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A RBCE e os desafios para o periodismo científico brasileiro

The RBCE and the challenges for Brazilian scientific journalism

La RBCE y los desafíos del periodismo científico brasileño

Foi em fevereiro de 2022 quando publicamos o último editorial da Revista Brasileira de Ciências do Esporte (RBCE), referente ao seu volume 44. (Mascarenhas et al., 2022Mascarenhas FM, Lazzarotti A Fo, Vianna LC. A ciência e a RBCE em mais um ano de pandemia. Rev Bras Cienc Esporte. 2022;44:e004401. https://doi.org/10.1590/rbce.44.ED4401.
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). Ainda vivíamos sob os efeitos pandemia da COVID-19, cujas repercussões e impactos, para além dimensão sanitária e epidemiológica, foram também de ordem econômica, política, cultural e histórica.

Em maio deste ano, a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretou o fim da emergência de saúde global causada pela Covid-19. Estimativas apontam que, no mínimo, 20 milhões de pessoas faleceram no mundo e, conforme dados do Ministério da Saúde (MS), desde o início da pandemia foram registradas mais de 700 mil mortes no país (MS, 2023MS: Ministério da Saúde. Painel Coronavírus [Internet]. Brasília: MS; 2023 [citado 2023 Out 6]. Disponível em: https://covid.saude.gov.br.
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).

Vale lembrar que a pandemia chegou ao Brasil em meio a um cenário de desmonte do Estado, desfinanciamento das políticas sociais, precarização da saúde pública, ataques à educação e desmoralização das universidades, comprometendo ainda mais a capacidade de resposta do país à Covid-19. O saldo da política negacionista do governo Bolsonaro, para além das vidas perdidas que poderiam ter sido salvas, foi a desorganização da ciência, com o sucateamento da infraestrutura de pesquisa no país.

Não obstante, em 2022, a produção científica brasileira registrou queda, o que não ocorria desde 1996. Relatório da editora científica Elsevier e da Agência Bori divulgado em julho revela que a produção científica mundial aumentou 6,1% em 2022. Mas 23 países registraram queda na quantidade de artigos publicados. O Brasil foi o país que registrou a maior redução na publicação de artigos científicos no ano, com um total de 74,5 mil títulos publicados, o que representa um decréscimo de 7,4% em relação a 2021. (FAPESP, 2023FAPESP: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Produção científica brasileira cai pela primeira vez desde 1996 [Internet]. São Paulo: FAPESP; 2023 [citado 2023 Out 6]. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/producao-cientifica-brasileira-cai-pela-primeira-vez-desde-1996/
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).

Infelizmente, a RBCE também registrou queda na publicação de artigos científicos. Porém, com um decréscimo bem maior, de 22,4%, o que representa 52 títulos publicados em 2022 (volume 44) contra 67 em 2021 (volume 41). A hipótese levantada para explicar a redução da produção científica brasileira está relacionada com os efeitos da pandemia, os cortes de verbas, a indisponibilidade de recursos laboratoriais e insumos, os lockdowns e as restrições de deslocamento. (FAPESP, 2023FAPESP: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Produção científica brasileira cai pela primeira vez desde 1996 [Internet]. São Paulo: FAPESP; 2023 [citado 2023 Out 6]. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/producao-cientifica-brasileira-cai-pela-primeira-vez-desde-1996/
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). No caso da RBCE, é certo que a queda do número de submissões e artigos publicados segue a tendência geral, justificando-se pelos mesmos motivos. Mas o que explicaria esse desempenho bem mais negativo? A hipótese que consideramos no momento é a de que a esta queda ocorreu, em grande medida, por causa do novo Qualis Periódicos.

O chamado novo Qualis, oficializado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) em 29/12/2022 (porém, divulgado em 2019), é referente ao quadriênio de avaliação 2017-2020. Diferentemente das versões anteriores, instituiu novos estratos de classificação – A1, A2, A3, A4, B1, B2, B3, B4 e C – e avaliação unificada. No quadriênio anterior (2013-2016), os estratos eram divididos em A1, A2, B1, B2, B3, B4 e B5 e C. Outra diferença é que antes o Qualis era elaborado separadamente por cada área de conhecimento, o que gerava classificações distintas para um mesmo periódico. Agora, cada periódico passou a ter apenas uma classificação válida para todas as áreas, definida por sua “área mãe”. (CAPES, 2023CAPES: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Diretoria de Avaliação. Documento técnico do Qualis Periódicos [Internet]. Brasília: CAPES; 2023 [citado 2023 Out 9]. Disponível em: https://www.gov.br/capes/pt-br/centrais-de-conteudo/documentos/avaliacao/avaliacao-quadrienal-2017/DocumentotcnicoQualisPeridicosfinal.pdf
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).

A RBCE, por exemplo, possuía Qualis B1 na área de Educação Física, enquanto na área de Ensino e de Educação era avaliada como A1 e A2, respectivamente. No novo Qualis vale apenas a classificação determinada por sua “área mãe”, isto é, a área em que o número de artigos no periódico é maior. No caso da RBCE, como o maior número de artigos publicados é de autores vinculados a programas de pós-graduação da área de Educação Física, por conseguinte, sua “área mãe” é a Educação Física.

O novo Qualis trouxe também a novidade do Qualis Referência, pelo qual passa a se considerar diretamente o ranking das bases Scopus e Web of Science (WoS) para gerar sua classificação, diferenciando os periódicos indexados nessas bases daqueles que possuem apenas h5 (base Google Scholar). Como primeiro critério de estratificação, é considerado o percentil do CiteScore (Scopus) e/ou do Fator de Impacto (WoS). No caso de o periódico não possuir Cite Score nem Fator de Impacto, é considerado o valor do índice h5 do Google Scholar. A matemática não é simples e a ela se sobrepõem ainda outros critérios definidos por cada área de avaliação. (CAPES, 2019CAPES: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Diretoria de Avaliação. Relatório do Qualis Periódicos Área 21: Educação Física [Internet]. Brasília: CAPES; 2019 [citado 2023 Out 9]. Disponível em: https://www.gov.br/capes/pt-br/centrais-de-conteudo/relatorio-qualis-educacao-fisica-pdf
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, 2023CAPES: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Diretoria de Avaliação. Documento técnico do Qualis Periódicos [Internet]. Brasília: CAPES; 2023 [citado 2023 Out 9]. Disponível em: https://www.gov.br/capes/pt-br/centrais-de-conteudo/documentos/avaliacao/avaliacao-quadrienal-2017/DocumentotcnicoQualisPeridicosfinal.pdf
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).

De toda forma, pode-se dizer que a sobrevalorização dos indicadores bibliométricos internacionais de fluxo de informação, privilegiando as revistas de língua inglesa, problema que já gerava distorções no interior da área da Educação Física, foi reforçada a partir do novo Qualis. Conforme alertávamos no último editorial da RBCE, o novo Qualis ameaça a sustentabilidade e, até mesmo, a sobrevivência dos periódicos nacionais, avaliação compartilhada pelo Fórum Nacional de Editores de Periódicos Científicos da Educação Física, Associação Brasileira de Editores Científicos e Comitê Consultivo do Programa Scielo. (Mascarenhas et al., 2022Mascarenhas FM, Lazzarotti A Fo, Vianna LC. A ciência e a RBCE em mais um ano de pandemia. Rev Bras Cienc Esporte. 2022;44:e004401. https://doi.org/10.1590/rbce.44.ED4401.
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).

Numa análise sobre os desafios e dilemas da editoração científica das revistas na área da Educação Física brasileira, Almeida et al. (2015)Almeida FQ, Bassani JJ, Vaz AF. Vicissitudes de uma história da RBCE: 35 anos de editoração científica (1979-2013). Motivivência. 2015;26(46):135-53. http://dx.doi.org/10.5007/2175-8042.2015v27n46p135.
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discorrem sobre as adversidades vividas pela RBCE ao longo dos seus primeiros 35 anos de vida. Segundo os autores, algumas dificuldades atravessaram todo ciclo de vida do periódico. Um exemplo é a preocupação com o financiamento, questão enfrentada pelos editores desde que a RBCE começou a circular até os dias hoje. Este é, de fato, um tema para a qual temos chamado atenção reiteradamente. (Mascarenhas et al., 2019Mascarenhas FM, Lazzarotti A Fo, Vianna LC. Crise no financiamento à pesquisa e desafios para RBCE. Rev Bras Cienc Esporte. 2019;41(3):231-2. http://dx.doi.org/10.1016/j.rbce.2019.08.001.
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, 2020Mascarenhas FM, Lazzarotti A Fo, Vianna LC. A ciência e a RBCE em tempos de pandemia. Rev Bras Cienc Esporte. 2020;42:e2001. https://doi.org/10.1590/rbce.42.e2001.
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, 2022Mascarenhas FM, Lazzarotti A Fo, Vianna LC. A ciência e a RBCE em mais um ano de pandemia. Rev Bras Cienc Esporte. 2022;44:e004401. https://doi.org/10.1590/rbce.44.ED4401.
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).

Por sua vez, Almeida et al. (2015)Almeida FQ, Bassani JJ, Vaz AF. Vicissitudes de uma história da RBCE: 35 anos de editoração científica (1979-2013). Motivivência. 2015;26(46):135-53. http://dx.doi.org/10.5007/2175-8042.2015v27n46p135.
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consideravam algumas das dificuldades enfrentadas pela RBCE como já superadas, um problema do passado, como é o caso da escassez de submissões de artigos. Anotam que, do primeiro ciclo (anos 1980) para o segundo ciclo da revista (anos 1990), saímos de uma condição em que faltavam trabalhos para se publicar (o que causava problemas de periodicidade) para a necessidade de se criar uma “fila” de publicação. Para se ter uma ideia, em editorial do volume 29 da revista, anunciava-se um índice de rejeição da 65%. (Fraga e Goellner, 2008Fraga AB, Goellner S. Editorial. Rev Bras Cienc Esporte. [Internet]. 2008 [citado 2023 Out 9];29(2):7-8. Disponível em: http://revista.cbce.org.br/index.php/RBCE/article/view/114/123
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).

A partir daí, a avaliação era de que a RBCE havia atingido um patamar de qualidade mais elevado, marca de um terceiro ciclo de sua história (que atravessa a década de 1990 e se consolida nos anos 2000). Esse novo ciclo, em reposta ao desenvolvimento da pós-graduação na área, é caracterizado pela preocupação com os padrões de cientificidade da revista que, cada vez mais, procura avançar no sentido da sua profissionalização e internacionalização. (Almeida et al., 2015Almeida FQ, Bassani JJ, Vaz AF. Vicissitudes de uma história da RBCE: 35 anos de editoração científica (1979-2013). Motivivência. 2015;26(46):135-53. http://dx.doi.org/10.5007/2175-8042.2015v27n46p135.
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).

Quando assumimos a editoria da RBCE, em fins de 2017, é nessa direção que trilhávamos. Legamos das equipes anteriores a publicação de ao menos 60 artigos originais por ano, a indexação junto LILACS e ao Scielo, bem como a parceria com a Elsevier, que garantiu a entrada na revista na base Scopus. Inscrevemos, assim, no Plano de Desenvolvimento Editorial PDE RBCE-SciELO 2021 metas no sentido de qualificar ainda mais a revista visando sua indexação junto à WoS, o que poderia agregar maior reconhecimento de mérito e aval interno ao sistema à qualidade de seu conteúdo. (Mascarenhas et al., 2018Mascarenhas FM, Lazzarotti A Fo, Vianna LC. Plano de Desenvolvimento Editorial – PDE RBCE-SciELO 2021. Uberlândia: CBCE; 2018 [citado 2023 Out 10]. Disponível em: https://www.cbce.org.br/upload/biblioteca/PDE%20RBCE%202021.pdf
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).

Ainda trabalhamos na construção de numa proposta consistente para indexação da RBCE junto à WoS e progredimos quanto a outros critérios de profissionalização e internacionalização da revista. Todavia, conforme advertem Vaz et al. (2023)Vaz AF, Gonçalves MC, Gonçalves CG. Impactos da avaliação da área 21 sobre os periódicos da educação física: rupturas, continuidades e desafios. In: Telles S, Baptista TJR, Costa MCS, Santos SM, organizadores. Avaliação e panorama das subáreas sociocultural e pedagógica da Educação Física: periódicos, mestrado profissional e produção docente (2017-2020) [Internet]. Uberlândia: Navegando; 2023 [citado 2023 Out 9]. p. 44-50. Disponível em: https://public.cbce.org.br/arquivos/repositorio/6505b3de01101livro2023_panorama_avaliacao_pos.pdf
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, isso não basta quando se trata da avaliação da CAPES. Quando se avança na qualificação da revista e se atingem metas definidas pelo sistema, as regras mudam, e isso não favorece quem já está em desvantagem. Ou seja, o sistema é conservador, o que significa que quem está na dianteira, assim permanece, até mesmo porque as regras são construídas de cima para baixo.

Segundo Fraga (2023), aFraga AB. Impactos da avaliação da área 21 sobre os periódicos da educação física: rupturas, continuidades e desafios. In: Telles S, Baptista TJR, Costa MCS, Santos SM, organizadores. Avaliação e panorama das subáreas sociocultural e pedagógica da Educação Física: periódicos, mestrado profissional e produção docente (2017-2020) [Internet]. Uberlândia: Navegando; 2023 [citado 2023 Out 9]. p. 21-32. Disponível em: https://public.cbce.org.br/arquivos/repositorio/6505b3de01101livro2023_panorama_avaliacao_pos.pdf
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“síndrome da marmota” – síndrome de encarceramento temporal que produz a sensação de que revivemos sempre os mesmos acontecimentos – é um bom recurso metafórico para se explicar os impactos da avaliação da CAPES sobre os periódicos de Educação Física brasileiros. Para o autor, parece que estamos eternamente presos à discussão da inadequação do Qualis Periódico para avaliação da produção da área como um todo, uma discussão que sempre se repete retornando ao mesmo ponto. Isso porque a área da Educação Física, majoritariamente, insiste na adoção de métricas que não comportam a complexidade do objeto de avaliação que é a produção científica sobre a própria Educação Física, desvalorizando os periódicos brasileiros que veiculam a produção proveniente das subáreas sociocultural e pedagógica.

Lazzarotti e Nascimento (2019)Lazzarotti A Fo, Nascimento OA. Análise comparativa das revistas do campo da educação física e educação a partir da proposta de unificação do Qualis Periódicos [Internet]. Uberlândia: CBCE; 2019 [citado 2023 Out 10]. Disponível em: https://www.cbce.org.br/noticia/analise-comparativa-das-revistas-a-partir-das-propostas-de-unificacao-do-qualis-periodicos
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produziram uma análise sobre os impactos do novo Qualis sobre os periódicos de Educação Física brasileiros. Foram comparadas as classificações de 12 periódicos da Educação Física nos Qualis 2013-2016 e 2017-2020. São eles: Movimento; Journal of Physical Education/Revista da Educação Física (REF-UEM); Motriz; RBCE; Revista Brasileira de Educação Física e Esporte (RBEFE); Revista de Cineantropometria e Desempenho Humano (RBC&DH); Licere; Motrivivência; Pensar a Prática; Revista Brasileira de Atividade Física e Saúde (RBAFS); Revista Brasileira de Ciência e Movimento (RBCM); Conexões. O estudo mostrou que o novo Qualis rebaixou 100% dos periódicos analisados, limitando-os todos aos estratos inferiores.

Os periódicos em análise, com foco de escopo generalistas ou vinculados às ciências humanas e sociais, ao serem comparadas com periódicos das ciências da saúde, que possuem indicadores bibliométricos mais altos, perderam posições e foram classificadas em estratos mais baixos, entre B1 e B4. Também perderam posições quando comparados com periódicos internacionais. A “área mãe” não teve a preocupação em corrigir distorções e avaliar com equidade os periódicos da Educação Física que veiculam produção proveniente das subáreas sociocultural e pedagógica, visto que as métricas para tal avaliação, como indica vasta literatura sobre o assunto, devem ser diferenciadas. (Lazzarotti e Nascimento, 2019Lazzarotti A Fo, Nascimento OA. Análise comparativa das revistas do campo da educação física e educação a partir da proposta de unificação do Qualis Periódicos [Internet]. Uberlândia: CBCE; 2019 [citado 2023 Out 10]. Disponível em: https://www.cbce.org.br/noticia/analise-comparativa-das-revistas-a-partir-das-propostas-de-unificacao-do-qualis-periodicos
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).

Avaliávamos que, mesmo com o rebaixamento que lhe foi imposto pela avaliação consignada no novo Qualis, a história e legitimidade acadêmico-científica conquistada pela RBCE junto à comunidade da Educação Física e Ciências do Esporte seria suficiente para blindá-la contra uma possível queda no número de artigos publicados (Mascarenhas et al., 2022Mascarenhas FM, Lazzarotti A Fo, Vianna LC. A ciência e a RBCE em mais um ano de pandemia. Rev Bras Cienc Esporte. 2022;44:e004401. https://doi.org/10.1590/rbce.44.ED4401.
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). Lamentavelmente, não foi o que aconteceu.

Um cenário mais pessimista quanto ao futuro dos periódicos de Educação Física brasileiros, que foi previsto por Pires (2023)Pires GDL. Impactos da avaliação da área 21 sobre os periódicos da educação física: rupturas, continuidades e desafios. In: Telles S, Baptista TJR, Costa MCS, Santos SM, organizadores. Avaliação e panorama das subáreas sociocultural e pedagógica da Educação Física: periódicos, mestrado profissional e produção docente (2017-2020) [Internet]. Uberlândia: Navegando; 2023 [citado 2023 Out 9]. p. 33-43. Disponível em: https://public.cbce.org.br/arquivos/repositorio/6505b3de01101livro2023_panorama_avaliacao_pos.pdf
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, parece estar se confirmando. Como as avaliações nos Programas de Pós-Graduação privilegiam artigos publicados em periódicos dos estratos A, dois movimentos podem ser percebidos: de um lado, pesquisadores docentes e discentes da pós-graduação em Educação Física das subáreas sociocultural e pedagógica estão buscando “asilo acadêmico” em periódicos dos estratos A de outras “áreas mãe” (Educação, Sociologia, História, Serviço Social, dentre outras), solução absolutamente legítima, mas com grande prejuízo para a área da Educação Física; e, de outro, os periódicos dos estratos B da área – isto é, os periódicos brasileiros que veiculam a produção proveniente das subáreas sociocultural e pedagógica, mesmo os generalistas – estão correndo sério risco de extinção, por baixa demanda de submissões.

Vejamos mais de perto o caso da RBCE: no Qualis 2013-2016, como citado, a RBCE estava classificada nas áreas de Ensino e Educação, respectivamente, como A1 e A2. Na área da Educação Física, como B1, o que corresponde ao 3º estrato de avaliação; no novo Qualis 2017-2020, continua classificada pela área da Educação Física como B1, porém, agora rebaixada para o 5º estrato de avaliação, classificação esta que é mandatória para todas as áreas. Assim, após a divulgação desta novidade em julho de 2019, quando a Capes noticiou a adoção de uma nova metodologia para as áreas de avaliação do Qualis Periódico e foi disponibilizada uma planilha preliminar com os resultados desta avaliação, identificamos uma queda significativa do número de submissões de artigos para a RBCE. Em 2019, tivemos 252 artigos submetidos; em 2020, este número cai para 101; em 2021, para 97; e, em 2022, para 84, quando atingimos também um índice de rejeição de apenas 33%.

Não temos acesso aos números dos demais periódicos de Educação Física brasileiros analisados por Lazzarotti e Nascimento (2019)Lazzarotti A Fo, Nascimento OA. Análise comparativa das revistas do campo da educação física e educação a partir da proposta de unificação do Qualis Periódicos [Internet]. Uberlândia: CBCE; 2019 [citado 2023 Out 10]. Disponível em: https://www.cbce.org.br/noticia/analise-comparativa-das-revistas-a-partir-das-propostas-de-unificacao-do-qualis-periodicos
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, mas, a partir dos relatos de alguns de seus editores, conjecturamos tendência semelhante. Diante deste cenário, deveras desafiador, cabe problematizar o porquê da existência de um periódico científico nacional. Em outros termos, por que os periódicos de Educação Física brasileiros devem continuar a existir?

Os periódicos do país têm a função de comunicar pesquisas que são de escopo ou interesse nacionais, por conseguinte, os resultados dessas pesquisas são mais e melhor comunicados por periódicos editados nacionalmente. Com efeito, tais periódicos não concorrem com aqueles publicados no exterior. Por isso a necessidade de valorização e fomento dos periódicos nacionais. Tensionados pelo desempenho médio inferior ao obtido pelos periódicos internacionais, o que ocorre em função de fatores clássicos que influenciam a prática das citações, como idioma de publicação, área temática e colaboração internacional, os periódicos brasileiros demandam apoio ao seu desenvolvimento, o que requer valorização, incluso com políticas e estratégias de indução. (Packer, 2011Packer AL. Os periódicos brasileiros e a comunicação da pesquisa nacional. Rev USP. 2011;89:26-61. http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i89p26-61.
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).

No que se refere à Educação Física, ao completar 45 anos de existência, a RBCE se coloca como o periódico científico mais longevo da área no país. Sem desconsiderar seu papel e importância internacional, sobretudo no contexto da América Latina, sua centralidade é nacional. Dede 1979, vem contribuindo não só para divulgar, mas, também, intervir na produção de conhecimento em Educação Física. Ao longo da trajetória de sua publicação, a RBCE vem registrando a história da Educação Física brasileira a partir de diferentes olhares e concepções, de distintas abordagens, temas, objetos e problematizações.

A RBCE é bastante estudada pela área, portanto, recorrentemente utilizada como fonte a partir da qual se estuda o desenvolvimento da Educação Física brasileira. Neste percurso, em 2008, o trigésimo volume da revista demarca a suspensão da orientação temática (iniciada no volume 12, em 1992) que vinha regendo sua política editorial, um deslocamento importante de indução da demanda de trabalhos. Essa mudança colocou-se em favor do movimento da própria área, que havia se fortalecido com a criação de novos programas de pós-graduação e com o incremento da divulgação do conhecimento científico por meio da publicação de artigos com enfoques oriundos de investigações em diferentes linhas de pesquisa (Vaz e Oliveira, 2008Vaz AF, Oliveira MAT. Editorial. Rev Bras Cienc Esporte. [Internet]. 2008 [citado 2023 Out 9];30(1):7-8. Disponível em: http://cbce.tempsite.ws/revista/index.php/RBCE/article/view/187/194
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).

As edições temáticas tinham seus temas definidos a partir das demandas dos associados, das Secretarias Estaduais, dos Grupos de Trabalhos Temáticos (GTTs) e, também, dos próprios eventos organizados pelo CBCE. Ensino da Educação Física, aprendizagem motora, currículo, questões de gênero, legislação, metodologia do ensino, avaliação, esporte, comunicação e mídia, lazer e meio ambiente, conferências e textos apresentados no Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte (CONBRACE), orientaram algumas das edições temáticas daquela década.

A partir de uma análise em retrospectiva, avaliamos que a retomada da orientação temática pode ajudar a criar uma relação mais orgânica da produção editorial da RBCE com a comunidade científica da área, em especial, a comunidade de pesquisadores reunida pelo CBCE através de seus GTTs. Além de promover maior sintonia da produção veiculada na revista com temas que emergem a partir destas comunidades de pesquisadores, o que dá ainda mais sentido a um periódico com identidade com centralidade nacional, a retomada deste projeto pode mitigar o êxodo que o novo Qualis provocou de pesquisadores da Educação Física em direção aos periódicos internacionais e de outras “áreas mãe”.

Nessa direção, este volume inova a política editorial da RBCE, com a criação de duas novas seções. Os artigos comunicando resultados de pesquisas empíricas e/ou teóricas originais sobre temas relevantes e inéditos continuam a ocupar lugar prioritário na revista. A novidade é que, além de serem encaminhados para a tradicional seção de artigos originais, cuja demanda é espontânea, estes poderão ser direcionados também para as novas seções Dossiê e Painel.

A seção Dossiê reunirá artigos submetidos a partir de chamamento público pelo qual a RBCE se propõe mobilizar a comunidade científica da área a partir do agendamento de debates em torno de temas emergentes no cenário nacional. Adicionalmente, a seção Painel publicará artigos submetidos a partir de indução proposta por grupos de pesquisa consolidados em colaboração com grupos de instituições estrangeiras, dedicando-se ao agendamento científico de debates em torno de temas específicos de interesse internacional.

Neste volume, portanto, a RBCE conta com o dossiê “A Epistemologia na batalha das ideias da Educação Física e Ciências do Esporte latino-americana”, organizado em parceria com o GTT Epistemologia do CBCE. Para sua organização contamos com a colaboração dos professores Edson Marcelo Húngaro, da Universidade de Brasília (UnB), e André Malina, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenadores do referido grupo de trabalho que, neste volume, atuam como editores de seção da revista, com função de supervisão do fluxo editorial, escolha dos revisores e avaliação da qualidade e relevância dos artigos submetidos.

O objetivo deste dossiê consiste em reunir artigos da área da Educação Física que tematizem a crítica epistemológica contemporânea relativa às seguintes questões: ao avanço do pensamento conservador que se fortaleceu no país na última década, abordando sua gênese, conteúdo e consequências para a ciência; às possibilidades e às necessidades teóricas, éticas, estéticas e políticas para enfrentamento e a superação das ideologias de exceção e defesa da democracia; à atividade epistemológica como interrogação dos projetos de delimitação da Educação Física no Brasil e na América latina.

A seção especial sobre “Dupla carreira acadêmico-esportiva”, organizada pelos professores Felipe Rodrigues da Costa, da UnB, e Renato Francisco Rodrigues Marques, da Universidade de São Paulo (USP), atuando igualmente como editores de seção, constitui o painel deste volume. A partir de distintas perspectivas e realidades nacionais, aborda os desafios da conciliação entre os investimentos de estudantes-atletas nas trajetórias esportiva e educacional. São apresentados resultados de estudos que remetem à reflexão sobre o tema, situando o panorama de pesquisas tanto em âmbito nacional, quanto internacional. São ainda apresentados estudos empíricos sobre dupla carreira visando contribuir para a ampliação das análises sobre esta temática, que afeta a vida esportiva e escolar ou universitária de estudantes-atletas jovens e adultos.

Estas inovações foram construídas em diálogo com a Direção Nacional do CBCE, além de debatidas com as demais instâncias da entidade por ocasião do Simpósio Nacional do CBCE – 25 anos de GTTs, realizado entre 17 e 19 de novembro de 2022, em Belo Horizonte, na UFMG (mesa “Os GTTs, a Pós-graduação e os periódicos: diálogos necessários”).

Naquela oportunidade, tivemos a chance de apresentar um relatório do trabalho realizado por esta editoria desde 2017, quando assumimos a RBCE. Este relatório foi posteriormente atualizado e entregue à Direção Nacional do CBCE, referente ao período de setembro de 2017 (XX CONBRACE, Goiânia) a setembro de 2023 (XXIII CONBRACE, Fortaleza). (Mascarenhas et al., 2023Mascarenhas FM, Lazzarotti A, Vianna L, Teixeira A, Cavalcante F, Samora M et al. Equipe editorial da RBCE 2017-2023 – relatório de trabalho. Brasília: RBCE; 2023. Relatório.). Importante dizer isso, pois este volume da revista marca também o fim de um ciclo de 6 anos em que estivemos a frente da editoria da RBCE.

Encerrado nosso trabalho na editoria da RBCE, numa lógica de continuidade-descontinuidade, já está em curso um processo de transição pelo qual um de nós, o professor Ari Lazzarotti Filho (UFG), continuará como editor à frente da revista, mas, doravante, acompanhado pela professora Christiane Garcia Macedo, da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF), e pelo professor Leonardo Alexandre Peyré Tartaruga, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Ao longo desse ciclo, nosso primeiro desafio foi assegurar a qualidade do trabalho que vinha sendo desenvolvido pelas equipes que nos antecederam. Todavia, avaliamos que conseguimos avançar: imprimimos outra lógica organizativa à revista, conferindo maior celeridade à gestão do fluxo de manuscritos, o que contribuiu para a diminuição do seu tempo de processamento; implementamos um projeto de comunicação e divulgação científica, posicionando a RBCE nas redes sociais, ação que visou a maior atração de autores e leitores; renovamos o Conselho Editorial, conferindo-lhe mais representatividade em âmbito nacional e internacional, especialmente, junto à pós-graduação da área da Educação Física; conseguimos apoio ao financiamento da revista através de chamadas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP-DF), embora irregular; reformulamos as “Diretrizes para os autores” e reduzimos o valor da a taxa de processamento de artigo cobrada aos autores não associados ao CBCE; obtivemos melhoras quanto às métricas de publicação de artigos em inglês e de artigos de autoria internacional; dentre outras conquistas.

Estas ações materializaram algumas das metas que, em consonância com o Plano de Desenvolvimento Editorial PDE RBCE-SciELO 2021, contribuíram para um significativo número de citações recebidas pela revista. Utilizando como ferramenta o Journal Scholar Metrics, um produto da EC3 Research Group da Universidade de Granada (UGR), é possível identificar os seguintes indicadores da RBCE: H5-Index: 10; H5-Median: 16; H Citations: 160. Esses indicadores nos colocam em uma posição bastante favorável no cenário mundial da categoria Sports Science. Especificamente, no cenário latino-americano, a RBCE se posiciona entre os cinco periódicos com maior impacto na área. (UGR, 2023UGR: Universidad de Granada. Journal Scholar Metrics [Internet]. Granada: UGR; 2023 [citado 2023 Out 6]. Disponível em: http://www.journal-scholar-metrics.infoec3.es/layout.php?id=home.
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).

Postergamos a construção de proposta de indexação junto a WoS, processo para o qual contamos com a assessoria especializada e que se encontra em curso. A demora não foi por acaso, foi contingenciada pelas próprias dificuldades com a produção editorial, demandando prioridade nos últimos anos diante da crise que enfrentamos quando das mudanças de editora parceira. Estamos nos referindo à coprodução da RBCE com a Elsevier, encerrada ao fim de 2019. A gestão do trabalho editorial foi fortemente impactada frente aos serviços que não foram realizados a contento pela editora contratada em 2020, problema também ligado ao contexto da pandemia da Covid-19. Isto nos levou ao estabelecimento de nova parceria em 2021, quando tais dificuldades foram superadas.

Mas, estabilizada a situação, outra externalidade nos impactou. Referimo-nos, justamente, ao contexto político e diminuição da atividade científica no país, determinação que atravessa todas as áreas do conhecimento. A isto se soma o aludido rebaixamento da RBCE pelo novo Qualis, em grande medida, afugentando submissões e provocando uma preocupante queda na publicação de artigos científicos pela revista.

Este quadro é muito desestimulante. Porém, nossa decisão de encerrar este ciclo à frente da editoria da RBCE tem relação com outros desafios e projetos acadêmicos colocados e assumidos para cada um de nós. Nesse sentido, a renovação da equipe editorial tende a ser positiva, repactuando o trabalho e podendo trazer ainda mais inovações à revista, proporcionando a construção de novas táticas e estratégias ante o cenário desafiador em que nos encontramos.

Nesse sentido, cabe agradecer a oportunidade, experiência e aprendizagem ao dirigir este que é um dos periódicos mais prestigiados da Educação Física brasileira. Sentimo-nos honrados por toda confiança que nos foi depositada pelo CBCE e sua comunidade. Importante agradecer também o Programa de Pós-Graduação em Educação Física da UnB, que acolheu e apoiou o sediamento da RBCE em suas instalações, prestando-lhe respaldo e retaguarda institucional.

Por fim, registramos nosso mais sincero elogio ao trabalho dos editores assistentes e associados que estão ou estiveram conosco ao longo desse período. André Teixeira, Efrain Maciel e Silva, Fernando Henrique Silva Carneiro, Fernando Resende Cavalcante, Milena Samora e Oromar Augusto do Santos Nascimento, somos muito gratos pelo trabalho, comprometimento e dedicação de todos vocês.

Sabemos que não são poucos os desafios para o periodismo científico, em especial, para os periódicos da Educação Física brasileiros. Mas sabemos também da capacidade do CBCE e de sua comunidade para superá-los, salvaguardando e qualificando permanentemente este que é um de seus maiores patrimônios. Desejamos muito sucesso para a nova equipe editorial que assume a direção da revista.

Vida longa para a RBCE!

REFERÊNCIAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    16 Out 2023
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