Introdução
O que é sedentarismo? Aliás, há o sedentarismo como algo objetivo, determinável, cujos efeitos sejam absolutamente previsíveis? Ao formular essas questões, nossa pretensão não é defender os discursos de verdade existentes ou substituí-los por novos. Também não ambicionamos recolher e sintetizar todas as possíveis respostas, formulando a melhor opção, a fim de encerrar a discussão. Nosso objetivo é outro: mostrar que diferentes discursos de verdade vêm concorrendo por esse conceito, o que nos motiva a pensar qual é a verdade ou, até mesmo, se há alguma verdade sobre ele. A hipótese da presente provocação é que, ao menos por enquanto, o sedentarismo está para além do par de oposição binária verdade ou falsidade científica. Quer dizer, uma perspectiva científica dualista seria incapaz de compreender apropriadamente o sedentarismo.
Traçando um paralelo com o discurso mítico-religioso, o sedentarismo seria mais apropriadamente compreendido se tomado como um objeto fundamental de crenças diferencialmente compartilhadas no meio científico em torno do deus-saúde. Ou seja, em nome dessa (imprecisa) divindade contemporânea, elegeu-se o seu (impreciso) antípoda, consubstanciando uma nova versão da antiga luta do bem contra o mal, como é típico das crenças dualistas. Contudo, como pretendemos mostrar, há crenças polissêmicas sobre a teogonia e teofania daquele bem (saúde) e mal (sedentarismo). Como os sacerdotes (cientistas) divergem bastante, os fiéis (indivíduos "normais") ficam na dúvida sobre qual o reto caminho que leva para o reino da saúde e qual o errante, cujo fim é a perdição patológica. Assim, será que há, indubitavelmente, um único caminho que leve à vida saudável? Será, por outro lado, que uma vida tida como sedentária implica os mesmos efeitos em todos os indivíduos? Fundamentalmente, voltando à questão, existe uma definição verdadeira de sedentarismo?
Embora uma ideia do que seja sedentarismo esteja sendo amplamente utilizada nos estudos epidemiológicos e nos campos da educação física e da medicina, pouco tem sido ponderado acerca do que significa ou pode significar esse conceito. Seria este um conceito propriamente científico? Ou, ao contrário, seria vulgar, vez que não poderia ser apreendido e compreendido com precisão, de modo que tentar defini-lo esbarraria em sérios problemas?
Assim, suscitar à vista aquelas questões, considerando as diversas acepções do conceito, que satisfazem os variados interessados sobre o tema, revela a necessidade de apontar a fragilidade ou relatividade dos entendimentos científicos sobre ele, o que, consequentemente, nos leva a refletir sobre o seu valor objetivo.
Isso tudo será debatido de um modo inusitado. Em que pese a tradição científica estruturar os textos acadêmicos de um modo linear, sistemático, pois isso corresponde a dada crença na verdade, optou-se por arranjar o presente artigo por aforismos. Com isso, adotamos a crença de disponibilizar maior liberdade, para que o leitor exerça a reflexão sobre pequenos temas afins, sem a obrigatoriedade de um único sentido lógico, abrindo, desta forma, várias vias de cogitação sem um ponto de chegada predeterminado.
Excursos sobre a sedutora crença na verdade
A verdade é um dos mais antigos objetos de crença. Segundo Nietzsche (2008), "a crença na verdade é necessária ao homem" (fragmento 175, p. 72, grifo do original). Sem saber se essa afirmação é verdadeira ou não, aparentemente, os homens vêm, de fato, convivendo bem com dada crença na verdade. Via de regra, ela é tida como monológica, unívoca, singular, e seu poder reside justamente nestas supostas características. Associado a isso, um dos elementos fundamentais da crença na verdade é supor que esta é passível de enunciação. Quer dizer, ela não é uma misteriosa e inacessível entidade. Ao contrário, está à espera de ser revelada.
Ademais, crê-se que é possível delimitar a realidade pela linguagem. A verdade, desse ponto de vista, estaria na interface linguagem-realidade. Em suma, a verdade seria dizível e de um único modo, revelando o que as coisas são e/ou predizendo o que elas implicarão. Em uma versão radicalizada dessa crença, haveria uma identidade entre linguagem e realidade. Dito de modo simples, o dizer e o existir são ontologicamente dependentes. E mais: a linguagem revelaria a essência das coisas, a sua verdade, não podendo ser falsa.
Mas e se, como aponta Nietzsche (2008), as condições de produção da verdade fossem as mesmas da falsidade (ou mentira)? Assim, uma miríade de falsidades poderia estar sendo produzida sob a aparência de um discurso de verdade, inclusive pela ciência. Além disso, e se pudermos produzir múltiplas verdades com a linguagem, em razão, por exemplo, das limitações inerentes às enunciações sobre a complexidade da realidade? Relativamente ao conceito em questão, por exemplo, poder-se-ia, verdadeira e singularmente, definir a vida sedentária, prevendo e universalizando os seus efeitos? Ou haveria múltiplas verdades sobre o comportamento tido como sedentário, concernentes a variados organismos, interesses e perspectivas?
Inobstante dúvidas como essas, o valor da verdade singular ultrapassa fronteiras históricas, culturais, filosóficas e religiosas, estabelecendo-se como uma das crenças triunfantes da humanidade. Diante da luminosa e inconfundível verdade, não restaria sombra de dúvida. Toda incerteza seria dissipada por um sublime processo de esclarecimento. Especialmente para as tradições religiosas, preservar a dúvida nos corações desagrada à divindade. Descartes também empregou seus esforços em subjugar a dúvida à certeza distinta e clara que só o poder irresistível da verdade é capaz de gerar. A "deusa verdade" ama aqueles que não coxeiam entre a certeza e a dúvida, ou entre certezas concorrentes. Para ela, importam apenas os absolutamente crédulos, os que reconhecem a verdade única assim que ela se revela, prostrando-se ante a ela.
Apesar de amplamente endossado, há vozes dissonantes quanto ao valor-verdade. Aliás, esse é um dos valores preferidos da crítica do transvalorador filósofo Nietzsche (2008). Para ele, verdade é uma metáfora com a qual nos acostumamos de tal modo que nos esquecemos que é meramente uma metáfora. Assim, substituímos a sua praticidade (valor de uso) por uma essência oculta a ser revelada. A existência da verdade não se apoiaria na sua efetividade, no seu poder de influência e constrangimento concretos, mas em si.
No entanto, insistimos, será que existe uma única enunciação verdadeira sobre a realidade? Há uma causalidade única, uma essência verdade, uma relação determinada, um efeito previsível, ou o que há é mera possibilidade? Quer dizer, algo pode ser verdadeiro em dada circunstância, relativamente a dadas condições, mas não em outras? Em conformidade com a sentença de Nietzsche (2008), segundo a qual "lutar por uma verdade é algo completamente distinto de lutar pela verdade" (fragmento 106, p. 64, grifos do original), não queremos dizer que não haja enunciados verdadeiros, mas sim duvidamos de que, no caso específico em tela, haja verdades únicas, válidas universalmente.
Assumiremos o risco de pôr sob a sombra da dúvida algumas verdades e certezas, sem, contudo, substituí-las por outras. Os excertos que salientaremos revelam ambiguidades. Destarte, eles não serviriam de guia. Por isso, provavelmente não atrairemos muitos seguidores, mas talvez esse seja o preço de uma verdade trazida para os campos da incerteza e da multiplicidade. Ou seja, por pensar a verdade em tais campos, contrariando "os absolutos" - o absolutamente verdadeiro e o absolutamente falso -, tais trechos podem estar fadados ao ostracismo científico ou, quem sabe, gerar uma profícua reflexão no campo.
Ambiguidades, incertezas, possibilidades
Sedentário, do latim sedentarius, sedentarium, "que trabalha assentado". De acordo com o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, sedentário significa "que ou aquele que está quase sempre sentado (em virtude de ocupação habitual)" e por extensão de sentido "que ou aquele que não se movimenta muito, que anda e/ou se exercita pouco". Sua datação, segundo o léxico, é de 1661, quando aparece no livro Luz da medicina prática racional e metódica: guia de enfermeiros dividido em três partes, de Francisco Morato Roma.
Contudo, segundo o documento "Physical activity and health: a report of the surgeon general", produzido pelo Centers for Disease Control and Prevention (US Department of Health and Human Services, 1996), em 1584, Thomas Cogan publicou um livro intitulado The Haven of Health em que recomendava aos jovens que a vida sedentária tornava os indivíduos mais suscetíveis a doenças. Como se vê, a verdade sobre a origem do conceito tem pelo menos duas versões separadas por algumas décadas.
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Ainda segundo esse último documento, em 1713, no livro Doenças dos trabalhadores, Bernardino Ramazzini, um médico italiano, especialmente no capítulo "Os trabalhadores sedentários e suas doenças", ofereceu sua opinião sobre a associação entre a inatividade crônica e a pobre saúde.
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A formação da ética protestante, a partir do século XVI, pode ter forjado o espírito do capitalismo e a produção de saberes que o sustentavam. A preguiça e a indolência eram pecados mortais e o homem possuidor dessas características não poderia ser um cristão, ser salvo. Ao contrário, deveria ser morto e lançado fora da "colmeia". O trabalho era o verdadeiro instrumento ascético. Neste sentido, o esporte como prática espontânea, impulsiva ou de prazer irracional encontrava a reprovação dos puritanos. Somente quando exercitado para uma finalidade racional, como o revigoramento indispensável à eficiência do corpo, poderia ser aceito pelos protestantes (Weber, 1997). Atividade física como um bem... traços de uma ética... capitalista. A verdade do valor instrumental de uma vida ativa.
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O termo sedentário ou sedentarismo, em que pese atualmente aparecer corriqueiramente associado à prática de exercícios físicos e suas relações com a saúde, quase sempre esteve ligado ao trabalho do homem. E, muitas vezes, de forma paradoxal! Diferentes estudos têm apontado que a questão do sedentarismo nos primeiros hominídeos diz respeito ao momento em que esses seres começaram a se fixar em uma área para explorá-la com a agricultura, ao contrário de seguir na condição de caçador/coletor (Eshed et al., 2010; Marlowe, 2005). Nossos ancestrais, segundo apontam algumas estimativas, talvez se deslocassem de 19 a 33 quilômetros por dia a mais que os seres humanos atuais (Booth; Chakravarthy; Spangenburg, 2002), e o interessante é que ao se tornarem "sedentários", isto é, ao se estabelecerem em um espaço que poderia lhes fornecer alimentos, foi possível economizar energia, a despeito da, ainda, ampla mobilidade (Bocquet-Appel, 2009), o que poderia ser estratégico para a conservação da vida. Ademais, talvez, esses primeiros hominídeos também tenham experimentado um declínio no estresse mecânico sobre os ossos com o início da agricultura, embora haja controvérsia sobre esse aspecto (Eshed et al., 2010). Todavia, há alguns indícios de que a nova vida "sedentária" tornou os "primeiros homens" mais vulneráveis às doenças, mas por um motivo bem diverso daquele que se especula atualmente. Em razão do maior contato com animais domésticos - ovelhas, cabras, porcos, gado - e, provavelmente, em decorrência da maior proximidade entre os indivíduos e possibilidade de transmissão de doenças contagiosas (Eshed et al., 2010).
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Hannah Arendt, em A condição humana (2000), escreve sobre o significado da expressão vita activa. Segundo a filósofa alemã, Aristóteles identificava os modos de vida em que os homens tinham inteira independência para realizar escolhas, a despeito das necessidades da vida e das relações que decorressem dessas necessidades. O homem para ser livre, portanto, deveria eliminar qualquer modo de vida destinado à sobrevivência do indivíduo. Assim, todos aqueles que, de forma voluntária ou não, deixaram de ser donos dos seus movimentos e ações, como os escravos e outros trabalhadores, não eram mais sujeitos livres. Para ser livre era preciso se ocupar do "belo", isto é, realizar coisas não necessariamente úteis, voltar a vida para os prazeres do corpo, viver uma vida contemplativa. O labor do escravo ou o trabalho não eram tidos como dignos para um modo de vida autônomo e legitimamente humano. Outra ética, outro valor, outro sentido de vida boa ativa, outra verdade?
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A vida ativa e livre seria a do sedentário, ao contrário do que se afirma hoje? Que concepção, a antiga ou a moderna, é verdadeira? Ou, como Nietzsche (2008) provoca, o que importa é identificar como dada verdade funciona em dado contexto? A verdade aristotélica simplesmente serviria aos interesses dos aristocratas gregos, assim como a verdade dos modernos serve aos da burguesia? Não haveria verdade única? E se o valor-verdade for a efetividade?
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A Revolução Industrial, ao se consolidar, permitiu que alguns estudiosos do trabalho pudessem explorar ao máximo a força de trabalho. Assim, Henri Fayol (1841-1925) concebeu uma doutrina de administração de empresas; Frederick Winslow Taylor (1856-1915) promoveu uma organização científica do trabalho, por meio da qual buscava o aumento radical da produtividade do trabalho e passou a ser denominada "taylorismo"; e Henry Ford (1863-1947) elaborou um sistema que aperfeiçoava o "taylorismo" e caracterizava-se pela produção e consumo em massa (Braverman, 1987; Harvey, 1996; Hobsbawm, 1998). A exploração demasiada do trabalhador não foi sem reação. Se, por um lado, Marx e Engels foram dois dos principais autores nessa denúncia da opressão do capitalista sobre o trabalhador, Paul Lafargue proclamou o "direito à preguiça", de certo modo, como uma forma de resistência ao capitalismo. Verdade contestada, para dar origem à outra!
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Não parece estranho, portanto, que surja no início do século XX (talvez, até, tardiamente) um laboratório de fadiga na Escola de Administração da Universidade de Harvard. A destinação de um laboratório com essa finalidade em tal escola, e não em escolas de medicina ou saúde pública, diz respeito ao interesse de doadores/financiadores em contribuir para os estudos sobre os riscos industriais e processos fisiológicos relacionados ao esforço no trabalho e à fadiga dos trabalhadores (Breilh, 1991).
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Para alguns, a noção dos possíveis benefícios da atividade física regular à saúde já estava presente - em outros termos, da vida boa - na cultura da Grécia Antiga. Em A República, Platão (2000) dá continuidade, no Livro III, à construção da educação dos guardiões, e a ginástica surge como um aspecto importante na formação dos jovens.
Sócrates - E, se seguir as mesmas regras da ginástica, o músico que a pratica conseguirá dispensar o médico, exceto nos casos de urgência?; Glauco - Creio que sim.; Sócrates - Nos exercícios e trabalhos, propor-se-á estimular a parte generosa da sua alma, de preferência a aumentar a sua força, e como os outros atletas, não regulará a sua alimentação e os seus esforços com vista ao vigor corporal.; Glauco - Muito bem.; Sócrates - Acreditarias, meu caro Glauco, que os que fundamentaram a educação na música e na ginástica fizeram-no para formar o corpo por meio de uma ou por meio de outra?; Glauco - Por que me fazes essa pergunta?; Sócrates - É que me parece que tanto uma como a outra foram criadas principalmente para a alma.; Glauco - Como assim?; Sócrates - Já notaste, certamente, qual é a disposição de espírito dos que se entregam à ginástica durante toda a vida e não se interessam pela música? Ou dos que fazem o contrário?; Glauco - De que disposição falas?; Sócrates - Da rudeza e dureza de uns, da moleza e brandura dos outros.; Glauco - Já notei que aqueles que se entregam unicamente à ginástica contraem demasiada rudeza e que os que cultivam exclusivamente a música se tornam mais moles do que o permitiria a decência (Platão, 2000, p. 105).
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O marco divisório, entretanto, nas associações propriamente ditas entre a atividade física e a saúde pode ser atribuído aos estudos epidemiológicos de Jeremy N. Morris, especialmente aqueles a partir de 1953 (Paffenbarger; Blair; Lee, 2001). Nessas pesquisas, Morris e alguns colaboradores investigaram as relações entre a atividade física realizada no trabalho e a prevalência de doenças e/ou mortalidade entre os trabalhadores (Morris; Heady, 1953; Morris et al., 1953a; Morris et al., 1953b). A hipótese central desse pesquisador era: "Homens cujos trabalhos são fisicamente ativos têm menor incidência de doenças coronarianas, na meia-idade, do que outros que estão realizando trabalhos sedentários. Além disso, a doença não é tão grave nos primeiros trabalhadores e apresentam menor letalidade" (trad. livre), Morris et al., 1953b, p. 1111). O grupo, então, investigou os efeitos dos esforços físicos dos trabalhadores dos serviços de transporte e correios (Morris et al., 1953a). Para o primeiro caso foi realizada uma comparação entre os motoristas de ônibus (trabalho menos ativo) e os coletores do dinheiro da passagem (mais ativos).(1)Para o segundo caso foram comparados os carteiros (mais ativos) e os trabalhadores de escritório (menos ativos). Nas duas situações, os autores encontraram que os trabalhadores mais ativos tinham menor incidência de doenças cardiovasculares.
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Contudo, há algo que os números parecem mascarar. Em que medida, os trabalhadores fisicamente mais aptos, mais fortes, resistentes e mais "saudáveis" foram selecionados para os trabalhos de maior esforço físico? Cabe destacar que Taylor, no início do século XX, já havia sugerido uma seleção "científica" dos homens em razão das exigências físicas necessárias para o trabalho (Braverman, 1987). Além disso, um dos propósitos do serviço de medicina do trabalho era cuidar da adaptação dos trabalhadores colocando-os em tarefas correspondentes às suas aptidões (Mendes; Dias, 1991). Algumas "pistas" podem ser localizadas nos próprios estudos de Morris e seu grupo. Na tentativa de testar a hipótese do trabalho "sedentário" como nocivo à saúde, Morris e Heady (1953) estudaram os dados do Registro Geral sobre mortalidade ocupacional, na Inglaterra e País de Gales, entre 1930 e 1932. O estudo demonstrou menor mortalidade para doenças cardiovasculares entre trabalhadores de ocupações com esforços físicos mais intensos, mas igualmente mostra menor mortalidade para apendicite, cirrose e tuberculose respiratória. Ora, de que forma a atividade física pode proteger contra essas doenças? Talvez seja possível acreditar que houve uma seleção genética (mesmo que sem grandes evidências científicas por parte de quem contratou os trabalhadores) pelos mais aptos e "saudáveis". Além disso, curiosamente (ou nem tanto), os trabalhadores de ocupações mais pesadas sofreram maior número de acidentes fatais. Sobre esse último aspecto, os autores comentaram/ discutiram muito superficialmente os achados. Mas, obviamente, não parece estranho isso ter ocorrido.
Frequentemente, estudos estabelecem uma relação de causalidade entre a aptidão física e uma "boa saúde" (Myers et al., 2002), do que se poderia inferir que níveis maiores de atividade física aumentariam a aptidão física e, por consequência, melhorariam a saúde. Todavia, há uma razoável suspeita de que uma condição genética favorável possa resultar em níveis mais elevados daqueles dois aspectos e de uma "saúde" cardiovascular melhor, sem que haja necessariamente relações de causalidade. Wisløff et al. (2005) selecionaram artificialmente, após onze gerações, ratos não treinados com elevada capacidade aeróbia (HCR) e baixa capacidade (LCR), verificaram que os animais LCR, além da capacidade aeróbia diminuída, apresentavam maior predisposição às doenças cardiovasculares e metabólicas, tais como pressão arterial aumentada, disfunção endotelial, liberação reduzida de insulina, maior adiposidade visceral, maior quantidade de triglicerídeos, entre outras alterações, mesmo quando submetidos a treinamento físico. A pergunta é: o sujeito é saudável porque faz atividade física ou faz atividade física porque é saudável (Mira, 2003)?
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O paradoxo do sedentarismo se anuncia e desconcerta: "O sedentarismo é, ao mesmo tempo, fator de risco e de benefício à saúde." Verdades concorrentes, sentidos e efeitos múltiplos? O uso da expressão "ao mesmo tempo" não é à toa: o sedentarismo no lazer tem sido, estatisticamente, associado a diferentes doenças (Wen et al., 2011), ao mesmo tempo que o "sedentarismo" no trabalho parece proteger contra as mesmas doenças (Holtermann et al., 2010; Krause et al., 2007); possivelmente, os sedentários no lazer vivem menos do que aqueles que realizam exercícios físicos vigorosos, simultaneamente em que os profissionais sedentários apresentam maior expectativa de vida que os trabalhadores braçais, de ocupação física mais pesada (Holtermann et al., 2010).(2)
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À semelhança da relativização do valor negativo do sedentarismo, pode-se relativizar a "ditadura do gasto energético". O paradoxo é o seguinte: ao passo que se reconhece que o gasto energético parece essencial para evitar o acúmulo de energia e, portanto, a obesidade (Powers; Howley, 2000), todo ser vivo, em última instância, procura acumular energia para manter-se vivo (Booth; Chakravarthy; Spangenburg, 2002; Cunnane, 2006; Leonard, 2010).
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Alguns dados epidemiológicos (Lee; Paffenbarger, 2000) sugerem que quanto maior for o gasto calórico menor será o risco de morte para todas as doenças. Nesse sentido, é fácil manter-se vivo. Basta nos exercitarmos o dia inteiro para garantir a vida eterna! De duas, uma: ou é um frágil embuste, ou a humanidade regressou ao Éden.
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Tomemos, porém, aquela ideia como verdadeira. Afinal, "os números não mentem". Pois vamos brincar como eles. Um operário da construção civil trabalha, no mínimo, oito horas diariamente em esforços físicos extenuantes. A cidade em que reside tem um sistema muito eficiente de transporte e, portanto, ele chega rápido ao trabalho ou em casa deslocando-se em um ônibus que o deixa na porta do trabalho/casa após ficar, no máximo, trinta minutos sentado, tanto na ida quanto na volta. Esse sujeito terá um gasto calórico diário estimado, segundo os manuais de fisiologia do esforço, de 7.280 kcal somente com a atividade física no trabalho e a taxa metabólica basal. Por outro lado, seu patrão trabalha em seu escritório, mas faz exercícios físicos regularmente. Diariamente ele corre 5 mil metros em trinta minutos. Seu gasto calórico diário estimado, somando o gasto no trabalho, o exercício físico e a taxa metabólica basal, é de 3.975 kcal.(3)
Quem você apostaria que irá sobreviver por mais tempo? Alguns estudos têm demonstrado, como mencionado, que a taxa de mortalidade é maior nos trabalhadores de ocupações mais pesadas (Holtermann et al., 2010). Ou seja, parece haver mais verdades no reino do gasto calórico.
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"O sedentarismo é uma doença relacionada à modernidade e sua incidência vem aumentando nas últimas décadas" (Côrtes et al., 2010, p. 375). "(...) Concluímos, portanto, que sedentarismo é uma doença particularmente importante entre idosos" (Jacob Filho, 2006, p. 74). O sedentarismo é uma doença? Desde quando? Há, sem dúvida, uma construção que procura nos fazer aceitar o sedentarismo como tal. A masturbação, relata Foucault (2010), fora entendida como doença. Atualmente, indústrias farmacêuticas seguem tentando inventar outras tantas doenças (Moynihan, 2003; Angell, 2007). Para (des)qualificar os sujeitos como sedentários, foi preciso encontrar ferramentas que pudessem classificá-los, garantir o "direito" ao tratamento e enunciar um discurso patologizante sobre o comportamento, em que se destacam as relações de causa e efeito, e as consequências biológicas. Ora, e se a ciência detém a verdade e o acesso ao tratamento está posto, caberia ao indivíduo realizá-lo, ou seja, nas entrelinhas, estão dizendo que não cabe questionar. Não é dito, porém, que é necessário refletir sobre as razões da não prática ou se os instrumentos que medem o sedentarismo são ou não confiáveis, ou ainda se as promessas de saúde estão garantidas. Afinal, dizem que os sedentários provocam prejuízos de milhões aos cofres públicos e tornam-se improdutivos ao sistema. Verdades ditas, verdades silenciadas... regras do jogo da verdade.
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O sedentarismo tem sido considerado a redução da experiência de se movimentar, mas, ao mesmo tempo, uma condição que acompanha a história do indivíduo. Representálo, quer pelas respostas a um recordatório, quer pela frieza dos números objetivos contados em frações de tempo, implica "visualizá-lo" independentemente das causas que o geraram, das circunstâncias da vida, do momento histórico, do estado socioeconômico-cultural e do próprio indivíduo. A verdade dos números pode ocultar outras verdades.
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As políticas públicas de atividade física e saúde têm evidenciado a necessidade de se praticar mais exercícios. As campanhas seguem tentando agitar os indivíduos. A despeito das comunicações, ainda faltam estruturas nas cidades. Mesmo as escolas, como possíveis espaços privilegiados para iniciação dos sujeitos às práticas de atividades físico-esportivas, estão restritas, quando muito, a quadras polivalentes de futsal, vôlei, basquete e handebol. Nas periferias ou em regiões menos privilegiadas, faltam espaços públicos para a prática de atividades físico-esportivas. De que política se está falando? Ainda assim, a culpa recai sobre o sujeito, e não sobre os sedentários governantes.
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A mim é tão odioso permanecer inativo quanto moverme sob o jugo moralizante de uma obrigação social.
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A prática regular de exercícios físicos é, atualmente, uma inquietação frequente dos mais variados "agentes da saúde". Há muito, ela deixou de ser o objetivo em si e passou a ser um meio para uma pseudoelevação biológica, uma prática bioascética, com vistas a uma vida livre de doenças. Ainda que isso possa variar entre os indivíduos, não mais se exercita por gosto ou prazer, mas, antes, por utilidade ou obrigação. A prioridade é o resultado e não o ato em si. Há, ainda, porém, quem resista e prefira morrer a exercitar-se sem alegria. Incontroláveis pessoas que não se conformam com pouco; receiam menos o aborrecimento que um exercício sem prazer. Talvez sejam espíritos que se permitem livres, mesmo para com a ciência (Nietzsche, s/d). A educação física e a medicina, como diria Nietzsche (s/d, p. 122), "ouvem apenas as perguntas para as quais se é capaz de encontrar uma resposta" e não as compreendem; apenas culpam tais espíritos. E culpar é vulgar, tal como se exercitar sem prazer.
Será que há conclusão? Pela abertura do debate
Em qual verdade devemos crer? Um discurso, em que pese se assenhorar da verdade, pode estar distante da realidade. Postular um discurso como verdade talvez apenas signifique que as pessoas nele creem. Nada mais do que isso. Contudo, obviamente, há uma vontade de verdade como uma vontade voltada para o poder (Nietzsche, 2007).
O que é a verdade? Nietzsche (2007) questiona a ideia de que "o que pode ser demonstrado é verdadeiro", uma vez que essa seria uma definição arbitrária que não resistiria, ela própria, a uma demonstração. Talvez existam várias verdades ou realidades. E a crença em uma verdade nos conceda um ponto de apoio. Para alguns, será preciso que o mundo verdadeiro seja calculável e simplificado; outros, como o artista, não suportarão a verdade/realidade objetiva. A ciência, assim, apenas tem cultuado uma ilusão de revelar a verdade absoluta e, portanto, não se afasta integralmente das crenças religiosas que, igualmente, acreditam em verdades eternas. A arte, de outro modo, manifesta-se em contraposição, vez que exalta a ilusão e a errância (Barrenechea, 2011). O que propomos, portanto, é a queda de uma autoridade incondicional que ponha em declínio tudo aquilo que não pode ser demonstrado, calculado, reduzido.
Apesar de questionarmos a verdade, não se trata, contudo, de conduzir a vida em consonância ao ceticismo ou niilismo. Antes disso, o que propusemos foi um exercício do pensamento que recorre às incertezas e à interpretação daquilo que poderia ser a realidade. Verdades concorrentes podem coexistir, previsões científicas podem ou não materializar-se, o que não invalida completamente a ciência, mas relativiza o seu poder preditivo. Assim, não se trata de apologizar o sedentarismo ou defender a inutilidade da prática de atividades físico-esportivas, mas de compreender que os saberes produzidos pela ciência ainda têm sido insuficientes para crermos, com absoluta certeza, nas relações daquelas com a saúde.