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Quando "rola a bola": reflexões sobre as práticas futebolísticas e a forma escolar nas aulas de Educação Física

When "the ball rolls": reflections about soccer and school form in Physical Education classes

Cuando "roda la pelota": reflexiones sobre las prácticas futbolísticas y la forma escolar en las clases de Educación Física

Resumos

Este ensaio aborda aprendizagens do e no futebol nas aulas de Educação Física. Elaborado a partir de uma etnografia das práticas futebolísticas de jovens em um bairro de Belo Horizonte (estudo que desvelou que a aprendizagem do futebol se dá por meio do engajamento dos praticantes na prática cotidiana e que ela independe das relações pedagógicas mestre/aprendiz), o texto aborda pontualmente a penetração da "forma escolar" (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001VINCENT, G.; LAHIRE, B.; THIN, D. Sobre a história e teoria da forma escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 1, n. 33, p. 7-48, jun 2001.) nas práticas futebolísticas na escola. A escassez de intervenções pedagógicas nas práticas futebolísticas nas aulas não impede o diálogo entre diferentes modos de aprender no cotidiano escolar. No futebol em diálogo com forma escolar, mais do que aprender o jogo, o que está em questão é a "educação" dos jovens a partir do esporte.

Futebol; aprendizagem; participação; forma escolar


This essay focuses on learning soccer in physical education classes. Elaborated from an ethnographic study of football practice of young people in a neighborhood of Belo Horizonte (study unveiled that soccer's learning is through the engagement of practitioners in everyday practice and that it is independent of the pedagogical relations master / apprentice) the text approaches penetration of "school form" (VINCENT, LAHIRE, THIN, 2001VINCENT, G.; LAHIRE, B.; THIN, D. Sobre a história e teoria da forma escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 1, n. 33, p. 7-48, jun 2001.) in soccer in school. The scarcity of educational interventions in football practices in the classroom does not hinder the dialogue between different modes of learning in school environments. In soccer in dialogue with school form, more than learning the game, what is at issue is the "education" of young people in the sport.

Football; Learning; Participation; School Form


Este ensayo aborda aprendizajes del y en el fútbol en las clases de Educación Física. Elaborado a partir de una etnografía de las prácticas futbolísticas de jóvenes en un barrio de Belo Horizonte (estudio que desveló que el aprendizaje del fútbol se da por medio del encajamiento de los practicantes en la práctica cotidiana y que ella independe de las relaciones pedagógicas maestre/aprendiz) el texto aborda puntualmente la penetración de la "forma escolar" (VINCENT, LAHIRE, THIN, 2001VINCENT, G.; LAHIRE, B.; THIN, D. Sobre a história e teoria da forma escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 1, n. 33, p. 7-48, jun 2001.) en las prácticas futbolísticas en la escuela. La escasez de intervenciones pedagógicas en las prácticas futbolísticas en las clases no impide el diálogo entre diferentes modos de aprender en el cotidiano escolar. En el fútbol en diálogo con forma escolar, más de que aprender o juego lo que está en cuestión es la "educación" de los jóvenes a partir del deporte.

Fútbol; aprendizaje; participación; forma escolar


INTRODUÇÃO

Esse texto aborda parte das reflexões contidas no meu trabalho de doutorado em educação defendido em 2008. A partir do entendimento de que os processos de aprendizagem do futebol (prática popular no Brasil) são indivisíveis da sua produção cotidiana, na pesquisa busquei descrever as práticas futebolísticas com as aprendizagens que lhes são constitutivas.1 Para esse tipo de abordagem, estabeleci uma aproximação com o campo da antropologia e utilizei como principal operador teórico a proposta da aprendizagem situada de Lave e Wenger (1991)LAVE, J.; WENGER, E. Situated learning: legitimate peripheral participation. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1991. - perspectiva que ganhou destaque no panorama internacional, entre os estudos da aprendizagem no contexto da prática.2 2 A aprendizagem como "atividade situada" constitui a definição central do processo que Lave e Wenger (1991 p. 29) chamam de Legitimate Peripheral Participation (LPP), ou seja, processo pelo qual aprendizes participam em comunidades de prática em que o domínio do conhecimento e das habilidades requer movimento em direção à "participação plena nas práticas socioculturais". Apresentando a aprendizagem como parte da prática social cotidiana e apostando na necessidade da visão relacional da pessoa e da aprendizagem, Lave e Wenger (1991, p. 54) acreditam que é importante fazer justiça às "múltiplas relações através das quais ela define a si mesma na prática". Afirmam também que o "desenvolvimento da identidade é central para as carreiras de novatos (newcomers) na comunidade de prática e, assim, fundamental para o conceito de LPP" (p. 115). Esse movimento permitiu dar relevo a aspectos importantes da aprendizagem desse esporte, oferecendo pistas para a compreensão de como tais processos ocorrem.

Produzida a partir de um esforço etnográfico, a pesquisa foi realizada em um bairro de Belo Horizonte em 2005/2006:3 3 Nesse percurso estabeleci diálogo com as teorias etnográficas de Velho (2006), Sahlins (2006), Ingold (2001), Goldmam (2003), etc. contexto dotado de espaços diversificados para a aprendizagem do futebol (escola pública, "escolinhas" de esportes, projetos sociais, campos de várzea, praças esportivas, ruas, etc.). Seguindo as orientações propostas na teoria da aprendizagem situada de Lave e Wenger (1991)LAVE, J.; WENGER, E. Situated learning: legitimate peripheral participation. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1991. escolhi, portanto, um contexto social em que os recursos para a aprendizagem do futebol vinham de várias fontes (não apenas da atividade pedagógica); em que era possível observar a ocorrência de intricada estrutura de aprendizagem do futebol; em que a prática criava um currículo (de aprendizagem) no sentido amplo; enfim, em que o futebol fazia parte do dia a dia dos jovens. Focando nas práticas futebolísticas juvenis busquei dar relevo aos aspectos sutis e invisíveis que permitissem ampliar a compreensão dos seus modos de aprendizagem.

O estudo desvelou aspectos importantes da aprendizagem desse esporte: os contextos de produção e os modos de participação na prática; as relações de poder/aprendizagem entre novatos e veteranos; a mudança nas formas de participação, os processos de exclusão e a incorporação da prática social; a prática futebolística como exercício de identificação e de constituição de masculinidades.4 4 Para o conceito de LPP (participação periférica legitimada) proposto por Lave e Wenger (1991), a noção de legitimidade é central. Considerada uma abertura, um modo de ganhar acesso a fontes de entendimento, ela é uma condição sine que non para a participação e, consequentemente, para o conhecimento. Segundo Lave e Wenger (1991), a estrutura social da prática, "suas relações de poder e suas condições para a legitimidade definem possibilidades para a aprendizagem". Tomando como referência essas reflexões dos autores (1991), busquei compreender o universo de aprendizagem do futebol como constituído por praticantes que possuem legitimidade de participação. A pesquisa de campo (em diálogo com outros trabalhos) destacou a ampla participação masculina no futebol. Isso porque as práticas futebolísticas que ocorriam cotidianamente eram marcadas por amplo engajamento dos jovens do sexo masculino e pela ausência/exclusão das mulheres (com exceção das aulas de Educação Física). No bairro pesquisado, para se tornar participante periférico do futebol, o mais básico requisito era ser do sexo masculino. Essa legitimidade da participação masculina não indicava, entretanto, homogeneidade e permanência na prática: trajetórias diferentes eram constituídas nas e das práticas de futebol. Permitiu compreender, portanto, que a aprendizagem é um processo dinâmico e sutil que ocorre por meio do engajamento crescente dos jovens na prática cotidiana; que a aprendizagem do futebol engloba mais que técnicas (envolve a incorporação de formas de agir, de movimentar o corpo e com elas um conjunto de aspectos implícitos: referentes à dimensão identitária, à prática coletiva, a significados, a emoções, a certos valores e disposições);5 5 Ao contrário do que apontam alguns estudos, isto é, que o futebol se difundiu no Brasil devido ao fato de ser um esporte mais fácil, a habilidade futebolística é algo extremamente difícil. Ela exige intenso processo de participação/experimentação/imersão do e no futebol. Como afirma Lave (1993, p. 10), "o que as pessoas estão aprendendo a fazer é um trabalho complexo e difícil. A aprendizagem não é um processo separado, nem um fim em si mesmo. Se ela parece sem esforço é porque em algum sentido ela é invisível". que o aprender não se dá, na maioria das vezes, a partir relações formais de ensino, ou seja, que o futebol é uma prática aprendida que possui pouco ensino observável.6 6 Um debate importante sobre essa questão é feito por Wolcott (1982) que, ao propor uma distinção entre ensino e aprendizagem, questiona a centralização dos estudos sobre a aprendizagem na escola. O aprender se dá em todas as situações em que os praticantes são levados a participar. Enfim, a pesquisa revelou que a participação nos contextos de futebol engaja o praticante num processo de aprendizagem que é estruturado - mas não do modo pedagógico. Em outras palavras: nas práticas cotidianas do futebol há uma estrutura de participação que permite a aprendizagem. Assim, a aprendizagem não é casual, osmótica ou de imitação passiva (LAVE, 1982LAVE, J. A comparative approach to educational forms of learning processes. Antropology & Education Quarterly. Special issue, London, v. 13, n. 2, p. 181-188, set., 1982. ). Ela é um processo em que os aprendizes se movem (de iniciantes a veteranos) na estrutura da prática social e nela aprendem (LAVE; WENGER, 1991LAVE, J.; WENGER, E. Situated learning: legitimate peripheral participation. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1991.).7 7 Uma descrição detalhada dos processos de aprendizagem do futebol pode ser encontrada em Faria (2008) e Faria (2011).

Conforme dito, o objetivo de desvelar os modos de aprendizagem do futebol me levou a explorar outros contextos de produção do jogo para além da escola. Contudo, esse distanciamento se revelou profícuo a outro tipo de relação de conhecimento. Como em um jogo de espelhos invertidos, enquanto alcançava graus de familiaridade (VELHO, 2006VELHO, O. Trabalhos de campo: antinomias e estradas de ferro. Aula inaugural no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UERJ, mar., 2006.) com a aprendizagem do futebol, constituía estranhamento com a prática pedagógica. Portanto, a aproximação com outras formas de aprender no futebol, me levou a perceber melhor o tipo de relação social de aprendizagem proposta nas aulas de Educação Física/escola e as suas implicações. Um deslocamento contraditório, que me distanciava da escola e que, por isso, me levava de novo (com outro olhar) para dentro dela. Um estranhamento constituído por deslocamentos possibilitados a partir da compreensão dos diferentes tipos de relação social de aprendizagem. Correndo os riscos que envolvem o esforço etnográfico, mergulhei no exercício de compreensão das práticas futebolísticas também nas aulas de Educação Física.

De fato, não é a didática/pedagogia que fundamenta a aprendizagem do futebol no Brasil (nem mesmo dentro da escola).8 8 Um indício importante de que é a participação na prática social cotidiana que permite a aprendizagem do futebol pode ser encontrado nos dados de observação das práticas escolares. Nas aulas de Educação Física o futebol não era ensinado de modo sistemático. Contudo, com o avançar da escolarização os jovens que permaneciam na prática iam mudando a forma de participar do jogo (constituíam habilidade). As mulheres, ao contrário, que tinham acesso à prática apenas na escola, seguiam realizando práticas de futebol semelhantes no decorrer de toda a escolarização (jovens de 5ª série jogavam de forma semelhante às do 2º grau). Contudo, em vários momentos da pesquisa pude perceber as marcas sutis da escolarização nas práticas futebolísticas dos jovens no bairro pesquisado: na organização dos treinos do time juvenil; na sistematização das práticas futebolísticas do projeto social da prefeitura; nas sutilezas das relações nas aulas de Educação Física na escola do bairro. Para dar conta também desses processos, recorri à teoria da forma escolar (de VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001VINCENT, G.; LAHIRE, B.; THIN, D. Sobre a história e teoria da forma escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 1, n. 33, p. 7-48, jun 2001.)9 9 Ao colocar foco na expansão da escolarização da sociedade, Vicent, Lahire e Thin (2001) apresentam as implicações do processo. Para eles, em certa época, foi possível assistir à constituição de "formas relativamente invariantes (recorrentes) de relações sociais" (p. 9). Destacam, desse modo, o surgimento de uma "forma inédita de relação social entre um mestre (num sentido novo do termo) e um aluno (p. 13). Ela é inédita, porque é distinta e se autonomiza em relação às outras relações sociais", na medida em que "desapossa os grupos sociais de suas competências e prerrogativas" (isto é, autonomiza o processo de ensino-aprendizagem). Afirmando que a forma é, antes de tudo, aquilo que não é coisa, nem ideia, isto é, uma unidade que não é a da intenção consciente, os autores apontam que a emergência da forma escolar "se caracteriza por um conjunto coerente de traços" (p.13). Destacam-se estes: a "constituição de um universo separado para a infância; a importância das regras na aprendizagem; a organização racional do tempo; a multiplicidade e a repetição de exercícios", cuja única função é "aprender conforme as regras". Fundamentalmente ligada à aprendizagem de "formas de exercício do poder", a forma escolar caracteriza-se, portanto, pela imposição "tanto aos alunos quanto aos mestres" de regras impessoais (VICENT; LAHIRE; THIN, 2001, p. 30) e também pela ideia de limitação das interações verbais, na perspectiva de "construir o educando como aluno disciplinado e limitar toda polissemia" que impeça o curso normal das atividades escolares (p. 33). A escola inaugura/funda um tipo de relação social própria ("a forma escolar como uma relação específica de ensino aprendizagem") que se "opõe então [...] a aprendizagens no âmago das formas sociais orais, pela e na prática" (p. 30). e, nesse texto, optei por abordar a sua ocorrência (não hegemônica e muitas vezes invisível) nas aulas de Educação Física. O texto que segue coloca em evidência os indícios desse tipo de relação social (a forma escolar) nas práticas futebolísticas nas aulas de Educação Física e desvela aspectos importantes do ambiente escolar. Não pretende, portanto, produzir reflexões sobre o como ensinar.

"É FUTEBOL? ENTÃO SOLTA A BOLA PROFESSOR": INDÍCIOS DA FORMA ESCOLAR NAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA

Na escola pesquisada a prática mais recorrente era o futebol.10 10 De um total de 64 aulas observadas no primeiro semestre de 2005, 02 aulas foram de peteca (5ª e 6ª série); 04 aulas foram de vôlei (7ª série e Ensino Médio); 03 aulas foram de caminhada (7ª e 8ª série); 43 aulas foram de futebol. Foco de maior resistência às intervenções pedagógicas, o futebol não se transformava em sequência de exercícios organizados com a finalidade de ensinar nas aulas de Educação Física - o que é uma especificidade do processo de escolarização. Nesse contexto as práticas futebolísticas se davam de maneira semelhante à sua produção fora da escola e os jovens aprendiam o jogo a partir dessas relações sociais (práticas de exclusão faziam parte desse processo). Isso não significava, entretanto, ausência de penetração das regras escolares. Nas aulas os professores mantinham o domínio do contexto de produção do futebol e ausentavam da participação no jogo em si (prática pedagógica que no âmbito da Educação Física tem sido identificada como "rolar a bola"). Como afirmou Cláudia: [esses alunos] "não têm jeito: não se pode ensinar/propor nada". Conversando com David (professor de Educação Física) sobre a organização das práticas nas aulas, ele argumentou sobre o que o levava a não propor exercícios para ensinar futebol:11 11 Para resguardar a identidade dos sujeitos da pesquisa optei por usar nomes fictícios. Destaco também as suas falas em itálico.

"A própria cultura da escola ta errada, a gente discute isso muito na faculdade, o menino já acha que chega na escola sabendo futebol, por isso futebol se você for ensinar: "- Ah, já sei, eu já jogo". Então nos outros esportes, nas outras atividades é mais fácil você estar organizando porque eles não têm muito interesse. É a cultura só do futebol, futebol, futebol".

A falta (ou dificuldade) de sistematização do ensino do futebol não era uma particularidade dessa escola. David afirmou: "a maioria dos colegas da gente que trabalham também tem esse mesmo problema quanto ao futebol". Vários estudos que tematizam o esporte nas aulas de Educação Física também revelam aspectos semelhantes sobre a produção do futebol em outras escolas.12 12 Faria (2001), Silva (2004) e outros. Desse modo, mostram: que os alunos resistem ao seu ensino sistematizado; que o futebol é produzido predominantemente na forma de jogo; que a produção do futebol nas aulas é semelhante à sua produção em outros tempos escolares (recreio) e sociais (fora da escola).

Num esforço de compreensão das relações sociais de aprendizagem no futebol, retomei as notas de campo buscando os vestígios daquilo que Vincent, Lahire e Thin (2001)VINCENT, G.; LAHIRE, B.; THIN, D. Sobre a história e teoria da forma escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 1, n. 33, p. 7-48, jun 2001. denominam de forma escolar nas aulas de Educação Física da escola pesquisada. Dificilmente submetido aos imperativos escolares de transmissão dos saberes (racionalização/organização, sequenciação, repetição), o futebol não se transformava em exercício escolar nas aulas. Mas, a sua estruturação na escola contrastava a alguns aspectos da sua produção em outros contextos do bairro: o futebol acontecia em um espaço/tempo específico; a frequência era "obrigatória"; as turmas eram organizadas por série/idade e as práticas ocorriam na presença de especialistas (os professores).

Nesse contexto, a forma escolar emergia na relação que os professores estabeleciam com as regras. Não era, entretanto, qualquer exercício de apropriação das regras que a caracterizava como prática escolar. Cotidianamente os jovens se apropriavam das regras do futebol nas "peladas", ensaios, brincadeiras e outros jogos de futebol (até nas aulas de Educação Física). O que permitia perceber o uso das regras como aspecto da forma escolar era a sua apropriação com fins pedagógicos. Enquanto em outros contextos a mudança de regras ocorria predominantemente como parte da sociabilidade (do funcionamento do próprio jogo e das necessidades dos participantes), alguns poucos usos que os docentes faziam das regras tinham fins educativos.

A regra da divisão dos tempos de jogo de futebol (masculino e feminino), por exemplo, demarcava uma singularidade do futebol das aulas de Educação Física. Controlando os tempos da prática (25 minutos masculino e 25 minutos feminino), os professores criavam um tempo/espaço institucionalizado para a participação das mulheres no futebol do bairro. A Educação Física era, portanto, não só o único contexto em que a maioria das jovens do bairro tinha contato com o futebol, mas também o único em que homens e mulheres tinham "direito" à prática.13 13 Enquanto a maioria das mulheres do bairro tinha acesso restrito ao futebol, jogando apenas na escola (na metade do tempo da aula de Educação Física, ou seja, 25 minutos duas vezes por semana), os homens tinham amplas possibilidades de "acesso" à prática (nas aulas de Educação Física e recreios da escola, nos treinos do projeto social da prefeitura e dos times infantil e juvenil do bairro, nos jogos amistosos no campo de futebol do bairro e nas práticas de lazer/peladas no campo de futebol nos fins de tarde). Os mais envolvidos com a prática chegavam a jogar 18 horas de futebol por semana (o que está relacionado às questões de gênero no futebol brasileiro).

Um das características mais explícitas da forma escolar no futebol ocorreu, entretanto, na produção de jogos entre homens e mulheres (os chamados jogos mistos). Pouco frequente nas aulas de Educação Física (das 45 aulas cujo tema era futebol, apenas 02 foram com times mistos), esse modo de organização, jamais observado nas práticas cotidianas de futebol no bairro, nem no esporte profissional, ganhou relevância como produção escolar. Revelando uma intenção pedagógica que é característica da forma escolar, o jogo misto na escola desdobrava-se em novas (e raras) manipulações das regras do futebol. Preocupado com o domínio masculino nesse contexto, o professor se antecipava (tentando limitar/neutralizar) à participação dos jovens com a produção de novas regras: "Somente as meninas podem fazer gol"; "Nenhum menino pode dar mais que dois toques na bola" (sem realizar o passe). Essa mudança de regras tinha como foco a inclusão das mulheres e a criação de um espaço para convivência. Buscavam, portanto, restabelecer as características dos processos de ensino/aprendizagem previstos pela escola.

No caso do jogo misto, a mudança de regras estava fundamentada também na perspectiva da composição de grupos homogêneos. A busca da homogeneidade - em que todos devem participar da mesma maneira (fazendo as mesmas coisas), em que a prática é regulada a cada momento - estava implícita no modo de organização da prática/aprendizagem e visava à diminuição das diferenças na forma de participação dos alunos no futebol.

É importante ressaltar também que as apropriações das regras nas aulas de Educação Física (que, a princípio, pareciam estruturar apenas o contexto do jogo) alteravam o seu sentido: de jogo masculino para jogo que também as mulheres "podiam" participar junto com os homens na escola; de prática social para contexto de aprendizagem (exercício escolar). Não é, pois, sem motivo que, logo após o professor encerrar o jogo misto, os jovens argumentavam: "- Agora a gente pode fazer um jogo de verdade?". Nesse caso, é possível perceber que para os alunos o jogo misto de futebol se assemelhava a um exercício escolar. Talvez por isso, os jovens resistiam tanto às intervenções pedagógicas (à penetração da forma escolar) nessa prática.

FORMA ESCOLAR E EDUCAÇÃO FÍSICA: OUTRAS APRENDIZAGENS A PARTIR DO FUTEBOL

Como quem busca "agulha no palheiro", persisti na tentativa de compreender o jogo que o futebol joga com a escola. Que fio condutor o liga à escolarização? O que era aprendido no futebol produzido em diálogo com forma escolar? Buscando outros elementos da forma escolar nas práticas futebolísticas do bairro, fui compreendendo que, na organização escolar do jogo, os jovens aprendiam o futebol (pois, com a participação isso é inevitável) e algo mais.

Na escola, o futebol cumpria um papel específico na educação, ou seja, outras aprendizagens escolares eram viabilizadas a partir dele. O futebol apresentava marcas da forma escolar à medida que se constituía como parte dos discursos e práticas educativas da escola. Na aula (sobre quadra poliesportiva que segue descrita abaixo) que o professor ministrou para os alunos de 5ª série foi possível perceber usos escolares desse esporte:

O professor me avisa que nessa aula vai ficar dentro de sala com a turma da 5º série: por motivo de indisciplina desses alunos na escola. Dirigimo-nos para a sala de aula no segundo andar da escola. Quando chegamos à sala, dois alunos estavam brigando e o professor logo pergunta o que está acontecendo. O professor ouve as versões dos dois alunos e insiste que eles peçam desculpas um ao outro. O professor cobra a disciplina dos alunos e diz que, se eles não melhorarem nas aulas, não vão fazer Educação Física. Quando os alunos querem falar, o professor exige que levantem o dedo. Depois de acalmar os ânimos exaltados da turma e de falar sobre as regras de disciplina, o professor pede aos alunos que peguem o caderno e sai da sala em busca de giz e apagador. [...] De volta à sala, o professor avisa à turma que a aula é sobre quadra poliesportiva e, desse modo, começa a explicar o que é uma quadra poliesportiva, desenhando no quadro (passo a passo) as diferentes marcações da quadra. Em tom irônico, ele pergunta aos alunos se estão gostando de ficar em sala de aula e eles respondem também em alto tom e em coro, que não. O professor desenha quadras de diferentes modalidades e pede aos alunos que as copiem (sobrepostas como a quadra real). Ele explica que só desenha as quadras separadas para os alunos aprenderem. Iniciando o desenho da quadra de futebol de salão, o professor pergunta aos alunos se sabem o que é futsal. Os alunos respondem futebol. O professor completa: "- Futebol de salão". Depois de desenhar todas as demarcações de quadra o professor desce com os alunos para o pátio dois minutos mais cedo para o recreio. (Diário de Campo/2005)

A aula sobre quadra poliesportiva foi uma demonstração de que na escola o futebol educava/disciplinava. A educação proposta não se dava, entretanto, pela prática esportiva. Era a privação da prática, ou seja, retirar dos alunos aquilo de que eles gostavam, que fornecia os elementos educativos. Nesse contexto, em que o futebol funcionava como recurso disciplinar, outros elementos da forma escolar emergiam: na organização do conhecimento a ser passado aos alunos (de forma sequenciada o professor foi desenhando separadamente o que estava junto na quadra); no controle das interações verbais (o professor impôs a forma adequada de manifestação dos alunos e dirigiu as oportunidades de fala do grupo). Como afirma Vincent, Lahire e Thin (2001)VINCENT, G.; LAHIRE, B.; THIN, D. Sobre a história e teoria da forma escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 1, n. 33, p. 7-48, jun 2001., essa limitação das interações verbais ou mesmo a substituição por esquemas de interações diretivas a partir de perguntas, de subperguntas e de respostas são características da forma escolar.

Nas aulas de Educação Física havia uma tensão permanente entre a prática do futebol (como prática social dentro da escola) e o desejo dos professores de instituir outros processos educativos. Como no uso das brincadeiras em jogos matemáticos, quando o brincar serve como recurso pedagógico, as formas como os professores de Educação Física lidavam com o futebol eram impregnadas de relações pedagógicas. Assim, o futebol era utilizado para diferentes fins. Quando os alunos desobedeciam às regras escolares ou ficavam "indisciplinados", perdiam o direito de jogar futebol nas aulas. Alunos que, no decorrer das práticas, se expressavam com palavras consideradas inadequadas ao contexto escolar eram imediatamente repreendidos pelos professores e podiam até ser penalizados com a exclusão. Nos jogos de futebol das aulas de Educação Física não era permitido falar "palavrões" ou agir de forma que na escola era considerada violenta. O futebol também servia para "gastar" energias acumuladas na sala de aula (como afirmou o professor de Educação Física, para "tirar a energia dele rolando [a bola]") e como objeto de barganha.

Na Educação Física a forma escolar também estava presente no uso de regras impessoais, ou seja, quando a relação entre os alunos e os professores era "mediatizada pela regra geral, impessoal" (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001, p. 31VINCENT, G.; LAHIRE, B.; THIN, D. Sobre a história e teoria da forma escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 1, n. 33, p. 7-48, jun 2001.). Isso ficava evidente na organização escolar (produção dos tempos, espaços, práticas, etc.) e no uso que os professores faziam do apito nas aulas. Funcionando como mecanismo de ordem, controle e comando, jamais como no âmbito esportivo, o apito era usado para reger a prática escolar e os comportamentos dos alunos, regular os tempos de jogo dos grupos, chamar a atenção dos alunos, coibir palavras e ações indesejadas. Como afirma Vincent, Lahire e Thin (2001, 34)VINCENT, G.; LAHIRE, B.; THIN, D. Sobre a história e teoria da forma escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 1, n. 33, p. 7-48, jun 2001., "neste nível, a comunicação é toda mecânica e inteiramente hierarquizada". Trata-se, portanto, de relações codificadas que estão indissociavelmente ligadas a um "modo particular de organização e de exercício do poder" (p. 31).

As aulas de Educação Física (em que a bola "rolava") não estavam isentas, portanto, de um modo de relação social específica, fundada no poder - uma forma de relação social entre um "mestre" (em sentido novo do termo) e um aluno, uma relação que chamamos "pedagógica" (VINCENT LAHIRE; THIN, 2001, 13VINCENT, G.; LAHIRE, B.; THIN, D. Sobre a história e teoria da forma escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 1, n. 33, p. 7-48, jun 2001.). Na Educação Física, essas relações emergiam (ou se produziam) nas interações, quando os professores faziam intervenções no contexto de produção do futebol: definindo, permitindo, punindo, mudando, gerindo, etc.

As intervenções, entretanto, sempre causavam resistência. A particularidade do futebol na escola era certa alternância ("partilha") do poder: entre os professores (com maior domínio do contexto de produção do jogo na aula) e os alunos (com maior domínio de produção da prática social). A "queda de braço" surgia por forças divergentes: os alunos produziam práticas futebolísticas na escola e aprendiam (independentemente da forma escolar). Os professores regulavam os comportamentos permitidos, comprometidos com certo tipo de educação escolar do corpo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme explicitado no início do texto, a aprendizagem do futebol no nosso contexto histórico-cultural é intergeracional, difusa, cotidiana e independe dos processos de ensino tal como ocorre na escola.14 14 Tal como ocorre com o futebol no Brasil, há outros conhecimentos em que é a participação em contextos da prática cotidiana (na cultura) que possibilita a aprendizagem. Como práticas de aprendizagem culturalmente fundada (GOMES, 2006), nesse âmbito a cultura é o contexto e o objeto de aprendizagem (se aprende a cultura na cultura). Contudo, é importante ressaltar que a escola é um dos contextos de produção/aprendizagem do futebol no cotidiano dos jovens brasileiros. Nela o jogo é praticado e, em decorrência desse processo, aprendido à revelia das práticas pedagógicas (inclusive, os seus aspectos excludentes, identitários e simbólicos). Assim, o modo de aprender situado (nas relações entre pares na prática cotidiana) é hegemônico, mesmo em contextos com ocorrência de práticas pedagógicas orientadas pela forma escolar.

O futebol é, de fato, o esporte em que os jovens produzem maior tensão às práticas docentes: de organização didática, fragmentação e descontextualização do conhecimento, de transformação da prática social em um exercício escolar. Isso não significa, entretanto, a total ausência da forma escolar no futebol praticado por jovens e crianças na escola. Nas aulas de Educação Física, o diálogo com a forma escolar se dá a partir de usos docentes desse esporte, fundamentado na ideia de aprendizagem da disciplina e/ou de educação do corpo (a aprendizagem de comportamentos e de linguagens adequadas na escola) ou de compensação do desgaste provocado pelo ensino na sala de aula. Nesse contexto, portanto, os praticantes experimentam, sob a égide da forma escolar, a aprendizagem também de outras coisas a partir do futebol.

Mas se não é a forma escolar de relação social que sustenta a aprendizagem do futebol no Brasil, porque colocá-la em foco? Primeiro, porque mostra que o aprender é um processo vital (que as pessoas estão sempre aprendendo com a participação na prática) e que no cotidiano escolar "convivem" (em tensão) diferentes relações sociais de aprendizagem. Segundo, porque permite perceber que nem tudo é passível de ser ensinado nos moldes escolares, e que nos contextos onde a forma escolar (esse modo de relação social inconsciente/naturalizado na nossa cultura) impera o aprendizado mais evidente é o da relação social fundada no poder: entre um mestre e um aprendiz (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001VINCENT, G.; LAHIRE, B.; THIN, D. Sobre a história e teoria da forma escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 1, n. 33, p. 7-48, jun 2001.). Por fim, a centralidade dada à descrição das marcas escolares nas práticas futebolísticas das aulas de Educação Física foi uma escolha pautada na necessidade de dar relevo à complexidade de um "fazer pedagógico" que nos parece amplamente familiar. Afinal, que professor de Educação Física desconhece esse modo de organização da aula? O compartilhamento dos problemas que envolvem esse tipo de prática no âmbito da Educação Física (rotulada como "rolar bola") favorece a produção de importantes reflexões críticas acerca do ensino dos esportes na escola, mas, também, produz invisibilidades dos seus processos internos. O fato é que, dessas práticas escolares (e também dos modos de aprendizagem das práticas culturais que tematizamos na escola) ainda sabemos muito pouco. Temos uma sensação de familiaridade que nos impede da possibilidade do conhecimento e, de certa maneira, também da intervenção. Nesse cenário a ideia de estranhamento proposto na Antropologia pode se tornar interessante, pois pode nos ajudar a trilhar novos caminhos de conhecimento na Educação Física. Penso que o ofício do antropólogo - que, como afirma WAGNER (2010, p.39)WAGNER, R. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naif, 2010., ao "tornar o estranho familiar sempre torna o familiar um pouco estranho" - pode nos servir de inspiração para um exercício cotidiano na escola.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • WOLCOTT, H. F. The Anthropology of Learning. Anthropology & Education Quarterly. Special issue, London, v. 13, n. 2, p. 83-108, set., 1982.
  • 1
    Há uma variedade de estudos que tematizam a difusão do futebol no Brasil. Sem tratar o tema da aprendizagem (que é o objeto específico dessa investigação), vários autores oferecem pistas importantes sobre a cotidianidade da aprendizagem do futebol, implícita no processo de difusão, por exemplo: Daolio (2000)DAOLIO, J. As contradições do futebol brasileiro. In: CARRANO, P. C. Futebol: paixão e política. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. p. 29-44., Pereira (2000)PEREIRA, L. A. M. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro (1902-1938). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000., Toledo (2002)TOLEDO, L.H. Lógicas no futebol. São Paulo: Hucitec, Fapesp, 2002. e Damo (2005)DAMO, A. S. Do dom à profissionalização: uma etnografia do futebol de espetáculo a partir da formação de jogadores no Brasil e na França. 2005. 435f. Tese (Doutorado) - Curso de Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UFRGS, Porto Alegre, 2005., só para citar alguns.
  • 2
    A aprendizagem como "atividade situada" constitui a definição central do processo que Lave e Wenger (1991 p. 29)LAVE, J.; WENGER, E. Situated learning: legitimate peripheral participation. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1991. chamam de Legitimate Peripheral Participation (LPP), ou seja, processo pelo qual aprendizes participam em comunidades de prática em que o domínio do conhecimento e das habilidades requer movimento em direção à "participação plena nas práticas socioculturais". Apresentando a aprendizagem como parte da prática social cotidiana e apostando na necessidade da visão relacional da pessoa e da aprendizagem, Lave e Wenger (1991, p. 54)LAVE, J.; WENGER, E. Situated learning: legitimate peripheral participation. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1991. acreditam que é importante fazer justiça às "múltiplas relações através das quais ela define a si mesma na prática". Afirmam também que o "desenvolvimento da identidade é central para as carreiras de novatos (newcomers) na comunidade de prática e, assim, fundamental para o conceito de LPP" (p. 115).
  • 3
    Nesse percurso estabeleci diálogo com as teorias etnográficas de Velho (2006)VELHO, O. Trabalhos de campo: antinomias e estradas de ferro. Aula inaugural no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UERJ, mar., 2006., Sahlins (2006)SAHLINS, Marshall. História e cultura: apologias a Tucídides. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006., Ingold (2001)INGOLD, T. Beyond art and technology: the anthropology of skill. In: SCHIFFER, M. B. Anthropological perspectives on technology. Albuquerque (NM): University of New Mexico Press, 2001., Goldmam (2003), etc.
  • 4
    Para o conceito de LPP (participação periférica legitimada) proposto por Lave e Wenger (1991)LAVE, J.; WENGER, E. Situated learning: legitimate peripheral participation. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1991., a noção de legitimidade é central. Considerada uma abertura, um modo de ganhar acesso a fontes de entendimento, ela é uma condição sine que non para a participação e, consequentemente, para o conhecimento. Segundo Lave e Wenger (1991)LAVE, J.; WENGER, E. Situated learning: legitimate peripheral participation. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1991., a estrutura social da prática, "suas relações de poder e suas condições para a legitimidade definem possibilidades para a aprendizagem". Tomando como referência essas reflexões dos autores (1991), busquei compreender o universo de aprendizagem do futebol como constituído por praticantes que possuem legitimidade de participação. A pesquisa de campo (em diálogo com outros trabalhos) destacou a ampla participação masculina no futebol. Isso porque as práticas futebolísticas que ocorriam cotidianamente eram marcadas por amplo engajamento dos jovens do sexo masculino e pela ausência/exclusão das mulheres (com exceção das aulas de Educação Física). No bairro pesquisado, para se tornar participante periférico do futebol, o mais básico requisito era ser do sexo masculino. Essa legitimidade da participação masculina não indicava, entretanto, homogeneidade e permanência na prática: trajetórias diferentes eram constituídas nas e das práticas de futebol.
  • 5
    Ao contrário do que apontam alguns estudos, isto é, que o futebol se difundiu no Brasil devido ao fato de ser um esporte mais fácil, a habilidade futebolística é algo extremamente difícil. Ela exige intenso processo de participação/experimentação/imersão do e no futebol. Como afirma Lave (1993, p. 10)LAVE, J. The practice of learnig. In: CHAIKLIN, S.; LAVE, J. Understanding practice: perspectives on activity and context. Nova York: Cambridge University Press, 1993. p. 3-32., "o que as pessoas estão aprendendo a fazer é um trabalho complexo e difícil. A aprendizagem não é um processo separado, nem um fim em si mesmo. Se ela parece sem esforço é porque em algum sentido ela é invisível".
  • 6
    Um debate importante sobre essa questão é feito por Wolcott (1982)WOLCOTT, H. F. The Anthropology of Learning. Anthropology & Education Quarterly. Special issue, London, v. 13, n. 2, p. 83-108, set., 1982. que, ao propor uma distinção entre ensino e aprendizagem, questiona a centralização dos estudos sobre a aprendizagem na escola.
  • 7
    Uma descrição detalhada dos processos de aprendizagem do futebol pode ser encontrada em Faria (2008)FARIA, E. L. A aprendizagem na e da prática social: um estudo etnográfico sobre as práticas de aprendizagem do futebol em um bairro de Belo Horizonte. 2008. 229 f. Tese (Doutorado) - Curso de Educação, Faculdade de Educação, UFMG, Belo Horizonte, 2008. e Faria (2011)LAVE, J.; WENGER, E. Situated learning: legitimate peripheral participation. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1991..
  • 8
    Um indício importante de que é a participação na prática social cotidiana que permite a aprendizagem do futebol pode ser encontrado nos dados de observação das práticas escolares. Nas aulas de Educação Física o futebol não era ensinado de modo sistemático. Contudo, com o avançar da escolarização os jovens que permaneciam na prática iam mudando a forma de participar do jogo (constituíam habilidade). As mulheres, ao contrário, que tinham acesso à prática apenas na escola, seguiam realizando práticas de futebol semelhantes no decorrer de toda a escolarização (jovens de 5ª série jogavam de forma semelhante às do 2º grau).
  • 9
    Ao colocar foco na expansão da escolarização da sociedade, Vicent, Lahire e Thin (2001) apresentam as implicações do processo. Para eles, em certa época, foi possível assistir à constituição de "formas relativamente invariantes (recorrentes) de relações sociais" (p. 9). Destacam, desse modo, o surgimento de uma "forma inédita de relação social entre um mestre (num sentido novo do termo) e um aluno (p. 13). Ela é inédita, porque é distinta e se autonomiza em relação às outras relações sociais", na medida em que "desapossa os grupos sociais de suas competências e prerrogativas" (isto é, autonomiza o processo de ensino-aprendizagem). Afirmando que a forma é, antes de tudo, aquilo que não é coisa, nem ideia, isto é, uma unidade que não é a da intenção consciente, os autores apontam que a emergência da forma escolar "se caracteriza por um conjunto coerente de traços" (p.13). Destacam-se estes: a "constituição de um universo separado para a infância; a importância das regras na aprendizagem; a organização racional do tempo; a multiplicidade e a repetição de exercícios", cuja única função é "aprender conforme as regras". Fundamentalmente ligada à aprendizagem de "formas de exercício do poder", a forma escolar caracteriza-se, portanto, pela imposição "tanto aos alunos quanto aos mestres" de regras impessoais (VICENT; LAHIRE; THIN, 2001, p. 30) e também pela ideia de limitação das interações verbais, na perspectiva de "construir o educando como aluno disciplinado e limitar toda polissemia" que impeça o curso normal das atividades escolares (p. 33). A escola inaugura/funda um tipo de relação social própria ("a forma escolar como uma relação específica de ensino aprendizagem") que se "opõe então [...] a aprendizagens no âmago das formas sociais orais, pela e na prática" (p. 30).
  • 10
    De um total de 64 aulas observadas no primeiro semestre de 2005, 02 aulas foram de peteca (5ª e 6ª série); 04 aulas foram de vôlei (7ª série e Ensino Médio); 03 aulas foram de caminhada (7ª e 8ª série); 43 aulas foram de futebol.
  • 11
    Para resguardar a identidade dos sujeitos da pesquisa optei por usar nomes fictícios. Destaco também as suas falas em itálico.
  • 12
    Faria (2001), Silva (2004)SILVA, F. L. Práticas corporais de movimento na escola. 2004. 115f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Educação, Faculdade de Educação, UFMG, Belo Horizonte, 2004. e outros.
  • 13
    Enquanto a maioria das mulheres do bairro tinha acesso restrito ao futebol, jogando apenas na escola (na metade do tempo da aula de Educação Física, ou seja, 25 minutos duas vezes por semana), os homens tinham amplas possibilidades de "acesso" à prática (nas aulas de Educação Física e recreios da escola, nos treinos do projeto social da prefeitura e dos times infantil e juvenil do bairro, nos jogos amistosos no campo de futebol do bairro e nas práticas de lazer/peladas no campo de futebol nos fins de tarde). Os mais envolvidos com a prática chegavam a jogar 18 horas de futebol por semana (o que está relacionado às questões de gênero no futebol brasileiro).
  • 14
    Tal como ocorre com o futebol no Brasil, há outros conhecimentos em que é a participação em contextos da prática cotidiana (na cultura) que possibilita a aprendizagem. Como práticas de aprendizagem culturalmente fundada (GOMES, 2006GOMES, A. M. R. O processo de escolarização entre os Xakriabá: explorando alternativas de análise na antropologia da educação. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v.11, n. 32, p. 316-326, mai/ago 2006.), nesse âmbito a cultura é o contexto e o objeto de aprendizagem (se aprende a cultura na cultura).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2012
  • Aceito
    31 Dez 2012
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