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História dos megaeventos esportivos no Brasil O presente trabalho não contou com apoio financeiro de nenhuma natureza para sua realização. Não houve conflito de interesse para a realização do presente estudo.

History of mega-sporting events in Brazil

Historia de los megaeventos deportivos en Brasil

O anúncio da realização de megaeventos esportivos no Brasil deflagrou uma agenda de ações dedicada aos esportes, incluindo aí impulsos para investigação de novos aspectos desse fenômeno. Pesquisas sobre políticas públicas foram apenas os mais obviamente relacionados a esse cenário. Para além desse assunto, uma série de outros tópicos tem recebido ou pode receber em breve incentivos no mesmo sentido. Seria o caso, por exemplo, da história dos megaeventos esportivos, uma possibilidade pouco explorada ainda.

Nesse cenário, o livro organizado por João Manuel C. Malaia Santos e Victor Andrade de Melo é oportuno. Reunião de várias pesquisas históricas, de diferentes autores, o livro 1922: comemorações esportivas do centenário (Santos e Melo, 2012Santos JMCM, Melo VA. 1922: comemorações esportivas do centenário. 1. ed. Rio de Janeiro: 7 Letras; 2012. 184 p.) aborda, de vários ângulos, as atividades esportivas realizadas durante as comemorações do centenário da Independência do Brasil, sediada no Rio de Janeiro. Embora a expressão não existisse ainda, pode-se dizer, assim mesmo, salvaguardando-se, claro, as devidas proporções, que as comemorações do centenário foram um autêntico megaevento.

Para os padrões da época, tratou-se de um esforço organizacional extraordinário. Por ocasião da realização do evento, conforme ficamos sabendo por meio do livro, houve investimento considerável na infraestrutura do Rio de Janeiro, que era avaliada por muitos como inadequada para iniciativa de tamanha magnitude. Hotéis e restaurantes foram inaugurados, outros tantos foram reformados; representantes de vários países se fizeram presentes e edificações especialmente destinadas ao evento foram construídas. Não por acaso, parte da opinião pública da época dedicou grande atenção ao evento.

No que toca às atividades propriamente esportivas, as comemorações do centenário representaram uma das primeiras ocasiões em que o Estado se envolveu tão sistematicamente com a sua organização. Parte das opiniões sobre o evento criticara-o, justamente, pela centralidade que tiveram as práticas de esporte, bem como pelo envolvimento do poder público com tais questões. Lima Barreto, já bastante avesso aos esportes, foi um dos que criticaram o evento por esse motivo. Nas palavras doescritor, "a comemoração do centenário, bem dizer, tem sido totalmente esportiva", conforme relata Melo, em seu capítulo dedicado às touradas (p. 83).

A diversidade de pontos de vista contidos no livro é um dos seus méritos. Os diferentes capítulos, embora tratando de um mesmo acontecimento, discutem assuntos bastante variados, tais como as relações entre o evento e a conjuntura política da época; o uso do evento como catalisador de interesses da política externa brasileira; os conflitos e as divergências entre diferentes setores ao redor da sua realização; bem como os distintos modos de participação e compreensão dos seus sentidos gerais, entre outros. Dessa maneira, abordagens da história econômica, social, cultural e política se cruzam e se combinam de maneira bastante criativa.

O livro também apresenta um amplo e diversificado espectro de métodos e fontes. Alguns deles são bastante inovadores para a historiografia brasileira do esporte. Destacam-se, nesse sentido, o estudo da dimensão econômica e o uso de charges como fonte. Na literatura de língua inglesa, o uso de novos métodos e fontes para ampliação da compreensão histórica do esporte tem sido apontado como recurso estratégico para o progresso do conhecimento nessa especialidade. Autores como Gary Osmond e Murray Philips, por exemplo, além de tratar teoricamente do assunto, têm se ocupado também em desenvolver uma série de estudos a partir de fontes pouco usuais, como estátuas, fotografias, museus, filmes, cartões-postais ou transmissões televisivas de eventos esportivos (entre outros, ver Osmond y Phillips, 2011Osmond G, Phillips GM. Enveloping the past: sport stamps, visuality, and museums. The International Journal of the History of Sport 2011;28(8-9):1138-55.). No Brasil, alguns dos autores de 1922, às vezes em diálogo com algumas dessas formulações, têm também explorado possibilidades assim em outras ocasiões (ver Melo, 2012de Melo VA. Pequenas-grandes representações do império português: a série postal modalidades desportivas (1962). Estudos Históricos 2012;25(20):426-46.; Santos, 2012Santos JMCM. A história econômica entra em campo: O Rio de Janeiro e as competições esportivas internacionais de 1919 e 1922. Revista de Economia Política e História Econômica, São Paulo, ano 8, n. 27, p. 153-198, dez. 2011/jan. 2012.).1 1 A título de curiosidade, uma busca pelas palavras "sport history" na base de dados Scopus aponta Osmond, Melo e Philips como os autores com maior número de ocorrências: nove, seis e cinco, respectivamente. Nesse sentido, 1922 é mais uma expressão da atual dinâmica nas pesquisas históricas sobre esporte no Brasil, cujo crescimento recente tem sido notável.

Além de sua articulação com o atual estágio da historiografia do esporte, 1922 também responde a demandas epistemológicas próprias a esse ramo do conhecimento, notadamente o estudo do passado motivado por problemas do presente. Embora os autores não o digam explicitamente, nota-se, nas entrelinhas de vários de seus capítulos, certa preocupação em vincular algumas das conclusões apresentadas no livro ao cenário do esporte contemporâneo. O artigo de João Malaia, por exemplo, que trata da dimensão econômica do evento, destaca abertamente o assunto. Em suas palavras, "estamos em um outro período em que o Brasil, e o Rio de Janeiro, mais especificamente, será a sede de dois grandes eventos esportivos mundiais de grande porte […] Não se pode esperar compreender este momento se não nos debruçarmos sobre sua história" (p. 63).

Nesses termos, as pesquisas reunidas em 1922 assumem uma dimensão – ou um potencial, pelo menos – fortemente político, embora o façam de forma sutil. Não se diz muito abertamente, por exemplo, que é longa a história de suspeitas de corrupção, favorecimentos e desvio de recursos públicos por ocasião da realização de megaeventos esportivos no Brasil. Mas nem seria preciso fazê-lo em última instância. Para um leitor minimamente informado sobre os acontecimentos atuais ao redor da Copa de 2014 e das Olimpíadas de 2016, é a narração pura e simples dos acontecimentos tratados pelo livro que se ocupará disso, o que torna bastante evidentes as semelhanças entre os acontecimentos de ontem e de hoje.

Mais do que mera estratégia narrativa, porém, trata-se também de uma forma específica de abordar epistemologicamente os problemas empíricos da pesquisa histórica. Diferentemente do modelo explicativo nomológico das ciências naturais, a explicação de fenômenos sociais não necessariamente depende de grandes teorias. Ao contrário, aliás, até mesmo o reconhecimento consensual da existência de teorias é controverso nas ciências humanas (Gusmão, 2011Gusmão L. O fetichismo do conceito: limites do conhecimento teórico na investigação social. Rio de Janeiro: Toopbooks; 2011.). Nesse sentido, a cientificidade de uma pesquisa histórica não decorrerá de sua capacidade de estabelecer relações de homologia com "referenciais teóricos", conforme se postula comumente. De outra forma, conforme formulou Jörn Rüssen (2010)Rüssen J. Reconstrução do passado. Brasília: Ed. da UnB; 2010., "o próprio narrar a história já é por si um procedimento explicativo" (p. 51-2, grifo do autor).

Também em sua forma, portanto, 1922 oferece uma contribuição significativa. Não há no livro prolegômenos ou mais delongas. Trata-se, do início ao fim, da história propriamente dita dos esportes praticados nas comemorações do centenário, sem digressões. Os capítulos do livro se livram de todo entulho teórico a fim de se dedicar, exclusivamente, a fazer aquilo a que se propõem. No meu ponto de vista, esse é um dos principais motivos pelos quais a obra consegue agregar profundidade na análise desse evento, com descrições densas e pormenorizadas, além de adequadamente fundamentadas em amplas evidências empíricas.

Por último, a julgar pelo conjunto da produção recente dos organizadores e autores de 1922, talvez fosse perfeitamente possível que muitos deles discordassem parcial ou inteiramente das minhas interpretações. A rigor, o livro não pretende nem se justifica pelas eventuais influências políticas das suas análises, nem tampouco pelo estabelecimento de relações de continuidade com o presente. O livro também não manifesta hostilidade ao conhecimento teórico na prática historiográfica. Entretanto, parte das apropriações possíveis desse livro pode tangenciar esses aspectos. Essa pluralidade de leituras possíveis, aliás, é mais um dos seus méritos, pois uma das formas de se avaliar a relevância de uma obra é por meio da sua capacidade de fomentar discussões e extrapolar até seus objetivos iniciais.

  • O presente trabalho não contou com apoio financeiro de nenhuma natureza para sua realização. Não houve conflito de interesse para a realização do presente estudo.
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    A título de curiosidade, uma busca pelas palavras "sport history" na base de dados Scopus aponta Osmond, Melo e Philips como os autores com maior número de ocorrências: nove, seis e cinco, respectivamente.

Referências

  • Gusmão L. O fetichismo do conceito: limites do conhecimento teórico na investigação social. Rio de Janeiro: Toopbooks; 2011.
  • de Melo VA. Pequenas-grandes representações do império português: a série postal modalidades desportivas (1962). Estudos Históricos 2012;25(20):426-46.
  • Osmond G, Phillips GM. Enveloping the past: sport stamps, visuality, and museums. The International Journal of the History of Sport 2011;28(8-9):1138-55.
  • Rüssen J. Reconstrução do passado. Brasília: Ed. da UnB; 2010.
  • Santos JMCM. A história econômica entra em campo: O Rio de Janeiro e as competições esportivas internacionais de 1919 e 1922. Revista de Economia Política e História Econômica, São Paulo, ano 8, n. 27, p. 153-198, dez. 2011/jan. 2012.
  • Santos JMCM, Melo VA. 1922: comemorações esportivas do centenário. 1. ed. Rio de Janeiro: 7 Letras; 2012. 184 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2015
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