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Mediações entre trabalho e educação física: uma análise a partir de um programa de escolarização de trabalhadores

Mediations between work and physical education: an analysis based on a workers educational program

Mediaciones entre el trabajo y la educación física: un análisis a partir de un programa de educación de trabajadores

RESUMO

Este texto apresenta resultados de uma pesquisa que tem como objetivo compreender o papel da Educação Física em um programa de escolarização de adultos trabalhadores do município de Porto Alegre/RS. Utiliza-se o materialismo histórico dialético como teoria e método de pesquisa, apontando como parte dos resultados a ausência da categoria trabalho no interior da Educação Física e a reivindicação por parte dos sujeitos pesquisados de que a área possa contribuir para pensar o trabalho enquanto atividade humana fundamental. Por fim, considera-se que a educação física é parte importante da formação humana, aliada a uma educação científica e técnica, que possa contribuir para a constituição de um projeto histórico da classe trabalhadora, superando a sociedade do capital.

Palavras-chave:
Educação de trabalhadores; Trabalho e educação; Ensino de Educação Física; Formação humana

ABSTRACT

This text presents the results of a research that aims to understand the role of Physical Education in a schooling program for working adults in the city of Porto Alegre/RS. Dialectical historical materialism is used as a theory and research method, pointing out as part of the results the absence of the work category within Physical Education and the claim by the researched subjects that the area can contribute to thinking about work as a human activity fundamental. Finally, it is considered that physical education is an important part of human formation, combined with scientific and technical education, which can contribute to the constitution of a historical project of the working class, overcoming the capital society.

Keywords:
Workers' education; Work and education; Teaching Physical Education; Human formation

RESUMEN

Este texto presenta los resultados de una investigación que tiene como objetivo comprender el papel de la Educación Física en un programa de escolarización de adultos trabajadores en la ciudad de Porto Alegre/RS. Se utiliza como teoría y método de investigación el materialismo histórico dialéctico, señalando como parte de los resultados la ausencia de la categoría trabajo dentro de la Educación Física y la afirmación de los sujetos investigados de que el área puede contribuir a pensar el trabajo como actividad humana fundamental. Finalmente, se considera que la educación física es parte importante de la formación humana, combinada con la educación científica y técnica, que puede contribuir a la constitución de un proyecto histórico de la clase obrera, superando la sociedad del capital.

Palabras-clave:
Educación de trabajadores; Trabajo y educación; Enseñanza de la Educación Física; Formación humana

INTRODUÇÃO

Este trabalho é resultado de pesquisa realizada no interior de um programa de pós-graduação em Ciências do Movimento Humano, tendo como objeto de pesquisa um programa de escolarização de adultos trabalhadores da Prefeitura Municipal de Porto Alegre/RS, buscando compreender o papel da Educação Física1 1 Aqui fazemos uma distinção. Tratamos Educação Física (EF) com letras iniciais maiúsculas quando nos referimos à área do conhecimento constituída no espaço escolar ou não escolar, e com iniciais minúsculas quando tratamos de sua perspectiva histórica, quando assume desde a Antiguidade, até os dias atuais, diferentes constituições enquanto manifestação da cultura corporal. nesse programa e suas contribuições para a construção de uma educação da classe trabalhadora. Nosso ponto de partida, portanto, é o trabalho pedagógico realizado no programa analisado, que tem como objetivo garantir aos servidores da Prefeitura Municipal de Porto Alegre a conclusão de seus estudos na Educação Básica (Ensino Fundamental e Ensino Médio) na modalidade de Educação de Jovens e Adultos. As aulas são ofertadas nos seus próprios locais de trabalho e durante a jornada semanal, onde os trabalhadores estudantes são liberados de sua atividade laboral durante dois turnos semanais para frequentar as aulas, possibilitando a certificação da escolarização.

No cenário desta pesquisa, temos ainda a pandemia da COVID-19, que chega num momento de profundo agravo da crise do capitalismo que, na verdade, segundo Antunes (2002)Antunes R. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo; 2002., trata-se de uma crise no modo de acumulação de capitais que, a partir do esgotamento do padrão fordista de produção, com a queda da taxa de lucro, a classe no poder precisa reorganizar o padrão de acumulação, seu sistema ideológico e político de dominação. Isso se manifesta mais fortemente no Brasil a partir da década de 1990 com as políticas neoliberais, e na atualidade com a flexibilização do trabalho que gera uma intensa precarização dos trabalhadores, altos níveis de desemprego e consequências no campo da educação que precisa atender às novas demandas para a formação de trabalhadores.

Acompanhado disso, há uma crença no fim do trabalho vivo e material, e uma centralidade na chamada sociedade da informação ou do conhecimento, visto que aquilo que confere valor ao trabalho assume cada vez mais a forma de trabalho abstrato, por meio das novas tecnologias digitais. Há, assim, o que Antunes (2002, pAntunes R. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo; 2002.. 119) chama de uma redução do trabalho vivo e uma ampliação do trabalho morto, porém

[...] o capital não pode eliminar o trabalho vivo do processo de criação de valores, ele deve aumentar a utilização e a produtividade do trabalho de modo a intensificar as formas de extração do sobretrabalho em tempo cada vez mais reduzido.

Essas formas de extrair mais trabalho perduram a níveis alarmantes e em suas mais diversas e arcaicas formas, principalmente na periferia do sistema capitalista como a América Latina, configurando uma intensa exploração da força humana que trabalha, ou seja, do corpo de trabalhadores e trabalhadoras. Assim, por mais que estejamos vivendo a era da informação e da tecnologia, a exploração da força que trabalha persiste:

Sem a produção de energia, de cabos, de computadores, de celulares e de uma infinidade de produtos materiais, sem o fornecimento das matérias-primas para a produção das mercadorias, sem o lançamento de satélites ao espaço para carregar seus sinais, sem a construção de edifícios onde tudo isso é produzido e vendido, sem a produção e a condução de veículos que viabilizem sua distribuição, sem toda essa infraestrutura material, a internet não poderia sequer ser conectada. Por conta desse elemento vital, [...] são ainda poucos os trabalhos que não demandam alguma forma de atividade física, mesmo que seja apenas a de utilizar um teclado (Antunes, 2018, pAntunes R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo; 2018.. 50-51, grifo nosso).

Esses são elementos que atravessam esta pesquisa e que nos colocam questões ao campo da Educação Física como: qual seu papel na atualidade para a formação da classe trabalhadora? Como viemos tratando no interior da área o trabalho e os corpos que trabalham e realizam uma atividade física bastante específica? Nesse sentido, apresentamos neste texto resultados de pesquisa já concluída junto a um programa de escolarização de trabalhadores, mas também apontamentos que seguimos fazendo no interior de nossa área, reforçando a necessidade de os conhecimentos produzidos e sistematizados neste campo estarem à disposição da classe trabalhadora em detrimento ao avanço do capital.

Ao produzirmos conhecimento que se contrapõe ao projeto histórico burguês, estamos instaurando um processo de contradição e de disputa do eixo estruturante que conduz a finalidade da ciência. Diante de um fenômeno que se manifesta para nós enquanto forças retrógradas através do conservadorismo, do autoritarismo, da negação da ciência e do ataque às universidades públicas, esses conflitos incidem no impedimento da produção de conhecimento, ciência e tecnologia necessários para o enfrentamento das problemáticas como as que estamos vivendo, fazendo com que pesquisas que desvelem o marco temporal e estrutural atual sejam cada vez mais necessárias.

Além disso, momentos como este que estamos vivendo, também de ataques à legitimidade da Educação Física no interior da escola, podem ser profícuos para reafirmarmos a sua relevância na formação da classe trabalhadora. E, ainda, analisar um programa de escolarização de adultos trabalhadores se apresenta também como possibilidade de evidenciá-lo e qualificá-lo, garantindo sua continuidade como política pública para a formação dos trabalhadores.

A EDUCAÇÃO FÍSICA A PARTIR DA ONTOLOGIA DO SER SOCIAL

O arcabouço teórico utilizado nesta pesquisa buscou, primeiro, tratar dos conceitos de trabalho, história, conhecimento e educação a partir dos estudos de Marx e de marxistas, realizando ainda um esboço histórico da relação entre trabalho e educação (Manacorda, 1989Manacorda MA. História da educação: da Antiguidade aos nossos dias. 2ª ed. São Paulo: Cortez; 1989.; Saviani, 2008Saviani D. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores Associados; 2008.). Além disso, buscou-se situar a forma e o conteúdo que a educação assume na sociedade capitalista, a trajetória da Educação de Jovens e Adultos no Brasil e as perspectivas contra-hegemônicas das quais nos utilizamos, quais sejam a Pedagogia Histórico-Crítica e a Pedagogia Socialista.

Em se tratando da Educação Física, consideramos que retomar a questão, “mas afinal o que é a Educação Física?” (Gaya,1994Gaya A. Mas afinal, o que é Educação Física? Movimento (Porto Alegre). 1994;1(1):29-34. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.2012.
http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.201...
; Taffarel e Escobar, 1994Taffarel CNZ, Escobar MO. Mas afinal, o que é Educação Física? Um exemplo de simplismo intelectual. Movimento. 1994;1(1):35-40. http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.2013.
http://dx.doi.org/10.22456/1982-8918.201...
), é extremamente necessário para a constituição de nossa área, para o entendimento de seu objeto de estudo, e de suas diferentes perspectivas. E, ainda, esta questão deve ser compreendida não de forma abstrata e idealista, mas enraizada na dinâmica do movimento social.

Compreendemos aqui que existe uma pluralidade de concepções no interior de nossa área, sendo a que mais nos aproximamos a Perspectiva Crítico-Superadora, que, de modo geral, tem como base os estudos da Pedagogia Histórico-Crítica, da Psicologia Histórico-Cultural e do Materialismo Histórico-Dialético. Nesse sentido, a educação física trata-se de atividade humana que compõe a complexidade do ser social, suas múltiplas manifestações ao longo do desenvolvimento humano, sendo necessário compreender, ainda, a forma que essa assume no capitalismo. A Educação Física, enquanto disciplinar escolar, nasce no final do século XIX junto com a formação dos sistemas nacionais de ensino, tendo um papel na constituição de um cidadão moderno. A educação do corpo aparece como um quesito importante para os objetivos definidos para a instituição escolar na fase de aprimoramento do capitalismo, preparando os homens para a emergente sociedade. A educação e a educação física, nesse sentido, servem para respaldar a organização capitalista, e “A educação física tal como a conhecemos é uma produção das relações capitalistas; portanto, nasce com o capitalismo e transforma-se com este” (Mello, 2014, pMello RA. A necessidade histórica da Educação Física na escola: os impasses atuais. São Paulo: Instituto Lukács; 2014.. 112).

A educação física enquanto cultura corporal é marcada no desenvolvimento do ser social por uma teleologia, ou seja, por uma finalidade, colocada a partir dos interesses de uma sociedade dividida em classes sociais antagônicas. Portanto, no capitalismo tal finalidade está hegemonicamente subordinada à lógica e às finalidades impostas pela burguesia enquanto classe dominante, que transforma tudo em mercadoria e incorpora tudo à lógica da produção de mais-valor. Nessa lógica, há um afastamento daquilo que chamamos de mediações de primeira ordem, ou de reino das necessidades, fazendo com que a educação, apartada do trabalho, esteja restrita à esfera do reino das liberdades e afastada das mediações primárias. Definimos aqui melhor o que estamos tratando.

Por mediações de primeira ordem, entendemos, a partir de Antunes (2002)Antunes R. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo; 2002. com base em Mészáros, que essas são aquelas cuja finalidade é a preservação das funções vitais e da reprodução individual e social, tendo como característica definidora que os seres humanos são parte da natureza e realizam suas necessidades elementares em intercâmbio com a própria natureza. Tais mediações, além da regulação biológica reprodutiva, trata-se da regulação do processo de trabalho que se dá através do intercâmbio com a natureza. Portanto, o trabalho, conforme definição de Marx (2014, pMarx K. O Capital, livro primeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2014.. 255):

[...] é antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza, processo este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele se confronta com a matéria natural como com uma potência natural. Ele se confronta com a matéria natural de uma forma útil para sua própria vida, ele põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua corporeidade: seus braços e pernas, cabeça e mãos. Agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza.

Nisso, reside a dimensão da necessidade, sendo a atividade humana uma constante relação dialética entre necessidade/determinação e liberdade. Como afirma Engels (1979)Engels F. Anti-duhring. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1979. com base em Hegel, a liberdade é o domínio de nós mesmos e de nossa natureza exterior, mas baseada na consciência de nossas necessidades e condições naturais. Não há independência do ser humano em relação às leis naturais, mas a liberdade reside na consciência dessas próprias leis e na possibilidade de projetá-las para um determinado fim.

Como afirma Lukács (2018, pLukács G. Para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo; 2018. (vol. 1).. 354): “Cada ser humano é, por natureza, um complexo biológico, compartilhando, portanto, todas as peculiaridades do ser orgânico”. Esse ser biológico, no entanto, é determinado de modo preponderante e crescente pela sociedade, pelas relações sociais que vão se desenvolvendo no curso da história. Assim, se tratarmos de um corpo puramente biológico, estaremos apartando-o de sua sociabilidade, não levando em conta que a sociabilidade capitalista universalizou o valor de troca e transformou tudo em mercadoria, inclusive o corpo. Mas, se entendermos tal corpo apenas como cultura, desprovido de sua dimensão biológica-natural, estaremos desconsiderando a condição eterna das mediações primárias que o ser humano realiza para a satisfação de suas necessidades, dentre elas, o trabalho.

Viemos percebendo que o corpo que trabalha, ou seja, as mediações primárias que tal corpo realiza, são pouco tratadas em nossa área, tanto no campo do ensino quanto da pesquisa. Embora tenhamos na Educação Física distintas concepções, de forma preponderante, o corpo ora é entendido como organismo biológico esvaziado de sociabilidade, ora é entendido como cultura, desprovido de sua dimensão biológica-natural. Tais compreensões desconsideram, por vezes, que a relação entre ser natural e ser social ocorre de forma dialética no decurso do movimento da história.

Como afirma Eagleton (2014, pEagleton T. Depois da teoria: um olhar sobre os estudos culturais e o pós-modernismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2014.. 15), “Entre os estudantes da cultura, o corpo é um tópico imensamente chique, na moda, mas é, em geral, o corpo erótico, não o esfomeado. Há um profundo interesse por corpos acasalados, mas não pelos corpos trabalhadores”. Poderíamos analisar essa consideração de Eagleton na área da Educação Física, visto que muito tem se detido e demonstrado interesse em pesquisas relacionadas aos corpos dos atletas, ginastas, dos jogadores de futebol, maratonistas, nadadores, e pouco tem se detido a tratar dos corpos em sua atividade física fundamental, o trabalho.

Identificamos a partir da concepção apresentada por Lukács (2018)Lukács G. Para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo; 2018. (vol. 1). na Ontologia do Ser Social, o corpo como prioridade ontológica, e é a partir dessa concepção que analisaremos a relação entre corpo, trabalho e educação. Sendo prioridade ontológica, o corpo enquanto um ente natural-social possui uma dimensão fenomênica, mas também uma essência, sendo ambos componentes reciprocamente indissociáveis do complexo histórico-social. Ou seja, no âmbito fenomênico, o corpo se manifesta, apresenta-se para nós de diferentes formas, marcado a partir de seu gênero, sua raça, sua cor, sua classe social, dentro de um padrão de normalidade imposto, de valores, regras e símbolos que se constituem no campo das relações sociais. Porém, essa forma de sociabilidade, segundo Lukács (2018)Lukács G. Para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo; 2018. (vol. 1)., suscita em alguns indivíduos a ilusão de ser independente da sociedade como um todo, de existir de algum modo como “átomos individuais” e, ainda, afastados de sua natureza biológica.

O que queremos aqui apontar, a partir da pesquisa realizada, é que há necessidade de pensarmos o corpo que trabalha, visto que não há como pensá-lo em seu tempo livre (“reino das liberdades”) sem pensá-lo no “reino das necessidades”. Só há a possibilidade de o corpo realizar o lazer e as atividades no tempo livre porque há corpos realizando atividades de trabalho e produzindo as necessidades humanas. É a partir dessas premissas que analisamos o objeto aqui estudado.

O MATERIALISMO HISTÓRICO-DIALÉTICO COMO TEORIA E MÉTODO

Entendemos que o método de pesquisa trata do modo como vamos conhecer a realidade e, ainda, encontra-se atrelado ao objeto e à finalidade do estudo, portanto, requer uma tomada de posição. Utiliza-se nesta pesquisa o materialismo histórico-dialético como teoria e método que nos possibilita superar os limites das concepções positivistas e idealistas, e, partindo das relações mais imediatas e aparentes, destruir a pseudoconcreticidade dos fenômenos (Kosik, 2002Kosik K. Dialética do concreto. São Paulo: Paz e Terra; 2002.), até chegar às suas determinações mais complexas.

O método legado a partir de Marx se diferencia tanto do materialismo clássico positivista, quanto do materialismo contemplativo de Feuerbach, visto que o conhecimento não é um simples reflexo da realidade, mas um processo feito de uma série de abstrações para o desenvolvimento de conceitos. O materialismo histórico-dialético busca, portanto, superar tanto as concepções positivistas e empiristas, e também o campo da fenomenologia, que mantém o núcleo de suas forças na consciência humana, suspendendo a afirmação da realidade do mundo e deslocando essa para a própria consciência (Wachovicz, 1991Wachovicz LA. O método dialético na didática. Campinas: Papirus; 1991.).

A produção do conhecimento na perspectiva dialética trata-se, assim, de uma atividade criadora, que produz um objeto teórico, mas que este vincula-se necessariamente à prática. Segundo Vásquez (2011, pVásquez AS. Filosofia da Práxis. São Paulo: Expressão Popular; 2011.. 209), “O conhecimento é uma atividade, um processo mediante o qual se recorre a uma série de operações e procedimentos para transformar os dados iniciais (nível empírico) em um sistema de conceitos (nível teórico)”.

Portanto, a escolha por um campo teórico metodológico diz respeito às concepções de mundo, de sociedade e de ser humano do pesquisador, sendo o que possibilitará instaurar apontamentos de continuidade do projeto histórico vigente ou de superação das contradições evidenciadas pelo processo de pesquisa. Nesse sentido, mais do que técnicas de coletas de dados, o que tem precedência no processo de pesquisa é a teoria do conhecimento, ou seja, como o sujeito conhece a realidade, e sob qual nível dessa realidade ele permanecerá. Como afirma Freitas (1995, pFreitas LC. Crítica da organização do trabalho pedagógico e da didática. Campinas: Papirus; 1995.. 71):

[...] o cerne do procedimento metodológico diz respeito à construção, no pensamento, do desenvolvimento das contradições presentes na prática, incluindo suas possibilidades de superação. Dessa forma, procuramos nos separar da perspectiva fenomenológica que enfatiza o estudo das percepções e representações dos sujeitos, da mesma forma que nos separamos da perspectiva positivista. Ambas, por métodos diferentes, permanecem no nível das representações.

O processo investigativo não se trata apenas de aplicação de um instrumental metodológico de passos a serem seguidos de forma mecânica, mas, como afirma Frizzo (2010)Frizzo GFE. A teoria do conhecimento na produção científica sobre o trabalho pedagógico na Educação Física. In: Molina V No, Bossle F, editores. O ofício de ensinar e pesquisar na educação física escolar. Porto Alegre: Sulina; 2010., se refere aos diversos modos de organizar a realidade e de se aproximar do objeto a conhecer, tratando-se, pois, de dimensões técnicas, concepções epistemológicas e filosóficas. Para isso, a presente pesquisa utilizou entrevistas semiestruturadas e rodas de conversa com trabalhadores do Programa analisado (alunos, professores e gestores), além de análise documental.

Posto isso, a partir dos dados coletados durante a investigação, o papel do pesquisador é fazer as conexões necessárias, apresentando a inter-relação entre as partes e a totalidade, que identificam as múltiplas dimensões do fenômeno, seus múltiplos aspectos interligados. Para tanto, o papel do sujeito que investiga é fundamental, pois, como afirma Marx (2014), oMarx K. O Capital, livro primeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2014. sujeito tem de apoderar-se da matéria, em seus pormenores, analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e perquirir a conexão entre elas. É nesse momento de análise que o pesquisador elenca as categorias centrais da pesquisa, sendo estas não dadas a priori, não se chega com elas para realizar a pesquisa, mas elas são extraídas da realidade, emergem dela.

AS MEDIAÇÕES ENTRE TRABALHO E EDUCAÇÃO FÍSICA

Dentre as categorias analisadas na pesquisa realizada, podemos citar a relação entre trabalho e educação, além da constituição do trabalho pedagógico no programa pesquisado através das relações entre forma e conteúdo, teoria e prática, indivíduo, meio e sociedade, e também da alienação do trabalho docente. Iremos nos deter aqui nas análises realizadas a partir da relação entre trabalho e educação física, de forma específica.

Ao questionarmos os trabalhadores alunos sobre a relação entre trabalho e educação, alguns afirmaram:

[na Educação Física] tu vai ter um profissional que vai te ensinar como levantar, aqui não, tu vai pegar essa mesinha vai tirar daqui e colocar pra lá, aqui não tem ninguém pra dizer isso, aqui tu pega e faz. (TA 7)2 2 Os sujeitos participantes da pesquisa são aqui identificados através da sigla TA – Trabalhadores Alunos, e um número respectivo. .

E ainda:

É que antes de 1992 não tinha nenhuma preparação [...] depois começou a ter, antes era de qualquer jeito [...] E a nutrição nesse tempo geralmente pra nós correr atrás do caminhão, era cachaça, era um copo de cachaça, se eu tiver mentindo aqui... No inverno era pior, às vezes a gente comia um pedaço de salame, uma banana porque não se parava pra almoçar, não tinha esse tempo. (TA2).

Diante disso, e com base nos referenciais teóricos aqui utilizados, primeiro, percebe-se que, com a experiência junto a este programa de escolarização, uma das questões evidenciadas é que os conhecimentos científicos produzidos pela Educação Física e que a embasam, tem se detido a dotar de suporte a atividade do jogador de futebol, do corredor, do nadador, do maratonista, do ginasta etc., articulando toda uma interdisciplinaridade para realizar o maior rendimento e os cuidados com a saúde do corpo atlético. Ou seja, a Educação Física tem se detido a pensar o corpo em atividade humana para o chamado “reino das liberdades”, para o lazer, o esporte, o entretenimento, o tempo livre.

Em segundo, a Educação Física tem se aproximado do mundo do trabalho, em grande medida através de um campo de atuação bastante específico: a ginástica laboral. Essa concepção, de acordo com a análise que fazemos, reforça a ideia funcionalista de preparação física para a manutenção de um corpo para desempenhar o papel produtivo, limitando-se a adaptar os trabalhadores passivamente a realizarem melhor suas atividades laborativas, conformando-os a uma lógica de exploração e de reprodução do capital e não contribuindo para uma práxis criadora e transformadora.

Afastando-nos dessa perspectiva, queremos aqui retomar que as manifestações da cultura corporal se desenvolvem no processo de constituição do ser social enquanto mediações de segunda ordem que subordinam as mediações de primeira ordem (Mészáros, 2016Mészáros I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo; 2016.). É necessário, porém, compreender que antes da existência do esporte natação, por exemplo, o homem precisou atravessar um rio para garantir suas necessidades primárias (comer, morar, vestir), portanto, o ato de pular, saltar, correr, nadar são elementos corporais da atividade humana historicamente demandados para estabelecer a relação entre ser humano e natureza, ou seja, mediações de primeira ordem. Sem desconsiderar que tais mediações foram se complexificando no decurso da história, tais atividades foram sendo subordinadas às mediações secundárias e se estabelecendo como manifestações da cultura corporal, distanciando-se do “reino das necessidades”, ou seja, fazendo com que tais manifestações se apresentem para nós hoje com pouca ou nenhuma relação com o trabalho. Para garantir as nossas necessidades humanas, já não mais precisamos saltar, pular ou correr, mas precisamos, enquanto gênero humano, da produção de comida, bebida, vestimenta e moradia e da força humana que as produz, visto que o ser humano tem de produzir para não morrer.

Dito isso, advogamos aqui que ambas as atividades, seja um esporte ou uma atividade de trabalho, são atividades com fins específicos, que possuem um distanciamento relativo no processo de desenvolvimento do ser social e que, portanto, demandam de formas distintas a atividade corporal. Sendo assim, indagamos: a Educação Física, que historicamente se deteve a pensar a atividade humana para o “reino das liberdades”, não deveria também pensar o corpo que trabalha e produz as necessidades humanas, sem as quais não sobrevivemos? A análise das entrevistas feitas com trabalhadores no setor de serviços, que realizam trabalhos manuais no seu cotidiano, nos demonstram que essa é uma reivindicação dos próprios trabalhadores à área da Educação Física.

Isso aí [os cuidados com o corpo] era pra ter na época que a gente entrou no serviço, agora já não dá mais tempo. (TA3).

A gente tem que ter uma renovação também né, a gente não é uma máquina, a gente é um ser humano, claro que a gente tem que ter os cuidados, mas vai chegar um tempo que não dá mais. (TA5).

Os trabalhadores alunos deixam claro que a Educação Física muito contribuiria para a realização das mais diversas atividades e movimentos executados no trabalho, tais como correr, caminhar, agachar, saltar, carregar pesos, realizar atividades com recursos anaeróbicos e aeróbicos, que exigem resistência, força, flexibilidade, cuidados com os sistemas circulatório e respiratório, movimentos de flexão e extensão, abdução e adução, de rotação. Ou seja, tudo aquilo que a área tem sistematizado e elaborado e que está a serviço dos mais diversos esportistas, atletas e jogadores, qualificando os esportes, jogos, danças, e diversos tipos de manifestações da cultura corporal.

Porém, não estamos tratando aqui apenas da atividade de trabalho como movimento realizado em si mesmo, mas sim como movimento histórico e ontológico, portanto, à Educação Física cabe também contribuir para que os trabalhadores compreendam o que é trabalho na sua perspectiva ontológica, quais as formas que o trabalho assumiu ao longo da história, quais as diversas manifestações da cultura corporal (material e imaterial), qual o papel que ele ocupa nessa sociedade de classes, como se constitui o ser social, quais as contradições colocadas na sociedade atual entre capital e trabalho, corpo e mente, teoria e prática etc.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Construir uma perspectiva de Educação Física que priorize as atividades humanas fundamentais também realizadas na esfera do trabalho requer duas condições: 1) que professores e pesquisadores da área compreendam o corpo que trabalha como força produtiva que produz riqueza e atribui valor às mercadorias, enfatizando que não há possibilidade de dar adeus ao trabalho material, vivo e concreto. Entendendo isso, poderemos nos empenhar para além da lógica funcionalista e socializar os conhecimentos (técnico, científico e corporal) que outrora foram expropriados dos próprios trabalhadores e que se constituem também como força produtiva. 2) Segundo, assumir a concepção de formação humana, rompendo com a unilateralidade de uma formação para o mercado de trabalho, possibilitando à classe trabalhadora uma formação que contemple as múltiplas dimensões da vida, tanto no tempo de trabalho quanto no tempo livre, condição para que todos possam desfrutar das manifestações da cultura corporal. Assim, a Educação Física poderá se constituir como educação corporal, fazendo parte de uma educação politécnica e integral, inserida no processo dialético de apropriação e objetivação da vida humana.

Retomando a fala dos trabalhadores alunos nesta pesquisa, a Educação Física precisa contribuir para que o trabalhador compreenda que não é uma máquina, mas sim que é um ser humano e que “vai chegar um tempo que não dá mais”, precisa contribuir para que a nutrição para “correr atrás do caminhão” não seja mais a cachaça. É papel da Educação Física, através dos estudos sobre envelhecimento e gerontologia, por exemplo, dizer quando se esgotaram as forças físicas dos trabalhadores, assim como nos esportes de alto rendimento, dando suporte à sua aposentadoria, à sua saúde, à sua integridade física.

Percebe-se, assim, com esta pesquisa que, embora o programa de escolarização de trabalhadores analisado insira-se na lógica de adequação dos trabalhadores às novas necessidades de organização da produção, apontamos possibilidades para a área da Educação Física junto à formação dos trabalhadores, dentre elas a necessidade de uma apreensão teórica da realidade, superando as relações imediatas e empíricas. Além disso, pode contribuir para a superação da lógica funcionalista da atividade física, tendo como tática do projeto histórico da classe trabalhadora a socialização dos conhecimentos produzidos ao longo do desenvolvimento humano para a efetiva formação humana dos trabalhadores, apontando um novo horizonte societário, que não a sociedade do capital.

  • 1
    Aqui fazemos uma distinção. Tratamos Educação Física (EF) com letras iniciais maiúsculas quando nos referimos à área do conhecimento constituída no espaço escolar ou não escolar, e com iniciais minúsculas quando tratamos de sua perspectiva histórica, quando assume desde a Antiguidade, até os dias atuais, diferentes constituições enquanto manifestação da cultura corporal.
  • 2
    Os sujeitos participantes da pesquisa são aqui identificados através da sigla TA – Trabalhadores Alunos, e um número respectivo.
  • FINANCIAMENTO

    O presente trabalho contou com apoio financeiro através de bolsa de mestrado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

REFERÊNCIAS

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  • Wachovicz LA. O método dialético na didática. Campinas: Papirus; 1991.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    15 Out 2022
  • Aceito
    14 Nov 2022
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