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Análise dos discursos e imagens presentes no capítulo sobre Educação Física Escolar no Guia de Atividade Física para a População Brasileira

Analysis of the discourses and images present in the chapter on school physical education in the Guide to Physical Activity for the Brazilian Population

Análisis de los discursos e imágenes presentes en el capítulo sobre educación física escolar de la Guía de Actividad Física para la Población Brasileña

RESUMO

O objetivo deste trabalho foi analisar os discursos e imagens sobre a Educação Física Escolar presentes no Guia de Atividade Física para a População Brasileira. Realizou-se uma pesquisa documental, de abordagem qualitativa, a partir da análise do discurso e do conteúdo visual envolvendo o capítulo. A Educação Física Escolar, nas recomendações do guia, assume uma visão funcionalista e utilitarista do movimento humano. Entende-se o avanço promovido pelo guia, sobretudo ao incentivar e valorizar a Educação Física Escolar no Brasil. Contudo, é fundamental transformar o discurso vigente, de caráter predominantemente biomédico, em uma abordagem que valorize a cultura corporal em suas múltiplas contribuições para a formação dos estudantes.

Palavras-chave:
Educação Física; Escola; Saúde; Guia de Atividade Física para a População Brasileira

ABSTRACT

The aim of this work was to analyze the discourses and images about school physical education present in the Guide of Physical Activity for the Brazilian Population. A documental research of qualitative approach was carried out, based on the Discourse Analysis and the Visual Content involving the chapter. School physical education, in the recommendations of the Guide, assumes a functionalist and utilitarian view of human movement. It is understood the progress promoted by the Guide, especially by encouraging and valuing school physical education in Brazil. However, it is essential to transform the current discourse, predominantly biomedical, into an approach that values body culture in its multiple contributions to the formation of students.

Keywords:
Physical Education; School; Health; Physical activity guideline for the Brazilian population

Resumen

El objetivo de este trabajo fue analizar los discursos e imágenes sobre la educación física escolar presentes en la Guía de Actividad Física para la Población Brasileña. Se realizó una investigación documental, de enfoque cualitativo, a partir del Análisis del Discurso y del Contenido Visual que involucra el capítulo. La educación física escolar, en las recomendaciones de la Guía, asume una visión funcionalista y utilitaria del movimiento humano. Se entienden los avances promovidos por la Guía, especialmente por el fomento y la valoración de la educación física escolar en Brasil. Sin embargo, es imprescindible transformar el discurso actual, predominantemente biomédico, en un enfoque que valore la cultura corporal en sus múltiples aportaciones a la formación de los estudiantes.

Palabras-clave:
Educación física; La escuela; Salud; Guía de actividad física para la población brasileña

INTRODUÇÃO

A Educação Física Escolar, no Brasil, está legitimada como componente curricular obrigatório pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996Brasil. Lei n. 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União; Brasília; 20 dez. 1996.). Mesmo assim, há tempos, a disciplina (chamada anteriormente de Ginástica) esteve presente nos currículos escolares, justificada, sobretudo, pelo discurso da saúde e da construção de corpos saudáveis e aptos à defesa da pátria (Medina, 1983Medina JPS. A educação física cuida do corpo... e mente. São Paulo: Papirus; 1983.; Soares et al., 1992Soares CS, Castellani L Fo, Taffarel CN, Varjal E, Escobar MO, Bracht V. Metodologia do ensino da Educação Física. São Paulo: Cortez; 1992.; Marinho, 2005Marinho V. Consenso e conflito da Educação Física brasileira. 2ª ed. Rio de Janeiro: Shape Editora; 2005.).

Com os avanços dos estudos sociopedagógicos e socioculturais, especialmente após a crise do paradigma biológico dominante, na década de 1980 ocorreram questionamentos sobre o papel da Educação Física nas escolas do Brasil. Isto em virtude da necessidade de diálogos da disciplina com as Ciências Humanas e Sociais, bem como a superação da visão reduzida da disciplina enquanto meio para a seleção de talentos esportivos, a melhoria da saúde da população ou de cunho recreativo para os estudantes (Soares et al., 1992Soares CS, Castellani L Fo, Taffarel CN, Varjal E, Escobar MO, Bracht V. Metodologia do ensino da Educação Física. São Paulo: Cortez; 1992.; Marinho, 2005Marinho V. Consenso e conflito da Educação Física brasileira. 2ª ed. Rio de Janeiro: Shape Editora; 2005.).

Marinho (2005, pMarinho V. Consenso e conflito da Educação Física brasileira. 2ª ed. Rio de Janeiro: Shape Editora; 2005.. 25), refletindo sobre o período médico-higienista da Educação Física brasileira, aborda que o adestramento físico e a disciplina do corpo faziam parte de uma cultura de controle “em nome da saúde, da ordem e do progresso”. Esse processo perpassou as atividades físicas nas escolas, até mesmo em momentos considerados pedagógicos. Para o autor, “não se pode negar o poder de sedução do discurso médico-militar ao colocar como pano de fundo a questão da saúde” (Marinho (2005Marinho V. Consenso e conflito da Educação Física brasileira. 2ª ed. Rio de Janeiro: Shape Editora; 2005., pp. 26-27).

Soares et al. (1992)Soares CS, Castellani L Fo, Taffarel CN, Varjal E, Escobar MO, Bracht V. Metodologia do ensino da Educação Física. São Paulo: Cortez; 1992., há 30 anos, levantaram uma discussão sobre a Educação Física no currículo escolar, se essa teria como finalidade o desenvolvimento da aptidão física ou uma reflexão mais contextualizada sobre a cultura corporal, sobre a cultura corporal, orientada, principalmente, de acordo com as necessidades da classe trabalhadora. Medina (1983)Medina JPS. A educação física cuida do corpo... e mente. São Paulo: Papirus; 1983. afirmou que era urgente a disciplina entrar em crise, repensando, assim, os seus valores, bem como os sentidos atribuídos ao corpo e suas práticas.

Em uma perspectiva coletiva – e necessária –, a compreensão da saúde enquanto resultado das condições de vida, do meio ambiente, da renda, dos sistemas de produção, do acesso aos serviços de saneamento, alimentação, entre outras questões inerentes à determinação social, deve ser considerada no processo de ensino-aprendizagem (Brasil, 1986Brasil. Ministério da Saúde. VIII Conferência Nacional de Saúde. Relatório final. Brasília: Ministério da Saúde; 1986.; Falkenberg et al., 2014Falkenberg MB, Mendes TLP, Moraes EP, Souza EM. Educação em saúde e educação na saúde: conceitos e implicações para a saúde coletiva. Cien Saude Colet. 2014;19(3):847-52. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232014193.01572013. PMid:24714898.
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). Esforços na área marcam, por exemplo, a partir da criação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, a alocação do componente curricular na área de linguagens, representando certo avanço, com princípios teóricos, epistemológicos e pedagógicos, no distanciamento de uma perspectiva biomédica de saúde. Assim, teve-se o entendimento da gestualidade como forma de comunicação (Aguiar e Neira, 2016Aguiar CA, Neira MG. O ensino da Educação Física: dos métodos ginásticos à perspectiva cultural. In: Neira MG, editor. Educação física cultural. São Paulo: Editora Blucher; 2016. p. 69-86.).

Por outro lado, o que se observa, ainda hoje, são discursos que envolvem a saúde – seja nas escolas, ou não –, determinando-a a índices e fatores biológicos e, nesse sentido, desconsideram as dimensões políticas, econômicas, culturais, ambientais e sociais que se associam a ela (Malacarne et al., 2021aMalacarne JAD, Alexandria DB, Carvalho PHM, Palma A. A abordagem sobre “saúde” nos cursos de Educação Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Arq Movi. 2021a;17(1):202-19.; Carvalho et al., 2021Carvalho PHM, Alexandria DB, Rocha MB, Palma A, Malacarne JAD. A saúde coletiva nos cursos de Educação Física das universidades públicas do Rio de Janeiro. Rev Bras Ciênc Esporte. 2021;43:e007921. http://dx.doi.org/10.1590/rbce.43.e007921.
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). A própria formação dos professores de Educação Física ainda é insuficiente no que diz respeito às interfaces da educação física, das práticas corporais e atividades físicas e da educação em saúde (Malacarne et al., 2021aMalacarne JAD, Alexandria DB, Carvalho PHM, Palma A. A abordagem sobre “saúde” nos cursos de Educação Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Arq Movi. 2021a;17(1):202-19.; Carvalho et al., 2021Carvalho PHM, Alexandria DB, Rocha MB, Palma A, Malacarne JAD. A saúde coletiva nos cursos de Educação Física das universidades públicas do Rio de Janeiro. Rev Bras Ciênc Esporte. 2021;43:e007921. http://dx.doi.org/10.1590/rbce.43.e007921.
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). Com isso, limitam-se as possibilidades de articulação do tema com os conteúdos que formam a cultura corporal do movimento (Soares et al., 1992Soares CS, Castellani L Fo, Taffarel CN, Varjal E, Escobar MO, Bracht V. Metodologia do ensino da Educação Física. São Paulo: Cortez; 1992.; Brasil, 2019Brasil [Internet]. Pesquisa nacional de saúde do escolar: 2019. Brasília: IBGE; 2019 [citado em 2022 Jul 15]. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101852.pdf
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).

Em junho de 2021, o Ministério da Saúde do Brasil, através da Secretaria de Atenção Primária à Saúde, lançou o Guia de Atividade Física para a População Brasileira, sendo o primeiro guia nacional direcionado às atividades físicas. O documento, composto por 52 laudas, “traz as primeiras recomendações e informações do Ministério da Saúde sobre atividade física para que a população tenha uma vida ativa, promovendo a saúde e a melhoria da qualidade de vida”, sendo focado na “promoção da saúde por meio da atividade física” (Brasil, 2021Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Promoção da Saúde. [Internet]. Guia de atividade física para a população brasileira. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [citado em 2022 Jul 1]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_atividade_fisica_populacao_brasileira.pdf
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, pp. 5-6).

O guia, construído em conjunto com a Universidade Federal de Pelotas (UFPel), reuniu, além do corpo técnico do Ministério da Saúde e da Organização Panamericana de Saúde, 70 pesquisadores da área da atividade física relacionada à saúde. Para a construção do guia, elaborou-se a revisão criteriosa de literatura científica, consulta a setores e instituições especializadas no tema, além de especialistas nas áreas e consulta pública. Visando tecer um documento de qualidade e com participação ampla, os seguintes passos foram seguidos: formação de equipe de trabalho; revisões na literatura científica; oficinas de escuta com diversos atores; consolidação do texto do guia; consulta pública; elaboração do plano de comunicação; implementação e divulgação (Brasil, 2021Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Promoção da Saúde. [Internet]. Guia de atividade física para a população brasileira. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [citado em 2022 Jul 1]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_atividade_fisica_populacao_brasileira.pdf
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).

Nas páginas iniciais do guia, além da apresentação das atividades físicas direcionadas aos diferentes ciclos de vida (crianças, adolescentes, adultos e idosos) e de algumas condições (gestantes e pessoas com deficiência), menciona-se o destaque que a Educação Física Escolar tem nesse contexto. Sendo assim, o sexto capítulo (a partir da página 34) discute as possíveis contribuições que a Educação Física de qualidade (termo adotado no guia) pode promover à saúde.

Analisar o guia, portanto, torna-se importante, uma vez que se trata do primeiro documento oficial brasileiro a recomendar atividades físicas para a população. Além disso, inclui a Educação Física Escolar como possiblidade de incentivo às crianças e adolescentes terem uma vida saudável. Com isso, evidenciar algumas incoerências presentes no documento pode, presentes no documento pode, entre outras contribuições, auxiliar no processo de aprimoramento deste, potencializando sua função de contribuir na promoção da saúde da população.

Diante disso, este trabalho teve como objetivo analisar os discursos e as imagens presentes no capítulo sobre Educação Física Escolar no Guia de Atividade Física para a População Brasileira. A proposta tem como base uma visão crítica e ampliada de saúde, presente nos estudos desenvolvidos por Knuth et al. (2007)Knuth AG, Azevedo MR, Rigo LC. A inserção de temas transversais em saúde nas aulas de Educação Física. Rev Bras Ativ Fis Saúde. 2007;12(3):73-8., Palma (2020a)Palma A. Saúde na Educação Física escolar: diálogos e possibilidades a partir do conceito ampliado de saúde. Temas Educ Fís Esc. 2020a;5(2):5-15. http://dx.doi.org/10.33025/tefe.v5i2.3025.
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, Palma (2020b)Palma A. Tensões e possibilidades nas interações entre educação física, saúde e sociedade. In: Wachs F, Lara L, Athayde P, organizadores. Ciências do esporte, educação física e produção do conhecimento em 40 anos de CBCE. 8ª ed. Natal: Edufrn; 2020b. p. 15-27. Vol. 11..

MÉTODO

Realizou-se uma pesquisa documental, de abordagem descritiva e exploratória, envolvendo o Guia de Atividade Física para a População Brasileira (Brasil, 2021Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Promoção da Saúde. [Internet]. Guia de atividade física para a população brasileira. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [citado em 2022 Jul 1]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_atividade_fisica_populacao_brasileira.pdf
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). Enfatizaram-se, nesse sentido, os aspectos qualitativos presentes no documento. De acordo com Gil (2008)Gil AC. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6ª ed. São Paulo: Atlas; 2008., documentos oficiais, como o guia, são fontes de primeira mão, que ainda não receberam tratamentos analíticos. Por isso, é interessante que recebam leituras críticas a fim de gerarem relatórios de pesquisas, tornando-os, assim, documentos de segunda mão. Sá-Silva et al. (2009)Sá-Silva JR, Almeida CD, Guindani JF. Pesquisa documental: pistas teóricas e metodológicas. RBHCS. 2009;1(1):1-15. advogam que o uso de documento em investigações pode gerar uma riqueza de dados a serem analisadas nas Ciências Sociais e Humanas, aproximando a compreensão do objeto a partir da contextualização sociocultural e histórica dele.

Delimitou-se a investigação ao sexto capítulo, que discute o papel da Educação Física Escolar na promoção da prática de atividade física (a partir da página número 34). Assim, foram analisados os tópicos que fizeram parte do capítulo: 1) por que incentivar a participação dos estudantes nas aulas de Educação Física; 2) quais são as recomendações para as aulas de Educação Física; 3) orientações para os estudantes para as aulas de Educação Física; 4) recomendações sobre as aulas de Educação Física. Também foi analisado um artigo “base”, de Silva et al. (2021)Silva KS, Bandeira AS, Ravagnani FCP, Camargo EM, Tenório MC, Oliveira VJM, et al. Educação física escolar: guia de atividade física para a população brasileira. Rev Bras Ativ Fis Saúde. 2021;26:1-18. http://dx.doi.org/10.12820/rbafs.26e0219.
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, desenvolvido pelos autores do capítulo em questão, que relataram os processos teórico-metodológicos para a elaboração das orientações dedicadas à Educação Física Escolar.

Para a análise, a pesquisa foi fundamentada na proposta de Orlandi (2005) sobreOrlandi E. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 5. ed. Campinas: Pontes; 2005. análise do discurso, na tentativa de apreender as formas de funcionamento, os princípios de organização e os modos de produção social do sentido do texto selecionado. Assim, o capítulo foi lido integralmente pelos autores do presente artigo, em duas etapas. Em um primeiro momento, a leitura buscou compreender a ideia geral do texto. Em uma segunda leitura, procurou-se realizar uma filtragem das mensagens contidas no texto. Posteriormente, as interpretações foram debatidas e, dessa forma, elaborada a análise final dos autores sobre os sentidos transmitidos, tanto das mensagens escritas quanto visuais.

Ademais, a partir da grade analítica sugerida por Serra e Santos (2003)Serra GMA, Santos EM. Saúde e mídia na construção da obesidade e do corpo perfeito. Cien Saude Colet. 2003;8(3):691-701. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232003000300004.
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, considerou: a) “o que é dito”, isto é, os sentidos e significados declarados e/ou velados nos discursos; e b) os “modos de dizer do discurso”, ou seja, o modo como a mensagem se constituiu perante o enunciado técnico-científico. Para a análise do conteúdo visual e exploração dos sentidos dali decorrentes, procurou-se adotar os pressupostos teóricos propostos por Bauer e Gaskell (2002)Bauer MW, Gaskell G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes; 2002.. Para os autores, as imagens representam registros importantes das ações temporais e reais, assim como retratam as questões sociais, históricas e políticas.

APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

O capítulo sobre a Educação Física Escolar foi elaborado por dez pesquisadores brasileiros e um representante do Ministério da Saúde. Para a produção, realizaram-se três sínteses de evidências, escutas ao público-alvo e, ainda, uma consulta pública foi conduzida para a elaboração das sugestões (Silva et al., 2021Silva KS, Bandeira AS, Ravagnani FCP, Camargo EM, Tenório MC, Oliveira VJM, et al. Educação física escolar: guia de atividade física para a população brasileira. Rev Bras Ativ Fis Saúde. 2021;26:1-18. http://dx.doi.org/10.12820/rbafs.26e0219.
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). Nortearam a construção do capítulo as seguintes perguntas: o que as sínteses de evidências relatam sobre as contribuições das aulas de Educação Física Escolar para diferentes componentes do estilo de vida ativo e saudável em estudantes?; quais as evidências de contribuições das intervenções implementadas nas aulas de Educação Física Escolar no Brasil para promoção de um estilo de vida ativo e saudável?; quais as estratégias relacionadas às aulas de Educação Física Escolar têm sido recomendadas para promoção de um estilo de vida ativo e saudável em escolares no mundo? (Silva et al., 2021, pSilva KS, Bandeira AS, Ravagnani FCP, Camargo EM, Tenório MC, Oliveira VJM, et al. Educação física escolar: guia de atividade física para a população brasileira. Rev Bras Ativ Fis Saúde. 2021;26:1-18. http://dx.doi.org/10.12820/rbafs.26e0219.
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. 6).

Reconhecem-se aspectos positivos no guia, como a valorização da Educação Física Escolar enquanto possibilidade para a educação em saúde e, portanto, na promoção da saúde da população. O documento defende a disciplina nas escolas, com frequência de pelo menos três aulas semanais, com duração de 50 minutos, uma vez que a maioria das crianças e adolescentes tem as aulas como principal meio de vivência das atividades físicas (Brasil, 2021, pBrasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Promoção da Saúde. [Internet]. Guia de atividade física para a população brasileira. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [citado em 2022 Jul 1]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_atividade_fisica_populacao_brasileira.pdf
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. 34). Ainda, enxerga-se a necessidade de os professores de Educação Física serem qualificados e valorizados para ministrarem a disciplina, desde a educação infantil. Entretanto, valorizar os professores deveria ir além de legitimar sua atuação em todas as etapas da educação básica, sendo indispensável, também, remuneração compatível e suficiente para condições de vida dignas na conjuntura do país, além da garantia de ferramentas e condições para as práticas que envolvem o ensino e aprendizagem das atividades físicas/práticas corporais (Pinto, 2009Pinto JMR. Remuneração adequada do professor: desafio à educação brasileira. Retratos Esc. 2009;3(4):51-67.; Proni, 2010Proni PR. Universidade, profissão educação física e o mercado de trabalho. Motriz. 2010;16(3):788-98. http://dx.doi.org/10.5016/1980-6574.2010v16n3p788.
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).

Por outro lado, alguns pontos merecem atenção, especialmente pela concepção de saúde apesentada e dos próprios objetivos designados à Educação Física Escolar no guia. A ideia de saúde apresentada no documento, em linhas gerais, tende a ser associada aos marcadores biológicos corporais, bem como a possibilidade de melhoria da funcionalidade do corpo. No texto, é mencionado:

A educação física pode contribuir de forma significativa para a saúde e para o desenvolvimento pessoal dos estudantes. Participar das aulas de Educação Física vai além da prática de atividade física e do desenvolvimento de habilidades motoras, como correr e saltar, contribuindo para uma vida ativa e saudável (Brasil, 2021, pBrasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Promoção da Saúde. [Internet]. Guia de atividade física para a população brasileira. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [citado em 2022 Jul 1]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_atividade_fisica_populacao_brasileira.pdf
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. 34).

Em sequência se lê: “As aulas de Educação Física contribuem para a saúde física, motora, psicológica e social dos estudantes” (Brasil, 2021, pBrasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Promoção da Saúde. [Internet]. Guia de atividade física para a população brasileira. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [citado em 2022 Jul 1]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_atividade_fisica_populacao_brasileira.pdf
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. 34). Interessante destacar a presença, primeiro, do caráter de completude como finalidade da saúde similar ao conceito de saúde proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS), amplamente criticado; segundo, é interessante destacar a perspectiva funcionalista presente no guia e que em nada surpreende, uma vez que hegemonicamente a literatura assim tem colocado tal questão (Palma, 2020aPalma A. Saúde na Educação Física escolar: diálogos e possibilidades a partir do conceito ampliado de saúde. Temas Educ Fís Esc. 2020a;5(2):5-15. http://dx.doi.org/10.33025/tefe.v5i2.3025.
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; Palma, 2020bPalma A. Tensões e possibilidades nas interações entre educação física, saúde e sociedade. In: Wachs F, Lara L, Athayde P, organizadores. Ciências do esporte, educação física e produção do conhecimento em 40 anos de CBCE. 8ª ed. Natal: Edufrn; 2020b. p. 15-27. Vol. 11.).

Essa interpretação pode ser reforçada na leitura dos principais benefícios associados à participação nas aulas de Educação Física Escolar, sendo estes:

1) aumento da prática de atividade física durante as aulas e ao longo do dia; 2) melhora do funcionamento do coração e da respiração; 3) melhora da flexibilidade e das habilidades para se movimentar ao correr, andar ou saltar; 4) auxilia no controle do peso; 5) melhora da motivação e bem-estar mental, com redução da ansiedade e da depressão; 6) aumento da cooperação entre os colegas durante as atividades nas aulas; 7) aumento da atitude e da satisfação para fazer a aula de Educação Física; 8) melhora das habilidades de socialização e das relações de amizade; 9) melhora do desempenho escolar; 10) melhora do foco e da ação do estudante na realização de uma tarefa; 11) melhora da forma como o estudante se organiza para fazer tarefas diversas e aprender novas habilidades (Brasil, 2021, pBrasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Promoção da Saúde. [Internet]. Guia de atividade física para a população brasileira. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [citado em 2022 Jul 1]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_atividade_fisica_populacao_brasileira.pdf
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. 34).

Nota-se, assim, além de uma ideia funcionalista de educação física, a incapacidade de se refletir sobre o prazer, o brincar, a cultura e o conhecimento.

É interessante perceber o uso de termos remetentes aos aspectos quantitativos provenientes das aulas e da prática de atividades físicas, como “aumento” e “melhora”. Não obstante, benefícios sociais, como a cooperação e a socialização, são apresentados posteriormente aos possíveis ganhos biológicos, o que pode gerar certa hierarquização dos benefícios promovidos.

Tal entendimento se repete ao longo de todo o texto:

Participe das aulas de Educação Física para desenvolver habilidades e para conhecer diferentes tipos de atividade física. Isso vai ajudar você a ter uma vida ativa!; Converse com o seu professor sobre modalidades de atividade física que você tem preferência ou sobre aquelas que você gostaria de aprender melhor (Brasil, 2021, pBrasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Promoção da Saúde. [Internet]. Guia de atividade física para a população brasileira. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [citado em 2022 Jul 1]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_atividade_fisica_populacao_brasileira.pdf
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. 35).

Inclusive o termo “modalidades” causa certo incômodo, pois parece remeter à esportivização da Educação Física Escolar.

Tal discurso pode ser problemático, pois conforme dispõem Ilha e Hypolito (2015)Ilha FRS, Hypolito Á. Esportivização da Educação Física escolar: um dispositivo e seus regimes de disposição. Movimento. 2015;22(1):173-86. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.55467.
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, quando se tem a perspectiva de que os alunos devem escolher os conteúdos – e isso, possivelmente, aumentaria a participação deles nas aulas –, estes podem se traduzir na realização somente de modalidades esportivas, especialmente o futebol. Destaca-se que os esportes são conteúdos presentes nos currículos da Educação Física, entretanto algumas modalidades têm ocupado um espaço excessivo diante de outros saberes que fazem parte do currículo da disciplina. Assim, conforme sugerido no guia, a ideia de participação dos alunos nas escolhas do conteúdo tende a aumentar a democratização das aulas de Educação Física. Porém, nesse contexto, é importante que o professor faça a mediação dessas escolhas, não permitindo a predominância de modalidades esportivas em detrimento do repertório de conteúdos que compõem a cultura corporal. Além disto, a ideia de “escolha dos conteúdos” não parece estar firmemente associada à concepção aberta de ensino e à possibilidade de formação de um indivíduo crítico e autônomo (Bracht, 1999Bracht V. A constituição das teorias pedagógicas da Educação Física. Cad CEDES. 1999;19(48):69-88. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-32621999000100005.
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).

Nas escolas, talvez seja importante pensar na educação em saúde, e não somente na saúde de forma isolada (Falkenberg et al., 2014Falkenberg MB, Mendes TLP, Moraes EP, Souza EM. Educação em saúde e educação na saúde: conceitos e implicações para a saúde coletiva. Cien Saude Colet. 2014;19(3):847-52. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232014193.01572013. PMid:24714898.
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). Isso pois as crianças e os adolescentes precisam refletir sobre o que significa saúde e quais os fatores podem ou não contribuir para que eles tenham acesso às práticas associadas à saúde. Trabalhar a saúde na escola é, antes de tudo, um processo político e pedagógico, pois não se limita na execução de ações de cuidado e na gestão individual, mas deve proporcionar um “pensamento crítico e reflexivo, permitindo desvelar a realidade e propor ações transformadoras que levem o indivíduo à sua autonomia e emancipação como sujeito histórico e social” (Falkenberg et al., 2014, pFalkenberg MB, Mendes TLP, Moraes EP, Souza EM. Educação em saúde e educação na saúde: conceitos e implicações para a saúde coletiva. Cien Saude Colet. 2014;19(3):847-52. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232014193.01572013. PMid:24714898.
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. 848). Para além disso, entendemos que os projetos que envolvem saúde e educação deveriam tomar para si determinadas questões e abordar as diferentes instâncias de produção da vida. Portanto, o trabalho com Saúde e Educação (ou Comunicação) deveria ir além do saber específico da disciplina, buscando dar conta de compreender o contexto social (Ceccim e Ferla, 2008Ceccim RB, Ferla AA. Educação e saúde: ensino e cidadania como travessia de fronteiras. Trab Educ Saúde. 2008;6(3):443-56. http://dx.doi.org/10.1590/S1981-77462008000300003.
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; Palma, 2020aPalma A. Saúde na Educação Física escolar: diálogos e possibilidades a partir do conceito ampliado de saúde. Temas Educ Fís Esc. 2020a;5(2):5-15. http://dx.doi.org/10.33025/tefe.v5i2.3025.
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).

Nas recomendações para as aulas de Educação Física são apresentadas sugestões para a comunidade escolar, para os professores de Educação Física e para os pais e responsáveis. No que diz respeito às escolas, o guia sugere que os currículos sigam as recomendações nacionais, estaduais e municipais de saúde, de modo sequencial e progressivo. Nesse sentido, a Educação Física deve seguir o padrão das outras disciplinas, com a aplicação de conteúdos, avaliações e o desenvolvimento profissional (Brasil, 2021Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Promoção da Saúde. [Internet]. Guia de atividade física para a população brasileira. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [citado em 2022 Jul 1]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_atividade_fisica_populacao_brasileira.pdf
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).

Alguns pontos dessas recomendações merecem atenção, pois parece que os currículos escolares, especialmente se tratando da disciplina de Educação Física, apresentam algumas controvérsias quanto ao significado de saúde que é abordado (Knuth et al., 2007Knuth AG, Azevedo MR, Rigo LC. A inserção de temas transversais em saúde nas aulas de Educação Física. Rev Bras Ativ Fis Saúde. 2007;12(3):73-8.; Palma, 2020bPalma A. Tensões e possibilidades nas interações entre educação física, saúde e sociedade. In: Wachs F, Lara L, Athayde P, organizadores. Ciências do esporte, educação física e produção do conhecimento em 40 anos de CBCE. 8ª ed. Natal: Edufrn; 2020b. p. 15-27. Vol. 11.). Isso se deve, em parte, ao fato de uma superficialidade em que o tema é tratado, seja em termos conceituais ou teóricos e, ainda, a uma segregação das Ciências Humanas e Sociais em favor das Ciências Biológicas (Knuth et al., 2007Knuth AG, Azevedo MR, Rigo LC. A inserção de temas transversais em saúde nas aulas de Educação Física. Rev Bras Ativ Fis Saúde. 2007;12(3):73-8.). Malacarne et al. (2021b)Malacarne JAD, Carvalho PHM, Alexandria DB, Palma A, Rocha MB. Educação em saúde no Rio de Janeiro: avanços ou retrocessos? Ensino, Saúde Ambiente. 2021b;14(2):913-30. http://dx.doi.org/10.22409/resa2021.v14i2.a49905.
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, por exemplo, ao analisarem diferentes matrizes curriculares do tema saúde na Educação Física Escolar, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998), a Base Nacional Curricular Comum (2017), os Temas Transversais Contemporâneos (2019), o Documento Orientador Curricular do Rio de Janeiro (2020) e a Reorganização Curricular Carioca (2021), perceberam que, com o passar do tempo, o tema saúde tem sido abordado cada vez mais fragilizado e reduzido aos aspectos biomédicos. Agora, por exemplo, a transversalidade da saúde na Base Nacional Curricular Comum é descrita como “educação alimentar e nutricional” (Brasil, 2019, pBrasil [Internet]. Pesquisa nacional de saúde do escolar: 2019. Brasília: IBGE; 2019 [citado em 2022 Jul 15]. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101852.pdf
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualiza...
. 7).

Ainda pensando em orientações para as instituições de ensino, não se pode ignorar a realidade das escolas públicas brasileiras, que atendem a maioria da população e, devido à alta demanda – somada aos problemas de investimento e infraestrutura –, não alcançam os indicadores necessários à lógica competitiva da geoeconomia global (Neira e Nunes, 2021Neira MG, Nunes MLF. Os desafios da Educação Física em tempos de ataque à educação. Conexões. 2021;19:e020026. http://dx.doi.org/10.20396/conex.v19i1.8665896.
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). É necessário, assim, um olhar atencioso para os discursos que são produzidos, uma vez que, tratando-se dos adolescentes em idade escolar, a responsabilização das escolas e dos professores de Educação Física por aulas de qualidade e que aumentem o perfil de atividade física dos adolescentes pode camuflar o papel do Estado enquanto promotor de políticas públicas que possibilitem a modificação desse panorama.

Ao observar, por exemplo, os indicadores apresentados nas Pesquisas Nacionais de Saúde do Escolar (Pense), em suas três últimas edições (2012, 2015 e 2019), no Quadro 1, percebem-se as disparidades existentes entre as escolas brasileiras.

Quadro 1
Espaços para a prática de atividade física nas escolas privadas e públicas brasileiras nos últimos 10 anos.

Diante da desigualdade estrutural apresentada, o trecho do guia direcionado aos pais e responsáveis causa, no mínimo, um estranhamento, quando orienta na primeira frase: “Escolham escolas que valorizem o papel da Educação Física na formação da criança e do jovem ao longo de todos os anos de estudo” (Brasil, 2021, pBrasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Promoção da Saúde. [Internet]. Guia de atividade física para a população brasileira. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [citado em 2022 Jul 1]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_atividade_fisica_populacao_brasileira.pdf
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. 37). Quem são os pais ou responsáveis que possuem a possibilidade de escolha das escolas? Tal orientação demonstra um abismo diante da realidade do acesso à educação no país. Esse aspecto nos remete ao que foi abordado anteriormente sobre o fato de o guia parecer estar desconectado do contexto social. Entendemos, como Palma (2020a)Palma A. Saúde na Educação Física escolar: diálogos e possibilidades a partir do conceito ampliado de saúde. Temas Educ Fís Esc. 2020a;5(2):5-15. http://dx.doi.org/10.33025/tefe.v5i2.3025.
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, que as relações entre a prática de atividades físicas no lazer e a saúde deveriam ser relativizadas a partir dos contextos e condições sociais pelas quais tais práticas se darão. Desse modo, seria necessário considerar a situação de pobreza, educação, trabalho, acesso aos serviços de saúde, meio ambiente, violência, moradia, alimentação, entre outros aspectos que constituem uma dada sociedade.

É possível que isso impacte diretamente a função da escola pública, que por atender a maioria da população e, muitas vezes, sofrer com a má gestão da educação pública, não favorece o alcance dos indicadores necessários à lógica competitiva da geoeconomia global. Considerando que a maior parte dos alunos não possui boas condições sociais, os discursos produzidos ecoam “a ineficiência da escola, dos professores, e legitimando a interferência de setores pseudovencedores, entenda-se, privados, nas políticas públicas educacionais” (Neira e Nunes, 2021, pNeira MG, Nunes MLF. Os desafios da Educação Física em tempos de ataque à educação. Conexões. 2021;19:e020026. http://dx.doi.org/10.20396/conex.v19i1.8665896.
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. 5).

Tal reflexão também expõe fragilidades do discurso que atualmente fundamenta a promoção da saúde através da atividade física: a possibilidade das escolhas de vida e mudanças de hábitos. A translocação, para os países superexplorados do capitalismo periférico que carecem de estruturas básicas de condições de vida e de trabalho, de ideias produzidas em países do capitalismo central, pode gerar certa incoerência, ou, no mínimo, orientações não palpáveis, desconexas ou irrealizáveis (Palma, 2020aPalma A. Saúde na Educação Física escolar: diálogos e possibilidades a partir do conceito ampliado de saúde. Temas Educ Fís Esc. 2020a;5(2):5-15. http://dx.doi.org/10.33025/tefe.v5i2.3025.
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).

Essas orientações gerais, portanto, parecem ser ineficientes diante da realidade dos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil. Jourdan et al. (2021)Jourdan D, Gray N, Barry MM, Caffe S, Cornu C, Diagne F, et al. Supporting every school to become a foundation for healthy lives. Lancet Child Adolesc Health. 2021;5(4):295-303. http://dx.doi.org/10.1016/S2352-4642(20)30316-3. PMid:33485407.
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relatam as dificuldades de implementação da iniciativa “escolas promotoras da saúde”, lançada pela Organização Mundial da Saúde no ano de 1995. Isso porque cada instituição atende um determinado perfil de alunos. Ademais, essas escolas estão inseridas em diferentes regiões e têm distintas fontes de financiamento e investimento em termos de educação e parcerias com o setor saúde. Pensando em estratégias que sejam mais efetivas, estas devem envolver múltiplos fatores integrados: políticas públicas; práticas educacionais de intervenção em saúde coletiva; gestão escolar com ênfase nos alunos socialmente vulneráveis; e o investimento na formação de professores.

A análise das imagens reforça o caráter contraditório que o texto traz. Embora em um primeiro momento (Figura 1) remeta à ideia hegemônica da esportivização da Educação Física no ambiente escolar, em um segundo (Figura 2) percebe-se a presença da cultura corporal do movimento com a inserção da dança típica. As imagens trazem, ainda, alguns traços marcantes e paradoxais. É importante a ideia de um processo de inclusão, com meninas e meninos jogando em conjunto, além da presença de pessoas com deficiência física. Contudo, chama atenção que o menino com deficiência (Figura 1, primeiro indivíduo à esquerda) parece não estar interagindo com outras crianças ou adolescentes.

Figura 1
Representação de crianças ou adolescentes praticando esportes nas aulas. Fonte: Brasil, 2021, pBrasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Promoção da Saúde. [Internet]. Guia de atividade física para a população brasileira. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [citado em 2022 Jul 1]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_atividade_fisica_populacao_brasileira.pdf
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. 33.
Figura 2
Representação de crianças ou adolescentes praticando uma dança de rodas. Fonte: Brasil, 2021, pBrasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Promoção da Saúde. [Internet]. Guia de atividade física para a população brasileira. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [citado em 2022 Jul 1]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_atividade_fisica_populacao_brasileira.pdf
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. 37.

Tal fato ainda traz a reflexão sobre questões que baseiam o acesso dessas pessoas ao ambiente escolar, como a acessibilidade arquitetônica – referente a estruturas nos espaços físicos – e metodológica – que diz respeito aos instrumentos (sejam de recursos humanos ou de dispositivos assistivos) utilizados na mediação do ensino, assim, percebe-se que a maioria das escolas brasileiras não possuem as mínimas condições de acessibilidade em suas instalações, sendo pior esta situação nas Regiões Norte e Nordeste.

Ademais, os desenhos representam corpos magros. Percebe-se, assim, que a propagação imagética de tipos físicos de determinados corpos, neste caso de características associadas à magreza e que representam certo capital social, ao mesmo tempo em que pode desencadear mudanças nos comportamentos pode também produzir estigmas (Oliveira et al., 2009Oliveira AP, Assis M, Lacerda Y, Bagrichevsky M, Sampaio KS. Culto ao corpo e exposição de produtos na mídia especializada em estética e saúde. Movimento. 2009;16(1):31-51. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.3127.
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; Nechar, 2020Nechar PA. O corpo gordo: uma cartografia do imaginário social [tese]. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica; 2020.).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O documento é o primeiro guia sobre atividade física elaborado por pesquisadores brasileiros e avança, entre muitos aspectos, ao incentivar a valorização da Educação Física nas escolas. Por outro lado, os discursos produzidos e apresentados podem levar a uma visão reducionista do componente curricular Educação Física, uma vez que se justifica, sobretudo, por melhorias biopsicofisiológicas decorrentes das práticas corporais e atividades físicas, bem como apresentam conteúdos visuais e discursivos que podem entender os conteúdos como predominantemente esportivos.

Os discursos são pautados em uma perspectiva majoritariamente funcionalista, indicando, na maioria das narrativas, uma relação de causa e efeito da Educação Física Escolar com a saúde. Apesar de o guia não marcar teoricamente o conceito de saúde no qual se baseia, é possível encontrar elementos que indicam o entendimento de saúde hegemônica, pautado em preceitos biomédicos sobrepostos a condições de vida, organização social, e precarização das políticas públicas de educação e saúde. Além disso, quando analisados alguns aspectos estruturais para a realização da Educação Física nas escolas brasileiras, dispostas pela Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar, percebe-se que algumas sugestões do guia parecem de difícil alcance.

Diante disso, é importante a realização de trabalhos futuros que se proponham, por exemplo, a entender como a comunidade escolar, especialmente os professores de Educação Física, aplicam – ou não – as orientações do guia, avançando, nesse sentido, na compreensão do que é possível diante das dificuldades estruturais, sociais e políticas das escolas brasileiras.

  • FINANCIAMENTO

    O presente trabalhou contou com apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela concessão de bolsas para a realização deste estudo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    05 Ago 2022
  • Aceito
    14 Nov 2022
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