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O desenvolvimento da compreensão holística do jogo por meio da criação do jogo

The development of games literacy with student-designed games intervention

El desarrollo de la comprensión holística mediante la creación de juego

Resumo

O estudo examinou a compreensão holística do jogo (compreensão de regras, valores, distinção entre boas e más práticas) aprendida por alunos do ensino fundamental após uma intervenção de criação de jogos de alvo. A intervenção foi dividida em cinco momentos: introdução aos jogos de alvo, ensinar jogos a outros alunos, criar novos jogos, ensinar seus próprios jogos e praticá-los. A coleta de dados incluiu observações, questionários e entrevistas, que foram analisados por meio de uma triangulação. Concluiu-se que os alunos foram capazes de valorizar as regras dos jogos criados, mas tiveram dificuldade na apresentação dos jogos, uma tarefa normalmente atribuída ao professor.

PALAVRAS-CHAVE
Compreensão esportiva; Criação de jogos; Educação física escolar; Ensino fundamental

Abstract

The study examined the games literacy (understanding rules, games values, distinction between good and bad practices) learned by elementary school students after a student-designed games intervention with target games. The intervention was divided into four stages: target games introduction, teaching games to other students, creating new games, teaching their own games. Data collection included observations, questionnaires and interviews, which were analyzed by a triangulation. It was concluded that students were able to appreciate the rules of the games created, but had difficulty in presenting the game, a task normally assigned to the teacher.

KEYWORDS
Games literacy; Student-designed games; Physical education; Elementary school

Resumen

El estudio examinó el nivel de comprensión holística (entender las reglas, figuras del deporte, la distinción entre buenas y malas prácticas deportivas) aprendidas por alumnos de primaria después de una intervención para crear juegos de diana móvil. La intervención se divide en cuatro etapas: introducción a los juegos de diana, enseñanza de juegos a otros estudiantes, crear nuevos juegos, enseñar sus propios juegos. La recolección de datos incluyó observaciones, cuestionarios y entrevistas, que fueron analizados mediante una triangulación. Se concluyó que los estudiantes pudieron aprender las reglas de los juegos creados, pero tuvieron dificultades en la presentación del juego, una tarea normalmente asignada a la maestra.

PALABRAS CLAVE
Comprensión deportiva; Creación de juegos; Educación física; Escuela primaria

Introdução

A busca pelos jogos 1 1 A definição de jogo usada no estudo combina duas referências que discutem o conceito de jogo.Ellis (1983) apresenta três características que todo jogo tem: I) regras (conjunto de normas preestabelecidos que delimitem o ambiente); II) estratégias (conjunto de planos e táticas criadas pelos jogadores na busca de sucesso); III) habilidades (desenvolvimento de técnicas para executar práticas exigidas). O conceito de Freire (2005) é apresentado de maneira complementar. Segundo o autor, para que haja um jogo é necessário que seja estabelecido um contexto, ou seja, é preciso que os jogadores aceitem esse ambiente que destoa da realidade fora do jogo. apresenta causas e motivações diversas, de modo que os valores atribuídos a eles podem ser bastante heterogêneos e até mesmo modificados, conforme o ambiente em que são praticados.André e Rubio (2009)André MH, Rubio K. O jogo na escola: um retrato das aulas de educação física de uma 5ª série. Motriz 2009;15(2):284-96. demonstram como jogos aprendidos ou criados em ambientes diferentes levam a uma prática diferenciada, de modo que o jogo aprendido na escola possa adquirir valores diferenciados daqueles aprendidos na rua ou em outros ambientes. Fora da escola, a criança perde sua condição de aluno e passa a ter o poder de criar e recriar um jogo de maneira despreocupada, sem qualquer objetivo que a delimite.

Não obstante, a atual organização das cidades e a falta de segurança contribuíram para que as crianças perdessem espaço em locais públicos e limitaram a prática de jogos em ambientes supervisionados por adultos, de modo que as crianças vêm perdendo a possibilidade de criar seus próprios jogos sem qualquer supervisão. Considerando a criação de jogos como uma intervenção que proporciona uma prática reflexiva ao aluno, em que ele é obrigado não só a praticar o jogo, mas também criá-lo e modificá-lo inúmeras vezes até sua versão final; o presente estudo buscou analisar de que maneira a criação de jogos contribui para o desenvolvimento de uma compreensão mais holística dos jogos.

Bases teóricas

A ideia de se usar a educação física como ambiente propício para a criação de jogos foi proposta pela primeira vez na Inglaterra, no fim da década de 1960.Mauldon e Redfern (1969)Mauldon E, Redfern H. Games teaching: A new approach for the primary school. Londres, Reino Unido: Macdonald & Evans; 1969. apresentaram os princípios para criação de jogos ao descrever possíveis benefícios educacionais que se relacionavam com as três dimensões do desenvolvimento da criança: cognitivo, psicomotor e social/moral; além disso, os autores também estabeleceram a relação entre a criação de jogos e os estágios de desenvolvimento da criança, semelhantemente ao que foi apresentado anteriormente por Piaget [1971])Piaget J. Formação do símbolo na criança: imitação, jogo e sonho, imagem e representação. Rio de Janeiro: Zahar; 1971., e criaram a primeira classificação de jogos, que apresenta enorme utilidade para criação de jogos.

Cinco décadas depois, a criação de jogos já foi apresentada com diferentes propósitos na prática pedagógica, com vistas ao desenvolvimento motor (Rovegno; Bandhauer, 1994Rovegno I, Bandhauer D. Child-designed games-experience changes teachers' conceptions. Journal of Physical Education Recreation and Dance 1994;65(6):60.); social (Curtner-Smith, 1996Curtner-Smith MD. Teaching for understanding: using games invention with elementary children. Journal of Physical Education Recreation and Dance 1996;67(3):33-7.); do pensamento crítico (Cleland; Pearse, 1995Cleland F, Pearse C. Critical thinking in elementary physical education: Reflections on a yearlong study. Journal of Physical Education Recreation and Dance 1995;66(1):31-8.; Rovengno et al., 1995Rovengno I, Skonie R, Charpenel T, Sieving J. Learning to teach critical thinking through child-designed games. Teaching Elementary Physical Education 1995;6(1):1-6.); do conceito de democracia (Butler, 2006Butler J. Curriculum constructions of ability: enhancing learning through Teaching Games for Understanding (TGfU) as a curriculum model. Sport, Education and Society 2006;11(3):243-58.) e do conceito de compreensão esportiva (Almond, 1983Almond L. Games-making. Bulletin of Physical Education 1983;19(1):32-5.).

Dentro de cada uma das propostas citadas, há algumas particularidades que podem modificar o conceito da criação de jogos. Dessa maneira, definir o termo é essencial para evitar qualquer interpretação errônea. Assim, o presente estudo segue a definição apresentada por Hastie (2010, p. 3)Hastie P. Student-Designed Games. Champaign, IL: Human Kinetics; 2010.: "Por definição, a criação de jogos na educação física é o processo em que alunos criam, organizam, implantam, praticam e aperfeiçoam seus próprios jogos com limites estabelecidos pelo professor".

Dessa maneira, quanto à originalidade dos jogos praticados, podemos classificá-los de três maneiras: reproduzido, transformado e criado (Darido e Rangel, 2005Darido SC, Rangel I. Educação física na escola: implicações para a prática pedagógica, 167. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2005.). O jogo reproduzido é aquele tradicionalmente estabelecido em uma cultura, do futebol ao pega-pega, os jogadores desse jogo não costumam modificar as regras que foram construídas e repassadas de geração a geração.2 2 É importante frisar que se apresenta o pega-pega e o futebol dentro da mesma definição de jogo, uma vez que ambos têm os mesmos três elementos apresentados por Ellis (1983), ou seja, regras, estratégias e habilidades, e Freire (2005), que aponta o contexto de jogo. Assim, dentro do presente estudo, não há uma distinção entre jogo, jogo esportivo e esporte, uma vez que todos apresentam as características de um conceito abrangente referido como jogo. No jogo transformado há modificação das regras do jogo reproduzido, ou seja, ocorre uma adaptação do jogo para melhor servir a seus praticantes. O jogo criado é a invenção de um novo jogo, que proporciona novos desafios e representa os interesses dos praticantes. A criação de jogos permeia entre o jogo transformado e criado, uma vez que os alunos podem fazer suas próprias escolhas nessas duas categorias de jogos. No presente estudo, apenas os jogos criados fazem parte da intervenção.

Notamos que, embora a educação física tenha colocado a prática de jogos como principal conteúdo há décadas (Guedes e Guedes, 1997Guedes JERP, Guedes DP. Características dos programas de educação física escolar. Revista Paulista de Educação Física 1997;11(1):49-62.; Betti, 1999Betti ICR. Esporte na escola: mas é só isso, professor? Motriz 1999;1.1:25-31.; Darido e Rangel, 2005Darido SC, Rangel I. Educação física na escola: implicações para a prática pedagógica, 167. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2005.), a busca pela formação de alunos que tenham um conceito mais abrangente de jogo é relativamente recente. Nesse sentido, procuramos usar a criação de jogos como forma de proporcionar o desenvolvimento da compreensão holística do jogo (termo conhecido em inglês como games literacy). Quatro elementos, propostos por diferentes autores, complementam-se na conceituação da chamada compreensão holística do jogo. São eles: cognitivo, psicomotricidade, motivação e valores. Assim, busca-se uma compreensão do jogo em sua totalidade, e não somente sua prática (a qual seria limitada à dimensão da psicomotricidade).

A dimensão cognitiva refere-se ao conhecimento e à compreensão de jogos de uma mesma categoria, ou seja, os alunos que se desenvolverem nessa dimensão devem ser capazes de entender a relação entre regras e táticas de jogo e transferir esse conhecimento quando se depararem com jogos semelhantes. Nessa categoria incluem-se os jogos de perseguição, como o pega-pega, os jogos de alvo, como a queimada, os jogos de campo, como o taco/betis, os jogos de rede/parede, como o voleibol, e os jogos de invasão, como o futebol (Bunker et al., 1986Bunker D, Thorpe R, Almond L. The curriculum model: rethinking the games teaching. Loughborough, Reino Unido: University of Technology; 1986.).

A dimensão psicomotora refere-se ao desenvolvimento das habilidades motoras e táticas apropriadas em tomar decisões em situações de jogo, sejam essas conhecidas ou desconhecidas. Nesse sentido, a aprendizagem de uma habilidade motora não deve se limitar à reprodução de maneira isolada, mas também no momento do jogo em que deve ser executada e bem-sucedida dentro do contexto estabelecido (Kirk, 1983Kirk D. Theoretical guidelines for Teaching for Understanding. Bulletin of Physical Education 1983;9:41-5.; Mandigo e Holt, 2004Mandigo J, Holt N. Reading the game: Introducing the notion of games literacy. Physical and Health Educator 2004;70(3):4-10.; Siedentop et al., 2011Siedentop D, Hastie P, Van der Mars H. Complete guide to sport education. Human Kinetics. Champaign, IL: EUA; 2011.).

A motivação refere-se à vontade de praticar jogos, ou seja, o estímulo para uma motivação intrínseca, em que o aluno queira jogar por prazer, e não por medo de qualquer punição ou recompensa (Mandigo e Holt, 2004Mandigo J, Holt N. Reading the game: Introducing the notion of games literacy. Physical and Health Educator 2004;70(3):4-10.; Siedentop et al., 2011Siedentop D, Hastie P, Van der Mars H. Complete guide to sport education. Human Kinetics. Champaign, IL: EUA; 2011.).

Os valores agregados aos jogos referem-se ao respeito às regras, aos rituais, às tradições e ao significado cultural e permitem distinguir práticas boas e ruins (Siedentop et al., 2011Siedentop D, Hastie P, Van der Mars H. Complete guide to sport education. Human Kinetics. Champaign, IL: EUA; 2011.). Assim, os alunos devem aprender que cada jogo carrega uma série de tradições, por exemplo, uma torcida de futebol e uma torcida de tênis não se comportam do mesmo modo. Além disso, devem valorizar práticas que visam a um jogo limpo e compreender que os adversários não devem ser tratados como inimigos, uma vez que a prática do jogo só é possível com sua presença.

Nesse sentido, o desenvolvimento da compreensão esportiva por meio da criação de jogos seguiu a teoria do constructionism (termo em inglês). Segundo Kafai e Resnick (1996)Kafai Y, Resnik M. Constructionism in practice: Designing, thinking and learning in a digital world. Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum; 1996.constructionism é uma metodologia de ensino-aprendizagem que possibilita ao aluno projetar e pensar sobre aquilo que está aprendendo e criar algo novo, de modo que o processo de desenvolvimento do novo conteúdo lhe permite aprender mais sobre o assunto que se busca criar. Ou seja, seguindo a teoria do constructionism, o aluno pode aprender mais sobre um jogo ao tentar criar um novo, pois o processo de desenvolvimento do jogo o leva a refletir sobre os elementos necessários, como, por exemplo, as regras, essenciais para a criação de um novo jogo.

Metodologia e procedimentos

A proposta deste estudo buscava analisar de que maneira a criação de jogos contribui para o desenvolvimento da compreensão holística do jogo. A pesquisa foi aplicada em uma escola de ensino fundamental, na região sul dos Estados Unidos. A escola escolhida tinha 470 alunos matriculados entre a primeira e quinta série e todos frequentavam a escola no mesmo período (entre 8h30 e 15h30). A escola ficava em uma região de classe média. Apenas 16% dos alunos recebiam almoço com preço reduzido ou gratuito (o que é considerado uma porcentagem baixa). Para as aulas de educação física, a escola dispunha de uma quadra multiuso interna e um campo multiuso com a área de um campo de futebol. Duas turmas de 5° ano participaram juntas da intervenção e totalizaram 45 alunos (20 meninos, 25 meninas). Os alunos tinham aulas diárias de educação física com duração de 30 minutos. Apesar de os alunos não terem tido experiência prévia com criação de jogos, estavam habituados a ser ensinados com diferentes tipos de metodologia, como o Sport Education (Siedentop et al., 2011Siedentop D, Hastie P, Van der Mars H. Complete guide to sport education. Human Kinetics. Champaign, IL: EUA; 2011.) e o Teaching Games for Understanding (Bunker et al., 1986Bunker D, Thorpe R, Almond L. The curriculum model: rethinking the games teaching. Loughborough, Reino Unido: University of Technology; 1986.). A intervenção foi dividida nas seguintes etapas: introdução aos jogos de alvo, apresentação de como criar jogos, criação dos jogos, apresentação e prática dos jogos. Ao todo, a intervenção foi desenvolvida em 16 aulas em quatro semanas, com quatro aulas semanais.

Introdução aos jogos de alvo

Para melhor compreensão do processo de criação de jogos, foi escolhida apenas uma categoria para ser trabalhada: os jogos de alvo, em que os jogadores buscam acertar um alvo com um objeto. Nos jogos de alvo, os adversários só podem defender o alvo com o uso de outros objetos. São exemplos de jogos de alvo: boliche, bocha, golfe, queimada. A etapa de apresentação dos jogos de alvo foi dividida em três momentos: conhecimento prévio, exemplificação e ensino.

Primeiramente, um professor de educação física e um auxiliar, e três pesquisadores que atuaram na prática pedagógica e na coleta de dados, verificaram o conhecimento prévio que os alunos tinham sobre os jogos de alvo. Os pesquisadores e professores fizeram uma série de perguntas aos alunos e de acordo com as respostas, explicações sobre o conceito dos jogos de alvo foram sendo apresentadas. Esse processo durou um dia. No fim dessa aula, os 45 alunos foram divididos em nove grupos de cinco alunos cada.

No segundo momento, os alunos vivenciaram a aprendizagem de diferentes jogos de alvo. Cada um dos três grupos aprendeu a jogar um jogo de alvo diferente. Os três jogos ensinados dessa categoria foram: golfe de frisbe,3 3 Golfe de frisbe é um jogo individual em que cada jogador busca acertar o disco de frisbe dentro de um bambolê em um número mínimo de tentativas. Cada vez que um jogador arremessa o disco, ele deve iniciar sua tentativa seguinte no local em que o disco pousou. bocha4 4 Bocha é um jogo individual ou em duplas em que cada equipe busca colocar sua bocha (bola pesada com 15 cm de diâmetro) o mais próximo possível do bolim (bola pequena). Cada equipe também usam suas bochas para afastar as bochas adversárias do bolim. Cada equipe tem quatro bochas por rodada. e ladderball5 5 Ladderball é um jogo praticado em duplas em que cada jogador busca envolver sua bolas (duas bolas de golfe conectadas por uma corda de 20 cm) em um dos três degraus de uma escada vertical (cada degrau tem uma pontução distinta (1 para o mais alto, 2 para o médio e 3 para o inferior). O jogo é contituído por duas escadas que ficam a cinco metros de distância. Um jogador de cada equipe fica atrás de uma das escadas para arremessar sua bola na escada oposta. Cada jogador tem duas bolas por rodada. (jogo típico dos EUA). Cada um dos jogos apresentava diferentes formas de pontuação. Assim, os alunos conheceriam diferentes formas de organização do jogo. Nesse dia, cada um dos três grupos jogou um jogo diferente apresentado por um dos pesquisadores ou professores.

Por último, os grupos alternaram-se entre aqueles que ensinavam os jogos e aqueles que praticavam. Cada grupo deveria ensinar o jogo que havia aprendido para outros alunos que tinham conhecimento de outros jogos. Assim, no fim de três dias, todos os alunos aprenderam os três jogos (golfe de frisbe, bocha e ladderball) e também tiveram o desafio de ensiná-los. A opção de fazer com que os próprios alunos ensinassem o jogo para os outros, em vez de o professor ensinar a todos, deveu-se à ideia de que ganhariam consciência da relevância de cada regra, na medida em que ensinava um jogo a outro que não tinha conhecimento.

Apresentação de como criar jogos

A segunda etapa foi o processo de ensinar aos alunos como poderiam criar os próprios jogos. É importante frisar que nem todas as crianças apresentam uma personalidade criativa, de modo que o processo de criar jogos deve ser aprendido. Dessa maneira, a cada grupo foi apresentado um pôster ilustrado (fig. 1) que apresentava oito questões a serem respondidas para a criação do jogo: (1) Qual seu alvo? (2) Onde está seu alvo (no chão ou suspenso)? (3) Qual a distância em que o alvo deve ser colocado? (4) Qual o objetivo do seu jogo? (5) Qual objeto será usado para atingir seu alvo? (6) Como você irá lançar seu alvo? (7) Como você determina o vencedor do seu jogo? (8) Existe alguma penalidade? Além das oito perguntas, os alunos tinham um espaço para desenhar um diagrama de como a área do jogo deveria ser organizada.

Figura 1
Pôster ilustrado

Antes de iniciar a criação de jogos, os alunos foram perguntados sobre como preencheriam o pôster e para isso foram considerados alguns jogos conhecidos, como, por exemplo, o boliche, como forma de verificar a compreensão do uso do pôster. Cada grupo também teria a liberdade de apresentar uma resposta que não estava sugerida no pôster. Assim, o pôster não tinha a intenção de delimitar a criação dos alunos, mas sim de orientá-los sobre elementos que deveriam ficar claros em suas regras.

Criação dos jogos

Cada grupo iniciou o processo de criação dos jogos com o uso do pôster. Além das oito perguntas que deveriam ser respondidas inicialmente, os alunos foram estimulados a criar jogos que iriam além dessas questões. Os pesquisadores e professores acompanharam o processo de criação e à medida que os jogos eram apresentados novos questionamentos asseguraram sua "jogabilidade", ou seja, se era possível jogá-lo com as regras apresentadas.

O processo de criação de jogos desenvolveu-se por meio de tentativa e erro, em que os alunos avaliavam se o jogo criado estava de acordo com o que haviam pensado, se ele funcionava com os materiais usados e se era divertido. Além da criação dos jogos, os alunos deveriam criar uma tabela para anotar a pontuação e planejar como eles iriam apresentar e ministrar o seu jogo.

Apresentação e prática dos jogos

Além de criar os jogos e as tabelas de pontuação, os alunos também administrariam os próprios jogos. Dessa maneira, as nove equipes foram divididas em três grupos: uma das equipes apresentava o jogo para as outras duas praticarem. Nesse sentido, os alunos foram organizados em grupos pequenos, o que facilitou a administração dos jogos. Esse processo foi repetido por três dias consecutivos, de modo que o grupo formado por cada uma das equipes em um dia não seria repetido nos outros dois dias.

Coleta e análise de dados

A pesquisa foi feita por meio de um estudo de caso, apresentou uma análise qualitativa de como a experiência de criação de jogos contribuiu no desenvolvimento da compreensão holística do jogo. O estudo de caso é a análise de um sistema em que se busca identificar e explorar os elementos que fazem parte de sua estrutura (Stake, 2002Stake RE. Case studies. In: Patton MQ, editor. Qualitative evaluation and research methods. 2nd ed. Newbury Park, CA: Sage Publications; 2002. p. 448-555.). No presente estudo, o sistema analisado se referiu ao conjunto composto pelos alunos, professores e a metodologia da criação de jogos. Cada elemento fez parte de um todo que influenciou na aprendizagem da compreensão holística do jogo.

Para assegurar que o estudo apresentasse uma análise rigorosa, três métodos foram usados para a coleta de dados: observações, entrevistas e questionários. As observações incluíram descrições do comportamento das crianças (interesse, envolvimento, empenho), comparações de como cada grupo agiu frente a um mesmo desafio e entrevistas informais enquanto os alunos participavam das aulas. Todas as observações eram gravadas em um gravador digital portátil.

Durante o processo de apresentação e prática dos jogos, os questionários foram implantados. Cada vez que um jogo novo era apresentado a um grupo, os alunos preenchiam um questionário que avaliava sua experiência quanto ao processo de aprendizagem, incluindo: (1) avaliação de como o grupo havia ensinado o jogo; (2) avaliação da capacidade de o grupo administrar seu jogo; (3) avaliação da capacidade do grupo de registrar a pontuação corretamente; (4) avaliação do jogo. Ao todo, o questionário (fig. 2) foi composto por 12 afirmações seguidas de uma escala de concordância em que havia quatro opções: 1 - com certeza não; 2 - mais ou menos; 3 - quase; 4 - sim, sem dúvida, o que permitia ao aluno concordar ou discordar com a afirmação conforme a experiência vivenciada no jogo.

Figura 2
Questionário de avaliação

As entrevistas foram feitas no fim da intervenção, de forma coletiva, ou seja, duas equipes foram entrevistadas por vez. A entrevista era de natureza semiaberta, ou seja, os entrevistadores iniciaram a conversa com perguntas estimulantes para que os entrevistados descrevessem sua experiência e não havia uma série de perguntas que deveriam ser respondidas no fim de cada entrevista.

Durante toda a intervenção, os pesquisadores tiraram uma série de fotos que foram depois usadas nas entrevistas. Assim, essas iniciavam-se com a apresentação das fotos. A partir daí os alunos escolhiam o seu jogo favorito e em seguida explicavam por que o jogo mencionado era melhor do que os demais, o que estabelecia uma comparação. Dessa maneira, os quatro elementos da compreensão holística do jogo (cognição, aplicação, motivação e valores) eram trazidos para a discussão e os alunos poderiam demonstrar se a experiência com jogos de alvo os tornara mais críticos e cientes da jogabilidade de cada jogo. Além disso, antes da entrevista, os cinco profissionais envolvidos na intervenção (professores e pesquisadores) fizeram uma classificação dos jogos para verificar se os alunos apresentariam a mesma preferência e se apontariam os mesmos defeitos e qualidades de cada jogo.

Para garantir o rigor científico da análise de dados, os pesquisadores fizeram uma triangulação. Segundo Willis (2009)Willis JW. Foundations of qualitative research: interpretive and critical approaches. Thousand Oaks, CA: Sage; 2009., triangulação é o processo em que se busca coletar dados por meio de diferentes métodos e estabelecer uma comparação dos dados encontrados em cada método implantado. Nesse sentido, as observações, entrevistas e os questionários propostos no presente estudo permitiram que os pesquisadores analisassem se os alunos apresentaram o desenvolvimento dos quatro elementos da compreensão holística do jogo (cognição, aplicação, motivação e valores) ao criar jogos de alvo.

Resultados e discussão

A análise de dados considerou três etapas: a aprendizagem dos alunos com a criação dos jogos, a aprendizagem dos alunos ao ensinarem os jogos e os principais problemas encontrados nos jogos. Cada uma das análises se apresenta de maneira complementar, ou seja, o entendimento de como a intervenção contribui para o desenvolvimento da compreensão holística do jogo permeia esses três elementos.

A aprendizagem dos alunos com a criação dos jogos

A aprendizagem dos alunos com a criação dos jogos apresenta tópicos relacionados a três elementos da compreensão holística do jogo: aplicabilidade, cognição e motivação. A aplicabilidade dos jogos se relaciona à capacidade de os alunos apresentarem elementos que permitam uma boa jogabilidade. Um jogo que apresenta uma boa jogabilidade contribui para que o jogador que treinar e praticar o jogo com mais frequência possa desenvolver habilidades motoras e táticas que o tornam melhor, ao contrário de um jogo que promova o sucesso ao simples acaso.Kafai e Resnik (1996)Kafai Y, Resnik M. Constructionism in practice: Designing, thinking and learning in a digital world. Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum; 1996. apresentam a capacidade de se treinar um jogo como elemento crucial para manter o jogador interessado. Os elementos identificados como características de aplicabilidade nos jogos criados foram: objetos usados nos jogos, alvos e risco-benefício.

Objetos usados nos jogos

Os alunos apresentaram uma grande diversidade ao escolher o objeto a ser usado no jogo. Apesar da predominância na escolha de bolas, outros objetos curiosos, como macarrão de piscina e sacos de feijão (pequenos sacos de tecido com feijões dentro, comuns nas aulas de educação física nos Estados Unidos), também foram usados nos jogos criados. Todos os objetos escolhidos apresentaram uma boa relação com o alvo estabelecido, ou seja, não havia objetos grandes ou pequenos demais para o alvo proposto. Dessa maneira, observou-se a tendência de criar algo novo, mas ao mesmo tempo apresentou-se um cuidado quanto à sua aplicabilidade.

Alvos

Apesar de a maioria dos jogos poder apresentar diferentes alvos, todos os jogos apresentados tiveram somente um tipo de alvo, ou seja, todos os objetos colocados como alvos eram semelhantes. Por exemplo, não houve jogo em que se daria a opção de derrubar um cone ou encaçapar uma bola em uma caixa. Portanto, os objetivos propostos eram consistentes e não requeriam a aprendizagem de habilidades motoras distintas.

Risco-benefício

Os alunos foram capazes de incluir o conceito de risco-benefício aos jogos, ou seja, estabeleceram alvos mais difíceis de ser atingidos, com maior pontuação. Por exemplo, os alvos mais distantes valiam mais pontos. Dessa maneira, os jogos criaram a necessidade de os jogadores optarem por diferentes estratégias e houve a demanda por tomadas de decisão e opções táticas.

O desenvolvimento cognitivo da compreensão esportiva é apresentado na medida em que os alunos demonstram um entendimento do que faz parte de um jogo e do que o torna interessante. Dessa maneira, a pesquisa foi capaz de identificar dois elementos relacionados ao desenvolvimento cognitivo: a criação dos jogos de alvo e o discernimento entre os bons e maus jogos.

A criação dos jogos de alvo

Apenas um dos nove jogos criados não se enquadrava como jogo de alvo, todos os demais apresentavam as características dessa categoria. Dessa maneira, é possível afirmar que a grande maioria dos alunos conseguiu aprender os conceitos relacionados e transferi-los aos jogos que foram criados. Esse aprendizado representa o desenvolvimento cognitivo ao criar os próprios jogos, uma vez que os jogos de diferentes categorias requerem diferentes formas de organização (Hastie, 2010Hastie P. Student-Designed Games. Champaign, IL: Human Kinetics; 2010.).

Discernir bons e maus jogos

Sem conhecer a classificação feita pelos professores, os alunos foram perguntados durante a entrevista quais foram os melhores jogos que praticaram. Foi constatado que houve uma concordância de 100% entre a classificação dos professores e dos alunos. Isso mostra que eles apresentaram a mesma capacidade de discernimento entre os bons e maus jogos, questão discutida pelos professores. Na classificação dos jogos, os alunos fizeram referência a jogabilidade, relação risco-benefício e habilidades culturalmente valorizadas e estabeleceram uma conexão entre o desenvolvimento cognitivo e a aplicabilidade e a motivação.

A motivação foi um dos elementos mais beneficiados no processo de criação de jogos. Ao deparar-se com a liberdade de criar o próprio jogo, os alunos buscaram eliminar aquilo que os desagradava e reforçar elementos que os agradavam. Dois exemplos ilustram a motivação dos alunos nos próprios jogos que eles criaram: participação constante e habilidades culturalmente valorizadas.

Participação constante

Apesar de os jogos de alvo tradicionais serem caracterizados pela prática alternada, a maioria dos jogos criados foi organizada de maneira em que não havia uma longa espera para participar. Os alunos apresentaram dois jogos, com diferentes alvos e bolas, e neles cada time competiria ao mesmo tempo, arremessaria bolas em alvos, com configurações idênticas, postos lado a lado. A equipe vencedora seria aquela que derrubasse todos os alvos primeiro. Dessa maneira, todos os jogadores de ambas as equipes permaneceriam ativos durante todo o jogo, diferentemente de muitos jogos de alvo tradicionais já conhecidos, como boliche, golfe, bocha.

Habilidades culturalmente valorizadas

Um dos jogos criados e mais apreciados pelos alunos foi o em que eles teriam de derrubar diversos cones ao arremessar bolas de futebol americano. Notamos que a principal motivação dos alunos foi a habilidade motora, culturalmente assimilada e valorizada por eles. Apesar de muitos jogos valorizarem a inovação, a busca por algo inédito, a prática de uma habilidade que já tem valor agregado torna-se primordial na sua valorização. No Brasil, André e Rubio (2009)André MH, Rubio K. O jogo na escola: um retrato das aulas de educação física de uma 5ª série. Motriz 2009;15(2):284-96. apontaram esse mesmo comportamento ao analisar a criação de jogos de crianças do quinto ano. Nesse estudo, os alunos incorporaram o chute como principal habilidade, uma vez que o futebol é a atividade culturalmente valorizada no país.

A aprendizagem dos alunos ao ensinarem os jogos

Ao colocar o aluno como especialista do conteúdo que deveria ser aprendido pelos demais desencadeou-se um novo desafio, na medida em que os alunos não estão habituados a exercer tal função. Não obstante, a maioria dos alunos avaliou que o ensino do jogo foi bem feito, de modo que a explicação das regras e de como elas afetavam o foco foi bem explicitada pelos criadores dos jogos.

Ao ensinar seus jogos, os alunos depararam-se com perguntas e as explicações ganharam mais eficiência na medida em que eles apresentaram exemplos. Dessa maneira, as descrições de situações de jogo demonstravam que os criadores dos jogos tinham consciência da importância das regras e mostravam um desenvolvimento cognitivo relacionado à compreensão desportiva. Nesse mesmo sentido, os criadores demonstraram valorizar as regras de seus jogos, na medida em que essas moldavam uma realidade de jogo a qual eles almejavam.

No entanto, a administração dos jogos e as tabelas de pontuação propostas não receberam a mesma avaliação positiva do ensino dos jogos. Os alunos consideraram que os criadores não foram bem-sucedidos em organizar e marcar a pontuação de cada jogador. Esse resultado não foi surpreendente considerando que o aluno teve de mudar de comportamento para exercer essa função. Apesar de toda liberdade que foi dada ao aluno na criação de jogos, eles continuam no mesmo nível hierárquico do que os jogadores. Torna-se difícil para eles organizar um jogo sem ter uma figura de liderança, como tem o professor quando exerce a mesma função.

A análise feita com relação à má avaliação das tabelas de pontuação demonstrou a falta de experiência para essa prática. Ao considerarmos a intervenção como um todo, podemos dividi-la em quatro momentos: (1) a aprendizagem de jogos de alvo tradicionais, (2) o ensinamento desses mesmos jogos a outros alunos, (3) a criação de novos jogos de alvos e (4) o ensinamento dos próprios jogos de alvo. A administração da tabela de pontuação deveria ser aprendida nos primeiros dois momentos e a criação das tabelas deveria ser aprendida no segundo momento. Não obstante, em todos os momentos, as tabelas de pontuação foram colocadas como aprendizagens secundárias, uma vez que a criação do jogo era o foco central.

A identificação de que as tabelas de pontuação e a administração dos jogos não tenham sido bem feitas indica um avanço na compreensão holística do jogo, uma vez que os alunos foram capazes de reconhecer que um bom jogo, e que tem boa jogabilidade e é divertido, pode, ao mesmo tempo, ter sido mal administrado e com uma tabela de pontuação mal resolvida. Dessa maneira, os alunos mostraram ser capazes de identificar os vários elementos que compõem um jogo, apesar de a maioria dos grupos não ter sido capaz de contemplar todos esses elementos ao criar, ensinar e administrar seus jogos.

Principais problemas dos jogos

Quase a totalidade dos jogos apresentou alguma característica que poderia ser considerada como simples defeito, por alterar a experiência do jogo de alguma forma negativa. No entanto, simples alterações nas regras ou configurações dos campos de jogo tornariam os jogos mais participativos, mais estratégicos e com melhor jogabilidade. O processo de criação de jogos não visa a uma busca incessante pelo jogo perfeito, afinal seria muito difícil argumentar como e por que o jogo seria perfeito.

Portanto, a identificação dos principais problemas dos jogos não se refere a aspectos circunstanciais, mas sim às características que mostraram uma tendência entre os vários grupos que criaram os jogos, e reconhece que a intervenção não foi capaz de ensinar alguns elementos que deveriam ser levados em consideração na criação de um jogo de alvo. Foram identificados dois problemas centrais: o sistema de pontuação condizente e o risco-benefício apropriado.

Sistema de pontuação condizente

Nos primeiros dias da intervenção, os alunos tiveram a oportunidade de vivenciar diferentes formas de pontuação entre os jogos de alvo: o golfe de frisbe, cujo objetivo é acertar um alvo com menor número de tentativas possíveis, a bocha, na qual se procura chegar mais próximo de um alvo com número de tentativas limitadas, o ladderball, que implica um maior número de acertos em um alvo. Dessa maneira, buscou-se ensinar as várias possibilidades que os alunos poderiam usar em seu próprio jogo e estimular não só a diversidade, mas também a criatividade, caso eles optassem por criar algo completamente novo.

Não obstante, a busca pela diversidade e criatividade fez com que alguns grupos optassem por um sistema de pontuação de extremos, em que a diferença entre a execução perfeita e o fracasso era muito pequena. Em outras palavras, a pontuação tinha uma diferença muito pequena se a jogada fosse perfeita ou se tivesse erros mínimos. Por exemplo, em um dos jogos, o jogador deveria encaçapar uma bola de borracha dentro de uma caixa. No entanto, havia vários obstáculos em que a bola não deveria tocar até chegar à caixa. Caso o aluno tivesse passado por todos os obstáculos menos o último, ele não ganharia qualquer ponto e receberia a mesma pontuação de um jogador que acertasse todos os obstáculos. Dessa maneira, a diferenciação de um jogador bom, intermediário e ruim tornou-se difícil, pois apenas o jogador ótimo foi capaz de se diferenciar dos demais. Essa configuração podemos considerar uma falha, na medida em que todos os jogadores são colocados no mesmo nível de sucesso apesar de haver diferenças. Isso pode desestimular alguns jogadores por não serem capazes de notar o seu progresso de execução dentro do jogo.

Risco-benefício apropriado

O risco-benefício apropriado pode ser considerado uma extensão do sistema de pontuação. Para facilitar a compreensão, vejamos o exemplo: um grupo apresentou um jogo em que as equipes tinham três sacos de feijão (10cm2 cada) e deveriam fazer o maior número de pontos possíveis ao arremessá-los em três alvos (20cm2 cada) com três distâncias diferentes: um alvo colocado a meio metro de distância do jogador, que valia um ponto, outro colocado a três metros, que valia dois pontos, e um terceiro colocado a seis metros, que valia três pontos. Considerando a probabilidade de acertar cada alvo, a busca pelo segundo e terceiro alvo não apresentava uma boa relação de risco-benefício, pois era muito mais fácil acertar três vezes o primeiro alvo do que acertar o terceiro alvo uma única vez com três tentativas. Em outras palavras, é como se colocássemos a cesta de três pontos do basquetebol no meio da quadra. Nesse sentido, quase todos os jogadores optariam sempre pelo primeiro alvo e aqueles que se aventuravam nos outros dois quase nunca eram bem-sucedidos.

Conclusão

A criação de jogos esteve presente na vida de muitas crianças na geração daqueles que hoje são professores de educação física. Criar, recriar e modificar os próprios jogos era tão importante quanto a prática. A formação de um senso crítico que permita ao jogador entender a configuração do jogo pode apresentar mais espaço na prática reflexiva de sua invenção do que na prática intensiva sem alterações. No entanto, a rua, principal ambiente usado para criação de jogos, foi perdendo espaço dentro das novas configurações da sociedade e o jogo também passou a ser praticado de outras formas, com constantes supervisões de adultos em clubes e escolas, além do videogame, que não inclui a atividade física e estabelece intermediações limitadoras.

Independentemente dos motivos que levaram a tal configuração, a educação física tem a oportunidade de resgatar essa cultura genuinamente infantil, assim como tem o objetivo de ensinar os jogos folclóricos pertencentes à cultura local. No entanto, é fundamental que a educação física encontre uma função educacional para tal prática, ou seja, que a criação de jogos não vise a um fim em si mesmo, mas a um meio que possibilite a aprendizagem de outros objetivos. Nesse sentido, a compreensão holística do jogo é colocada como um dos possíveis benefícios que a criação de jogos pode proporcionar, uma vez que essa criação inclui a compreensão deles.

Dessa maneira, o presente estudo nos mostra que os desafios de criar e ensinar um jogo podem auxiliar a educação física no ensino da compreensão holística do jogo. O entendimento holístico de como cada jogo é construído passa por diversos elementos, que vão desde a relação entre as regras, táticas e habilidades motoras envolvidas até os valores e a interação social que o jogo pode proporcionar. A consciência de como alterar cada um dos elementos citados permeia um processo de tentativa e erro, uma vez que a modificação de cada elemento do jogo possa interagir de maneira não previsível. Em outras palavras, o jogo apresenta uma configuração complexa, na qual o todo (o jogo) não é simplesmente a soma das partes (regras, interação social, habilidades), uma vez que a interação dessas partes pode gerar resultados múltiplos.

A criação de jogos mostrou-se como um conteúdo viável para a educação física, no sentido de que é capaz de ensinar sobre a jogabilidade, isto é, se é possível ou não jogar o que foi proposto; a relação entre as regras e as táticas, que demonstra como que a alteração de uma regra altera a configuração e as estratégias do jogo e até mesmo o próprio gosto dos praticantes, na medida em que eles percebiam o que os motivava. Apesar de os alunos apresentarem dificuldade de estabelecer um risco-benefício apropriado e um bom sistema de pontuação, acreditamos que outras intervenções com a criação de jogos possam contemplar essa aprendizagem. Porém mais estudos são necessários para confirmar essa afirmação.

Assim, a teoria do constructionism, que visa a proporcionar aprendizagens por meio da criação, é colocada como uma opção a ser trabalhada na educação física. A busca por uma prática reflexiva, em que o aluno procure desenvolver um senso crítico com relação aos diversos elementos que compõem um jogo, pode ser incentivada, na medida em que o aluno se depara com o desafio de criar o próprio jogo. No entanto, é importante frisar que tal objetivo só foi alcançado por meio de um processo de ensino-aprendizagem que valorizou essa reflexão. Portanto, a criação de jogos deve passar por uma metodologia de ensino que ao mesmo tempo proporcione liberdade ao aluno de tentar novas possibilidades, mas não sem deixar de lado a reflexão que cada opção pode lhe proporcionar.

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    A definição de jogo usada no estudo combina duas referências que discutem o conceito de jogo.Ellis (1983)Ellis M. Similarities and differences in games: A system for classification. In: International association for physical education in higher education (AIESEP) Conference, 1983, Roma, Itália. apresenta três características que todo jogo tem: I) regras (conjunto de normas preestabelecidos que delimitem o ambiente); II) estratégias (conjunto de planos e táticas criadas pelos jogadores na busca de sucesso); III) habilidades (desenvolvimento de técnicas para executar práticas exigidas). O conceito de Freire (2005)Freire JB. O jogo: entre o riso e o choro. Campinas: Autores Associados; 2005. é apresentado de maneira complementar. Segundo o autor, para que haja um jogo é necessário que seja estabelecido um contexto, ou seja, é preciso que os jogadores aceitem esse ambiente que destoa da realidade fora do jogo.
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    É importante frisar que se apresenta o pega-pega e o futebol dentro da mesma definição de jogo, uma vez que ambos têm os mesmos três elementos apresentados por Ellis (1983)Ellis M. Similarities and differences in games: A system for classification. In: International association for physical education in higher education (AIESEP) Conference, 1983, Roma, Itália., ou seja, regras, estratégias e habilidades, e Freire (2005)Freire JB. O jogo: entre o riso e o choro. Campinas: Autores Associados; 2005., que aponta o contexto de jogo. Assim, dentro do presente estudo, não há uma distinção entre jogo, jogo esportivo e esporte, uma vez que todos apresentam as características de um conceito abrangente referido como jogo.
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    Golfe de frisbe é um jogo individual em que cada jogador busca acertar o disco de frisbe dentro de um bambolê em um número mínimo de tentativas. Cada vez que um jogador arremessa o disco, ele deve iniciar sua tentativa seguinte no local em que o disco pousou.
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    Bocha é um jogo individual ou em duplas em que cada equipe busca colocar sua bocha (bola pesada com 15 cm de diâmetro) o mais próximo possível do bolim (bola pequena). Cada equipe também usam suas bochas para afastar as bochas adversárias do bolim. Cada equipe tem quatro bochas por rodada.
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    Ladderball é um jogo praticado em duplas em que cada jogador busca envolver sua bolas (duas bolas de golfe conectadas por uma corda de 20 cm) em um dos três degraus de uma escada vertical (cada degrau tem uma pontução distinta (1 para o mais alto, 2 para o médio e 3 para o inferior). O jogo é contituído por duas escadas que ficam a cinco metros de distância. Um jogador de cada equipe fica atrás de uma das escadas para arremessar sua bola na escada oposta. Cada jogador tem duas bolas por rodada.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    11 Out 2012
  • Aceito
    05 Fev 2014
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