza, tampouco houve conflitos de interesess para a sua realização.
  • 1
    . "Eu fui às touradas em Madri. Parará-tchim-bum-bum-bum. Parará-tchim-bum-bum-bum. E quase não volto mais aqui. Pra ver Peri. Beijar Ceci [...]. Eu conheci uma espanhola. Natural de Cataluuuuunha. Queria que tocasse castanhola. E pegasse touro a uuuuuunha [...]. Caramba, caracoles. Sou do samba. Não me amoles. Pro Brasil eu vou fugir. Isso é conversa mole. Para boi dormir" (Placar, n. 508, 25 jan. 1980, p. 56).
  • 2
    . Além do tapa, do frango e do conselho, aparece outra dúvida nas narrativas de Muylaerte (2000), Heizer (1997) e Perdigão (1986) sobre o evento. Esses autores contam que no trajeto o ônibus que levava toda a delegação brasileira sofreu um pequeno acidente. Os relatos dão conta de coisas diversas. Em um desses relatos fica-se sabendo que os jogadores tiveram que descer do ônibus para empurrá-lo. Em outro, que os jogadores não desceram do ônibus, mas, no entanto, Augusto, capitão da equipe, sofrera hematomas e um corte na cabeça. Ou seria no supercílio? O fato foi que os jogadores chegaram mais de uma hora depois do previsto no estádio. E ele já estava lotado; 10% da população do Rio de Janeiro acomodada nas arquibancadas, nas cadeiras e na geral entoava diversos baiões, acompanhando o sonoro alto-falante.
  • 3
    . No debate realizado entre Soares (1999a, 1999b) e Helal e Gordon Jr. (1999) sobre a utilização da obra, O negro no futebol brasileiro, de Mário Filho, como documento histórico e sociológico das relações raciais brasileiras no campo de futebol, uma, dentre as diversas, questões levantadas reside na relevância e na autenticidade de se abordar as tensões raciais para se justificar a derrota de 1950. Nessa perspectiva os estudos de Soares indicam que, nos jornais da época, o sentido de raça não estava vinculado à deficiência racial, mas sim à ausência de vigor esportivo para superar adversidades. Helal e Gordon Jr., em contrapartida, entendem que, apesar da questão da tensão racial não se apresentar explicitamente nos periódicos, isso não significa dizer que ela não existia e não foi utilizada para dar sentido à derrota. Como Helal e Gordon Jr., acredito que a tensão racial é um fator importante para se entender as acusações pela derrota, mas não o único. Diria que, conjuntamente à tensão racial, também "aparecem" pistas sobre acusações diversas, como a ausência de masculinidade da equipe brasileira, a tensão geracional - explicitada, como se verá, na vergonha de ser superado por uma equipe de velhos, entre outras.
  • 4
    . Ressalto, embasado em Barros (2004) e Debert (2004), que o envelhecimento é uma categoria relacional, experimentada, compreendida, representada e imaginada de maneiras heterogêneas e plurais. Certamente a percepção do envelhecimento em 1950 é diferente da percepção dos anos 2000. Os discursos sobre envelhecimento, assim como a expectativa de vida, se modificaram nesse intervalo. Os discursos de perdas foram reinventados, revalorizados e substituídos por discursos de ganhos e retomada de sonhos e prazeres esquecidos. Verifica-se também que em 1950 a expectativa de vida era em média de 46 anos, em 2000 a expectativa de vida passa a ser de 60 anos. Observando estatisticamente e levando em conta a expectativa de vida de 1950, pode-se afirmar que os jogadores eram velhos. Mas, independentemente do envelhecimento real desses atores, o que me interessa aqui são as percepções, o imaginário, as representações e os discursos sobre o envelhecimento.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Set 2010

    Histórico

    • Recebido
      20 Maio 2009
    • Aceito
      19 Abr 2010
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