Acessibilidade / Reportar erro

O contexto de desenvolvimento motor de escolares do semiárido: contribuições do modelo processo-contexto

The context of motor development in schoolchildren of the semi-arid: contributions of the process-context model

Contexto del desarrollo motor de estudiantes de la región del semiárido: contribuciones de modelo proceso-contexto

Resumo

Este estudo, de abordagem quantitativa e qualitativa, investigou a relação bidirecional entre as habilidades motoras fundamentais (HMF) de escolares e o contexto. Usou-se o Test of Gross Motor Development 2 para avaliar as HMF e observações diretas e entrevistas para investigar o contexto. Os resultados revelam que 96,6% das crianças apresentaram atrasos nas habilidades locomotoras e 89,8% nas habilidades de controle de objetos. Análises apoiadas no modelo processo-contexto sugerem que a desarticulação do exossistema limita o desenvolvimento das HMF nos microssistemas e interfere no estilo de vida e intercâmbio social das crianças. Tudo leva a crer que o desenvolvimento das HMF dos escolares perpassa principalmente por alterações no macrossistema (legislação educacional estadual).

PALAVRAS-CHAVE
Ambiente sociocultural; Desenvolvimento infantil; Habilidades motoras; Estudantes

Abstract

This study, quantitative and qualitative in approach, investigates the bi-directional relationship between schoolchildren's fundamental motor skills (FMS) and the context. The Test Gross Motor Development 2has been used to evaluate the FMS and direct observations and interviews to investigate the context. The results reveal that 96.6% of children are behind in locomotion skills and 89.8% in object control skills. Analyses supported by the process-context model suggest that the disarray of the exosystem limits FMS development in the microsystems and interferes with the lifestyle and social exchanges of the children. All this leads to the belief that the development of FMS in schoolchildren primarily necessitates changes to the macrosystem (state legislation on education).

KEYWORDS
Social environment; Child development; Motor skills; Students

Resumen

Este estudio, de enfoque cuantitativo y cualitativo, investigó la relación bidireccional entre las habilidades motoras fundamentales (HMF) de escolares y el contexto. Se utilizaron el Test Gross Motor Development 2 para evaluar las HMF y observaciones directas y entrevistas para investigar el contexto. Los resultados revelan que el 96,6% de los niños tenía retrasos en las habilidades del aparato locomotor y el 89,8%, en la capacidad de control de los objetos. Análisis apoyados en el modelo de proceso-contexto sugieren que la desarticulación del exosistema limita el desarrollo de las HMF en microsistemas y alteran el estilo de vida y los intercambios sociales de los niños. Todo hace pensar que el desarrollo de las HMF de los escolares necesita principalmente cambios en el macrosistema (leyes estatales de educación).

PALABRAS CLAVE
Medio sociocultural; Desarrollo infantil; Destreza motora; Estudiantes

Introdução

A prevalência de atrasos motores detectada em escolares de baixo nível socioeconômico, inclusive entre aqueles assistidos por projetos sociais esportivos, tem intrigado professores e pesquisadores (Goodway et al., 2010Goodway JD, Robinson LE, Crowe H. Gender differences in fundamental motor skill development in disadvantaged preschoolers from two geographical regions. Res Q Exerc Sport 2010;81(1):7-24.). Explicações para esse problema podem ser obtidas por meio de estudos que considerem a relação entre o indivíduo e o contexto, visto que “as características da pessoa em um determinado momento da sua vida são uma função conjunta das características da pessoa e do ambiente durante o curso de vida da pessoa até aquele momento” (Bronfenbrenner, 2005Bronfenbrenner U. Making human being human: bioecological perspectives on human development. Thousand Oaks, CA: Sage Publications; 2005. p. 108).

Sob essa ótica o ambiente não se resume ao contexto imediato em que a pessoa se desenvolve (microssistema, ex: escola e/ou projetos sociais esportivos) (Bronfenbrenner, 1996Bronfenbrenner UA. Ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artmed; 1996.). Assim, o desenvolvimento da motricidade dá-se na rede social formada entre os microssistemas denominada de mesossistema; e é influenciada por ambientes remotos, nos quais, apesar de a criança não participar ativamente, tem seu desenvolvimento afetado pelas decisões que ocorrem neles (exossistema, ex: órgãos governamentais educacionais).

Ainda, o contexto maior (macrossistema), formado pelos microssistemas, mesossistemas e exossistemas característicos de uma cultura ou subcultura (Bronfenbrenner, 1996Bronfenbrenner UA. Ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artmed; 1996.), interfere nos processos proximais e, por conseguinte, na motricidade infantil. Pesquisas sobre a relação entre macrossistema e desenvolvimento motor são escassas (Spessato et al., 2009Spessato BC, Valentini VC, Krebs RJ, Berleze A. Educação infantil e intervenção motora: um olhar a partir da teoria bioecológica de Bronfenbrenner. Movimento 2009;15(4):147-173.; Krebs et al., 2011Krebs RJ. Teoria dos sistemas ecológicos. Santa Maria: UFSM; 1997.). Ademais, pouco se sabe sobre o desenvolvimento motor de crianças do semiárido brasileiro.

A região do semiárido abrange 1.133 municípios e cerca de 21 milhões de habitantes que vivem historicamente em condições poucas favorecedoras de desenvolvimento (Silva, 2007Silva RMA. Entre o combate à seca e a convivência com o semiárido: políticas públicas e transição paradigmática. Rev Econ NE 2007;38(3):466-485.). É razoável acreditar que crianças oriundas de macrossistemas com características semelhantes ao identificado neste estudo poderão também apresentar iguais características motoras. Assim, o objetivo deste estudo foi analisar como os processos proximais para promover o desenvolvimento motor ocorriam no mesossistema e analisar como o exo e o macrossistema influenciam esse processo.

Material e métodos

Para obter respostas para esse problema recorreu-se ao modelo processo-contexto. Esse modelo permite investigar os processos causais externos ao microssistema que afetam a motricidade infantil (Bronfenbrenner, 2005Bronfenbrenner U. Making human being human: bioecological perspectives on human development. Thousand Oaks, CA: Sage Publications; 2005., p. 75). Nesta pesquisa, de abordagem mista, a parte quantitativa fez uso do Teste of Gross Motor Development 2 (Ulrich, 2000Ulrich DA. Test of gross development. In: Examiner’s manual. 2 ed. Austin: PRO-ED; 2000.) para avaliar as habilidades motoras dos escolares. A parte qualitativa atendeu às seguintes características de pesquisa etnográfica: ênfase na exploração da natureza de um fenômeno social específico; não subordinação ao conjunto de categorias analíticas; e investigação detalhada de um caso (Flick, 2009Flick U. Introdução à pesquisa qualitativa. 3ª ed. Porto Alegre: Art-med; 2009.). Para tanto o pesquisador se inseriu ecologicamente (Cecconello e Koller, 2003Cecconello AM, Koller SH. Inserção ecológica na comunidade: uma proposta metodológica para o estudo de famílias em situação de risco. Psicol Reflex e Crit 2003;16(3):515-524.) durante cinco meses em um município do semiárido para fazer o estudo.

O contexto

O estudo foi feito em um município da Região Sertão Central do Ceará, onde, dos 80.604 habitantes, 71,3% residem na zona urbana. A administração pública, juntamente com o comércio e o setor de serviços, responde por 81,6% dos empregos formais. Destaca-se que 27,9% da população economicamente ativa apresentava rendimento domiciliar per capita mensal entre ½ e um salário mínimo. Desses, 55,1% menos de ½ salário mínimo e 20,83% apresentam renda de até R$ 70, o que os classifica como extremamente pobres (Ipece, 2011Ipece. Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará. Perfil Básico Municipal. 2011. Disponível em: http://www.ipece.ce.gov.br/publicacoes/perfil_basico/pbm-2011/Quixada.pdf. Acesso em 12 de julho de 2012.
http://www.ipece.ce.gov.br/publicacoes/p...
).

Participantes

Participaram do estudo 59 crianças de escolas públicas residentes em bairros de vulnerabilidade social; seis representantes de pais junto ao Conselho Escolar (um pai e cinco mães) e oito professores de educação física (sete homens e uma mulher) de diferentes escolas. Todos assinaram o termo de consentimento informado. Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Processo n° 19861.

Elementos do macrossistema1 1 Bronfenbrenner (1996) considerou os seguintes elementos como constituintes do macrossistema: oportunidades, riscos, estilo e opções de vida, políticas públicas de intercâmbio social e sistema de crenças.

A descrição da estrutura física foi feita por meio de fotografias dos espaços públicos destinados às práticas motoras (Flick, 2009Flick U. Introdução à pesquisa qualitativa. 3ª ed. Porto Alegre: Art-med; 2009.). Observação direta não participante e perguntas foram elaboradas com foco nos elementos do macrossistema; foram avaliadas por três professores doutores e conhecedores da teoria bioecológica, que as adequaram às sugestões. Algumas perguntas foram dirigidas para pais e professores e outras somente para cada um dos grupos.

Entrevistas

O procedimento de entrevista baseou-se na análise do discurso do sujeito coletivo (DSC) (Lefevre e Lefevre, 2005Lefevre F, Lefevre AMC. O discurso do sujeito coletivo: um novo enfoque em pesquisa qualitativa (desdobramentos). 2ª ed.Caxias do Sul: Educs; 2005. p. 13-57.). O DSC diz respeito a uma proposta metodológica de organização e tabulação de dados qualitativos de natureza verbal e faz uso das figuras metodológicas: expressões-chave (ECH) (trechos ou transcrições literais do discurso que revelam a essência do depoimento); ideias centrais (IC) (expressão linguística que descreve de maneira mais sintética o sentido de cada um dos discursos) e ancoragens (AC) (manifestação linguística explícita de uma dada teoria, ideologia ou crença que o entrevistado professa). As entrevistas foram conduzidas na comunidade com o uso de um gravador digital de voz DVR–2926.S Powerpack®, para posterior transcrição.

Análise dos dados

Os dados referentes à pesquisa qualitativa foram transcritos e organizados a partir das figuras metodológicas (ECH, IC, AC) e formaram os DSC. Os dados quantitativos foram analisados por meio de estatística descritiva (média, desvios padrões e distribuição de frequência) e estatística inferencial (teste t de Student). O modelo processo-contexto foi usado na interpretação dos dados.

Resultados

O foco deste estudo não foi discutir os resultados do desenvolvimento motor das crianças, mas sim o que conduz a tal processo e suas possíveis consequências. Entretanto, é preciso salientar que dos 59 escolares avaliados, 96,6% e 89,8% apresentaram desempenho inferior ao percentil 5 (Ulrich, 2000Ulrich DA. Test of gross development. In: Examiner’s manual. 2 ed. Austin: PRO-ED; 2000.) para habilidades locomotoras e de controle de objetos, respectivamente.

Estrutura de oportunidades para práticas motoras2 2 Baseado em Tokuyochi et al. (2008) e Gaspari et al. (2006) considerou-se estrutura física adequada à presença de quadra coberta.

Na figura 1 os triângulos representam as escolas que ofertavam o Ensino Fundamental I (EFI); os círculos vazios, presença de estrutura física mínima; os círculos preenchidos, presença de estrutura física adequada e os pentágonos, as unidades sociais de apoio. O registro isolado de triângulos denuncia a prevalência de estrutura física inexistente para práticas motoras nas escolas. A localização dos pentágonos revela uma disparidade na distribuição das unidades sociais de apoio.

Figura 1
Mapa dos espaços físicos para práticas motoras.

Como destacado na figura 2, algumas unidades sociais de apoio, embora sucateadas, apresentavam capacidade de uso. Entretanto, registrou-se o funcionamento de apenas dois projetos sociais que faziam uso de práticas motoras na sua proposta pedagógica. É digno de nota que em ambos os projetos era rara a presença de crianças entre sete e 10 anos, bem como de pedagogos e professores de educação física.

Figura 2
Quadra esportiva em um polo de lazer em estado de má conservação.

Riscos

Ao perguntar aos pais sobre a sensação de segurança para deixar as crianças brincarem livremente na comunidade, registraram-se discursos divergentes. Conforme observado in loco , a violência urbana não era o principal fator impeditivo ou limitador de práticas motoras, estava concentrada apenas em dois bairros. Em ambos, a violência estava associada ao uso e tráfico de drogas. A seguir, o discurso dá o testemunho dos representantes de pais (RP) dos bairros considerados violentos.

  • DSC RP 1.1.

  • AC: o tráfico e o consumo de drogas são fatores restritivos para práticas motoras.

  • Nós sabemos que temos um alto índice de drogas aqui no bairro. Eu não saio da minha casa para brincar na praça com os meus filhos de jeito nenhum. Meu medo é dos meus filhos se acompanharem e viver no mundo das drogas. Eu vou lá no centro da cidade, mas aqui no bairro eu não vou porque eu não me sinto segura.

Oportunidades para práticas motoras

Ao indagar aos professores de educação física (EF) sobre a existência de aulas de EF no Ensino Fundamental I (EFI) registraram-se discursos divergentes, explicitaram que tal ação ficava a critério dos gestores escolares. Ainda, quando havia aulas de EF essas ocorriam apenas uma vez por semana.

  • DSC Professores 1.1.

  • IC: não existe persistência temporal nas aulas de EF.

  • Do segundo ao quinto ano eles já passam a ter aulas com professores de educação física. As crianças têm recreação. O município também cedeu 10 monitores para trabalhar com essas crianças. Foi feito um convênio com a faculdade daqui para que os alunos que se encontram no 5° e 6° semestres possam fazer estágio. No entanto, nós trabalhamos apenas uma aula por semana.

  • DSC Professores 1.2.

  • IC: a lei e a vontade política não garantem o exercício do professor de EF no EFI.

  • A educação física na Lei 9.394/96 fala da obrigatoriedade da nossa disciplina no âmbito escolar, mas infelizmente a educação física fica desnorteada em relação a esse compromisso. Aqui na cidade nós só temos aula para crianças de 3 a 10 anos nos colégios particulares.

Conteúdos e recursos materiais disponíveis

Perguntou-se aos professores sobre os conteúdos explorados nas aulas de EF no EFI e as condições de materiais oferecidos. Verificou-se um DSC que denuncia a escassez de recursos materiais. De forma mais comprometedora, o DSC revela a inexistência de uma proposta pedagógica para promover a motricidade infantil.

  • DSC dos Professores 2.1.

  • IC: os conteúdos se restringem às atividades recreativas e os recursos materiais são escassos.

  • As aulas são desenvolvidas em forma de brincadeiras, jogos recreativos. Eu pude observar que em algumas escolas a professora polivalente deixa a criança à vontade. Elas ficam só sentadas e os meninos brincando. Quanto aos materiais, praticamente não tem material pra gente trabalhar. Se quiser eu mostro, eu abro o armário.

Opções de vida

Perguntou-se aos pais sobre outras opções de vida que são ofertadas para as crianças além da escola. Essa pergunta gerou um DSC que revelou que as únicas opções de vida eram os projetos sociais. Visitas rotineiras aos projetos sociais esportivos (PSE) evidenciaram que as crianças atendidas estavam envolvidas com práticas motoras que se restringiam ao futebol para os meninos, dança para as meninas e recreação para ambos os gêneros. O DSC 2.1 representa a fala dos pais que residem em comunidades desprovidas de PSE.

  • DSC RP 2.1

  • IC: são poucas as opções de vida.

  • Saindo da escola, a criançada acaba ficando na rua porque no bairro não tem outra opção. Tem um bairro aqui que tem um polo que oferece aula de arte, de dança, de esporte, de natação. Mas era pra ter outras coisas também. Tinha que ter um projeto de atendimento às pessoas que usam drogas. Porque aqui já tem crianças de 9 e 10 anos se drogando à luz do dia.

Estilo de vida

O estudo observacional revelou que o estilo de vida das crianças estava alinhado com as oportunidades ofertadas no contexto. O DSC 3.1 dos pais ratifica o que foi observado e registrado em diário de campo.

  • DSC RP 3.1

  • IC: o tempo livre das crianças é ocupado com o trabalho infantil e com brincadeiras que permanecem na cultura local.

  • Muitos deles ficam na rua vendendo verdura, brincando ou recolhendo papéis. Os meninos brincam de bola, soltam pipa, brincam de pião, de bila.4 4 Designação, na cultura local, para bola de gude.

Intercâmbio social

Procurou-se saber como o esporte ou os jogos eram usados para promover intercâmbio social. O DSC revela que as políticas públicas para intercâmbio social não favorecem as crianças com menos habilidades motoras.

  • DSC Professores 3.1:

  • AC: o intercâmbio social se dá apenas por meio de atividades competitivas.

  • Nós tivemos aqui no ano passado alguns jogos. Mas, para faixa etária de 7 a 10 anos, nós estamos aquém do que realmente deveria acontecer. Existem as olimpíadas escolares, que são organizadas pelo governo federal; o governo estadual organiza a parte que cabe ao estado e o município deveria organizar a parte que cabe ao município.

Sistema de crenças relacionado a educação física, esporte e lazer

Solicitou-se aos representantes de pais que opinassem se concordavam ou discordavam da seguinte frase: Não deveria mais haver aulas de EF na escola. Verificou-se um DSC que foi unânime sobre a importância da EF escolar.

  • DSC RP 4.1

  • AC: a EF é importante e deve existir na escola.

  • Eu não concordo. A criança não precisa só de saber ler e escrever não, ela tem que ter o lazer dela. É o que eles gostam na escola. Também vem a parte da saúde. Eu vejo que a educação física, desde que tenha acompanhamento por uma pessoa de conhecimento, deveria, sim, continuar a existir.

Discussão

Os atrasos motores identificados estão alinhados com estudos prévios feitos com crianças que vivem em situação de risco social, inclusive aquelas assistidas por projetos sociais esportivos (PSE) (Goodway et al., 2010Goodway JD, Robinson LE, Crowe H. Gender differences in fundamental motor skill development in disadvantaged preschoolers from two geographical regions. Res Q Exerc Sport 2010;81(1):7-24.). Isso é frustrante, visto que os PSE têm recebido mais recursos do poder público do que a educação física escolar (Mendes e Azevêdo, 2010Mendes AD, Azevêdo PH. Políticas públicas de esporte e lazer & políticas públicas educacionais: promoção da educação física dentro e fora da escola ou dois pesos e duas medidas?. Rev Bras Ciênc Esporte 2010;32(1):127-142.).

A ausência ou precariedade das instalações esportivas (Tokuyochi et al., 2008Tokuyochi JH, Bigotti S, Antunes FH, Cerencio M, Dantas LEPBT, Leão Marcos H, et al. Retrato dos professores de educação física das escolas estaduais do Estado de São Paulo. Motriz 2008;14(4):418-428.), bem como a má conservação das praças públicas e parques infantis, faz parte do cenário urbano de diversas cidades brasileiras (Damasio e Silva, 2008Damasio MS, Silva MFP. O ensino da educação física e o espaço físico em questão. Pensar a Prática 2008;2(11):197-207.). Isso também é preocupante, visto que as estruturas físicas ofertadas pelo macrossistema têm a capacidade de influenciar as preferências pelas atividades a serem desenvolvidas pelas crianças e repercutem no desenvolvimento motor delas (Krebs et al., 2011Krebs RJ, Carniel JD, Machado Z. Contexto de desenvolvimento e a percepção espacial de crianças. Movimento 2011;17(1):195-212.).

Sobre os riscos, estudos evidenciam a interiorização da violência no país, a qual está associada principalmente ao uso e tráfico de drogas (Souza e Lima, 2011Souza ER, Lima MLC. Panorama da violência no Brasil e suas capitais. Ciênc Saúde Coletiva 2006;11(suppl.):1211-1222.). Destaque-se que foi essa também a principal manifestação de violência observada no estudo. Hecktheuer (2012)Hecktheuer LFA. Esporte e segurança em uma sociedade de projetos. Motrivivência 2012;38:98-107. adverte que os espaços públicos são os primeiros ambientes onde a criança tem a oportunidade de interagir com seus pares e adultos não integrantes do microssistema lar e que a sensação de insegurança na população afasta os escolares desses espaços sociais

O modelo processo-contexto, além de explicitar como os processos proximais para o desenvolvimento se desencadeia, permite investigar como esses processos variam em função de um contexto mais amplo (Bronfenbrenner, 2005Bronfenbrenner U. Making human being human: bioecological perspectives on human development. Thousand Oaks, CA: Sage Publications; 2005.). Verificou-se que a fragilidade dos processos proximais desencadeados na escola estava associada às decisões tomadas no exossistema e/ou macrossistema. O DSC dos professores 1.2 dá suporte ao entendimento que a Secretaria Municipal de Educação se apoia no macrossistema (Legislação) para não ofertar aulas de educação física (EF) no Ensino Fundamental I (EFI).

Enquanto Spessato et al. (2009)Spessato BC, Valentini VC, Krebs RJ, Berleze A. Educação infantil e intervenção motora: um olhar a partir da teoria bioecológica de Bronfenbrenner. Movimento 2009;15(4):147-173. constataram que as creches não atendiam aos dispositivos da lei para promover o desenvolvimento motor das crianças, no presente estudo observou-se que está na Lei 9.394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), o principal empecilho para desenvolver a motricidade infantil. Apesar de o § 3° do art. 26 da LDB afirmar que “a educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente curricular obrigatório da educação básica” (Brasil, 2010Brasil. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil03/Leis/L9394.htm>. Acesso em: 8 mar. 2013.
http://www.planalto.gov.br/ccivil03/Leis...
, p. 23), a Lei não deixa claro a partir de qual ciclo de ensino a disciplina deva ser ministrada.

Amparada nas “brechas” da LDB, a Resolução do Conselho de Educação do Ceará 412/2006 (Ceará, 2006Ceará. Conselho de Educação do Ceará. Resolução 412/2006. Disponível em http://www.cee.ce.gov.br/phocadownload/resolucoes/RES-0412-2006.pdf. Acesso em 12 de julho de 2012.
http://www.cee.ce.gov.br/phocadownload/r...
), em seu art. 6° § 1°, determina que as aulas de EF são dever da professora polivalente e, em seu art. 3°, que o tratamento a ser dado à EF deverá estar explicitado na proposta pedagógica da escola. Quando tal obrigatoriedade estabelecida por lei está facultada à proposta pedagógica da escola, verifica-se que não necessariamente alunos do EFI venham ter aulas de EF. Ademais, estudo prévio sugere uma resistência das professoras polivalentes para ministrarem as aulas de EF (Ferraz e Macedo, 2001Ferraz OL, Macedo L. Educação física na educação infantil do município de São Paulo: diagnóstico e representação curricular em professores. Rev Paul Educ Fís 2001;15(1):63-82.). Nesse caso, a intervenção do exossistema (Secretaria de Educação do Estado) faz-se necessária para garantir os direitos das crianças às aulas de EF, a exemplo do que ocorre no Estado de São Paulo5 5 No Estado de São Paulo a lei estabelece a obrigatoriedade das aulas de educação física em todas as séries, duas vezes por semana, devem ser ministradas por professores de educação física, assistidos por um professor polivalente. (Silva e Venâncio, 2008Silva EVM, Venâncio L. Aspectos legais da educação física e integração à proposta pedagógica da escola. In: Darido SC, Rangel ICA, editors. Educação física na escola: implicações para a prática pedagógica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2008. p. 50-63.).

Constatou-se que quando as crianças tinham aulas de EF, essas ocorriam dentro de um período de tempo que não possibilitava incitar os processos proximais. É pouco provável que uma criança venha a desenvolver sua motricidade com apenas uma aula por semana (Riethmuller et al., 2009Riethmuller AM, Jones RA, Okely AD. Efficacy of interventions to improve motor development in young children: a systematic review. Pediatrics 2009;124(4):782-792.). Para gerar desenvolvimento, a atividade precisa ser significativa e ter persistência temporal (Bronfenbrenner, 2005Bronfenbrenner U. Making human being human: bioecological perspectives on human development. Thousand Oaks, CA: Sage Publications; 2005.).

O DSC 2.1 dos professores destaca que quando as aulas de EF atendiam à Resolução CE 412/2006, eram ministradas na forma de recreação. Pesquisas sugerem que a recreação se mostra pouco efetiva para desenvolver a motricidade infantil (Palma et al., 2009Palma MS, Pereira B, Valentini NC. Jogo com orientação: uma proposta metodológica para a educação física pré-escolar. R. da Educação Física/UEM 2009;20(4):529-541.). Ademais, a verticalização de conteúdos que respeite os níveis de desenvolvimento motor é crucial nesse processo (Krebs, 1997Krebs RJ. Teoria dos sistemas ecológicos. Santa Maria: UFSM; 1997.).

O estudo observacional evidenciou que, fora o futebol, as práticas motoras exercidas nos PSE e na comunidade requeriam poucas habilidades motoras, locomotoras e manipulativas. Isso é preocupante, visto que a proficiência motora na infância, principalmente em habilidades de controle de objetos, é aceita como um preditor no engajamento em atividades esportivas na adolescência (Barnett et al., 2009Barnett LM, Van Beurden E, Brooks LO, Beard JR. Childhood motor skill proficiency as a predictor of adolescent physical activity. J Adolesc Health 2009;44(3):252-259.).

O intercâmbio social por meio de práticas motoras era privilégio de crianças dotadas de melhores habilidades motoras. Crianças habilidosas apresentam esse recurso como um facilitador da interação, pois têm mais oportunidades para participar das atividades (Miyabayashi e Pimentel, 2011Miyabayashi LA, Pimentel GGA. Interações sociais e proficiência motora em escoares do ensino fundamental. Rev Bras Educ Fís Esporte 2011;25(4):649-663.). Além do que, o recurso pessoal de proficiência motora afeta a demanda das crianças e interfere na forma como elas são aceitas por seus pares (Bronfenbrenner, 2005Bronfenbrenner U. Making human being human: bioecological perspectives on human development. Thousand Oaks, CA: Sage Publications; 2005.). Essa visão sistêmica permite evidenciar que o contexto interfere na motricidade da criança, assim como esse recurso pessoal interfere na forma como a criança vivencia seus microssistemas.

Apesar de o DSC 4.1 dos representantes de pais sugerir que o sistema de crenças relacionado à EF ainda não havia sido afetado negativamente, o estudo observacional identificou pouco interesse dos pais pelo desenvolvimento da motricidade de seus filhos. Sobre o assunto Freitas et al. (2008)Freitas LBL, Shelton TL, Tudge JRH. Conceptions of US and Brazilian early childhood care and education: a historical and comparative analysis. Int J Behav Dev 2008;33(2):161-170. esclarecem que os processos proximais são influenciados pelo valor significativo que o tipo de habilidade representa para a sociedade, pois depende claramente de suas crenças e metas.

Considerações finais

Sob uma perspectiva ecológica, o desenvolvimento motor é considerado multifatorial, é influenciado por características do indivíduo, do ambiente e da tarefa. O modelo processo-contexto revela que o próprio ambiente é multifatorial. Assim, os atrasos motores identificados nos escolares do semiárido ocorrem como uma consequência de uma interconexão de sistemas, na qual os processos proximais que não são desencadeados no microssistema são afetados pela omissão do exossistema e do macrossistema.

Isso é preocupante, visto que a baixa proficiência motora afeta as disposições gerativas da criança, as expectativas de seus pares e a forma como o contexto é experenciado por ela. No presente estudo identificou-se que o macrossistema representado pela LDB 9.394/96 e pela Resolução CE 412/2006 se mostrou como o principal responsável pela inibição dos processos proximais e, consequentemente, pelos atrasos motores.

Infere-se que parte da solução para o problema em curto prazo passa por uma melhor comunicação interambiental entre as secretarias do município (Educação, Esporte, Ação Social), de modo que se viabilize uma exploração mais profícua dos recursos existentes. Uma revisão na proposta pedagógica adotada nas escolas e nos projetos sociais esportivos também parece ser crucial. Em longo prazo é imperativo que ocorra uma mudança na legislação educacional estadual, visto que não necessariamente uma legislação federal garante os direitos de desenvolvimento da criança.

Por fim, sustenta-se a hipótese de que contextos com características similares às que foram identificadas neste estudo apresentarão grande probabilidade de ter crianças com atrasos motores. A feitura de estudos em outras culturas é fundamental para ratificar ou refutar esse argumento. Contudo, é preciso entrevistar também as professoras polivalentes, visto que esse foi um dos principais fatores limitadores do presente estudo.

  • Financiamento
    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) (modalidade bolsa de doutorado) e Ministério da Educação/Sesu, Edital Proext n° 4/2011.
  • 1
    Bronfenbrenner (1996)Bronfenbrenner UA. Ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artmed; 1996. considerou os seguintes elementos como constituintes do macrossistema: oportunidades, riscos, estilo e opções de vida, políticas públicas de intercâmbio social e sistema de crenças.
  • 2
    Baseado em Tokuyochi et al. (2008)Tokuyochi JH, Bigotti S, Antunes FH, Cerencio M, Dantas LEPBT, Leão Marcos H, et al. Retrato dos professores de educação física das escolas estaduais do Estado de São Paulo. Motriz 2008;14(4):418-428. e Gaspari et al. (2006)Gaspari TC, Souza Junior O, Maciel V, Impolcefto F, Venancio L, Rosário LF, et al. A realidade dos professores de educação física na escola: suas dificuldades e sugestões. R Min Educ Fís 2006;14(1):109-137. considerou-se estrutura física adequada à presença de quadra coberta.
  • 3
    Presença de infraestrutura física para desenvolver projetos sociais esportivos.
  • 4
    Designação, na cultura local, para bola de gude.
  • 5
    No Estado de São Paulo a lei estabelece a obrigatoriedade das aulas de educação física em todas as séries, duas vezes por semana, devem ser ministradas por professores de educação física, assistidos por um professor polivalente.

Agradecimentos

In memoriam ao Prof. Dr. Ruy Jornada Krebs, pelas relevantes contribuições prestadas nas discussões sobre os modelos de pesquisa em desenvolvimento humano durante a elaboração do projeto de pesquisa que deu origem a este artigo.

Referências

  • Barnett LM, Van Beurden E, Brooks LO, Beard JR. Childhood motor skill proficiency as a predictor of adolescent physical activity. J Adolesc Health 2009;44(3):252-259.
  • Brasil. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil03/Leis/L9394.htm>. Acesso em: 8 mar. 2013.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil03/Leis/L9394.htm
  • Bronfenbrenner UA. Ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artmed; 1996.
  • Bronfenbrenner U. Making human being human: bioecological perspectives on human development. Thousand Oaks, CA: Sage Publications; 2005.
  • Ceará. Conselho de Educação do Ceará. Resolução 412/2006. Disponível em http://www.cee.ce.gov.br/phocadownload/resolucoes/RES-0412-2006.pdf Acesso em 12 de julho de 2012.
    » http://www.cee.ce.gov.br/phocadownload/resolucoes/RES-0412-2006.pdf
  • Cecconello AM, Koller SH. Inserção ecológica na comunidade: uma proposta metodológica para o estudo de famílias em situação de risco. Psicol Reflex e Crit 2003;16(3):515-524.
  • Damasio MS, Silva MFP. O ensino da educação física e o espaço físico em questão. Pensar a Prática 2008;2(11):197-207.
  • Ferraz OL, Macedo L. Educação física na educação infantil do município de São Paulo: diagnóstico e representação curricular em professores. Rev Paul Educ Fís 2001;15(1):63-82.
  • Flick U. Introdução à pesquisa qualitativa. 3ª ed. Porto Alegre: Art-med; 2009.
  • Freitas LBL, Shelton TL, Tudge JRH. Conceptions of US and Brazilian early childhood care and education: a historical and comparative analysis. Int J Behav Dev 2008;33(2):161-170.
  • Gaspari TC, Souza Junior O, Maciel V, Impolcefto F, Venancio L, Rosário LF, et al. A realidade dos professores de educação física na escola: suas dificuldades e sugestões. R Min Educ Fís 2006;14(1):109-137.
  • Goodway JD, Robinson LE, Crowe H. Gender differences in fundamental motor skill development in disadvantaged preschoolers from two geographical regions. Res Q Exerc Sport 2010;81(1):7-24.
  • Hecktheuer LFA. Esporte e segurança em uma sociedade de projetos. Motrivivência 2012;38:98-107.
  • Ipece. Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará. Perfil Básico Municipal. 2011. Disponível em: http://www.ipece.ce.gov.br/publicacoes/perfil_basico/pbm-2011/Quixada.pdf Acesso em 12 de julho de 2012.
    » http://www.ipece.ce.gov.br/publicacoes/perfil_basico/pbm-2011/Quixada.pdf
  • Krebs RJ. Teoria dos sistemas ecológicos. Santa Maria: UFSM; 1997.
  • Krebs RJ, Carniel JD, Machado Z. Contexto de desenvolvimento e a percepção espacial de crianças. Movimento 2011;17(1):195-212.
  • Lefevre F, Lefevre AMC. O discurso do sujeito coletivo: um novo enfoque em pesquisa qualitativa (desdobramentos). 2ª ed.Caxias do Sul: Educs; 2005. p. 13-57.
  • Mendes AD, Azevêdo PH. Políticas públicas de esporte e lazer & políticas públicas educacionais: promoção da educação física dentro e fora da escola ou dois pesos e duas medidas?. Rev Bras Ciênc Esporte 2010;32(1):127-142.
  • Miyabayashi LA, Pimentel GGA. Interações sociais e proficiência motora em escoares do ensino fundamental. Rev Bras Educ Fís Esporte 2011;25(4):649-663.
  • Palma MS, Pereira B, Valentini NC. Jogo com orientação: uma proposta metodológica para a educação física pré-escolar. R. da Educação Física/UEM 2009;20(4):529-541.
  • Riethmuller AM, Jones RA, Okely AD. Efficacy of interventions to improve motor development in young children: a systematic review. Pediatrics 2009;124(4):782-792.
  • Silva RMA. Entre o combate à seca e a convivência com o semiárido: políticas públicas e transição paradigmática. Rev Econ NE 2007;38(3):466-485.
  • Silva EVM, Venâncio L. Aspectos legais da educação física e integração à proposta pedagógica da escola. In: Darido SC, Rangel ICA, editors. Educação física na escola: implicações para a prática pedagógica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2008. p. 50-63.
  • Souza ER, Lima MLC. Panorama da violência no Brasil e suas capitais. Ciênc Saúde Coletiva 2006;11(suppl.):1211-1222.
  • Spessato BC, Valentini VC, Krebs RJ, Berleze A. Educação infantil e intervenção motora: um olhar a partir da teoria bioecológica de Bronfenbrenner. Movimento 2009;15(4):147-173.
  • Tokuyochi JH, Bigotti S, Antunes FH, Cerencio M, Dantas LEPBT, Leão Marcos H, et al. Retrato dos professores de educação física das escolas estaduais do Estado de São Paulo. Motriz 2008;14(4):418-428.
  • Ulrich DA. Test of gross development. In: Examiner’s manual. 2 ed. Austin: PRO-ED; 2000.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    10 Mar 2013
  • Aceito
    28 Jan 2014
Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte Universidade de Brasilia - Campus Universitário Darcy Ribeiro, Faculdade de Educação Física, Asa Norte - CEP 70910-970 - Brasilia, DF - Brasil, Telefone: +55 (61) 3107-2542 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: rbceonline@gmail.com