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Resenha da obra as paixões ordinárias

RESENHA

Resenha da obra as paixões ordinárias

Dra. Maria Isabel Brandão de Souza MendesI; Dra. Karenine de Oliveira PorpinoII

IProfessora do Departamento de Educação Física (DEF) e dos Programas de Pós-Graduação em Educação Física (PPGEF) e em Saúde da Família (PPGSF) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Grupo de Estudo Corpo e Cultura de Movimento (GEPEC/UFRN) (Natal - Rio Grande do Norte - Brasil) e-mail: isabelmendes@ufrnet.br

IIProfessora do Departamento de Artes (DEART) e dos Programas de Pós-Graduação em Educação (PPGED) e em Artes Cênicas (PPGARC) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Grupo de Estudo Corpo, Dança e Processo de Criação (CIRANDAR/UFRN) (Natal - Rio Grande do Norte - Brasil) e-mail: karenine@supercabo.com.br

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Maria Isabel Brandão de Souza Mendes Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Departamento de Educação Física Programa de Pós-Graduação em Educação Física Av. Sen. Salgado Filho, 3000, Campus Universitário Lagoa Nova Natal/RN CEP: 59072-970

David Le Breton é professor da Universidade de Estrasburgo II e possui várias obras publicadas na França. No Brasil, são encontrados os livros "Adeus ao corpo: antropologia e sociedade" publicado pela Editora Papirus e o livro "Sociologia do Corpo" publicado pela Editora Vozes. Esta resenha refere-se à primeira edição da obra intitulada "As paixões ordinárias: antropologia das emoções", publicada em 2009 no Brasil, também pela Editora Vozes.

A obra analisada traz contribuições emblemáticas para o debate sobre a desnaturalização das emoções. Sem cair no determinismo biológico, tampouco no determinismo cultural, David Le Breton faz uma incursão no entrelaçamento entre corpo, natureza e cultura e traz argumentos sólidos sobre a articulação do orgânico com o simbólico, da razão com a emoção. Organizado em seis capítulos, o livro de Le Breton inicia com a seguinte citação de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961): "Pode-se se dizer que, no homem, tudo é ao mesmo tempo fabricado e natural [...]." (MERLEAU-PONTY, 1945 apud LE BRETON, 2009, p. 5).

Apoiado nesse pensamento, o autor retoma obras importantes do filósofo francês, como "Fenomenologia da Percepção", "Signos" e "Visível e o Invisível", abordando a complexa condição humana. Reconhece o corpo como carne no mundo capaz de se transformar constantemente. Por meio de suas experiências sensíveis, o corpo produz conhecimento e se relaciona com quem está a sua volta. O autor, além de reconhecer a diversidade cultural, também aponta algumas semelhanças entre diferentes sociedades.

No primeiro capítulo intitulado "Corpo e simbolismo social", há uma discussão sobre as crianças "selvagens", na qual o autor retoma e adapta análises realizadas em "Corps et societés". Le Breton enfatiza o papel do outro na relação do ser humano com o mundo, destacando a construção social do corpo e suas metamorfoses. A plasticidade corpórea e a capacidade de resistência são ressaltadas por meio do estudo sobre as crianças chamadas de "selvagens". Conforme a educação recebida, o ser humano se constrói na relação com os outros. O outro é condição de sentido para a existência humana, fundando a diferença e o elo social. O outro é condição do simbolismo que o configura e do qual ele se serve para comunicar-se com os outros.

No segundo capítulo denominado "Corpo e comunicação", Le Breton ressalta que não é somente a palavra, mas o corpo, suas posturas e ações, que em primeiro lugar colocam em destaque a presença do outro no momento da interação. O indivíduo habita seu corpo conforme as orientações impostas pela cultura e sociedade, porém é capaz de rearranjá-las, conforme sua história pessoal e seu temperamento. Além disso, destaca que nem toda gestualidade pode ser explicada, uma vez que a comunicação é ambígua.

Diz ainda, que nem todos conseguem analisar seus próprios gestos, sejam descritivos, rítmicos, dêiticos, simbólicos, expressivos, de regulação, de desprezo, de insulto ou gestos de acomodação. Durante o capítulo, são discutidas também etiquetas corporais de integração, como o beijo, rito de intimidade e que é demarcado socialmente em três modalidades, que se abrem a formas e significações diversas. Sinal de afeição, rito de entrada ou de saída e modo de congratulação. Le Breton demonstra ainda, como as regras de civilidade contribuíram com a construção dos sentimentos de vergonha na sociedade ocidental, os quais diferem de outras sociedades.

No terceiro capítulo, "Antropologia das emoções 1", o autor estabelece relações entre a afetividade e o vínculo social e diz que "a existência é um fio contínuo de sentimentos mais ou menos vivos ou difusos, os quais podem mudar e contradizer-se com o passar do tempo e de acordo com as circunstâncias" (LE BRETON, 2009, p.111). O dualismo razão e emoção é problematizado, uma vez que ambos estão inscritos no seio do individual e do coletivo e estão impregnados de valores e de afetividade. Outros pontos são destacados, como as associações das paixões a determinadas doenças ao longo do tempo e a relação da afetividade com o sentido.

Sobre a representação das emoções em sociedade, revela que a expressão da emoção pode não estar em sintonia ao que o corpo está sentindo, mas sim, ao que é esperado pela sociedade em determinada circunstância. Le Breton discute também sobre as diferentes explicações sociais e culturais sobre os sentimentos e as emoções, bem como as mudanças dos comportamentos afetivos quando um indivíduo está sozinho ou em grupo.

No quarto capítulo denominado "Antropologia das emoções 2", Le Breton tece críticas à razão naturalista por meio de questionamentos às teorias ocidentais das paixões que dão ênfase aos aspectos biológicos. O autor demonstra limites das abordagens naturalistas da emoção e demonstra que os universalistas se detêm aos aspectos anatomofisiológicos. Para ele, mesmo que o ser humano possua o mesmo aparelho fonador, o uso que cada um faz do seu não é semelhante, o que equivale a pensar na constituição orgânica, similar para a espécie humana, mas diferente na dimensão de sentido e de valores.

No quinto capítulo intitulado "Ver o outro", há uma discussão sobre as relações de poder do olhar, sua dimensão afetiva e as alterações orgânicas que produz no outro. O autor refere-se ao olhar como contato que se manifesta em diversas expressões, como fitar com ojeriza, olhar atravessado, com bons olhos ou maus, olhar carinhosamente, dentre outros. A troca de olhares retrata a reciprocidade enquanto dura o intercâmbio e traduz o ritual de cada sociedade. No Japão, por exemplo, evitam-se os olhares durante as conversas, pois o olho no olho é sinal de inconveniência e agressividade.

No sexto e último capítulo, Le Breton discute sobre "O paradoxo do ator" e apresenta elementos para uma antropologia do corpo em cena. O paradoxo do ator é paradoxo do simbolismo corporal e a especificidade humana possui a capacidade de mostrar aos outros somente os significados que são almejados para a exibição. O ator é criador de significados e de valores que orientam sua existência, como também dos significados e valores que deseja expressar para o público. O laboratório das paixões ordinárias, ou seja, o palco teatral é um espaço que revela a contingência social, no qual o conteúdo representado é reconhecido pela platéia. Considerado como um profissional da duplicidade, o ator altera seus sentimentos pessoais e constrói emoções adequadas ao que cada cena lhe exige. Inventor de emoções e de identidades provisórias, o corpo do ator configura-se como uma narrativa que sofre nuanças, articulando o orgânico com o simbólico e problematizando os esquemas inatos.

Em sua obra, o autor traz contribuições relevantes para a Educação Física, ao superar a naturalização das emoções, demonstrando que a expressão das emoções configura-se não somente pela universalidade da espécie humana, mas também pela associação das relações culturais e sociais em que cada corpo está inserido.

A Antropologia das emoções apresentada é emblemática para se pensar na dimensão afetiva do ser humano, tendo como foco a capacidade de comunicação entre os sujeitos, suas posturas e ações, que colocam em destaque a presença do outro no momento da interação.

A plasticidade corpórea, sua capacidade de resistência e de se metamorfosear, discussões ressaltadas na presente obra, são relevantes para estudantes e profissionais de diversas áreas do conhecimento que se interessam pelos estudos do corpo, da cultura, da educação e da arte.

Recebido: 08 out. 2009

Aprovado: 27 fev. 2011

  • LE BRETON, D. As paixões ordinárias: antropologia das emoções. Petrópolis: Vozes, 2009. 276 p.
  • Endereço para correspondência:
    Maria Isabel Brandão de Souza Mendes
    Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
    Departamento de Educação Física
    Programa de Pós-Graduação em Educação Física
    Av. Sen. Salgado Filho, 3000, Campus Universitário
    Lagoa Nova Natal/RN
    CEP: 59072-970
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Dez 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011
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