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Reflexões nada aleatórias: aforismos sobre a educação física, esporte e lazer

Non-random reflections: aphorisms about physical education, sport and leisure

Reflexiones nada al azar: aforismos sobre la educación física, el deporte y el ocio

CASTELLANI, FIHO, L.. Educação física, esporte e lazer: reflexões nada aleatórias.Campinas, SP: Autores Associados, 2013

O título da obra já nos atenta para uma interessante provocação epistemológica, as reflexões propostas pelo autor, com um caráter teleológico da sua intervenção na realidade. Não são aleatórias, mas sim, conforme se lê na apresentação da obra, “dotadas de sentidos e significados comprometidos com a transformação da realidade (p. 1), o que de antemão já nos situa para sua base filosófica, pois “toda leitura da realidade tem uma base teórica que a sustenta” (p. 37). Dessa forma, explicita o seu posicionamento, no movimento de teorizar a prática, expressa sua “vontade política de modificar” (p. 1).

O autor da obra é e foi professor de importantes universidades brasileiras, como Universidade de Brasília (UnB), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Universidade Federal do Maranhão (UFMA), foi presidente por duas gestões do CBCE1 1 Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte, entidade que congrega pesquisadores ligados à área de educação física/ciências do esporte. (1999/2001; 2001/03) e secretário nacional de Desenvolvimento do Esporte e do Lazer do Ministério do Esporte (2003/06), na primeira gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Educação física, esporte e lazer: reflexões nada aleatórias tem o objetivo de apresentar ao leitor discussões a respeito da educação física no Brasil, formação profissional, esporte, lazer, esporte escolar e políticas públicas. Seu compilado é uma espécie de síntese de alguns momentos vividos pelo autor na sua trajetória acadêmica e política. Os seus capitais cultural, acadêmico, político e social2 2 Entendidos aqui na perspectiva bourdiesiana. , construídos especialmente na academia, permitem-lhe trazer à tona discussões que, deveras, são repletas de polêmicas no campo3 3 Idem. da educação física.

O livro é organizado em três capítulos e subdividido em tópicos. O primeiro contém algumas reflexões sobre lazer, cultura e educação pela ótica da educação física, aborda também os conceitos de esporte e lazer. Para o autor, “constituem-se em conceitos distintos, nos quais o último não pode ser reduzido às fronteiras do primeiro” (p. 13).

Nesse viés, o autor aponta a relação de submissão do lazer ao esporte e reconstrói os passos que constituem essa relação num formato cronológico, desde a gênese da presença do Estado brasileiro nas questões relacionadas ao esporte no Estado Novo até a chegada do PT ao governo. Acerca dos conceitos de esporte, levantados por Tubino (1988)Tubino, MJG (Org.). Repensando o esporte brasileiro. São Paulo: IBRASA, 1988. e que posteriormente influenciaram, sobremaneira, o texto constitucional referente às manifestações esportivas (Canan et al., 2017Canan F, Starepravo FA, Souza J. Posições e tomadas de posições na constitucionalização do direito ao esporte no Brasil. Movimento; 2017;23(3):1105-18.), observa-se o endosso de Castellani Filho em prol de políticas específicas ao esporte de participação (esporte recreativo ou esporte de lazer), para além da ótica do alto rendimento.

Ao analisar o esporte, o lazer e sua interlocução com a escola, o autor aponta os tensionamentos presentes nessa relação. Para ele, o esporte só não será “uma visita” na escola quando deixar de identificá-la como local de fazer valer os propósitos do sistema esportivo e a escola tratará o esporte como parte do seu processo de escolarização, quando identificar nele “um atributo de emancipação humana” (p. 26). Tais reflexões se assemelham com a afirmação de Bracht e Almeida (2013)Bracht V, Almeida FQ. Esporte, escola e a tensão que os megaeventos esportivos trazem para a educação física escolar. Em Aberto. 2013;26(89):131-43., de que o esporte, ao ser incorporado à educação física escolar, precisa ser submetido aos códigos da instituição escolar. O rompimento da relação paradigmática na educação física com o tratamento apenas biológico de um corpo saudável, produtivo e eficiente também é destacado pelo autor. Dessa forma, tirou-se o pé do campo das ciências biológicas e colocou-se no campo das ciências humanas e sociais, aproximou-se da sociologia, antropologia, história e filosofia.

O segundo capítulo talvez seja o clímax do livro, pois traz justamente a visão do autor a partir da sua experiência no campo político ao ter assumido a secretaria no (recém-criado) Ministério do Esporte em 2003. Observa-se que há uma complexidade em discutir o tema políticas públicas de esporte, pois todos se sentem à vontade para falar de esporte e dar sua opinião. Isso faz com que a discussão gire em torno do senso comum, o problema está quando as autoridades levam a cabo esse senso comum, pois são elas as responsáveis por estabelecer políticas para esse campo. Um componente importante abordado pelo autor é o esporte como um direito social e a relação do Estado com essa premissa, fator que o faz figurar como um importante agente na coalizão pró-esporte de participação (Bueno, 2008Bueno, L. Políticas públicas do esporte no Brasil: razões para o predomínio do alto rendimento. São Paulo. Tese (Doutorado em Administração Pública e Governo) Escola de Administração de Empresas da FGV; 2008.).

Na visão do autor, nas linhas e entrelinhas do texto, as expectativas advindas com o governo Lula ao passar do tempo demonstraram uma realidade não desejada, a continuação do esporte como mercadoria a ser comprada (por poucos). Isso é visível ao observar o caminho tomado pelas Conferências Nacionais de Esporte (CNEs), o que poderia ter sido uma ação ao encontro de uma “perspectiva emancipatória” (p. 59).

As iniciativas como Programa Segundo Tempo (PST) e Programa Esporte e Lazer da Cidade (PELC) têm poucos recursos, principalmente o segundo, no qual o autor esteve intimamente envolvido. Assim, ele caracteriza o esporte hoje como um modelo híbrido, Estado como principal interventor, mas não no “sentido público dessa prática social”, mas sim como financiador do alto rendimento, “nunca houve antes, neste país, tanto dinheiro público bancando o esporte de alto rendimento” (p. 58).

Nesse sentido, o autor tece inúmeras críticas ao campo esportivo e suas alianças, reconhece seu caráter conservador, retrógrado e reacionário, o tem até como “moeda de troca e de barganha política” (p. 66). Há também uma crítica à forma com que os megaeventos esportivos foram conduzidos no país, com exorbitante desprendimento de dinheiro público, bem como inúmeros outros problemas: falta de transparência; casos de desvio de dinheiro público; remoções e despejos forçados de milhares de pessoas nas cidades-sede; elitização, poucos têm realmente acesso, entre outros.

O terceiro capítulo é destinado a homenagear duas pessoas que o influenciaram substancialmente seu processo de formação (Paulo Freire e Manuel Sérgio). Embora o autor busque algumas conexões com o quadro da educação física brasileira, no qual cita a participação de Manuel Sérgio no III Conbrace4 4 Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte. , recebeu até o título de sócio benemérito do CBCE, “único ofertado até hoje” (p. 105), esse capítulo distancia-se parcialmente das reflexões apontadas nos anteriores.

A obra é um compilado de trechos advindos de intervenções do autor em congressos, seminários, colunas e outras coletâneas. Sua linguagem denota um caráter de relato de experiência. Dessa maneira, de um lado isso faz com que o seu entendimento seja facilitado pela exposição didática dos elementos abordados e de outro demonstra algumas limitações da obra por não seguir determinados métodos científicos nem aprofundamento teórico e também pela compreensão que essas são experiências advindas do autor da obra, a sua apropriação e descrição da realidade, considera que possa haver outras facetas e outras explicações para os mesmos fenômenos.

Por fim, destaca-se que o livro Educação física, esporte e lazer: reflexões nada aleatórias apresenta uma grande contribuição para o pensar educação física e sobretudo a atuação de professores e a intervenção no campo das políticas públicas de esporte e lazer, pois traz elementos observados por um agente que teve um olhar privilegiado no campo. Portanto, é nesse ponto que está a maior valia da obra, a sua leitura é imprescindível para quem objetive compreender as disputas e os embates no lócus que permeia o campo esportivo, acadêmico e político, busque compreender temáticas relativas a educação física, esporte, lazer e também às políticas públicas.

  • 1
    Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte, entidade que congrega pesquisadores ligados à área de educação física/ciências do esporte.
  • 2
    Entendidos aqui na perspectiva bourdiesiana.
  • 3
    Idem.
  • 4
    Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte.

Referências

  • Bracht V, Almeida FQ. Esporte, escola e a tensão que os megaeventos esportivos trazem para a educação física escolar. Em Aberto. 2013;26(89):131-43.
  • Bueno, L. Políticas públicas do esporte no Brasil: razões para o predomínio do alto rendimento. São Paulo. Tese (Doutorado em Administração Pública e Governo) Escola de Administração de Empresas da FGV; 2008.
  • Canan F, Starepravo FA, Souza J. Posições e tomadas de posições na constitucionalização do direito ao esporte no Brasil. Movimento; 2017;23(3):1105-18.
  • Tubino, MJG (Org.). Repensando o esporte brasileiro. São Paulo: IBRASA, 1988.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2018

Histórico

  • Publicado
    14 Jun 2018
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