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O espetáculo esportivo na construção das representações sobre a identidade brasileira: uma análise da abertura dos Jogos Pan-americanos de 2007 - o "Pan do Brasil"

Sports spectacles in the construction of representations about brazilian identity: an analysis of the 2007 Pan-American Games opening ceremony – the "Brazilian Pan"

El espectáculo deportivo en la construcción de la identidad brasileña: un análisis de la apertura de Juegos Panamericanos de 2007 - el «Pan de Brasil»

Resumo

Este artigo objetivou analisar as representações sobre a identidade brasileira que emergiram a partir da festa de abertura dos XV Jogos Pan-Americanos. Para tanto, tomou-se como fonte à transmissão da cerimônia de abertura, o documentário "Jogos Pan-Americanos Rio 2007 – Cerimônia de Abertura" matérias jornalísticas que circularam em 14 de Julho de 2007. A simbolização do Brasil neste evento, traduzida em elementos da sua diversidade natural e cultural, representam a auto-imagem da harmonia multirracial e do ethos festivo do "ser brasileiro" revelando a essência democrática do caráter de um povo que soubera aplainar os antagonismos e hierarquias sociais. Essa seria a contribuição que nação brasileira teria a oferecer ao mundo.

PALAVRAS-CHAVE
XV Jogos Pan-Americanos; Cerimônia de abertura; Espetáculo esportivo; Identidade brasileira

Abstract

The aim of the present study was to analyze the representations about Brazilian identity that emerged from the opening ceremony of the XV Pan-American Games. In order to do so, the documentary "Rio 2007 Pan-American Games – Opening Ceremony" and news reports published in July, 14th 2007 were used as sources of information. In this event, Brazil's symbolism, translated in elements of its natural and cultural diversity, represent the self-image of the multiethnic harmony and of the festive ethos of "being Brazilian", revealing the democratic essence of a nation who leveled with the antagonisms and social hierarchies. This would be the contribution that the Brazilian nation has to offer to the world.

KEYWORDS
XV Pan-American Games; Opening games; Sports spectacle; Brazilian identity

Resumen

Este artículo tiene como objetivo analizar las representaciones de la identidad brasileña que surgieron de la ceremonia de inauguración de los XV Juegos Panamericanos. Se toman como fuentes la transmisión de la ceremonia de inauguración el documental «Juegos Panamericanos Río 2007 - Ceremonia de inauguración» y las noticias que se publicaron el 14 de julio de 2007. En este evento, el simbolismo de Brasil, traducido en elementos de su diversidad natural y cultural, representa la propia imagen de la armonía multirracial y el espíritu festivo de «ser brasileño», lo que revela la esencia democrática del carácter de un pueblo que ha sabido neutralizar antagonismos y jerarquías sociales. Esta sería la contribución que la nación brasileña ofrecería al mundo.

PALABRAS CLAVE
XV Juegos panamericanos; Ceremonia de apertura; Espetaculo deportivo; Identidad brasileña

Introdução

Os diferentes Estados-nação se pensam como peculiares. A construção das representações hegemônicas 1 1 Quando uma representação prevalece nas práticas sociais compartilhadas por membros de um grupo estruturado – uma nação, por exemplo – elas se tornam hegemônicas. Ver Arruda (1998). capazes de aglutinar a peculiaridade dos ditos estados são formadas pela elaboração de recursos simbólicos investidos de traços de distinção responsáveis identificar uma nação e diferenciá-la de outra. Toda identidade é construída a partir da escolha simbólica de determinados elementos em detrimento de esquecimentos ou ocultamentos de outros traços de identificação. Dizer que somos diferentes não basta, é necessário mostrar o quê nos diferencia. Assim, a afirmação da identidade e, consequentemente da diferença, depende de uma cadeia oculta entre outras identidades. O "ser brasileiro", por exemplo, não significa apenas dizer que "não é argentino", "não é norte-americano" ou outras negações de nacionalidades. O "ser brasileiro" só pode ser compreendido a partir de um processo de produção simbólica e discursiva que ponha em destaque o singular em detrimento do universal (Tadeu da Silva, 2000Tadeu da Silva T. A produção social da identidade e da diferença. In: Tadeu da Silva, T. (Org.) Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.).

Uma das possibilidades de observarmos os traços de distinção responsáveis por diferenciar uma nação da outra é através dos esportes que, ao longo do Século XX, se transformaram em fenômenos privilegiados para construção de metáforas e analogias sobre a qualidade ou o caráter dos povos que habitam as nações. Representadas nas competições internacionais por atletas, clubes ou seleções nacionais, a promoção de uma auto-identificação nacional e as crenças de diferenciação perante aos "outros" são facilitadas pela identificação imediata de uma dada coletividade por aqueles que representam os países.

Na atualidade a espetacularização dos esportes permite compreendê-los enquanto espaços privilegiados para a ebulição de dramatizações sobre a imaginação nacional. Os espetáculos esportivos têm dramatizado uma disputa pelas formas de imaginação das nacionalidades no mercado internacional através da participação das seleções/atletas nas competições internacionais, especialmente nos megaeventos esportivos. O esporte, assim, acompanha o processo de construção simbólica e imaginária das nações.

Dessa maneira, interessa-nos estudar o papel do amalgama "espetáculo esportivo - identidade nacional" enquanto uma arena pública que oferece um cenário simbólico privilegiado para formar e reforçar as identidades socioculturais de tipos nacionais (Fiengo, 2003Flengo SV. Gol-balización, identidades nacionales e fútbol. In: Alabarces, P. (Org.). Futbologias: fútbol, identidad y violência em América Latina. 1ª. Edição, Buenos Aires: Clacso, 2003.). Como ressalta Mann (2000, p. 314)Mann M. Estados nacionais na Europa e noutros continentes: diversificar, desenvolver, não morrer. In: Balakrishnan. G. (Org.). Um mapa da questão nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000. "assistir às Olimpíadas ou a outros eventos transformados em exibições cheias de emoção, é difícil acreditar que o Estado nacional esteja acabado". De fato, o esporte e sua circulação transnacional continuam a ser um forte agenciador das identidades nacionais.

Se uma sociedade é reconhecida pelas representações que ela faz de si (Ortiz, 2003Ortiz R. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense; 2003.; Arruda, 1998Arruda A. O ambiente natural e seus habitantes no imaginário brasileiro. In: Arruda, A. (Org.) Representando a alteridade. Petrópolis: Vozes, 1998.), devemos entender que tais representações são acionadas a partir de contextos específicos que reivindicam a produção ou rememoração de interpretações e narrativas sobre como a nação ou o povo se pensam em relação a um "outro", real ou imaginado. Uma guerra, uma disputa no mercado internacional do comércio ou uma competição esportiva são momentos privilegiados para que as narrativas identitárias sejam acionadas, rememoradas, reconstruídas e resignificadas.

Tomando essa perspectiva e adotando o suporte teórico metodológico sobre o nacionalismo (Anderson, 1983Anderson B. Imagined comunities: reflections on the origins spread of nationalism. Londres: verso; 1983.; Smith, 2000Smith AD. O nacionalismo e os historiadores. In: Balakrishnan (Org.). Um mapa da questão nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.; Balakrishnan, 2000Balakrishnan G. A imaginação nacional. In: Balakrishnan (Org.). Um mapa da questão nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.), que destacam que as nações são construídas2 2 "Todas as nações são comunidades imaginadas": "todas as comunidades maiores do que as aldeias primitivas (...) são imaginadas. As comunidades devem ser distinguidas não por sua falsidade/autenticidade, mas pelo estilo como são imaginadas" (Balakrishnan, 2000, p. 215). ou inventadas3 3 Benedict Anderson desenvolveu o conceito de Comunidade Imaginada. A identidade nacional não é inteiramente dependente da ideia que fazemos dela. Sendo assim, e uma vez que não seria possível conhecer todas aquelas pessoas que partilham de uma mesma identidade nacional, devemos ter uma ideia partilhada sobre aquilo que a constitui: "a diferença entre as diversas identidades nacionais reside,portanto, nas diferentes formas pelas quais elas são imaginadas" (Woodward, 2000, p. 24). , na esteira das construções das nacionalidades através dos fenômenos esportivos, os megaeventos se configuram eventos especiais para observarmos como os dilemas e orgulhos se condensam na imaginação das nações. Neste sentido, a ênfase aqui recai em analisar os recursos simbólicos acionados sobre a "identidade brasileira" a partir da abertura dos XV Jogos Pan-Americanos - o "Pan do Brasil" – realizado em 2007.

Interpretar os eventos esportivos internacionais, segundo os códigos culturais do presente, permite-nos compreender a emissão ideológica das narrativas esportivas à luz dos dramas da construção das identidades nacionais. Compreender esse processo se mostra importante na medida em que o Brasil sediou a Copa do Mundo de Futebol, em 2014, e sediará as Olimpíadas, em 2016, no Rio de Janeiro. Neste sentido, suas aberturas permitem apresentar um conjunto de imagens e representações daquilo que é imaginado como sendo o Brasil.

A cidade do Rio de Janeiro, em Julho de 2007, recebeu os XV Jogos Pan-Americanos. O "Pan do Brasil", slogan pelo qual fora chamado, foi um dos eventos esportivos de relevância internacional sediado em solo brasileiro. Para além dos interesses particulares do esporte, o fato de uma cidade brasileira ter sido a anfitriã do maior evento esportivo das Américas na época fez circular muitas representações sobre o Brasil e o seu povo. Diferentemente das outras edições desse evento que o esporte brasileiro havia participado, o fato dos jogos terem ocorrido em solo nacional acabou por gerar novas demandas e agenciamentos em relação à identidade do país. Neste sentido, investigar o legado do Pan para a sociedade brasileira vai além dos recursos materiais registrados na contabilidade geral do evento. Passa por um inventário dos investimentos simbólicos utilizados para a mobilização de corpos, corações e mentes na direção dos XV Jogos na cidade do Rio de Janeiro (Ferreira e Costa, 2008Ferreira NT, Costa VLM. Legado político dos jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro: O Imaginário do Pan. In.: Da Costa L. M. P. et al. (Org.). Legados de Megaeventos Esportivos. Brasília: Ministério do Esporte, 2008.).

Destaque-se que no campo esportivo no Brasil o futebol tem centralidade para identificar o país na configuração dos Estados-nacionais. Os sucessos e fracassos do futebol nacional se tornam motivo para falar tanto da potencialidade quanto das carências da nação4 4 A derrota do Brasil na Copa de 1950 e a recente derrota de 7 a 1 para a seleção alemã na Copa do Mundo de 2014 são bons exemplos. . Todavia, quando o Brasil se torna sede de um megaevento, as demandas identitárias condensadas no futebol migram de certa forma para organização, gestão e participação em diferentes esportes, mesmo que esse evento e as demais modalidades esportivas não atinjam a dramaticidade que o futebol tem em nosso país.

Partimos do pressuposto que os traços distintivos ou interpretações selecionadas pelos organizadores da abertura do Pan' 2007 podem servir para observarmos como o discurso sobre o que "é o Brasil". Cabe destacar que é uma singularidade de nossa história questionarmos sobre "quem somos" e que a angústia em responder a este questionamento continua permanentemente (Ianni, 2000Ianni O. Tendências do pensamento brasileiro. Tempo Social; Rev Sociol USP 2000;12(2):55-74.). Todavia, diante de muitas interpretações sobre o Brasil no passado e presente, uma questão que se coloca é: quais recursos simbólicos deveriam ser utilizados para homogeneizar a identidade de uma nação de dimensões continentais e que traz consigo uma alta diversidade cultural a fim de representá-la na abertura de um megaevento esportivo, o principal das Américas?

Nesse sentido, a cerimônia de abertura da edição destes Jogos oferece-nos uma excelente oportunidade para a compreensão da imaginação nacional. Entendendo-a como um espaço de apresentação do que é imaginado sobre o que é o Brasil, analisamos os produtos simbólicos utilizados para representar o país naquele espetáculo esportivo. Se os traços que distinguem a identidade de um Estado-nação residem nas formas homogeneizadoras pelas quais ele escolheu ser "imaginado", o objetivo deste artigo foi analisar as representações sobre a identidade brasileira que emergiram a partir da festa de abertura dos XV Jogos Pan-Americanos.

Para tanto, a fim de observar os recursos utilizados para espetacularizar o discurso sobre a brasilidade na abertura do "Pan do Brasil" e interpretar como esta festa foi recebida pela imprensa local, assistimos à transmissão da cerimônia de abertura e ao documentário "Jogos Pan-Americanos Rio 2007 – Cerimônia de Abertura5 5 https://www.youtube.com/watch?v=ZROu32wx_jk ", que seria a versão dos organizadores sobre essa fase do evento. Entendemos que a produção do documentário revela elementos importantes que os organizadores pretendiam eternizar na memória das celebrações dos megaeventos realizados no Brasil. Além disso, adicionamos matérias jornalísticas que circularam em 14 de Julho de 2007, dia posterior à abertura dos Jogos. À luz do exposto, nosso intento será analisar a mensagem emitida pela abertura do "Pan' 2007" a partir da qual o Brasil buscou articular as narrativas de sua "identidade" e "diferença" relação às outras nações.

Estamos partindo do modelo codificação/decodificação proposto por Hall (2003)Hall S. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik. Belo Horizonte: Editora UFMG, Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003., que propõe que o consumo seja visto como determinante da produção e vice-versa 6 6 Isso forneceria aquilo que Hall chama de articulação, isto é, "um entendimento do circuito do capital como uma articulação de momentos de realização com momentos de produção" (Hall, 2003, p. 356). . Hall entende ainda que a produção de uma mensagem não é uma atividade tão transparente como parece. Ela é parte de uma estrutura complexa cujos significados não são fixos, mas sim determinados por uma produção cujo sentido ideológico está relacionado com conteúdo político7 7 "O significado da mensagem tem a ver com a maneira como se pensa questões políticas" (Hall, 2003, p.355) . Hall (2003)Hall S. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik. Belo Horizonte: Editora UFMG, Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003. se vale do modelo saussariano em que a linguagem deve ser entendida como uma articulação da diferença. Logo, o interesse deve recair sobre as diferenças para entender o que as articula: "a linguagem é uma articulação de diferenças" (Hall, 2003Hall S. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik. Belo Horizonte: Editora UFMG, Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003., p. 360).

Os Jogos Pan-Americanos e elementos identitários acionados na cerimônia de abertura do "Pan do Brasil"

Historicamente os Jogos Pan-Americanos são disputados a cada 4 anos pelos países dos continentes americanos, sempre um ano antes dos Jogos Olímpicos, com a finalidade de integrar o desenvolvimento esportivo desses países. Trata-se de uma versão dos Jogos Olímpicos em que se incluem alguns esportes da cultura do país.

A Revista de História da Biblioteca Nacional, na edição de Julho de 2007 dedicou um dossiê a fim de ampliar os conhecimentos sobre os Jogos Pan-Americanos que a partir daquele mês seriam realizados no Brasil.8 8 Ano 2, n° 22, Julho de 2007. Um dos artigos publicado por Fernando Vale Castro revela os significados colocados na idealização dos Jogos.

Maior evento esportivo das Américas, os Jogos do Pan expressam o imaginário americano de integração desde o século XIX.

"Sonho" de cooperação continental na América nasceu nos primeiros anos após as independências, com a iniciativa de Simón Bolívar (1783 – 1830) de convocar as novas nações para discutir as formas de colaboração. O primeiro encontro internacional ocorreu num congresso realizado no Panamá em 1826. Predominava, então, uma visão idealizada acerca da possível aproximação entre os países do Novo Mundo.

(...)

A Primeira Conferência Internacional Americana, que ocorreu entre os dias 2 de Outubro de 1889 e 19 de abril de 1890, marcou o início do pan-americanismo. (...)

O imaginário sobre a integração das Américas ultrapassou as fronteiras da política. Na esfera esportiva, essa busca por união teve início nas primeiras décadas do Século XX. Inspirados pelos Jogos Olímpicos da era moderna, iniciados na Grécia em 1896, foram organizados os Jogos Abertos da América Central – primeiro no México, em 1926, depois em Cuba, em 1930 (Castro, 2007Castro F. V. O pan-americanismo em jogo. Rio de Janeiro: Revista de História da Biblioteca Nacional 2007(22):18-21., p. 18-20).

Observa-se que a idealização dos Jogos Pan-Americanos revela o anseio da integração das nações do "Novo Mundo", antigas colônias de exploração das metrópoles européias. A experiência da realização de uma competição continental traduzem o ideário de aproximação dos povos agora independentes mediados pelo fenômeno esportivo.

Um dos símbolos dos jogos é a Tocha Olímpica que aglutina elementos representativos sobre os significados dos Jogos. Esse trecho que traz questões sobre a simbolização da tocha olímpica e salienta que os Jogos Pan-Americanos representam o ideário de integração do Novo Mundo.

Campeões da América

Das pirâmides do deus Sol, no México, herança da cultura asteca, para a cidade maravilhosa, a tocha Pan-Americana chega ao Brasil trazendo sua mensagem de paz.

Inspirada na antiga tradição dos Jogos Olímpicos gregos foi fabricada em acrílico e metal, que representa a diversidade e a união entre as muitas nacionalidades, línguas e etnias. Por onde ela passa, ela desperta o interesse pelo esporte e faz lembrar um velho ideal: o da integração das Américas.

O fogo – símbolo da busca humana pelo conhecimento e do desejo de compartilhar – também está associado à mascote da competição: um sol sorridente Cauê, nome de origem tupi relacionado à lenda da mistura das raças9 9 Ano 2, n° 22, Julho de 2007, p. 17.

É de praxe, em cada uma das edições, eleger um mascote que aglutine os significados do país nos jogos. A eleição pela nação brasileira de um sol, chamado Cauê, acaba por representar um "país tropical" e alinha-se a um tipo de interpretação sobre "o que é o Brasil". Nossa hipótese de trabalho é que os temas da natureza, da riqueza da terra, do clima, da hospitalidade e da "mestiçagem" delinearam a abertura dos jogos do "Pan do Brasil" exaltando as riquezas do território nacional e de seu povo. Com isso a estética e o conteúdo do evento acabou por privilegiar um tipo de interpretação do que é o Brasil. Ao analisar Cauê, Ferreira e Costa (2008)Ferreira NT, Costa VLM. Legado político dos jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro: O Imaginário do Pan. In.: Da Costa L. M. P. et al. (Org.). Legados de Megaeventos Esportivos. Brasília: Ministério do Esporte, 2008. viram-no como

alegre, esportista e apreciador de todas as modalidades de Rio 2007. Respeitador da natureza. Um símbolo que tem a cara da ‘cidade maravilhosa', conhecida em todo o mundo por sua alegria, calor e hospitalidade.

Representante dos ideais olímpicos compreende também todas as línguas das Américas. Além disso, pela primeira vez na história dos Jogos a mesma mascote integrou os Jogos Pan-Americanos e Parapan-Americanos num exemplo prático dos valores olímpicos de igualdade e não discriminação. O nome Cauê vem do Tupi, é um nome próprio, possivelmente derivado de auê, uma saudação que nesta língua indígena significa salve! (...)

Faz parte de uma lenda que evoca a mistura de raças e a colonização do Rio de Janeiro. Cauê seria filho de uma branca (a francesa Amanda) e do Cacique Ararê, alegre, esportista, bom anfitrião, amigo (Ferreira e Costa, 2008Ferreira NT, Costa VLM. Legado político dos jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro: O Imaginário do Pan. In.: Da Costa L. M. P. et al. (Org.). Legados de Megaeventos Esportivos. Brasília: Ministério do Esporte, 2008., p. 277).

A eleição de um índio pode significar várias coisas que compõem a imagem do Brasil. Observe que o analista supracitado reconhece que esse símbolo significa alegria, clima não hostil, hospitalidade e pacifismo. Além disso, Cauê simboliza a miscigenação de raças e culturas no país. Observe que mesmo diante de uma velha interpretação do Brasil, esse resgate estaria em conformidade com as demandas contemporâneas que clamam por um mundo que celebre valores modernos como a igualdade e a tolerância.

O RIO 2007 trouxe a "energia" como tema. O mote dos Jogos, "Viva essa Energia", foi apresentado na cerimônia através da força vinda de três elementos: sol, águas e do ser humano, num belo espetáculo de cores, luzes e sons que reuniu diversos símbolos e representações sobre o Brasil. Além dos vários efeitos de iluminação, a festa teve como destaque atletas, dançarinos e figurantes que abrilhantaram o evento. Cada país foi representado por globos giratórios com seus respectivos nomes escritos em português, inglês e espanhol, dando assim destaque às três línguas mais faladas no continente americano.

Segundo Ferreira e Costa (2008)Ferreira NT, Costa VLM. Legado político dos jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro: O Imaginário do Pan. In.: Da Costa L. M. P. et al. (Org.). Legados de Megaeventos Esportivos. Brasília: Ministério do Esporte, 2008. foram explicitadas nos discursos estratégias persuasivas de valorização do esporte, da imagem enaltecedora do estado, dos ideais do liberalismo e a temática da energia que espelharia a alma coletiva brasileira ao fazer alusão aos símbolos da identidade nacional como a diversidade natural, cultural e étnica. A cerimônia de abertura chamou atenção dos símbolos representativos da identidade nacional e as demandas de mostrar um Brasil desenvolvido com energia, seja de seu povo, das suas fontes naturais e da principal empresa de geração de energia no Brasil, a Petrobrás10 10 https://www.youtube.com/watch?v=ZyN4xXOBsYQ. Acesso em 10 Jul. 2014. . Empresa de economia mista que foi um dos principais patrocinadores do evento.

A fim de aprofundar esta questão recorremos ao documentário "Jogos PanAmericanos Rio 2007 – Cerimônia de Abertura11 11 https://www.youtube.com/watch?v=ZROu32wx_jk ". Nele, Leonardo Gryner, diretor geral de cerimônias, destaca a importância da cerimônia de abertura para o evento: "a cerimônia de abertura é o elemento fundamental dos jogos, ela dá o tom com que as pessoas vão receber os jogos". Ainda em relação à abertura, Alicia Ferreira, produtora associada da festa, chama atenção no documentário para o ineditismo de uma cerimônia desta natureza: "A festa, ela tem uma dimensão de abertura de jogo olímpico, que é muito maior e muito mais complexo. Isso se constitui um desafio sim, de logo na primeira vez que a gente está fazendo uma cerimônia dessa natureza inédita no Brasil, ela já ter uma ordem de grandeza fenomenal."12 12 https://www.youtube.com/watch?v=ZROu32wx_jk

Vejamos então como foi pensada esta cerimônia grandiosa que ditaria o "tom" dos jogos. O documentário inicia rememorando a disputa em torno da cidade-sede dos jogos. Na Tela 2: "Em uma tarde qualquer do ano de 2002, uma disputa pela oportunidade de sediar os XV Jogos Pan Americanos terminou de forma surpreendente", que seria a escolha do Rio de Janeiro para sediar tais jogos. A telas subsequentes (3, 4 e 5) se ocupam de apresentar uma entrevista com Leonardo Gryner. O diretor chama atenção para a concepção do processo do Pan do Brasil:

Foram três dias de reuniões seguidas: eu, Scott, a Rosa e o Luís, internados em um hotel e fazendo o primeiro desenho da cerimônia. E tudo isso era um desdobramento dessa ideia do Viva essa Energia, de como era essa energia brasileira. A gente tinha três elementos importantes da energia brasileira: uma era a energia da natureza. Nós temos uma natureza exuberante, maravilhosa, fantástica e um dos elementos essenciais pra essa energia acontecer é o sol. Um outro elemento é a água, a água é uma coisa muito presente na nossa cultura, nos sincretismos, nós somos banhados por uma variedade de rio imensa; e o terceiro, obviamente, é a energia do homem. A criatividade do brasileiro é uma coisa impressionante. Eu costumo dizer que eu não conheço nenhum país, na dimensão que é o Brasil, tendo uma língua somente, tendo praticamente uma só religião que é muito predominante e que tem uma diversidade cultural tão grande.

Gryner revela as solicitações políticas em relação à abertura do Pan do Brasil realizado na cidade do Rio de Janeiro:

O governo pediu que a gente mostrasse o Brasil, que não fosse uma coisa só Rio de Janeiro, que a gente mostrasse a diversidade cultural brasileira, pediram pra gente fugir de alguns estereótipos, que também era a nossa intenção, aquela coisa de mulata, bunda, carnaval, mulher nua, a gente queria sair fora desses estereótipos. Mostrar que o Brasil é um país moderno, que não ficasse uma coisa folclórica, que mostrasse que o Brasil é um país capaz de fazer um show contemporâneo. Ainda que tenha referências folclóricas, que o nosso show tem, mas feito de uma forma contemporânea, moderna, feito de uma forma moderna. O número de abertura do espetáculo é o número de percussionistas fantástico. E a ideia era realmente energizar esse Maracanã todo. Com todo esse conceito, com toda essa energia, você conseguir energizar esse estádio todo e trazer a energia do povo brasileiro, que é tão participativo, de uma vez.

Vê-se que havia uma intenção política na abertura do primeiro megaevento esportivo dessa natureza que o Brasil iria sediar. Fica evidente que o governo solicita o agenciamento de uma imagem que fugisse de estereótipos e privilegiasse a diversidade deste país que se quer moderno e apesar dos elementos tradicionais do que conserva em seu folclore nacional. Também intencionava descentrar o Pan da cidade- sede, pois, o investimento do Governo Federal foi central para que o evento fosse realizado. Generalizar o Pan para o Brasil foi uma estratégia política de mostrar para a federação dos estados e para fora que o Brasil não era apenas o cartão postal representado pelo Rio de Janeiro, como desejou Pereira Passos na Reforma Urbana de 1904.

Um dos elementos que deveriam também traduzir a identidade brasileira era a trilha sonora da cerimônia de abertura. Leonardo Gryner destaca que

A música foi um processo artístico um pouco mais lento, demorado, porque precisava dessa base artística criada, precisava saber o que seriam os números para o Alê13 13 Alê Siqueira, diretor musical. poder trabalhar. Como ele resolveria a música? Como a música iria complementar e dar um fecho para essa criação artística. Não podia ser uma coisa só da música brasileira, não podia ser uma coisa de um só compositor, tinha que misturar o sinfônico, tinha que misturar a música brasileira. Imagine um pouco de Vila Lobos, Tom Jobim, misturado com um ritmo moderno?".

Esta trilha sonora deveria representar a diversidade artística, traduzida na diversidade de ritmos brasileiros, criados a partir de um povo misturado culturalmente e da singular musicalidade rica e diversa nos novos e velhos tempos. O diretor musical do cerimonial, Alê Siqueira, chamou a atenção para o fato de que esta diversidade estava traduzida na diversidade musical das cantoras e do grupo escolhidos para cantar/tocar na cerimônia do Pan do Brasil:

eu achei interessante trazer pessoas como a Elza, que é uma das maiores cantoras que o Brasil já teve e isso é indiscutível. (Elza Soares cantou o Hino Nacional Brasileiro, a capela). Trazer a Nara Costa, que é uma cantora revelação do Rio, trazer a Céu, que também é uma revelação de São Paulo, é fantástica, o Cordel do Fogo Encantado que é um grupo já conhecido, mas infelizmente o grande público ainda não conhece.

Com relação a relação dos ideários do jogos com as demandas da representação do Brasil na festa de abertura, Leonardo Gryne destaca:

Pessoas de vários países, de vários credos, pessoas de diversas cores, pretos, brancos, amarelos convivendo em um ambiente de paz e harmonia. Essa é a ideia central dos jogos, sejam os jogos olímpicos ou os jogos pan-americanos ou os jogos asiáticos e tal. Então tem sempre um momento em que você celebra a paz. O Alê sugeriu o Chico César pra compor uma canção sobre a paz e ele fez uma coisa absolutamente arrepiante". O diretor musical justifica a escolha deste cantor: "Porque o Chico é um porta-voz dos lamentos, das rezadeiras nordestinas, de maneira natural, orgânica. Ele canta com essa herança, eu acho. A estética, a voz da rezadeira nordestina.

Um dos elementos elogiados foram as coreografias dos bailarinos. Lola Gabriel, um das coreógrafas responsáveis pela organização do evento revela o convite aos grupos da cultura popular da cidade do Rio de Janeiro para participação da festa da cerimônia de abertura: "a gente convidou alguns grupos de cultura popular do Rio de Janeiro, alguns capoeiristas, o pessoal do Jongo da Serrinha também veio e a gente pôde contar nesse evento também com o bacharelado em dança da UFRJ que deu, sem dúvida, uma base muito interessante"14 14 https://www.youtube.com/watch?v=ZROu32wx_jk

A avaliação, realizada pelos organizadores, dão conta que a cerimônia foi um sucesso, como revela no documentário Scott Givens, produtor executivo e diretor:

Quando você tem uma cerimônia de abertura maravilhosa, na manhã seguinte as manchetes são ótimas, as críticas são ótimas. Todos dizem coisas boas sobre os jogos. E toda uma vibração positiva se inicia. Com isso, todas as outras coisas que você está fazendo pelos jogos são afetadas positivamente, começando naquela primeira manchete do dia seguinte. Isso faz com que todo o país fique orgulhoso, toda a cidade orgulhosa do esforço feito para aquele evento. Tudo isso conta imensamente para o sucesso dos jogos, e eu te digo: eu vi isso aqui no Rio.

Carlota Portella15 15 Carlota Portella é uma premiada coreógrafa carioca. Maiores informações: http://www.rio.rj.gov.br/rioarte/site/danca_subvencao. , uma das responsáveis pelas coreografias da festa de abertura, optou por representar a identidade brasileira à luz desse cenário por meio de acrobacias circenses combinadas com floreios do jogo de capoeira 16 16 http://www.globo.com, acessado em 14 de novembro de 2007. . As coreografias homenageavam as belezas naturais e culturais do país, no seu grande e unificado território. Esta marca que delineia toda a construção da identidade nacional (Oliveira, 1990Oliveira LL. A questão nacional na Primeira República, v. 1. São Paulo: Brasiliense; 1990. p. 208.) se reflete também na cerimônia de abertura do Pan do Brasil que se encerra com a cantora baiana, Daniela Mercury, cantando "Cidade Maravilhosa" em ritmo de samba.

Durante a transmissão da Rede Globo de Televisão observamos uma ênfase da transmissão em exaltar elementos da natureza tropical e da pluralidade cultural brasileira, especialmente o samba e a capoeira. Ressaltamos que na ocasião da entrada das delegações, a "trilha sonora" da delegação brasileira foi o samba. Com efeito, podemos observar que o samba e a capoeira assumem um protagonismo na demanda de representar o Brasil na festa de abertura do "Pan do Brasil". Isso foi o que pôde ser observado a partir da transmissão da Rede Globo de Televisão.

O dia seguinte trouxe as manchetes dos jornais cariocas sobre a festa de abertura do "Pan do Brasil. Vejamos o conteúdo das matérias. O Jornal do Brasil17 17 14 Jul., Esportes, p. 1. estampou em sua primeira página:

A maior de todas as festas:

O Rio é Pan: 75 mil espectadores viram o Maracanã transformar-se numa galeria da almabrasileira. Elza Soares reviveu Garrincha: paralisou o estádio com a interpretação do Hino Nacional. Era o prelúdio de um show de raízes. Em verde e amarelo a delegação foi festejada com a alegria de um gol. (...) dos batuques anunciavam a ópera amazônica à aquarela do Brasil, os Jogos Pan-Americanos foram abertos por um espetáculo impecável de danças luzes e sons. Melhor inspiração, os atletas não haveriam de ter (o itálico é nosso).

Na mesma direção, O Globo 18 18 14 de Julho de 2007, Esportes, p. 1. estampou: "Fogo sagrado: a festa de abertura do Jogos Pan-Americanos que o Rio apresentou para o mundo foi perfeito. O show de cores que valorizou a cultura brasileira" (o itálico nosso).

A tentativa dos organizadores do Pan era fugir dos estereótipos e apresentar um Made in Brazil como a exposição dos nossos exóticos produtos culturais e mestiços (Schwarcz, 2001Schwarcz LM. Racismo no Brasil. São Paulo: Publifolha; 2001.). Era, como apontam seus organizadores, apresentar a tradição modernizada. Se como destaca Munanga (2004)Munanga K. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Autêntica: Belo Horizonte; 2004. a produção discursiva do "ser brasileiro" passa por uma compreensão do conteúdo simbólico e político da mestiçagem, a festa de abertura do Pan do Brasil acabou celebrando a mestiçagem como um grande legado da cultura brasileira para o mundo. Reforçando assim a interpretação que aqui vivemos em harmonia para além das diferenças da cor da pele, da religião e da ideologia, assim como Cauê, um índio hospitaleiro e filho da mestiçagem (Ferreira e Costa, 2008Ferreira NT, Costa VLM. Legado político dos jogos Pan-Americanos do Rio de Janeiro: O Imaginário do Pan. In.: Da Costa L. M. P. et al. (Org.). Legados de Megaeventos Esportivos. Brasília: Ministério do Esporte, 2008.).

Orientada pela demanda de construção de um discurso distintivo sobre a nação, a categoria da "mestiçagem" foi investida como capital simbólico para representar o Brasil também no PAN, assumindo os contornos da modernidade pela estética do evento. O samba e a capoeira, além do candomblé e do futebol, se transformariam elementos distintivos da cultura nacional no evento. "Desafricanizados" e simbolicamente clareados, esses elementos culturais passaram a atender, a partir dos anos 20-30, à demanda da construção da nacionalidade brasileira (Oliveira, 1980Oliveira LL. (Org.). Elite intelectual e o debate político nos anos 30: uma bibliografia comentadada Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas/MEC, 1980.).

Miscigenados, esses símbolos dramatizam uma das marcas distintivas da identidade brasileira: a ilustração ideológica da propalada convivência equilibrada entre os antagonismos da sociedade brasileira. Tal equilíbrio de antagonismos se tornaria um modelo a ser copiado para aqueles que buscam a paz interétnica. Esses produtos (samba, capoeira e futebol) revelariam a "democracia racial brasileira", um dos mitos nacionais que privilegia o discurso assimilacionista de uma nação que soubera romper com o passado escravo e vislumbrar o futuro a partir do legado de seus grupos étnicos.

A mensagem desse "povo-novo" multiétnico era como o Brasil queria ser visto pelas representações da mestiçagem no passado e pelas imagens atualizadas pelos idealizadores do Pan naquele evento esportivo. No plano das ideologias nacionais, a mestiçagem representa a igualdade proporcionada pelo esquecimento das diferenças que hierarquizavam anteriormente e uma crítica à "pureza racial", que por muito tempo serviu de bastião para a escravização e/ou colonização dos povos. Para além da bipolarização hierarquizante "colonizador-colonizado", o "mestiço" só é possível se os antagonismos ou as categorias que outrora foram pensadas como naturais ou puras forem suprimidas.

Observemos que a eleição da "mestiçagem" atendeu a demanda do "Novo Mundo" no sentido de construir uma identidade que expressasse a civilização da Jovem República. Decorrente da positividade como foi encarada as relações raciais na sociedade brasileira, a "democracia racial" expressava assim o ethos civilizado de uma nação que soubera superar, sem conflito, o preconceito racial. A interpretação do Brasil na abertura do PAN2007 não apresenta continuidade com essa tradição?

Alegorias do discurso ideológico da "democracia racial" e os "produtos culturais mestiços" dramatizam como o Brasil pode ser visto ainda hoje. No plano simbólico, o samba e a capoeira representam o ethos da brasilidade, qual seja: o discurso ideológico da harmonia multirracial da "nação mestiça". No plano simbólico, esses "produtos culturais mestiços" ilustravam a mensagem ideológica da demonstração de uma essência democrática do caráter nacional pelo fato da convivência de antagonismos e hierarquias. Essa seria a contribuição da "nova" - "civilizada" - nação brasileira teria para oferecer ao mundo no passado, mas também no presente.

Conclusão

Chacon (2001)Chacon V. A construção da brasilidade: Gilberto Freyre e sua geração. Brasília: Paralelo 15 - São Paulo, Marco Zero; 2001. esclarece que uma cultura se descobre ao constituir-se. Nessa direção, o Brasil não foi propriamente descoberto, nem achado, nem qualquer outro nome que lhe impute uma data rígida (Chacon, 2001Chacon V. A construção da brasilidade: Gilberto Freyre e sua geração. Brasília: Paralelo 15 - São Paulo, Marco Zero; 2001.). O descobrimento do Brasil é a sua contínua construção. Foram etapas sucessivas de construção, antes e depois das datações de hoje.

Ianni (2000)Ianni O. Tendências do pensamento brasileiro. Tempo Social; Rev Sociol USP 2000;12(2):55-74. num agudo artigo sobre essa construção do Brasil realiza um mapeamento dos intérpretes do Brasil e das narrativas dominantes, no passado e no presente, que pensam o estado como demiurgo da sociedade, como produto da sociedade patriarcal, como um local para forjar capitalismo nacional, como luta de classes para forjar o socialismo e como o país pode ser integrado a nova ordem mundial do neoliberalismo e do capitalismo transnacional. Várias correntes de intelectuais ao longo do século XX integraram as diferentes linhagens de intérpretes do Brasil. Para além dessas linhagens de interpretação temos as culturalistas que pensaram que a história do país se desenvolve em termos de signos, símbolos e emblemas de nossa cultura. Assim, temos precursores no passado e no presente que interpretam o Brasil, "assim, que pode ser visto como uma "fábrica" de explicações, uma coleção de interpretações compondo uma visão do país no curso da história" (Ianni, 2000Ianni O. Tendências do pensamento brasileiro. Tempo Social; Rev Sociol USP 2000;12(2):55-74., p. 72).

O interessante do argumento de é que essas linhagens podem ser amalgamadas e se transformam em ficções sobre o que é ou deve ser o Brasil. O argumento tratado até intenciona marcar que os organizadores do evento em tela, conscientes ou não, acabam incorporando algumas das interpretações correntes do que é ou deve ser o Brasil. O que organizadores e analistas desejaram informar sobre o Brasil? De acordo com Castro (2007)Castro F. V. O pan-americanismo em jogo. Rio de Janeiro: Revista de História da Biblioteca Nacional 2007(22):18-21.

todos esses espetáculos do esporte internacional se caracterizam como espaço de solidariedade e congraçamento entre os povos, momento de paz e exemplo de um mundo onde adversário não é inimigo e as batalhas entre países ocorrem sem derramamento de sangue. Nas Américas, Jogos estimulam a reflexão sobre as possibilidades de um continente unido, pacífico, próspero, com a construção de uma rede de solidariedade e cooperação por meio do esporte, uma das expressões do pan-americanismo (Castro, 2007Castro F. V. O pan-americanismo em jogo. Rio de Janeiro: Revista de História da Biblioteca Nacional 2007(22):18-21., p. 21).

Observemos que mesmo um analista toma o evento como uma metáfora do dever ser do esporte e do continente americano nesse contexto. Acreditamos que a festa de abertura do "Pan do Brasil" cumpriu com parte da demanda da construção da brasilidade que, por mais que fosse atualizada a linguagem do espetáculo, ainda temos o resíduo dos símbolos, signos e emblemas que ao falarem da singularidade de nossa cultura acionam o exótico e a mestiçagem como marcas da singularidade brasileira.

Essas marcas de uma suposta convivência pacífica, via mestiçagem, trabalha com os esquecimentos das fraturas e das violências de um passado escravocrata e pós-escravocrata, mesmo tendo esses como pontos de partida. Se do ponto de vista biológico e sociológico, a mestiçagem e a transculturação dos povos que se radicaram no Brasil é um fato consumado, no plano dos significados da cultura, "mestiçagem" e a "raça" são categorias (re)negociadas ao sabor de critérios ideológicos-políticos e das relações de poder impostas socialmente. A abertura do "Pan do Brasil" articulou temas da identidade brasileira radicando na memória nacional aqueles símbolos que traduziriam "a alma", "as raízes", enfim, a dita "cultura brasileira" se nos reportarmos às interpretações clássicas de nossos intelectuais (Ianni, 2000Ianni O. Tendências do pensamento brasileiro. Tempo Social; Rev Sociol USP 2000;12(2):55-74.).

Todavia, poder-se-ia perguntar: quais seriam os recursos simbólicos utilizados para a afirmação do "Pan do Brasil" senão as imagens e ritmos do grande território unificado pela língua, das riquezas naturais, do clima, da pacífica convivência, do samba e da capoeira? O PAN retoma os velhos símbolos da identidade nacional através de uma nova roupagem e da atualização da linguagem estética do espetáculo no sentido de preservar e atualizar esse Brasil moderno sem romper com suas velhas interpretações sobre o que é o Brasil.

O que estamos querendo marcar é que se os símbolos só têm coerência mediante seus significados, a eleição dos exóticos "produtos mestiços" selecionados para representar o Brasil naquele evento reforça a mensagem ideológica da "nação mestiça"que possui um povo pacífico e, como induz Castro (2007)Castro F. V. O pan-americanismo em jogo. Rio de Janeiro: Revista de História da Biblioteca Nacional 2007(22):18-21., os jogos e nosso estilo harmonioso poderiam estimular a reflexão sobre a construção do Pan-americanismo por meio do esporte.

Se o desejo era mostrar o Brasil industrializado, para além de uma cultura exótica com solo rico produtor de commodities, observamos que os símbolos utilizados do Cauê, do samba e da capoeira aprisionaram a linguagem gerando pouca margem de manobra estética para os organizadores do evento. Na festa de abertura, aos olhos de cerca de 75 mil espectadores que estiveram presente no Maracanã e aos de outros milhares de telespectadores que assistiram-na pela televisão, revelaram-se os símbolos identitários que o Brasil quer que seja protegido na sua memória.

A simbolização do Brasil através da sua diversidade natural e cultural, traduzida na presença de elementos como território, florestas, água em abundância, sol, tropicalidade e, sobretudo, a capoeira e o samba explicam a eleição dos "produtos mestiços" como permanentes mediadores da identidade nacional para fora e para dentro. Acionadas aos olhos do mundo a partir dos megaeventos esportivos no mercado internacional, estes elementos continuam a representar a autoimagem da harmonia multirracial e do ethos festivo do "ser brasileiro". Se as nações são construídas à custa de muitos esquecimentos e algumas lembranças, a abertura do "Pan do Brasil" rememorou aos brasileiros a mensagem ideológica, reafirmando-a no plano dos significados da sua cultura a disputa e a conciliação de algumas perspectivas de leituras sobre o Brasil.

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    Quando uma representação prevalece nas práticas sociais compartilhadas por membros de um grupo estruturado – uma nação, por exemplo – elas se tornam hegemônicas. Ver Arruda (1998)Arruda A. O ambiente natural e seus habitantes no imaginário brasileiro. In: Arruda, A. (Org.) Representando a alteridade. Petrópolis: Vozes, 1998..
  • 2
    "Todas as nações são comunidades imaginadas": "todas as comunidades maiores do que as aldeias primitivas (...) são imaginadas. As comunidades devem ser distinguidas não por sua falsidade/autenticidade, mas pelo estilo como são imaginadas" (Balakrishnan, 2000Balakrishnan G. A imaginação nacional. In: Balakrishnan (Org.). Um mapa da questão nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000., p. 215).
  • 3
    Benedict Anderson desenvolveu o conceito de Comunidade Imaginada. A identidade nacional não é inteiramente dependente da ideia que fazemos dela. Sendo assim, e uma vez que não seria possível conhecer todas aquelas pessoas que partilham de uma mesma identidade nacional, devemos ter uma ideia partilhada sobre aquilo que a constitui: "a diferença entre as diversas identidades nacionais reside,portanto, nas diferentes formas pelas quais elas são imaginadas" (Woodward, 2000Woodward K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: Tadeu da Silva, T. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000, p. 7–72., p. 24).
  • 4
    A derrota do Brasil na Copa de 1950 e a recente derrota de 7 a 1 para a seleção alemã na Copa do Mundo de 2014 são bons exemplos.
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  • 6
    Isso forneceria aquilo que Hall chama de articulação, isto é, "um entendimento do circuito do capital como uma articulação de momentos de realização com momentos de produção" (Hall, 2003Hall S. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik. Belo Horizonte: Editora UFMG, Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003., p. 356).
  • 7
    "O significado da mensagem tem a ver com a maneira como se pensa questões políticas" (Hall, 2003Hall S. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Org. Liv Sovik. Belo Horizonte: Editora UFMG, Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003., p.355)
  • 8
    Ano 2, n° 22, Julho de 2007.
  • 9
    Ano 2, n° 22, Julho de 2007, p. 17.
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    Alê Siqueira, diretor musical.
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    Carlota Portella é uma premiada coreógrafa carioca. Maiores informações: http://www.rio.rj.gov.br/rioarte/site/danca_subvencao.
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    http://www.globo.com, acessado em 14 de novembro de 2007.
  • 17
    14 Jul., Esportes, p. 1.
  • 18
    14 de Julho de 2007, Esportes, p. 1.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    13 Set 2011
  • Aceito
    12 Dez 2014
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