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Uma visão internalista para desfrutarplenamente o desporto

An internalist view to fully enjoy sport

Una visión internalista para disfrutar eldeporte por completo

C.R., Torres. Gol de media cancha: Conversaciones paradisfrutar del deporte plenamente. 2011. Miño y Dávila, Buenos Aires: 849261370X

Gol de media cancha, obra de César Torres, docente e investigador em The College at Brockport, State University of New York, e ex-presidente da Associação Internacional de Filosofia do Desporto, proporciona ao leitor comum a experiencia filosófica de questionamento e de diálogo aberto que oferece não só um conhecimento mais profundo do desporto, mas também de nós mesmos enquanto “desfrutadores” da realidade desportiva.

Pequeno de dimensão, constituído por seis capítulos procedentes da introdução, mas de enorme relevo no modo como aborda questões centrais do desporto enquanto realidade social, o livro possui, em comparação à generalidade de publicações nesse campo de estudos, a particularidade de adotar um estilo dialogante através do qual expressa o seu modo próprio de olhar o desporto, contrapondo-o, contudo, rigorosa e honestamente, às suas múltiplas possibilidades e perspetivas.

O recurso a diversas fontes de perspetivação do desporto, especificamente filósofos, escritores, jornalistas, ou até desportistas, bem como o confronto que estimula entre elas, confere ao livro uma natureza holística e complexa, constituindo uma peculiaridade diferenciadora da publicação em relação a outras publicações na área, que frequentemente restringem as suas fontes a teóricas ou práticas, tendo em vista uma clarificação mais fácil da tônica do trabalho: científico-teórica ou praxiológica.

Contemplar o desporto em busca dos modos da sua plena fruição constitui o principal desafio deste livro, que César Torres empreende pelo estímulo à reflexão sobre o desporto e, por meio dela, à promoção do prazer da sua prática: “Lo que guía este libro es el deseo de vivir mejor el deporte” (p. 16).

Com Gol de media cancha, o autor pretende não só sistematizar um itinerário pessoal de busca pela relação plena com o desporto, mas também servir de estímulo para que os seus leitores também o façam.

O primeiro capítulo intitula-se “El deporte”. No panorama bibliográfico atual sobre a definição de desporto, a dificuldade – ou até impossibilidade – de uma definição completa, suficientemente inclusiva e exclusiva de desporto parece ser um dos poucos pontos amplamente consensuais. Contudo, tal fato não constitui uma barreira robusta o suficiente para deter o destemido autor, o que resulta em uma enorme contribuição literária para o campo de estudo em questão.

Torres desenvolve a temática a partir da noção de jogo e, nesta fase do livro, contempla as atividades desportivas de modo predominantemente analítico, circunscrevendo a especificidade de cada desporto às habilidades físicas concretas que exige. Se, por um lado, tal abordagem contribui para uma melhor delimitação das fronteiras de cada modalidade desportiva, por outro lado – e tendo em conta a circularidade corpo/mente requerida pelo desporto, postulada até em capítulos posteriores – seria mais fácil e resultaria mais favorável para o leitor comum a compreensão do desporto enquanto realidade global e complexa, se a referência à interdependência e indivisibilidade das competências físicas, mentais e intuitivas fosse feita logo desde o primeiro capítulo do livro, e não apenas posteriormente.

Também as regras assumem uma dimensão fundamental na caracterização de cada desporto. Segundo o autor, parte importante da atratividade do desporto assenta precisamente no equilíbrio entre a dificuldade e a tangibilidade dos seus objetivos, dado que tanto a excessiva facilidade quanto a exagerada dificuldade podem conduzir o observador ou o praticante ao tédio. São definidos dois tipos de regras: constitutivas e regulativas. Para o autor, cada desporto possui bens internos identitários que caracterizam os seus padrões de excelência, sendo que o respeito às regras, sobretudo as constitutivas, enfatiza e honra de modo relevante tais bens (p. 22).

Essa perspetiva “internalista” conflitua com modelos paradigmáticos do desporto atual, nos quais o resultado detém total supremacia. Para que os bens internos do desporto sejam salvaguardados, a competência (título do segundo capítulo), é tanto mais evidenciada quanto mais “mutualista” for a performance, no sentido de associar os competidores na procura mútua de desempenhos de excelência que lhes permitam dar resposta às dificuldades impostas pelo desporto e evidenciar superioridade.

No terceiro capítulo, “Los buenos competidores”, César Torres denuncia que esta sua procura pela fruição plena do desporto não diz respeito apenas a questões de cariz estético, que o tornem mais atrativo ou suscetível à apreciação, mas também, indissociavelmente, a um olhar ético. Deste modo, são questionados os significados de bem no desporto, bem como os de bom competidor, aspetos representativos de uma experiência satisfatória e autêntica com o desporto.

De acordo com o mutualismo, existem, segundo Torres, três princípios básicos aos quais o bom competidor não pode estar alheio: o bom competidor aceita, respeita e adota as regras do desporto que pratica; empreende a performance no mais alto nível de excelência das suas possibilidades, e abstém-se de intencionalmente causar dano aos demais (p. 50). Isso não significa que não haja mais princípios que enriqueçam e enobreçam a participação desportiva e contribuam para a sua excelência. Torres detém-se num conjunto particular de ações que parecem dar resposta, de modo extraordinário, à aspiração de justiça e excelência do bom competidor. Para o autor, essas ações “ayudan a llevar a cabo fehacientemente el propósito central del deporte competitivo y a establecer una cultura en que la excelencia deportiva y la integridad de los competidores están por encima del resultado” (p. 53-54). Contudo, à parte dessas ações que, sendo valorizadas, não são obrigatórias, os princípios anteriormente citados são considerados como indispensáveis a qualquer bom competidor.

A tendência “internalista” de ver o desporto, adotada por César Torres, leva-o a dedicar o quarto capítulo à reflexão sobre a trapaça, que, segundo o autor, envolve habilidades extralúdicas, fora do domínio das regras e dos bens internos do desporto, constituindo um modo inaceitável de engano. A trapaça viola, por isso, o princípio da imparcialidade e igualdade de condições, indispensáveis à competência desportiva, por negar a lógica de gratuidade, os bens internos e os padrões de excelência que definem cada desporto (p. 60).

Um aspeto central e, do ponto de vista da autora desta resenha, marcadamente inovador, é que, segundo Torres, contudo, evitar a trapaça não é suficiente para se respeitar e promover os bens internos do desporto. O conhecimento que dele se tem enquanto fato social complexo, e não apenas enquanto mero somatório de regras constitutivas, representa um aspeto fundamental ao respeito pela sua natureza. É por esse motivo que o quinto capítulo é dedicado à temática do saber desportivo. As diferentes abordagens que se podem fazer do desporto evidenciam os diferentes saberes que dele se pode ter. Dessa maneira, apesar do olhar de um jogador ser diferente do olhar de um espectador, de um acadêmico, de um treinador ou de um jornalista esportivo, o autor discorre sobre a sua complementaridade na procura pelo conhecimento sobre o desporto.

Para Torres, a porta de entrada do conhecimento é a experiência e, deste modo, o saber requer o estabelecimento de íntimas correspondências entre o portador do conhecimento e o objeto conhecido (p. 72). Assim, são identificados dois tipos de conhecimento: o saber teórico e o saber prático, correspondendo o segundo a um conhecimento pré-discursivo, encarnado, enraizado no corpo, específico do jogador ou praticante. Esse tipo de conhecimento aprende-se com a experiência, reafirmando as habilidades próprias de cada desporto, até que se possam tornar inconscientes e, muitas vezes, difíceis de explicar teoricamente (p. 77). É a aprendizagem do saber prático que desenvolve nos jogadores a capacidade de responder aos constrangimentos imprevisíveis de cada desporto.

A imprevisibilidade depende da natureza de cada desporto, podendo esta ser mais aberta ou fechada em função das modalidades a que nos referimos. Sendo o futebol uma modalidade de escala mundial, faz sentido que grande parte dos exemplos ilustrativos do livro remetam para essa modalidade, tornando a sua compreensão mais rapidamente acessível ao leitor comum. No entanto, o essencial dos princípios expostos pelo autor possui enorme aplicabilidade à diversidade de modalidades esportivas, sendo que uma referência mais ampla a um maior leque de desportos fortaleceria a aplicação universal dessas reflexões ao desporto como um todo.

A finta é apontada como exemplo emblemático da imprevisibilidade do desporto e da criatividade necessária para lhe dar resposta, porque “materializa la sorpresa, la espontaneidade y la improvisación” (p. 79). No entanto, também uma mudança de ritmo inesperada numa prova de remo, ou a composição original de uma sequência de ginástica de elevada dificuldade, possuem o mesmo potencial ilustrativo.

Há, portanto, na performance desportiva, segundo Torres, uma unidade especial entre corpo e mente, onde pensamento e ação são processos contínuos envolvidos na totalidade da experiência do ser em desporto. E essa é uma das mais preciosas valias do universo do desporto, bem como do livro, para o universo do conhecimento em desporto (p. 81).

Mas porquê a necessidade de envolvimento com o desporto? Qual o valor do desporto e como o reconhecemos?

Tradicionalmente, o valor do desporto é destacado pelos efeitos benéficos que pode produzir na saúde. A própria investigação em desporto movimenta-se, como sabemos, maioritariamente no âmbito de perspetivas biologistas, médicas ou higienistas. Este aspeto constitui, segundo o autor, um problema grave no reconhecimento do valor do desporto. Urge ultrapassar a visão instrumentalista, para que, do envolvimento com o desporto, possa sobressair a fruição. Assim, mais do que um fármaco curador dos males do corpo ou do espírito, ou ainda um instrumento de educação ou ação cívica, o desporto deve ser contemplado e experienciado pelos bens internos que possui e pela experiência peculiar que a sua fruição possibilita (p. 84).

César Torres discorre sobre quatro fatores fundamentais ao desenvolvimento do gosto pelo desporto, o único antídoto contra o abandono da prática: encontrar atividades esportivas pelas quais nos sintamos mais atraídos e para as quais temos algum talento; desenvolver o conhecimento específico sobre elas; predispormo-nos a aprendê-las e a realizá-las; e possuir bons professores ou mestres que saibam ensinar-nos, formal ou informalmente, e com carinho, as atividades eleitas (p. 87).

A realização do desporto não diz respeito, por isso, apenas a questões técnicas, mas sobretudo à experiência estética que proporciona, pela fruição da atividade que, simultaneamente, conduz à fruição da vida, ao diálogo connosco e com a natureza, ao desenvolvimento da criatividade e ao exercício da liberdade, por ser uma verdadeira experiência humanizadora, unitária e global entre corpo e mente (p. 90). Concluindo, são esses aspetos que, segundo Torres, nos prendem realmente ao desporto, nos fazem valorizá-lo e incluí-lo nas nossas vidas, sendo todos os restantes fatores externos apenas efeitos colaterais. Por isso, é imprescindível alterar-se o paradigmático discurso terapêutico sobre o desporto, substituindo-o pelo deleite, pelo enamoramento das suas possibilidades inimagináveis de significado (p. 95).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2015
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