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A beleza feminina como poder: desvendando outros sentidos para a construção estética de si1 1 A pesquisa foi financiada pela CAPES.

Women beauty as power: unveiling other directions for the aesthetics construction of the self

La belleza femenina como poder: revelando instrucciones adicionales para la construcción estetica del yo

Resumos

Procuramos desvelar os sentidos bioascéticos na construção da beleza corporal feminina e as compreensões de poder inerentes a eles. A pesquisa foi realizada em seis academias de ginástica da cidade do Recife com 30 mulheres praticantes de exercício físico. As entrevistas foram realizadas individualmente através de um roteiro composto por imagens. A técnica de análise de discurso seguiu a linha arqueológica foucaultiana. Identificamos três principais sentidos bioascéticos: beleza como segurança ontológica, como distinção social e como forma de anabolizar a vida. Para as entrevistadas a produção da beleza representa dominação nas relações sociais e construção de sentido de vida autônoma. Conclui-se que "anabolizar a vida" representa uma configuração existencial peculiar da cultura somática.

Beleza; mulher; poder; estética


We seek to discover women's understandings on construction of physical beauty and the concepts of power inherent in this process. The survey was conducted in six gym clubs in the city of Recife with 30 exercising women. The interviews were conducted individually using a script composed by images. We identified three bioascetic main senses: beauty as ontological security, as social distinction and as autonomy of the self. The production of beauty represents domination in social relations and a way of building a sense of autonomous life. It is concluded that to live "life in steroids" is setting a new peculiar way of existence in somatic culture.

Beauty; Women; Power; Aesthetics


Tratamos de descubrir los significados bioascéticos en la construcción de la belleza física y la comprensión femenina de poder inherente a ellos. La encuesta fue realizada en seis gimnasios de la ciudad de Recife con 30 mujeres. Las entrevistas fueron realizadas individualmente por un guión compuesto por imágenes. La técnica de análisis ha seguido la línea arqueológica foucaultiana. La producción de la belleza representa la dominación en las relaciones sociales y la construcción de un sentido de la vida autónoma. Se concluye que "la vida anabolizada" representa una configuración existencial peculiar de la cultura somática.

Belleza; mujeres; poder; estética


INTRODUÇÃO

Nesse estudo recorremos à teoria do filósofo Michel Foucault para estabelecer um contraponto às teses que restringem a produção da beleza apenas à dimensão jurídico-coercitiva ou normativa controladora do poder. Procuramos revelar a existência de outros sentidos sobre a produção da beleza corporal, demonstrando uma complexidade nas formas de pensar e agir sobre o corpo na contemporaneidade.

O desafio de pensar a produção da beleza para além da ditadura da beleza leva-nos a repensar certas concepções de poder que vinculam a construção estética corporal com a pressão unilateral, imobilizadora e histórica da mulher nas culturas ocidentais (WOLF, 1992WOLF, V. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rocci, 1992.; BOURDIEU, 2003BOURDIEU, P. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.; NOVAES, 2006NOVAES, J. O intolerável peso da feiúra: sobre as mulheres e seus corpos. Rio de Janeiro: Ed. PUC/ Garamond, 2006.). Tal caminho põe em evidência o problema da compreensão da beleza enquanto qualidade específica do modo de ser feminino, ao mesmo tempo em que revela a existência de estruturas de poder as quais tornam esta relação indissociável até os dias de hoje. Todavia, não se tem a intenção de ampliar essa compreensão, pois um trabalho desse nível resultaria numa genealogia da relação beleza/feminilidade na história das sociedades ocidentais, algo que foge ao escopo deste estudo.

Interessa-nos, contudo, ressaltar que a associação simbólica entre o feminino e a beleza - assim como a associação simbólica força física/ masculinidade destacada por alguns autores (BORGES, 2005BORGES, M. Gênero e desejo: a inteligência estraga a mulher? Estudos Feministas. Florianópolis, v. 13, n. 03, p. 667-677, 2005.; VIGARELLO, 2006VIGARELLO, G. História da Beleza: O corpo e a arte de se embelezar do renascimento aos nossos dias. São Paulo: Ediouro, 2006.) - não representa nem resulta de um sistema de poder exclusivamente dominador. A prova disso é que nos dias atuais, momento em que se verifica uma inquietação mais incisiva sobre o culto à aparência corporal, a relação entre gênero feminino e beleza ganha contornos cada vez mais acirrados, ao passo em que a economia da beleza se expande através do surgimento e aceitação de práticas mais complexas, e muitas vezes arriscadas, como cirurgias plásticas e uso de esteroides anabolizantes. Essas tecnologias ratificam a ideia de que produzir beleza não representa apenas uma imposição social infligida sobre a mulher, mas sim um objetivo que pode promover benefícios sociais significativos (SABINO, 2002SABINO, C. Anabolizantes: drogas de Apolo. In: GOLDENBERG, M. Nu e vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. Rio de Janeiro: Record, 2002. p. 139 - 188.).

Neste contexto, autores consideram a necessidade de discutir a questão do corpo belo feminino partindo de uma concepção de poder que se aproxima da ideia de sedução e de reconhecimento de si na sociedade. Para Foucault (1999)FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. e Giddens (2002)GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991., a construção do corpo belo responderia a expectativas de sujeitos que buscam a disciplina e a excitação corporal como referências para construir sua própria identidade. Segundo autores como Costa (2004)COSTA, J. O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. e Ortega (2003)ORTEGA, F. Práticas de ascese corporal e constituição de bioidentidades. Cadernos de saúde coletiva. Rio de Janeiro, v. 11, n. 01, p. 59 - 77, 2003., a busca pela beleza revela uma disposição característica dos sujeitos a procurar, no próprio corpo, todo o prazer simbólico ou material necessário para a conquista da felicidade. Nesse sentido, qualquer investimento sobre o corpo representaria a busca por uma bioascese ou elevação do sujeito que está submetida à onipresença do corpo em cada esforço despendido para se atingir satisfação. Compreendemos bioascese como todo o conjunto de modos de existência em que aparece como prioridade a saúde e a perfeição corporal. As práticas de bioascese visam alcançar um corpo com formas joviais, saudável, longevo, atento à forma física e ao fitness que é o seu valor supremo (ORTEGA, 2003ORTEGA, F. Práticas de ascese corporal e constituição de bioidentidades. Cadernos de saúde coletiva. Rio de Janeiro, v. 11, n. 01, p. 59 - 77, 2003.; COSTA, 2004COSTA, J. O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.).

Reconhecer que a produção estética corporal promove bioascese é certamente uma evidência de que a concepção jurídico-coercitiva da beleza não se sustenta por si só. Tal afirmação, contudo, carece de uma análise mais densa, sobretudo, porque não compreendemos ainda de que forma essa bioascese se manifesta no campo prático das relações de poder. Afinal, se beleza é poder, como os sujeitos a utilizam em seu favor? Como e a partir de que formas o poder da beleza se manifesta no campo das práticas sociais? Que efeitos as tecnologias de investimentos sobre o corpo têm na própria vida humana?

De maneira a aprofundar estas questões, buscamos desvelar os sentidos bioascéticos e as compreensões de poder inerentes a eles nos discursos de 30 mulheres praticantes de exercício físico em academias de ginástica. Pretendemos, assim, contribuir para um melhor entendimento sobre como as mulheres se situam nos jogos de poder e de que maneira elas utilizam a beleza como forma de poder.

Defendemos a hipótese de que o embelezamento do corpo guarda sentidos bioascéticos não restritos a uma compreensão unilateral de poder. Ou seja, o embelezamento do corpo pode ser considerado como uma forma de poder e prática capaz de potencializar as formas de sentir e interagir no mundo.

A argumentação continua a partir de uma breve exposição sobre os procedimentos metodológicos. Em seguida procuramos averiguar os principais sentidos bioascéticos e compreensões de poder identificados nas falas coletadas. Por último, apresentamos nossas considerações finais.

MATERIAIS E MÉTODOS

O estudo foi realizado em 6 academias da cidade do Recife, sendo 2 de pequeno, 2 de médio e 2 de grande porte, que foram escolhidas conforme a distribuição de estabelecimento cadastrados por Regiões Político-Administrativas (RPAs). Entrevistamos 30 mulheres com idades entre 23 e 76 anos as quais obedeceram aos seguintes critérios de inclusão: ser praticante de exercício físico em academia de ginástica (12 meses no mínimo) com frequência semanal mínima de três sessões e ter realizado procedimentos estéticos cirúrgicos pelo menos uma vez na vida.

O recorte de gênero se justifica devido à associação histórica entre a beleza, gênero feminino e moralidade nas sociedades ocidentais, bem como à grande participação da mulher brasileira no mercado da beleza (EDMONDS, 2002EDMONDS, A. "No universo da beleza: notas de campo sobre cirurgia plástica no Rio de Janeiro". In: GOLDENBERG, M. Nu e vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. Rio de Janeiro: Record, 2002. p. 189 - 262.; VIGARELLO, 2006VIGARELLO, G. História da Beleza: O corpo e a arte de se embelezar do renascimento aos nossos dias. São Paulo: Ediouro, 2006.). A escolha do locus de pesquisa se deve ao reconhecido papel das academias de ginástica no âmbito da produção estética do corpo e à familiaridade dos pesquisadores junto ao ambiente investigado, fato que auxiliou na organização e operacionalização da etapa exploratória.

As entrevistas foram realizadas individualmente através de um roteiro de entrevista estruturada composta por imagens (fotografias, desenhos e figuras pesquisadas na internet) referentes à produção da beleza no cotidiano feminino. A aplicação se deu em dois momentos principais: 1- as imagens foram apresentadas de forma sequenciada para que as entrevistadas pudessem apenas interpretá-las sem interferência do investigador; 2- caso as primeiras opiniões não tivessem atingido o nível de profundidade desejada, o entrevistador entraria em ação utilizando um tópico guia com questões auxiliares referentes ao objeto de estudo. Esta estratégia - característica da técnica de eliciação fotográfica (HARPER, 2002HARPER, D. Talking about pictures: A case for photo elicitation. Visual Studies. Boca Raton, v. 17, n. 1, p. 13-26, 2002.; CLARK-IBAÑEZ, 2004) - foi pensada no sentido de evitar inibições na fala e para estimular os discursos nos momentos de ruptura e dificuldade na interpretação das imagens. Cada imagem foi testada previamente seguindo o mesmo procedimento numa fase de ajuste metodológico do instrumento.

Durante a coleta, procuramos nos ater apenas às manifestações discursivas reais, ou seja, à materialidade das falas, de acordo com a perspectiva teórica defendida por Foucault (2008)FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008..

A técnica de análise de discurso seguiu a linha arqueológica foucaultiana que privilegia a identificação de enunciados, suas regularidades e dispersões, nas falas dos sujeitos. Para identificar os enunciados utilizamos os seguintes critérios definidos por Foucault (IDEM): identificação do referencial, sujeito, campo associado, e materialidade das falas. Isso nos possibilitou acessar as regularidades enunciativas, as quais remetem às formas de pensamento que constituem o estado geral da razão hegemônica numa certa época, e as dispersões enunciativas, que revelam a presença de diferentes regras e funções de existência presentes nos pensamentos dos sujeitos. Todos os discursos foram gravados e transcritos.

A pesquisa foi aprovada no Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade de Pernambuco (#213/08) (CEP/UPE) e 0191.0.097.000-08 (CAEE). Todas as voluntárias assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.

DISCUSSÃO

BIOASCESE ESTÉTICA E SEGURANÇA ONTOLÓGICA

O primeiro sentido bioascético que gostaríamos de ressaltar advém da associação histórica entre beleza corporal, enquadramento e valorização social da mulher. Verifiquemos como essa relação se manifesta no contexto contemporâneo a partir da fala de Ana Catarina (25 anos), psicóloga, a nosso ver pertinente para elucidar essa questão:

É fundamental você desempenhar várias funções, mas, sempre estar apresentável [...] É aquela coisa não adianta você, quer dizer, não é uma questão de adiantar não, é que uma coisa é você se arrumar para sua vida profissional e outra é você chegar em casa toda esculhambada, toda descuidada. Já o homem pode, mas a mulher tem que um pouco mais de cuidado.

Esse primeiro sentido da produção da beleza feminina, além de guardar uma proximidade com o agenciamento econômico do corpo feminino, demonstra que, atualmente, as formas de apresentação física definem graus de aceitação social. Segundo Foucault (1999; 2004)FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008., esses graus de aceitação são produzidos por uma economia da visibilidade, em que os sujeitos são estimulados a esconder os defeitos do corpo e a mostrar insistentemente as suas qualidades físicas. Nessa perspectiva, a exibição do corpo está suscetível a certas prerrogativas de aparência as quais, na maioria das vezes, podem potencializar o nível de visibilidade dos sujeitos. As palavras de Flávia, professora de 36 anos e praticante de exercício físico há mais de 10 anos sem interrupção, servem para exemplificar esse ponto:

É verdade que as pessoas que estão fora do padrão são rechaçadas, mas tem o outro lado de que uma pessoa magra passa uma imagem de ser bem sucedida. Cada vez mais as pessoas compreendem que existe uma liberdade em ser magra. Ser magra é ao mesmo tempo uma meta e atingir a meta é ser livre. Eu percebo isso nas propagandas de academia, na superação das atletas saradas que tem um corpo sarado pra se libertar.

Contrapondo-se à tese da ditadura da beleza defendida por teóricos como Wolf (1992)WOLF, V. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rocci, 1992., a fala de Flávia chama a atenção para o fato de que a produção da beleza não pode ser entendida exclusivamente como negativa. É preciso considerar, também, que a produção estética corporal está associada a certas vantagens e recompensas decorrentes da ordem moral contemporânea, que considera o corpo como centro das realizações pessoais (FOUCAULT, 1999FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.; COSTA, 2004COSTA, J. O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.).

Remetendo à centralidade do corpo nas relações sociais, vejamos as opiniões da entrevistada Ana Júlia, administradora de empresas de 29 anos, acerca da necessidade de ter uma boa aparência no âmbito profissional:

A mulher bonita está encaixada na sociedade porque a beleza está associada à questão da prioridade em relação às oportunidades. O sucesso é uma realização de uma vontade pessoal e se uma mulher preenche um perfil adotado pela sociedade então ela pode atingir o ápice de sua satisfação, livre de preconceitos.

A opinião de Ana Júlia foi utilizada justamente para revelar que a apresentação corporal representa uma necessidade a ser cultivada. A produção da beleza pode, então, ser compreendida enquanto pré-requisito para uma avaliação imediata e positiva do sujeito, uma vez que ela demonstra uma relação de comprometimento com a integridade corporal. Nas falas de Flávia e Ana Júlia sobressai, ainda, a categoria "liberdade", ora associada ao sucesso profissional (sou livre, pois, atingi meu ápice profissional), ora associada à capacidade de atingir metas (sou livre, pois, sou capaz de atingir minhas metas). Nos dois casos a beleza corporal se articula com o discurso da liberdade de maneira fulcral, tendo em vista que a beleza representa, ao mesmo tempo, condição de possibilidade para realização de vontades pessoais e constatação duma certa segurança adquirida pela superação de si.

Por outro lado, o cuidado com a beleza também é capaz de transmitir uma noção de segurança associada a fatores diferentes, como a confiabilidade e a higiene. É o que afirma a arquiteta Helena, 52 anos, ao ressaltar que o trato com a beleza, além de influenciar as opiniões sobre o outro, reflete uma responsabilidade moral do sujeito para consigo mesmo.

A forma, a aparência de uma maneira geral influencia muito, mas não só a forma, o cuidado também. Por exemplo, quando você vai num médico, para se consultar com um clínico [...] Um personal trainer não pode ser um cara obeso. Uma arquiteta não pode andar desmantelada. "Poxa se ela não cuida nem dela como é que ela pode cuidar da minha sala?".

As associações entre busca por um cuidado corporal, liberdade e beleza ou entre moralidade e aparência física parecem transformar o cuidado que se tem consigo mesmo numa espécie de termômetro das intenções estratégicas para com o corpo. Seria possível pensar, a partir de Foucault (2004)FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008., que a avaliação da imagem, seja pela simples contemplação ou por uma técnica avançada como o exame corporal, permite que o sujeito domine o que se vê, isto é, que ele transforme o fenômeno observado num objeto descritível, analisável e controlável. Estando fundada na relação entre visibilidade e objetivação, a produção da bela aparência se torna a representação da disciplina, mas também uma forma de perceber, no outro, qualidades físicas familiares, e uma maneira de obter, consequentemente, segurança ontológica que, na perspectiva de Giddens (2002)GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991., significa uma sensação de estabilidade e de integração do sujeito na sociedade. A fala de Márcia, empresária de 42 anos e assídua praticante de musculação pode nos auxiliar a perceber tais aspectos:

Acho que a beleza mudou a minha vida porque hoje eu ocupo um espaço que eu antes pensava que não era da mulher. A mulher hoje em dia tem profissão que o homem tem. Qualquer emprego que o homem tem a mulher pode ter é só correr atrás e boa aparência ajuda nisso. É como se a mulher tivesse construído a sua liberdade, conquistado um espaço que não tinha antes cuidando um pouco mais dela mesma.

É possível identificar aqui uma primeira compreensão de poder referente à capacidade de se enquadrar em certos ambientes sociais que Giddens (1991)GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991. denomina como ambientes de confiança. Os ambientes de confiança funcionam como locais de referência onde o sujeito pode renovar suas sensações de aceitação e segurança. Na atualidade quando as relações inter-humanas estão, muitas vezes, desenraizadas, os ambientes de segurança tendem a se tornarem fluídos.

No discurso de Márcia, a beleza corporal parece assumir esse papel de viabilizar à mulher maior possibilidade de trânsito nos espaços sociais, ou, como diria Foucault (2006a)FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008., de modificar suas posições numa emaranhada rede de poder norteada pela estética corporal - ou, simplesmente, de saber se situar em jogos de dominação cujo objeto de disputa é o direito de exercer visibilidade e de colher os benefícios desta exposição.

O VALOR SOCIAL DA DISTINÇÃO ESTÉTICA

Partindo da ideia da produção estética enquanto estratégia de segurança ontológica, transitamos para a segunda manifestação bioascética da produção da beleza, a qual se refere à busca pela distinção social a partir da conquista de uma aparência valorizada. Fundados na teoria de Foucault (2006b)FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008., entendemos a distinção social como uma posição transitória e vantajosa que permite aos sujeitos exercer uma influência mais significativa sobre a conduta dos outros. No caso das declarações analisadas, a distinção social obtida a partir da produção da beleza se manifesta através da padronização do corpo, do poder da sedução, da competição, e da admiração.

No contexto dos discursos analisados sobre o segundo sentido bioascético da produção da beleza corporal, o poder da mídia aparece de forma evidente, desempenhando o papel de reproduzir certos tipos corporais enquanto modelos de autossatisfação e sucesso. Do ponto de vista dos jogos de poder, pode-se dizer que a mídia, por estar associada à necessidade de mostrar e de tornar visível o corpo, desempenha uma função de dominação capaz de transformar corpos em objetos cujas características estéticas devem revelar o máximo de controle e perfeição.

No rastro das reflexões sobre a indústria cultural, Dantas (2007)DANTAS, Eduardo. A produção biopolítica do corpo saudável: mídia e subjetividade na cultura do excesso e da moderação. 2007. 207f. Tese (Programa de pós-graduação em Educação). Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2007. considera que a mídia promove uma ação educativa que incide sobre a formação do inconsciente coletivo e, paradoxalmente, sobre a padronização das massas. Isto quer dizer que o culto ao corpo alimentado pela mídia, além de estimular a busca por alternativas de construção corporal, transforma a beleza num objeto de consumo e fonte de obsessão ligada ao sucesso. Assim, os investimentos corporais poderiam ser motivados pela necessidade de reproduzir estruturas corporais valorizadas pela cultura de massa, independente das características individuais dos sujeitos. As falas de Glenda, professora de educação física de 29 anos, e Fernanda, vendedora de 40 anos, respectivamente, exemplificam a discrepância entre a reprodução de uma imagem padronizada e o desrespeito às limitações biológicas na busca por uma aparência socialmente valorizada:

Muitas [mulheres] olham o corpo de uma atriz ou de uma atleta e pensam "Eita eu queria ter aquele corpo, aquele bumbum, aquelas pernas!" Muitas desejam ter a estética da outra mulher que tem o corpo mais definido e escultural.

[...] se você for olhar a maioria quer ser loira, quer ter peito de silicone então às vezes as mulheres ficam todas parecidas né? Muitas vezes você não sabe quem é quem. "Eita aquela ali é a modelo tal, vixe como ela está parecida com fulana!"

A existência de referências ideais de imagem corporal, bem como a exacerbada produção da aparência segundo arquétipos divulgados pela mídia, parecem indicar que a padronização da aparência é uma tendência muito particular dos sujeitos contemporâneos. Para alguns teóricos este fato está associado à busca pela definição da sua identidade ou até mesmo por motivos econômicos. Le Breton (2007)LE BRETON, D. A sociologia do corpo. Petrópolis: Vozes, 2007., por exemplo, aponta que a produção da beleza corporal pode ser compreendida como um empreendimento a ser administrado da melhor maneira possível para ratificar a presença de si na contemporaneidade.

Lipovetsky (2006)LIPOVETSKY, G. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. aponta que a padronização funciona como uma forma de sacralizar o consumo do efêmero e do novo, aspecto fundamental para assegurar o funcionamento da economia capitalista. Foucault (2006a)FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008., por outro lado, considera a padronização como uma forma básica de controle erigida sobre um sistema jurídico que regula as dispersões em relação a determinados critérios de normalidade. Contudo, a padronização também potencializa nos sujeitos a capacidade de exercer poder, tendo em vista a aquisição de consciência e controle permitidos numa determinada ordem moral.

É interessante destacar que, para as entrevistadas, a padronização da beleza corporal é motivada por uma ordem moral que valoriza a estética. No discurso de Mayra (estudante de educação física de 25 anos) fica evidente a suspeita de que a subjetividade contemporânea está fortemente ligada à experiência estética de produzir o próprio corpo:

[...] hoje em dia é tão frequente esse culto ao corpo, assim, esse pensamento estético. A gente vê que como o ser humano busca atenção mesmo, chamar atenção dos outros, tanto homens como mulheres, às vezes uma mulher quer ser mais bonita do que outra, quer mostrar para outra que é mais bonita, não necessariamente para o homem [...] a beleza chama atenção é por isso que as pessoas hoje em dia buscam o corpo belo, o corpo perfeito.

Ao se debruçar sobre esta suspeita, Maffesoli (1996)MAFFESOLI, M. No fundo das aparências. Petrópolis: Vozes, 1996. constatou que, na contemporaneidade, a estética se transformou em ethos, num modo de viver. Segundo ele, na atual circunstância estética vivemos um estado de "solidariedade social" que funciona através de atrações, repulsões, emoções e paixões. No contexto desta solidariedade, a pele (o envoltório) obteve tanta importância quanto o maquinário interno do corpo e, por esse motivo, as imagens conquistaram o poder de forjar subjetividades.

Retornando à ideia de Mayra (25 anos), percebemos que uma das motivações para construir a beleza é a necessidade de chamar atenção para demonstrar superioridade através da aparência. Nesta perspectiva, pode-se considerar a existência de uma "hierarquia" da aparência corporal que denota a concepção foucaultiana de estados de dominação. Mais precisamente, poderíamos considerar que ter um corpo belo é assumir uma posição favorável nos jogos de poder contemporâneos (FOUCAULT, 2006bFOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.).

Sobre a questão do exercício de dominação através da beleza, ainda no contexto da segunda manifestação bioascética, é possível identificar os contornos do poder da sedução focalizando a beleza nas relações de poder entre homem e mulher. Vejamos o episódio de Fernanda (40 anos), para quem a beleza causa efeitos de admiração e de competição que podem ser potencializados pela vaidade feminina.

Então como a vaidade, o poder da mulher assim de ser bonita e vaidosa muitas vezes seduz o homem e realmente o homem fica bobo. Ele pode estar casado com uma mulher linda e maravilhosa, mas passa outra e ele não deixa de olhar não [...] A mulher muitas vezes se veste para outra mulher. [...] tem mulheres que acham as outras bonitas, mas procuram ver mais os defeitos do que as coisas bonitas, por questão de medo, de competição, de estar se comparando ou insegurança mesmo de ter que assumir que a outra é mais bonita, pode ser uma nojenta, mas é linda, pode não valer nada, mas é linda.

O poder de seduzir os homens, tornando-os "bobos", e a disputa em relação às outras mulheres são elementos de destaque nesse fragmento narrado. A sedução enquanto estratégia de dominação está fundada na manipulação do corpo para que a aparência se torne mais incidente e poderosa, enquanto que a disputa representa uma ameaça à hegemonia individual construída sobre beleza. Considerando que os estados de dominação estão em constante movimento, a depreciação do outro poderia ser utilizada como tática de autoafirmação.

Além da disputa, outro aspecto associado à sedução diz respeito à admiração movida pelo desejo de aperfeiçoar o corpo. Este sentimento, de acordo com as entrevistadas, geralmente está ligado à capacidade de estabelecer comparações com outros tipos de beleza e de associá-las a estados mais significativos de felicidade e de realização pessoal.

CONSTRUINDO A BELEZA PARA "ANABOLIZAR" A VIDA

A terceira e última manifestação bioascética está vinculada a um nível mais extremo da produção corporal. Trata-se do bem-estar decorrente do uso de biotecnologias para melhorar a fisiologia e a aparência do corpo. Esse sentido bioascético surgiu a partir dos discursos referentes à relação entre beleza e saúde, especificamente sobre o uso de cirurgias plásticas, suplementos alimentares e esteroides anabolizantes na produção da aparência e da performance corporal.

O principal entendimento da relação entre beleza e saúde surgiu a partir de declarações que admitem a satisfação com a estética corporal como uma variável da saúde. É importante ressaltar que a ideia de saúde apresentada, nesses casos, se distancia da sua concepção enquanto ausência de doenças. No caso das cirurgias plásticas, houve unanimidade sobre a sua utilização para promover bem-estar, apesar das preocupações com os excessos e erros médicos. A opinião de Glenda (29 anos) ilustra, inclusive, a possibilidade de corrigir detalhes da aparência física em situações de insatisfação:

Você, tendo condições, tem vários recursos, drenagens linfáticas, plásticas a gente vê muito, um defeitinho aqui eu vou fazer uma plástica ou uma lipo. A mulher que tem condições não estando bem com o corpo dela vai partir pra uma lipoaspiração, vai ajeitar o nariz, vai colocar silicone.

Por trás desta liberdade de investir sobre si, destaca-se a oportunidade de revigorar o sentido da própria vida através do cuidado de si. Mas essa liberdade não deve sobrepor-se à vida, fato que nos revela a presença de uma lógica biopolítica na produção da beleza. Tal lógica faz referência à proteção da vida, e pode ser observada na fala de Mayra (25 anos):

Ora, tudo que faça a mulher se sentir bem, que a faça se sentir bonita e de bem consigo mesma eu concordo. Só não concordo com aquilo que ponha em risco a vida. Nada que você precise arriscar a saúde do seu corpo para obter beleza, tipo esteroides, fazer uma lipoaspiração eu acho perigoso, eu acho que seios só se for algo realmente feio ou depois de uma gravidez.

Percebemos, ainda, discursos que indicam a necessidade de produzir a beleza para maximizar as sensações corporais e a experiência de domínio de si nos jogos de poder. O desejo pela obtenção de um estado de superexcitação corporal e maximização das capacidades de poder, presentes nas falas, aponta para vontade de potencializar a existência humana em suas mais variadas dimensões ou, de "anabolizar" a vida aprimorando a autoeficácia através de investimentos sobre o corpo.

O conceito de "anabolizar a vida", aqui apresentado, pode ser entendido como uma transformação do sujeito associado à intensificação nas formas de destacar a imagem do próprio corpo, mas também remete a uma intensificação da excitação (e das maneiras de sentir) obtida graças a esforços para transformar a própria realidade corporal. Assim, "anabolizar a vida" tem uma ligação com a ideia de corpo enquanto escrita ou reescrita de si, ou seja, da reconfiguração do corpo, objetivando alcançar uma forma e um estilo de viver que possibilitem uma excelência sobre si mesmo e maximização das próprias potencialidades somáticas (FOUCAULT, 2006bFOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.).

Objetivando ilustrar essa ideia, recorremos à fala de Fernanda (40 anos), ex-fisiculturista consumidora de esteroides anabolizantes, para quem a produção da beleza física se revela como um modo de ser e viver. Segundo ela, ter uma aparência física de destaque, através do exercício físico, da alimentação e do uso de recursos sintéticos, sempre foi uma rotina:

[...] desde pequena sempre fiz muita atividade física e aí, depois que eu comecei com essa parte de musculação, ficou uma coisa mais rígida ainda. Na época eu não achava que a alimentação era tão importante e hoje a gente sabe que a alimentação é 80%. [...] hoje em dia existem mais recursos para você começar, não só alimentação como também outros recursos que você pode usar para te dar um rendimento melhor, diminuir gordura e te dar mais energia.

Apesar da rigidez com os cuidados com o corpo, para a entrevistada, o uso das drogas não resultou em consequências negativas, mas sim, em elogios frequentes e melhoria do rendimento corporal. O consumo de recursos ergogênicos é interpretado por Fernanda como uma possibilidade de obter resultados mais satisfatórios do que aqueles oferecidos pela prática do exercício físico e realização de uma dieta adequada. Talvez por esses motivos a participante não demonstre arrependimentos e nega abandonar o uso dos anabolizantes:

[...] eu não posso me arrepender de nada que eu fiz porque na hora aquilo era importante pra mim. Então eu não posso ser desonesta comigo mesma, não posso me arrepender. Se amanhã eu descobrir que tenho um problema porque tomei anabolizante, eu não posso me arrepender. Eu faria tudo de novo.

Por outro lado, relatos de outras entrevistadas revelam que a construção da beleza está pautada numa espécie de elevação do sujeito associado ao cuidado de si. Daniela, professora de educação física de 28 anos, não atuante na área, obesa controlada e consumidora assídua de medicamentos para emagrecer, considera que a beleza é um fator de mudança no estilo de vida das pessoas que leva a uma melhoria geral na maneira de se perceber perante o mundo. Vejamos a sua fala:

Quando a mulher atinge a beleza ela revoluciona a vida literalmente. Quando a gente fica bonita isso melhora a cabeça e faz com que a gente busque melhorar o corpo mais ainda. Por isso as pessoas gastam muito. Engraçado que quando a pessoa tá feliz ela procura se exibir. Pra mim antes tudo era tão normal, agora eu sempre me mostro mais elegante e fazendo pose (Daniela, 28 anos).

A categoria revolução surge como indicativo para uma mudança que não se limita à forma corporal, ou seja, ela afeta outras áreas da vida trazendo benefícios no plano psicológico da imagem corporal e da motivação para cuidar do corpo. Percebe-se que a ideia de elevação está associada à obtenção de uma felicidade que precisa ser retroalimentada tanto pela exibição quanto pelos investimentos em práticas corporais. Contudo, isso não significa que a felicidade de Daniela esteja limitada a um aprimoramento compulsório da condição física.

Gostaríamos de destacar que, segundo Daniela, a produção da beleza também contempla elementos da dimensão do sentir. Em sua declaração não há referência aos efeitos da cafeína utilizada antes dos treinos, sobre melhorias na percepção ou sobre a disposição para realizar o esforço físico. O que ela destaca remete aos sentimentos que se manifestam quando ela exibe o corpo belo produzido na academia de ginástica. Para Daniela, fica evidente que o trabalho realizado sobre si é o que possibilita alcançar uma felicidade que só será satisfatória no ato de exibição. Acreditamos que, neste processo de descoberta da beleza, Daniela conseguiu achar um norte condutor da relação para consigo mesma, fato presente nas declarações de Fernanda. Esta relação de construção de si associada ao exercício físico, na verdade, não é nova. Foucault (2005)FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. já havia descrito a importância dos exercícios físicos para aprendizagem do governo de si ou estilo de se conduzir, desde a antiguidade.

Nesta perspectiva, um fato a ser destacado remete aos recorrentes discursos que estabelecem associação entre criar um estilo de se conduzir através do poder de sedução associado à produção da beleza pelo exercício físico. A fala de Iara, advogada, empresária, praticante de exercícios físicos desde a adolescência, uma das poucas entrevistadas que não quis revelar o seu peso corporal e que não se sentiu confortável para mencionar sua idade atual, revela a importância da elevação da mulher pelo poder da sedução:

Pelo que eu já vi a mulher bonita é a que tem todos a seus pés é uma mulher que tem um poder. As empresárias bem sucedidas que eu conheço sempre mostram um pouco de sedução em todas as relações. A sedução é um poder discreto que quase sempre faz você conseguir o que quer.

Um olhar momentâneo sobre a mulher poderosa descrita por Iara talvez nos levasse a entender a sedução como o resultado de uma modificação unicamente exterior - principalmente se considerarmos que a entrevistada passou por cirurgias plásticas no rosto e nas mamas. Este engano nos levaria a subtrair um sentido escondido nas palavras da entrevistada, que é o da atitude da mulher poderosa que sabe usar a sedução a seu favor. Para evitar o impasse de considerar a sedução algo meramente superficial, outra fala nos parece mais adequada. Trata-se da fala de Cecília, psicóloga de 39 anos, ex-atleta de natação, praticante de musculação, que admite ter utilizado anabolizantes na juventude:

Ter beleza, para mim, é falar da construção uma nova pessoa, uma construção do que eu e os outros queremos ver. Vou me quebrando e me construindo novamente, mas a construção não é apenas externa. A disciplina me permite uma construção interna e externa ao mesmo tempo porque eu nunca poderia chegar onde quero sem mudar meu jeito de ser.

A nova pessoa que está em questão é, na verdade, uma pessoa construída de forma aprimorada pela disciplina. O caráter da elevação pessoal se verifica, por sua vez, na mudança interna que é a mudança do jeito de ser, uma mudança nas atitudes fomentada pelo investimento realizado sobre a própria beleza. Estas declarações demonstram que as entrevistadas compreendem o olhar do outro como um estímulo extrínseco muito importante para alimentar o desejo pelo aprimoramento corporal.

Para finalizar a nossa discussão, ressaltamos que o modo de viver a construção da beleza se constitui num movimento de constante construção e reconstrução de si mesma. Quando questionada sobre se valia a pena todo o esforço para construir seu corpo, Fernanda concedeu a seguinte resposta:

Pra mim sim. Já cheguei ao ponto de chegar ao máximo de mim e botar tudo fora só para recomeçar. Eu não entendo porque eu faço isso já que é tão árduo. Tenho essa dúvida na minha cabeça que eu não entendo até hoje por que. Acho que fazer isso, pra mim, significa o máximo do máximo.

Constata-se que anabolizar o corpo corresponde a uma liberdade mediante o esforço realizado. Essa forma de entender a produção estética é a expressão de objetivos que não correspondem somente à normalização social, mas, gestão dos riscos e limites da própria existência. Contudo, diferentemente do sentimento de coerção, as entrevistadas sentem a necessidade de buscar formas diferentes de estimular o corpo e de se manter durante mais tempo nesse estado. O consumo de esteroides anabolizantes, produtos para emagrecimento ou práticas de cirurgia plástica parecem suprir essa lacuna da excitação promovendo, paralelamente, o desenvolvimento corporal desejado. Podemos destacar aqui duas posições contrárias: a de Fernanda, que reforça a capacidade de potencializar a vida através do consumo de hormônios, e a de Glenda, que destaca a dança como prática corporal capaz de conduzir a um sentimento de paz:

Em relação ao anabolizante existe uma questão psicológica, não é que vicie, mas, realmente existe diferença, por mais que você faça dieta, quando você está fazendo uso, os seus resultados são melhores, a densidade de sua pele é melhor, a qualidade de sua pele fica melhor, sexualmente se sente melhor porque mexe com isso também [...]. Então eu acho assim mexe um pouco em relação ao prazer que te dá porque você vê o resultado mais rápido, você que o músculo incha mais rápido, você vê que a qualidade do corpo melhora (Fernanda).

A dança que é uma atividade muito importante, inclusive agora eu estou fazendo dança de salão. Deixei a outra dança, o mix dance, e estou na dança de salão agora. Eu também acho que estímulo é diferente até pra sua mente. Te dá uma certa paz (Glenda).

Assim, o que está em jogo não é somente a busca pela estimulação e pela forma corporal ideal, mas também, exercitar sua autonomia na escolha das atividades. De forma geral, a opção pela intensificação das sensações se contrapõe à integridade do próprio corpo, fato que aponta para a decisão sobre o modo de viver como fator de autossatisfação para o grupo investigado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Frente aos resultados obtidos, pudemos constatar nas falas das entrevistadas que a produção da aparência corporal tem uma dupla função: representa uma via para maximizar o exercício de dominação dos sujeitos nas relações sociais, ao mesmo tempo em que atua como alternativa para reconstrução das suas próprias existências.

Considerando os sentidos bioascéticos da beleza feminina, pode-se perceber que nossa sociedade não apenas confere visibilidade aos corpos "anabolizados", mas valoriza formas "anabolizadas" de viver. Nessa perspectiva, não se trata apenas de viver, mas de maximizar a vida e aperfeiçoar o rendimento individual mediante intervenções sobre o corpo. A partir desse conceito, chegamos à conclusão de que "anabolizar a vida" não significa apenas acelerar o corpo, mas representa uma nova configuração existencial peculiar nossa da cultura somática.

REFERÊNCIAS

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    A pesquisa foi financiada pela CAPES.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    27 Jul 2012
  • Aceito
    15 Fev 2013
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