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Corpo e cultura na perspectiva da formação docente em educação física

Body and culture from the perspective of physical education teacher training

Cuerpo y cultura en la perspectiva de la formación del profesorado de educación física

RESUMO

O artigo objetiva entender o significado da relação corpo e cultura na formação docente em Educação Física. Seguiu uma abordagem metodológica qualitativa do tipo revisão sistemática. A consulta realizada por meio dos descritores corpo, cultura e educação física, tendo como marco temporal 2004 a 2019. A análise de conteúdo se deu a partir da construção epistemológica de Le Le Breton: (a) lógicas sociais e culturais do corpo; (b) o corpo no espelho do social; e (c) imaginários sociais, utilizando-se do software NVivo12. Os resultados apontam que a relação entre corpo e aspectos biológicos sofre forte influência dos padrões normativos ditados pelo meio, e que a concepção de corpo, relacionada à cultura, vem sofrendo transformações e (re)significações.

Palavras-chave:
Educação física; Cultura; Corpo; Formação docente

ABSTRACT

The article aims to understand the meaning of the relationship between body and culture in Physical Education. It followed a qualitative methodological approach of the systematic review type. The query was made through the descriptors body, culture and physical education as a time frame 2004 to 2019. The content analysis was based on the epistemological construction of Le Le Breton: (a) social and cultural logics of the body; (b) the body in the mirror of the social; and (c) social imaginaries, using the NVivo12 software. The results show that the relationship between body and biological aspects is strongly influenced by normative standards dictated by the environment and that the conception of body, related to culture, has been undergoing transformations and (re)significations.

Keywords:
Physical education; Culture; Body; Teacher training

RESUMEN

El artículo pretende comprender el significado de la relación cuerpo y cultura en la formación del profesorado de Educación Física. Se siguió un enfoque metodológico cualitativo de tipo revisión sistemática. La consulta se realizó a través de los descriptores cuerpo, cultura y educación física (2004-2019). El análisis de contenido se basó en la construcción epistemológica de Le Le Breton: (a) lógicas sociales y culturales del cuerpo; (b) el cuerpo en el espejo de lo social; y (c) imaginarios sociales, con el software NVivo12. Los resultados señalan que la relación entre el cuerpo y los aspectos biológicos está influenciada por los estándares normativos dictados por el entorno y que la concepción del cuerpo, relacionada con la cultura, viene sufriendo transformaciones y (re)significados.

Palabras-clave:
Educación física; Cultura; Cuerpo; Formación del profesorado

INTRODUÇÃO

Um marco na Educação Física brasileira, o movimento renovador redimensiona o objeto de estudo desse campo de conhecimento e intervenção pedagógica (Bracht e Almeida, 2019Bracht V, Almeida FQ. Pedagogia crítica da educação física: dilemas e desafios na atualidade. Movimento. 2019;25:e25068. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.96196.
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; Silva e Damiani, 2005Silva AM, Damiani IR. Práticas corporais: experiências em Educação Física para uma formação humana. Florianópolis: Nauemblu Ciência & Arte; 2005.). A cultura passa a ocupar então um papel de centralidade nos debates interpostos, notadamente quando consideramos que a formação humana nos cursos de Educação Física deve ser contextualizada numa relação tempo-espaço que é mediada e culturalmente constituída pela cultura. Assim, como o corpo é o nosso objeto, a cultura é o contexto dialético onde esse corpo, que se movimenta, se manifesta (Kunz, 2004Kunz E. Transformação didático-pedagógica do esporte. 6ª ed. Ijuí: Editora Unijuí; 2004.).

Daolio (2007)Daolio J. Os significados do corpo na cultura e as implicações para Educação Física. Movimento. 2007;2(2):24-8. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.2184.
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, pautando-se pela compreensão de Mauss (2017)Mauss M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Ubu Editora; 2017., destaca que, nos estudos da Educação Física ou educação do corpo, o corpo deve ser estudado numa perspectiva tripartite, isto é, deve ser compreendido por meio dos aspectos biológico, psicológico e sociocultural. Nesse escopo, não há possibilidade de desvincular o homem da cultura, pois o que o diferencia dos demais animais é a sua capacidade de produzir cultura (Laraia, 2001Laraia RB. Cultura: um conceito antropológico. 14ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2001.). É por meio do corpo que homens e mulheres materializam suas interações sociais, por assim dizer, é “no”, “com” e “pelo” corpo que existimos socialmente (Le Breton, 2017Le Breton D. A sociologia do corpo. 6ª ed. Petrópolis: Vozes; 2017.; Csordas, 2008Csordas T. Corpo/significado/cura. Porto Alegre: Editora da UFRGS; 2008.). A existência social, por seu turno, é delineada por mediações culturais, como já investigado por estudos antropológicos (Laraia, 2001Laraia RB. Cultura: um conceito antropológico. 14ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2001.). Assim, corpos e culturas se entrelaçam e se retroalimentam por meio de suas experiências no mundo e por trocas culturais que perpassam processos educacionais, já que a educação é um vetor da cultura e contribui para a formação humanística, tanto a que se refere à educação básica, quanto a formação em nível superior.

O corpo considerado como “o ser no mundo” permite a vida e compreende a percepção dos sentidos (Le Breton, 2017Le Breton D. A sociologia do corpo. 6ª ed. Petrópolis: Vozes; 2017.). Ver, ouvir, sentir, tocar, expressar-se e movimentar-se são sensações e expressões corporais, que passam a ser humanas à medida que se materializam em sentidos e significados para aqueles/as que assim se manifestam. Com efeito, é por meio do corpo que o significado do meio social é dado ao ator, conforme sentidos e sensações por ele/ela apropriada. São as interações com o outro que participa do espaço social que forjam as corporeidades humanas. Por seu turno, essas corporeidades são socialmente construídas ao tempo em que são representadas e simbolizadas nas diferentes culturas.

Para Le Breton (2017), aLe Breton D. A sociologia do corpo. 6ª ed. Petrópolis: Vozes; 2017. sociologia do corpo dispõe diretamente sobre o corpo. É fundamental compreender o corpo como o próprio ator sem diferenciar o corpo do ser humano. Para ele, o ator e o seu corpo são um só, dentro da perspectiva do ser humano total. Conquanto, há, nos estudos produzidos sobre o corpo, distintas orientações teórico-metodológicas. Essas distinções atendem a figuras que se constituem como maneiras mais proeminentes de situar o corpo nos estudos e pesquisas, sejam oriundas de pesquisadores clássicos ou contemporâneos. Segundo Le Breton (2017)Le Breton D. A sociologia do corpo. 6ª ed. Petrópolis: Vozes; 2017., são três campos de pesquisa que podem ser observados com maior veemência nestes estudos, a saber: “as lógicas sociais e culturais do corpo”, campo que se orienta pela influência dos determinantes sociais sobre a noção de corpo/corporeidade do/a autor/a; “imaginários sociais do corpo”, campo cujo foco são as pesquisas que versam sobre as representações sociais; e “o corpo no espelho do social”, que compreende os fenômenos sociais e suas representações, também entendido como o suporte para as ações, utilizado como critério de proximidade ou distinção dos outros atores sociais.

Com essa compreensão, o presente artigo tem por objetivo entender qual é o significado da relação corpo e cultura na formação profissional de professores de Educação Física no período compreendido entre 2004 e 2019, considerando os três campos de pesquisa enunciados por Le Breton (2017)Le Breton D. A sociologia do corpo. 6ª ed. Petrópolis: Vozes; 2017.. Nessa acepção, evidenciamos o corpo como uma construção social de um ser humano total, isto é, que se constitui por meio de aspectos biológicos / fisiológicos; psicológicos / comportamentais; sociais ou culturais (Le Breton, 2017Le Breton D. A sociologia do corpo. 6ª ed. Petrópolis: Vozes; 2017.; Mauss, 2017Mauss M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Ubu Editora; 2017.). E que as experiências vividas pelo corpo ajudam na formação do que ele é como ser humano e contribui para dar sentido e significado à vida.

METODOLOGIA

A pesquisa com abordagem qualitativa teve como delineamento a pesquisa bibliográfica do tipo revisão sistemática (Higgins e Green, 2011Higgins J, Green S. Cochrane handbook for systematic reviews of interventions. Version 5.1.0. Londres: The Cochrane Collaboration; 2011.). A consulta realizada em bases de dados Scopus e SciELO com base em materiais bibliográficos publicados entre 2004 e 2019. Os descritores utilizados nas buscas foram: "corpo" AND "cultura" AND "educação física" AND (“formação de professores” OR “formação docente”). Foi utilizado o operador booleano “AND” para restringir a pesquisa, fazendo a interseção dos conjuntos de trabalhos que possuem os termos combinados. Já as “aspas” serviram para definir com exatidão a palavra pesquisada, em qualquer parte dos artigos, seja no resumo, no corpo do texto ou nas palavras-chave.

A busca resultou em 48 publicações, que compuseram a amostra inicial, procedendo-se à leitura dos títulos, resumos e palavras-chave dos trabalhos encontrados. Definimos como fatores de inclusão: o idioma do material (língua portuguesa) e o acesso aberto do texto na íntegra. Os critérios de duplicidade ou a não correspondência aos critérios exatos da busca foram elementos de exclusão para a definição da amostra. Após a aplicação desses critérios, restaram oito trabalhos para a composição da amostragem final. O conjunto de trabalhos que atenderam aos nossos critérios está apresentado no quadro a seguir (Quadro 1):

Quadro 1
Panorama dos artigos encontrados.

Os artigos que compuseram a amostra final foram lidos integralmente e sistematizados de acordo com as seguintes informações: título, ano de publicação, autor(es), periódico e palavras-chave, identificando preliminarmente as principais áreas ou temas e, em seguida, foram submetidos ao NVivo 12. Esse é um software de análise de dados qualitativos, cuja principal função é sistematizar e categorizar dados alfanuméricos, auxiliando a apreciação do/a pesquisador/a (Mozzato et al., 2016Mozzato AR, Grzybovski D, Teixeira AN. Análises qualitativas nos estudos organizacionais: as vantagens no uso do software Nvivo®. Rev Alcance. 2016;23(4):578-87.). Dessa forma, foi realizada a organização das fontes, observando a frequência de palavras e a realização da codificação manual, por meio da identificação dos principais temas.

Para proceder com a análise de conteúdo, utilizamos Bardin (2016)Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016., operando o desmembramento do texto em unidades e categorias, segundo reagrupamentos analógicos. Entre as diferentes possibilidades de categorização, decidimos pela investigação dos temas. As categorias ou “nós” foram baseadas na classificação feita por Le Breton (2017)Le Breton D. A sociologia do corpo. 6ª ed. Petrópolis: Vozes; 2017., no seu livro intitulado Sociologia do Corpo, assim definidas: “Lógicas sociais e culturais do corpo”, “Imaginários sociais do corpo” e “O corpo no espelho do social”. Objetivamos compreender como são construídas as interfaces entre corpo/cultura/formação de professores/Educação Física, construindo mediações entre esta produção e a Educação Física.

POR UMA COMPREENSÃO DA RELAÇÃO CORPO E CULTURA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE EDUCAÇÃO FÍSICA: ENTRE AS LÓGICAS SOCIAIS, IMAGINÁRIOS E ESPELHO DO SOCIAL

(a) Aspectos gerais dos artigos que compõem a amostra

Como observado no Quadro 1, os artigos identificados foram produzidos entre 2009 e 2018, em língua portuguesa, e publicados em periódicos nacionais. No tocante aos periódicos em que os artigos foram publicados, cinco destes trabalhos são encontrados em revistas das áreas de Educação Física (Movimento, RBCE, Revista de Educação Física da UEM) e da Educação (Interface e Educar em Revista), chancelando a comprovação de que os estudos sobre corpo são priorizados por pesquisadores do campo de conhecimento e intervenção pedagógica da Educação Física, como já enunciado por Silva et al. (2016)Silva TQ, Almeida DF, Wiggers ID, Andrews DL, Silva LRT. Is there a sociology of the body in Brazil? Movimento. 2016;22(4):1249-64. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.61981.
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Ao inserirmos as palavras-chave dos materiais obtidos na construção de uma nuvem de palavras, o resultado apontado foi o seguinte (Figura 1):

Figura 1
Nuvem de palavras mais recorrentes. Fonte: Elaboração dos autores.

Essa nuvem demonstra que houve predominância de termos como Educação e Física. Paralelamente, os termos: Corpo, Formação, Professores, Ensino, Gênero, Prática, Currículo também apresentam destaque (Figura 1). Um dado relevante para o presente estudo é a escassa ocorrência da palavra social/sociais, o que pode apontar um possível distanciamento da docência em Educação Física frente ao saber social, configurando, assim, um cenário no qual se demonstra que profissionais de Educação Física apresentam uma possível lacuna em suas práticas no que tange a uma abordagem social no processo de ensino e aprendizagem.

Percebemos, nessa produção científica, a ausência da mediação entre os termos corpo e cultura, objeto do presente trabalho. Os dados evidenciam o ínfimo realce para as palavras “cultura” e “corporal”. O destaque fica por conta da expressão que essas palavras combinadas formam: “cultura corporal”, sendo essa um marco para concepção do ser na Educação Física. O termo cultura corporal surge na Educação Física como um contraponto ao ensino ancorado em perspectivas da aptidão física. Quanto a isso, o Castellani Filho et al., (2012Castellani L Fo, Lúcia SC, Taffarel CNZ, Varjal E, Escobar MO, Bracht V. Metodologia do ensino de educação física. São Paulo: Cortez Editora; 2014., p. 39) relata que a dinâmica do currículo, no escopo da Educação Física, na perspectiva da reflexão sobre a cultura corporal, busca desenvolver uma compreensão pedagógica sobre o acervo de formas de representação do mundo, que são construções historicamente constituídas por homens e mulheres.

A Figura 2, distribuída por cores, ilustra de que forma essas categorias estão divididas nos textos, sendo que o tamanho de cada uma das áreas do gráfico indica proporcionalmente as referências e cobertura de cada uma das categorias, conforme figura a seguir (Figura 2):

Figura 2
Distribuição por categoria. Fonte: Elaboração dos autores.

Quando buscamos analisar as categorias aqui elencadas na Figura 2, temos como real situação que, nos trabalhos pesquisados, a categoria “Lógicas sociais e culturais do corpo” ganha superior destaque frente às demais. Isso se dá em virtude de, em sua maioria, os artigos angariados apontarem a preeminência da utilização da corporeidade – condição de ser e estar no mundo – como foco nos currículos de Educação Física. A preeminência da utilização da corporeidade, por sua vez, está no centro da categoria “Lógicas sociais e culturais do corpo”, principalmente no que se refere às “técnicas do corpo”, que

trata-se de modalidades de ação, de sequências de gestos, de sincronias musculares que se sucedem na busca de uma finalidade precisa (Le Breton, 2017, pLe Breton D. A sociologia do corpo. 6ª ed. Petrópolis: Vozes; 2017.. 39).

(b) Análise de conteúdo das produções científicas identificadas

As categorias de análise foram divididas, a partir das subdivisões realizadas, em três “nós” distintos, já citados anteriormente, a saber: “Lógicas sociais e culturais do corpo”, “Imaginários sociais do corpo” e “O corpo no espelho do social”. O primeiro está organizado com base no estudo de textos fundadores da sociologia do corpo e sendo ampliados para, de acordo com Le Breton (2017)Le Breton D. A sociologia do corpo. 6ª ed. Petrópolis: Vozes; 2017., uma espécie de balanço provisório da área, sendo que a corporeidade atua como central nesses debates. Já o segundo tema está relacionado com a transformação do corpo no reservatório do imaginário social. O terceiro tema, por sua vez, está vinculado ao corpo como suporte de ações e significações, sendo esse um analisador privilegiado na compreensão dos fenômenos sociais contemporâneos.

Conteúdo 1: “lógicas sociais e culturais do corpo”

“As lógicas sociais e culturais do corpo” referem-se a uma área específica da sociologia do corpo dedicada, de modo mais sistemático, a desvendar práticas sociais que se apresentam como determinantes, isto é, lógicas impressas nos corpos socialmente constituídos. De acordo com Le Breton (2017)Le Breton D. A sociologia do corpo. 6ª ed. Petrópolis: Vozes; 2017., tais lógicas correspondem a um conjunto de determinantes sociais como as técnicas do corpo, a expressão dos sentimentos, a gestualidade, as regras de etiqueta, as técnicas de tratamento, as percepções sensoriais, as marcas na pele ou na própria carne, a má conduta corporal. Nos artigos pesquisados, identificamos maior evidência para relação com tais aspectos em 6 artigos codificados, a saber: Martins et al. (2018)Martins RLDR, Tostes LF, Mello AS. Educação infantil e formação docente: análise das ementas e bibliografias de disciplinas dos cursos de Educação Física. Movimento. 2018;24(3):705-20. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.77519.
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, Borges (2017)Borges CCO. Políticas de currículo da educação física e a constituição dos sujeitos. Movimento. 2017;23(3):841-54. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.72062.
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, Silva et al. (2011)Silva AC, Silva FAG, Lüdorf SMA. Formação em Educação Física: uma análise comparativa de concepções de corpo de graduandos. Movimento. 2011;17(2):57-74. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.17112.
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, Lüdorf (2009)Lüdorf SMA. Corpo e formação de professores de educação física. Interface. 2009;13(28):99-110., Bombassaro e Vaz (2009)Bombassaro B, Vaz AF. Sobre a formação de professores para a disciplina Educação Física em Santa Catarina (1937-1945): ciência, controle e ludicidade na educação dos corpos. Educar. 2009;33:111-28. e Corrêa (2013)Corrêa RLT. Cultura, material escolar e formação de professores: como disciplinar o corpo – imagens e textos. Educ Rev. 2013;49(49):183-205. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-40602013000300011.
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Compreendendo que o corpo, no estudo sociológico de suas técnicas, mesmo sendo uma “ferramenta”, continua sendo o “fato do homem” que é dependente da dimensão simbólica, assim designado por Le Breton (2017)Le Breton D. A sociologia do corpo. 6ª ed. Petrópolis: Vozes; 2017. ao se referir às técnicas do corpo retratadas por Mauss (2017)Mauss M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Ubu Editora; 2017., buscando superar a o dualismo elementar, seguem essa linha epistemológica: Martins et al. (2018)Martins RLDR, Tostes LF, Mello AS. Educação infantil e formação docente: análise das ementas e bibliografias de disciplinas dos cursos de Educação Física. Movimento. 2018;24(3):705-20. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.77519.
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, Borges (2017)Borges CCO. Políticas de currículo da educação física e a constituição dos sujeitos. Movimento. 2017;23(3):841-54. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.72062.
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e Silva et al. (2011)Silva AC, Silva FAG, Lüdorf SMA. Formação em Educação Física: uma análise comparativa de concepções de corpo de graduandos. Movimento. 2011;17(2):57-74. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.17112.
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De acordo com Martins et al. (2018)Martins RLDR, Tostes LF, Mello AS. Educação infantil e formação docente: análise das ementas e bibliografias de disciplinas dos cursos de Educação Física. Movimento. 2018;24(3):705-20. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.77519.
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, é possível identificar a Educação Física como importante para o desenvolvimento infantil, no que se refere ao ensino das habilidades motoras básicas, enfatizando a avaliação do crescimento corporal e das capacidades coordenativas. Porém, os autores retratam como necessário valer-se de atividades motoras apropriadas às características físicas, cognitivas, motoras afetivas e, inclusive, sociais das crianças, já preconizadas nos documentos oficiais. Assim, por mais que ainda predomine a visão de corpo a partir de uma visão biologicista, é necessário dialogar com os saberes/fazeres sociais. Borges (2017)Borges CCO. Políticas de currículo da educação física e a constituição dos sujeitos. Movimento. 2017;23(3):841-54. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.72062.
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também verifica a valorização dos exercícios e atividades para melhoria da conduta psicomotora, cognitiva e afetiva a partir de movimentos que tenham significado para o contexto cultural, contrapondo os discursos que evidenciam um conjunto de regras voltado à educação do corpo e esquadrinhando-o para que atinja o “patamar” de saúde, eficiência e precisão dos movimentos.

Nesses artigos, é possível notar, no que diz respeito à formação de professores de Educação Física, através da resposta dos graduandos, que Silva et al. (2011)Silva AC, Silva FAG, Lüdorf SMA. Formação em Educação Física: uma análise comparativa de concepções de corpo de graduandos. Movimento. 2011;17(2):57-74. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.17112.
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, respostas relativas ao corpo, tais como: "Conjunto de órgãos, músculos, ossos", "Um instrumento de trabalho" e "Coisa ideal para viver", sugerem que a marcante ideia de corpo à parte não é particular na formação das universidades em questão, uma vez que outros estudos também identificaram essa noção hegemônica de corpo fragmentado. Porém, tem-se, de outro lado, uma vertente que privilegia o corpo como uma construção sociocultural ligada às referências das ciências humanas e sociais.

Verificamos ainda que, relativo à interação social, conforme afirma Le Breton (2017)Le Breton D. A sociologia do corpo. 6ª ed. Petrópolis: Vozes; 2017., uma etiqueta corporal é usada espontaneamente, até certo ponto, em função de normas implícitas que o guiam, sendo os trabalhos de Goffman marcantes para este delineamento, os quais se aproximam, em alguma medida, do corpo sujeito a normas sociais.

Bombassaro e Vaz (2009)Bombassaro B, Vaz AF. Sobre a formação de professores para a disciplina Educação Física em Santa Catarina (1937-1945): ciência, controle e ludicidade na educação dos corpos. Educar. 2009;33:111-28., Lüdorf (2009)Lüdorf SMA. Corpo e formação de professores de educação física. Interface. 2009;13(28):99-110. e Corrêa (2013)Corrêa RLT. Cultura, material escolar e formação de professores: como disciplinar o corpo – imagens e textos. Educ Rev. 2013;49(49):183-205. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-40602013000300011.
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relatam, em seus artigos, sobre a formação de professores em Educação Física e o corpo em constante construção e interação com o contexto social, revelando a Educação Física como prática educativa e também como prática social, responsável pela formação humana. Tem-se como destaque que, durante a formação, há uma tendência em se difundir a chamada cultura do exercício físico para uma eficácia no que se chama de corpos saudáveis e produtivos, e que, em contrapartida, a escola deve intervir na aquisição desse hábito que deveria ser levado para a vida, já que se pode desenvolvê-lo em variados espaços sociais.

Nos trabalhos pesquisados, essa categoria ganha destaque em virtude de os artigos apontarem a presença das técnicas corporais como foco dos currículos de Educação Física, trazendo o diálogo do corpo biológico e sua inserção em contextos socioculturais.

Conteúdo 2: “imaginários sociais do corpo”

Para a análise do “imaginário social do corpo”, verificamos que se sobressai o debate em torno da questão de gênero e sexualidade como central, caracterizando-se como variável de sociedade para sociedade e tratando ainda da caracterização do corpo. A depender da cultura e do momento histórico, o corpo ganha um imaginário social coletivo, algo que se imagina, mas não necessariamente algo que se é. Este pode ser percebido a partir da análise dos dados, em especial nos textos de Martins et al. (2018)Martins RLDR, Tostes LF, Mello AS. Educação infantil e formação docente: análise das ementas e bibliografias de disciplinas dos cursos de Educação Física. Movimento. 2018;24(3):705-20. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.77519.
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, Miranda e Bortoleto (2018)Miranda RCF, Bortoleto MAC. O circo na formação inicial em Educação Física: um relato autoetnográfico. Rev Bras Ciênc Esporte. 2018;40(1):39-45. http://dx.doi.org/10.1016/j.rbce.2018.01.004.
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, Andres et al. (2015)Andres SS, Jaeger AA, Goellner SV. Educar para a diversidade: gênero e sexualidade segundo a percepção de estudantes e supervisoras do programa institucional de bolsa de iniciação à docência (UFSM). Rev Educ Fis UEM. 2015;26(2):167-79. http://dx.doi.org/10.4025/reveducfis.v26i2.23016.
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e Bombassaro e Vaz (2009)Bombassaro B, Vaz AF. Sobre a formação de professores para a disciplina Educação Física em Santa Catarina (1937-1945): ciência, controle e ludicidade na educação dos corpos. Educar. 2009;33:111-28., nos quais os termos como gênero e sexualidade fazem parte de um imaginário social, marcado pelo que “deve” ou não ser feito pelo corpo “feminino” e pelo corpo “masculino”, sendo significações de vestuário, de oralidade ou, o mais discutido nos artigos analisados, das práticas corporais.

Martins et al. (2018)Martins RLDR, Tostes LF, Mello AS. Educação infantil e formação docente: análise das ementas e bibliografias de disciplinas dos cursos de Educação Física. Movimento. 2018;24(3):705-20. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.77519.
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e Miranda e Bortoleto (2018), aMiranda RCF, Bortoleto MAC. O circo na formação inicial em Educação Física: um relato autoetnográfico. Rev Bras Ciênc Esporte. 2018;40(1):39-45. http://dx.doi.org/10.1016/j.rbce.2018.01.004.
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partir do debate na educação física na formação inicial em Educação Física, nos trazem que o corpo carrega consigo não somente suas características físicas e biológicas, mas também marcas sociais de pertencimento que repercutem quem somos e, nas experiências que temos, revelam nossa singularidade, nossa identidade pessoal e social, reconhecendo os marcadores sociais como as questões de gênero, etnia, classe social presentes nas práticas corporais estudadas.

Andres et al. (2015)Andres SS, Jaeger AA, Goellner SV. Educar para a diversidade: gênero e sexualidade segundo a percepção de estudantes e supervisoras do programa institucional de bolsa de iniciação à docência (UFSM). Rev Educ Fis UEM. 2015;26(2):167-79. http://dx.doi.org/10.4025/reveducfis.v26i2.23016.
http://dx.doi.org/10.4025/reveducfis.v26...
e Bombassaro e Vaz (2009)Bombassaro B, Vaz AF. Sobre a formação de professores para a disciplina Educação Física em Santa Catarina (1937-1945): ciência, controle e ludicidade na educação dos corpos. Educar. 2009;33:111-28. debatem a educação para a diversidade na formação de professores, compreendem temas afetos às relações de gênero e de sexualidade, retratando o corpo/corporeidade, a partir dessas, explicitando a forte relação com os aspectos biológicos do corpo, assentada em normas sociais que permanecem a partir de uma visão heteronormativa. Ressaltam que as práticas corporais e esportivas, ao materializarem situações de ensino-aprendizagem nas aulas, mostram-se como um campo fecundo para refletir sobre questões relacionadas às relações de gênero, podendo ser retratado a partir da afirmação do caráter feminino e masculino e daquilo que lhe seria socialmente específico.

A Educação Física, desde o seu surgimento até o momento contemporâneo, como revelam os artigos, distingue as práticas corporais de meninas e meninos na educação física escolar. Por exemplo, em 1930, o gênero feminino exercitava práticas motoras que fortaleciam o aparelho reprodutor feminino, enquanto o gênero masculino executava práticas musculares (período inicial da Educação Física brasileira). Nos quinze anos em que esta revisão sistemática buscou analisar, essa diferenciação ainda ocorre nas práticas esportivas, sendo possível observar que esse tipo de representação ocorre para além da educação física e do esporte.

Retratando as diferentes abordagens biológicas da corporeidade, categoria presente mas pouco recorrente nas lógicas sociais e culturais do corpo, conforme já categorizado por Le Breton (2017)Le Breton D. A sociologia do corpo. 6ª ed. Petrópolis: Vozes; 2017., temos o artigo “Políticas de currículo da educação física e a constituição dos sujeitos”, escrito por Borges (2017)Borges CCO. Políticas de currículo da educação física e a constituição dos sujeitos. Movimento. 2017;23(3):841-54. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.72062.
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, afirmando que os sujeitos que não conseguem atingir o padrão desejado pelo discurso saudável, não por acaso, são aqueles que há muito tempo são enquadrados como deficitários em tantos outros discursos, “idosos, sujeitos com baixa escolaridade, demais etnias minoritárias, mulheres, entre outros ‘malditos’ não diretamente nomeados”. Afirma ainda ser necessária e indispensável para a formação de professores de Educação Física a compreensão do corpo como lugar de imaginários e ligações contestáveis cujas lógicas sociais é preciso compreender, assim como a relação social estabelecida com o homem/mulher que tem uma “deficiência” como um profícuo analisador através do qual o grupo social delineia sua relação com o corpo e com a diferença e as ambivalências presentes.

Conteúdo 3: “o corpo no espelho do social”

A categoria “O corpo no espelho do social”, com 6 artigos presentes, é o apontamento do corpo repleto de significações coletivas, que orientam o ator a se apresentar e representar para o meio social conforme os símbolos de sua identidade. A maneira com que o ator quer se representar e ser classificado perante o coletivo influenciará o aspecto de sua aparência (o penteado, a vestimenta, o cuidado com o corpo, o gestual etc.). O capital de “aparência”, pontuado por Le Breton (2017)Le Breton D. A sociologia do corpo. 6ª ed. Petrópolis: Vozes; 2017., envolverá a moralidade do ator junto ao meio coletivo, tendo de ser gerenciada por meio da representação física.

Martins et al. (2018)Martins RLDR, Tostes LF, Mello AS. Educação infantil e formação docente: análise das ementas e bibliografias de disciplinas dos cursos de Educação Física. Movimento. 2018;24(3):705-20. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.77519.
http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.775...
, Miranda e Bortoleto (2018)Miranda RCF, Bortoleto MAC. O circo na formação inicial em Educação Física: um relato autoetnográfico. Rev Bras Ciênc Esporte. 2018;40(1):39-45. http://dx.doi.org/10.1016/j.rbce.2018.01.004.
http://dx.doi.org/10.1016/j.rbce.2018.01...
, Borges (2017)Borges CCO. Políticas de currículo da educação física e a constituição dos sujeitos. Movimento. 2017;23(3):841-54. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.72062.
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e Bombassaro e Vaz (2009)Bombassaro B, Vaz AF. Sobre a formação de professores para a disciplina Educação Física em Santa Catarina (1937-1945): ciência, controle e ludicidade na educação dos corpos. Educar. 2009;33:111-28. compreendem a questão do poder e principalmente da ação do político na corporeidade e que, nas sociedades heterogêneas, as relações com essa ação se inscrevem no interior das classes e culturas. Relatam que as práticas sociais buscam superar narrativas que homogeneízam os sujeitos e ainda as instituições que estão presentes nestes contextos caracterizados como complexos, alinhados com o que nos revela Michel Foucault.

A exemplo de Martins et al. (2018)Martins RLDR, Tostes LF, Mello AS. Educação infantil e formação docente: análise das ementas e bibliografias de disciplinas dos cursos de Educação Física. Movimento. 2018;24(3):705-20. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.77519.
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, que retratam as crianças como sujeitos de direitos, produtoras de cultura e protagonistas dos seus processos de socialização, reconhecendo da capacidade de produção simbólica por parte delas que constitui suas representações, assim como ainda tratando sobre os conteúdos que perpassam a Educação Física, Miranda e Bortoleto (2018)Miranda RCF, Bortoleto MAC. O circo na formação inicial em Educação Física: um relato autoetnográfico. Rev Bras Ciênc Esporte. 2018;40(1):39-45. http://dx.doi.org/10.1016/j.rbce.2018.01.004.
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ressaltam a relevância do processo histórico de formação de saberes. Esses autores afirmam que as práticas corporais precisam ser tematizadas quanto aos aspectos culturais, políticos e históricos. Sendo assim, concordam com Bombassaro e Vaz (2009)Bombassaro B, Vaz AF. Sobre a formação de professores para a disciplina Educação Física em Santa Catarina (1937-1945): ciência, controle e ludicidade na educação dos corpos. Educar. 2009;33:111-28. sobre o corpo e as práticas corporais como espaço de intervenção estatal, daí a importância de serem tematizados na formação de professores de Educação Física.

Ainda relativo ao corpo no espelho do social, um dos temas mais abordados diz respeito à aparência que, conforme afirma Le Breton (2017)Le Breton D. A sociologia do corpo. 6ª ed. Petrópolis: Vozes; 2017., responde à ação do ator de se apresentar e de se representar. Na perspectiva de Borges (2017)Borges CCO. Políticas de currículo da educação física e a constituição dos sujeitos. Movimento. 2017;23(3):841-54. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.72062.
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, faz-se necessário possibilitar a reflexão sobre determinadas condições socioeconômicas que podem ter interferência na “almejada” saúde e qualidade de vida. Ainda segundo o autor, é necessário fazer a contraposição, principalmente, sobre a saúde presente na mídia que, contemporaneamente, contribui para a definição de padrões que relacionam magreza à saúde.

Em relação às representações coletivas de futuros professores de Educação Física, existe a tendência, conforme análise dos textos, de que o corpo esteja associado, principalmente, à estética. O corpo é compreendido como um capital de aparência que deve seguir padrões estéticos de magreza, juventude, musculatura, dentre outros. Nessa perspectiva, há uma distinção entre corpos “cuidados” e “não cuidados”, havendo uma relação de poder entre sujeitos, em que se infere uma visão fragmentada do corpo. Como apontam Silva, AC, Silva, FAG e Lüdorf (2011), a visão fragmentada do corpo, pertencente comumente às sociedades individualistas, se manifesta por meio do imaginário cultural. Esses autores apresentam dados quantitativos que revelam que uma maioria de estudantes enxerga o corpo de modo fragmentado e reducionista, dentro de uma visão biológica.

Nesse sentido, Lüdorf (2009)Lüdorf SMA. Corpo e formação de professores de educação física. Interface. 2009;13(28):99-110. demonstra que assuntos relacionados à estética corporal são, em parte, contemplados na formação de professores de Educação Física, anunciando o corpo como espelho do social. Traz que uma das dimensões mais valorizadas no corpo, na contemporaneidade, é a aparência, o corpo belo, jovem e magro como objeto de consumo, sendo imprescindível ressaltar que a aparência do corpo envolve, além da saúde, aspectos éticos com os quais o professor de Educação Física deverá lidar.

ENTRE AS LÓGICAS SOCIAIS, IMAGINÁRIOS E ESPELHO DO SOCIAL

Além disso, os periódicos revelam que o corpo ainda é diferenciado nas variáveis biológicas para legitimar distinções entre os gêneros. A esse respeito, há o relato de Mauss (2017)Mauss M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Ubu Editora; 2017., no capítulo intitulado “As Técnicas Corporais”, que dá um exemplo simples de gênero em seu livro, a partir de uma técnica corporal básica: fechar os dedos da mão. Durante a técnica relatada por Mauss, as mulheres fechavam os dedos deixando o polegar dentro do punho. Essa variação técnica, hoje desaprendida, já foi natural a gerações anteriores. A técnica proposta por Mauss é simples e demonstra que o biológico não interferiria nesta condição, mas sim o social. Para aquelas mulheres, “cerrar os punhos”, como em uma briga corporal, não fazia parte das técnicas compreendidas por elas naquele dado momento histórico. É válido considerar o passado histórico e, mais ainda, perceber o contexto atual e como as distinções ainda prevalecem, quer sejam nas representações, nas práticas esportivas e/ou no imaginário social.

Os debates em torno do corpo relacionado à cultura na formação de professores, que dizem respeito às três categorias de análise em questão, em sua maioria, apresentam dados relativos a pelo menos duas dessas categorias. Daí a importância de problematizarmos este tema, no sentido de refletirmos sobre as categorias atravessadas por eles, a possibilitar a compreensão acerca da produção do conhecimento na área e seus desdobramentos. Esta tese pode ser reforçada pela aproximação definida pela similaridade demonstrada pelo gráfico a seguir, através dos “nós” em cluster, construída no software NVivo.

Na Figura 3, é possível observar, por meio da análise de cluster, que compara a similaridade entre os “Nós” pela qual se nota uma relação mais próxima entre os códigos “Lógicas sociais e culturais do corpo” e “O corpo no espelho do social”. Dos artigos analisados, desde o início do século XXI, que apresentam a temática corpo e a cultura na formação de professores, poucos apresentam uma diversidade cultural do currículo da Educação Física. A visão biologicista, fragmentada, estética, esportivista e motora predomina e não dialoga com os saberes sociais.

Figura 3
Itens em cluster por similaridade. Fonte: Elaboração dos autores.

Corroborando o pensamento de Silva et al. (2016)Silva TQ, Almeida DF, Wiggers ID, Andrews DL, Silva LRT. Is there a sociology of the body in Brazil? Movimento. 2016;22(4):1249-64. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.61981.
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, acreditamos que o estudo da sociologia do corpo brasileiro está iniciando um trabalho promissor, inclusive no que diz respeito à formação de professores de Educação Física, em que essa atua como precursora, a partir de um olhar do corpo como um fenômeno complexo que pode ser analisado em múltiplas disciplinas, como a educação física, a psicologia, a antropologia, a sociologia, entre outras.

Sendo assim, em um panorama social, o corpo em si não tem uma categoria definida, pois, sendo integral, refere-se ao humano total, ou seja, refere-se à integração do biológico, psicológico e social. É muito comum no imaginário social separar-se o corpo e a mente, ou até corpo e alma, como se o corpo fosse algo distinto do ser humano. Le Breton (2017)Le Breton D. A sociologia do corpo. 6ª ed. Petrópolis: Vozes; 2017. retrata que as pesquisas sociológicas privilegiaram, sobretudo, as ações do corpo, mas questionam sobre de que "corpo" se trata. Enfatiza o quão absurdo é nomear o corpo como se fosse um fetiche, isto é, omitindo o homem que o encarna.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As visões relacionadas ao corpo, atreladas apenas aos aspectos biológicos indicando um olhar fragmentado, precisam ser superadas na formação de professores de Educação Física. Salientamos, portanto, a importância do diálogo entre o corpo e o saber social. Nesta pesquisa, pudemos perceber que a compreensão do corpo e da corporeidade sofrem transformações a partir dos saberes e práticas construídos e desenvolvidos durante a formação docente.

Percebemos, por meio da pesquisa, uma maior prevalência de estudos na categoria “Lógicas sociais e culturais do corpo”. Essa categoria abrange os campos: técnicas do corpo, gestualidade, etiqueta corporal, expressão dos sentimentos, percepções sensoriais, técnicas de tratamento, inscrições corporais e a má conduta corporal (Le Breton, 2017Le Breton D. A sociologia do corpo. 6ª ed. Petrópolis: Vozes; 2017.). Alguns desses conteúdos prevalentes na maior parte dos artigos dialogam com alguns dos campos apresentados nessa categoria, mas deixam de fora temas como a expressão de sentimentos, as técnicas de tratamento e as inscrições corporais.

Esta pesquisa não tem a pretensão de esgotar o tema, embora possa servir de subsídio para novos estudos acerca das temáticas abordadas, em especial pela importância que a compreensão sobre a forma como a educação física é retratada no meio acadêmico e pelo que ela representa para o meio educacional, formativo e social.

  • FINANCIAMENTO

    O trabalho contou com apoio financeiro da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal, tendo em vista o uso do Software NVivo v. 12, relativo ao projeto de pesquisa “As repercussões da escola sociológica norte-americana na constituição da sociologia do corpo no Brasil”.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    19 Out 2022
  • Aceito
    06 Nov 2022
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