Tendências internacionais da Educação Física Argentina: a reinvenção de uma tradição

International trends of Argentine Physical Education: the reinvention of a tradition

Tendencias internacionales de la Educación Física Argentina: la reinvención de una tradición

RESUMO

Descreve-se a presença de teorias internacionais na Educação Física argentina a partir dos anos 1970. Demonstra-se como o diálogo com autores e literatura do exterior, particularmente Alemanha, França, Espanha, Portugal e Brasil, foi importante para a crítica à tradição da disciplina, o que permitiu uma renovação do seu estatuto epistemológico e pedagógico, com reflexos na legislação curricular atual. Utiliza-se, como fonte, de entrevistas com quatro docentes universitários argentinos e bibliografia disponível a respeito do tema.

Palavras-chave:
Educação Física escolar; Formação de professores; Argentina; Campo científico

ABSTRACT

It describes the presence of international theories in Argentine Physical Education since the 1970s. It demonstrates how the dialogue with authors and literature from abroad, particularly Germany, France, Spain, Portugal and Brazil, was important for the criticism of the tradition of the discipline, which allowed a renewal of its status epistemological and pedagogical, with reflections on the current curricular legislation. It uses, as a source, interviews with 4 Argentine university professors and the available bibliography on the subject.

Keywords:
School Physical Education; Teacher education; Argentina; Scientific field

RESUMEN

Describe la presencia de teorías internacionales en la Educación Física Argentina desde la década de 1970. Demuestra cómo el diálogo con autores y literatura del extranjero, particularmente Alemania, Francia, España, Portugal y Brasil, fue importante para la crítica de la tradición de la disciplina, que permitió una renovación de su estatus. epistemológico y pedagógico, con reflexiones sobre la legislación curricular vigente. Utiliza, como fuente, entrevistas con 4 profesores universitarios argentinos y la bibliografía disponible sobre el tema.

Palabras-clave:
Educación Física Escolar; Formación del profesorado; Argentina; Campo científico

INTRODUÇÃO

Este artigo se insere no âmbito de uma investigação destinada a compreender movimentos de crítica e renovação da Educação Física em países sul-americanos, em particular aquelas experiências transformadoras levadas a cabo na Argentina. Parte-se da premissa que olhares críticos e renovados sobre a Educação Física resultaram da presença, especialmente a partir dos anos 1970, de perspectivas teóricas internacionais que reverberaram no campo acadêmico. Ao mesmo tempo, repercussões deste processo se manifestaram, anos depois, em documentos curriculares importantes que direcionaram práticas da disciplina no âmbito escolar, como os “Contenidos Básicos Comunes (CBC)” e os “Núcleos de Aprendizaje Prioritarios” (NAP).

A reflexão tem por objetivo descrever, de um lado, algumas influências internacionais que chegaram ao campo da Educação Física argentina a partir dos anos 1970 e, ao mesmo tempo, demonstrar como este processo de reinvenção disciplinar repercutiu nos mencionados documentos. Além de recorrer à bibliografia disponível sobre a temática, são utilizadas entrevistas realizadas com quatro docentes cujas trajetórias foram impactadas pela renovação da disciplina naquele país. Os professores escolhidos gozam de legitimidade no campo argentino da Educação Física. Além disso, eles estiveram envolvidos em diferentes instituições de formação de professores e participaram de múltiplos processos de construção curricular em diversas jurisdições provinciais, questão que permite apresentar uma interpretação que supera as análises enfocadas no Estado Nacional ou na província de Buenos Aires.

Os professores entrevistados foram: Ricardo Luis Crisorio, Jorge Gómez, Griselda Amuchástegui e Rodolfo Rozengardt. O primeiro está inserido no contexto acadêmico da Educação Física platense, onde se graduou, especializou-se e exerceu diferentes papéis na Universidade Nacional de La Plata (UNLP), sem dúvida um importante centro formador da Educação Física na Argentina. Em termos nacionais, ocupou cargos importantes no sentido de pensar a política da Educação Física na Argentina, como sua participação na elaboração dos CBC. O segundo depoente, além de atuar de forma secundária na construção do CBC, também participou de elaborações curriculares para “reinstalar a la Educación Física en la Ley de Educación Nacional”, promulgadas em 2006 e ainda vigente. Também esteve presente nos “Diseños Curriculares para la educación primaria y secundaria de la Provincia de Buenos Aires”, no “Diseño Curricular para las carreras de Profesorado en Educación Física, Licenciatura y Maestría na Universidad de Flores”, sendo um nome central na proposição dos NAP. Griselda Amuchástegui foi escolhida por ser docente do Instituto del Professorado de Educación Física (IPEF), em Córdoba, uma instituição tradicional na formação de professores de Educação Física na Argentina, conforme indicam Furlan e Pavía (2019). Esse Instituto foi o local de sua formação e atuação profissional como coordenadora e docente do curso de professorado e de pós-graduação. A docente apresenta uma considerável experiência profissional na elaboração e implementação de projetos curriculares e projetos de capacitação para professores. Também atuou com Educação Física em países como Chile, México, Equador, Austrália, Afeganistão, Moçambique e Holanda. Rodolfo Rozengardt graduou-se na primeira instituição responsável por formar professores de Educação Física: o “Instituto Nacional Superior de Educación Física” (INEF) Romero Brest. Foi diretor do “Instituto Superior de Educación Física Ciudad de General Pico”, em La Pampa. Atualmente, é professor no mestrado em “Actividad Física y Deporte”, da Universidade de Flores, e no mestrado em “Didáctica de la Educación Física”, da “Universidad Nacional de Rosario”. Rodolfo Rozengardt, na companhia de Gómez, participou da comissão que elaborou os NAP e na construção do desenho curricular do nível superior na província de La Pampa.

As entrevistas seguiram a mesma lógica de organização e tema para todos os entrevistados. Elas foram realizadas no período de 28 de setembro de 2021 a 04 de novembro de 2021. Em seguida, realizou-se a transcrição dos dados e a posterior devolução aos professores. Com a aprovação do conteúdo, iniciou-se o processo de organização da análise, codificação e categorização.

O texto está organizado numa única seção, seguida das considerações finais.

ENTRE A EUROPA E A AMÉRICA DO SUL: INFLUÊNCIAS INTERNACIONAIS NA EDUCAÇÃO FÍSICA ARGENTINA

A Educação Física argentina, assim como no caso de outras realidades sul-americanas, é uma experiência educativa importada da Europa. Esse fato, que remonta ao século XIX, seguiu por todo o século seguinte. É o que se pode concluir quando se revisitam as teorias praticadas no campo, por exemplo, no terço final do século XX, oportunidade para identificar as tendências estrangeiras que mais circulavam na área daquele país.

O destaque inicial vai para a presença alemã em território argentino. O embrião dessa cooperação internacional remonta, segundo Levoratti (2022b), aos anos 1950, quando os professores Enrique Carlos Romero Brest e Hermes Pérez Madrid realizaram, em 1953, uma visita a Escuela de Educación Física de Colônia. Nesta ocasião, estabeleceram vínculos com Carl Diem e Lisellot Diem – esta última é a professora responsável por inúmeras ações no campo da Educação Física argentina. O entrevistado Gómez assim se manifesta a respeito:

Y comenzaba a producirse la influencia, que después fue muy fuerte de la Escuela de Deportes de Colonia, Alemania, que influyó muchísimo en Argentina; por ejemplo, Alberto Dallo estudió en la Escuela de Deportes de Colonia, el profesor de handball Alfredo Miri estudió en Colonia, Mariano Giraldes es otro que después lo siguió, era un buen discípulo de Alberto Dallo en gimnasia, todavía sigue, está cerca de los ochenta años y con problemas de sus rodillas de tanto hacer gimnasia deportiva, también se formó en Colonia. Colonia era el foco de formación de nuestra época, o sea el que exportó a América Latina el concepto de deporte que tiene Alemania Había muchas colonias de inmigrantes alemanes acá en Argentina, supongo que en Brasil también hay muchas colonias de alemanes... Después de la guerra fueron entrando con su mirada del deporte, que bueno ustedes ya saben también no es la mirada sajona del deporte competitivo clásico; el concepto de deporte alemán es muy amplio, prácticamente cualquier tipo de práctica corporal es deporte, y ahí teníamos una discusión nosotros. Justamente yo entro al profesorado en los 70, 72. Como profesor, hacía poco recibido, había entrado por vinculación con Alberto Dallo a trabajar en unas capacitaciones básicas en la Dirección Nacional de Educación Física; yo me dediqué siempre desde el principio a la educación física escolar, fue digamos mi línea, por donde fui, y ahí claro, los alemanes venían con mucha influencia en el área infantil con Liselott Diem. (Entrevistado Gómez, 2021).

Ainda em seu depoimento, o entrevistado, que realizou uma visita técnica a Colônia nos anos 1980, comenta sobre a estreita relação de Diem com a professora argentina Helga Holze:

Digamos de diálogo permanente con Colonia, ella generó el convenio con el Instituto Romero Brest cuando fue Directora del Instituto. Tenía mucha influencia junto con Alberto Dallo sobre el Director de Educación Física, Hermes Pérez Madrid, durante el período del gobierno militar de los 70; todos están ya fallecidos, lamentablemente. (Entrevistado Gómez, 2021).

O depoente Rozengardt, estudante de Educação Física nos anos 1970, assim se recorda da presença alemã:

Liselott Diem había estado en la Argentina en la época de la dictadura, o sea yo creo que en época que yo estaba estudiando o un poquito antes, 77 capaz haciendo un convenio con el gobierno argentino para construcción, es decir lo que es el centro deportivo nacional se construyó con los planos y el convenio que había hecho con Alemania, con la República Federal de Alemania con la intermediación de Liselott Diem y los programas de formación tenían mucha influencia de todo ese grupo también. Anne Marie Seybold por ejemplo o Liselott Diem por ejemplo fue muy importante en Argentina e incluso estuvieron ellos, no sé si llego a estar Carl Diem, no sé si llego a estar, creo que sí, pero había estado antes porque no sé si ya se había muerto o no, no estoy seguro, pero si Liselott Diem seguro que era la esposa de él, que lo continuo a Carl Diem por varios años. (Entrevistado Rozengardt, 2022).

Carl Diem, mencionado por Rozengardt, esteve na Argentina em 1961, a convite da Direção Nacional de Educação Física (Levoratti, 2020). Entre 1961 e 1984, outros especialistas alemães realizaram múltiplas ações de capacitação e promoção das “Ciencias del Deporte” na Argentina. Além de Carl e Liselott Diem, é preciso citar August Kirsch, Irma Nikolai, Gerhard Hecker, Clemens Menze, Renate Scholtzmethner, Karl-Heinz Dörner, Ulrich Jonath, Werner Vich e Kurt Wilke, que ministraram capacitações no país e assessoraram nas reformas dos currículos de formação inicial de profesores (Levoratti, 2022b). Ainda conforme Levoratti (2022b), em 1971, Hermes Pérez Madrid, neste momento diretor da DNEF-DyR, institucionalizou o convênio entre a República Argentina e a República Federal Alemã a partir de assinatura do acordo de cooperação entre ambos os países, que tinha como objeto “[...] concretar programas para el desarrollo del deporte en la República Argentina” (Argentina, 1971, p. 9).

Este acordo pressupunha ações para desenvolver a infraestrutura esportiva argentina, fomentar o esporte escolar, participativo, de alto rendimento e consolidar a medicina esportiva no país. Além disso, estavam previstas visitas técnicas de professores argentinos à Alemanha, promoção de cursos de docentes alemães na Argentina, reorganização da formação inicial em Educação Física na Argentina, conferindo centralidade ao conceito de “Ciências do Esporte” e desenvolvimento da pós-graduação. As investigações de Levoratti (2017, 2022b) descrevem essas ações, seus impactos na legislação educacional e nos planos de estudo de alguns cursos formadores.

Além da cooperação alemã, a tradição francesa da Educação Física também foi muito marcante na Educação Física argentina, especialmente a partir da década de 1980. A este respeito se destacam dois autores. Um deles é Jean Le Boulch, idealizador de uma “Ciência do Movimento Humano”, cuja presença é destacada por todos os entrevistados. Segundo o depoimento de um deles, num momento em que a formação era fundamentalmente prática,

Las únicas teorías que si venían de alguna manera a romper un poco la hegemonía militarista deportivista era en ese momento la psicomotricidad que estaba emergiendo fuertemente de la mano de algunos profesores y que a muchos de nosotros de alguna manera sedujo, o sea de alguna manera vimos ahí que había algo diferente, que había algo que estaba rompiendo con este mandato tan fuerte que venía de la mano del deporte básicamente y de la búsqueda de disciplina, o sea estábamos empezando a ver que había un sujeto en algún lado, que había una persona, un cuerpo. (Entrevistado Rozengardt, 2021).

No livro de Le Boulch, “A Educação pelo movimento”, editado em 1966 na França, são postos os princípios fundamentais da Teoria Psicocinética, apresentando-a não como um novo método de Educação Física, mas como uma teoria geral do movimento. O livro de Le Boulch foi traduzido e publicado para o espanhol na Argentina, em 1969, e foi na coleção dirigida pelo professor Enrique Carlos Romero Brest para a Editorial Paidós. El libro de Le Boulch fue traducido y publicado al castellano en Argentina en el año 1969, siendo incluido en la colección que dirigía el profesor Enrique Carlos Romero Brest para la Editorial Paidós. Buscava-se, com ele, uma reflexão mais aprofundada e ampla para a Educação Física e para o estudo do movimento humano não apenas nas Ciências Biológicas, mas considerando também as Ciências Humanas. Conforme a interpretação de Cena et al. (2006, p. 270),

Jean Le Boulch, su referente, criticó abiertamente la tendencia de la Educación Física a deportivizarse y la práctica de los profesores de la especialidad dirigida sobre todo a factores de ejecución (fuerza, resistencia, velocidad, etc.) sin tener en cuenta los factores psicomotrices del movimiento. Dicha posición deriva de la psicomotricidad titulada por Le Boulch como Psicocinética [...].

Ainda segundo Cena et al. (2006, p. 270), o discurso psicomotriz “[...] permitió a la Educación Física encontrar un espacio de significación compartida con otras asignaturas escolares como la matemática y la lengua. Pero también implicó el riesgo de perder especificidad, y por momentos en convertirla en subsidiaria de estas disciplinas”.

Um dos autores entrevistados, que coordenou a elaboração dos CBC, reconhecia as referências francesas na Educação Física argentina. Em suas palavras,

Las principales influencias teóricas a mí me parece que son de orden francés acá en su momento, bueno fueron las corrientes psicomotricistas de Le Boulch, después la de Parlebas, hoy esta fuerte la de Parlebas, si hay algo más o menos fuerte ese podría decir esa, luego en un momento Bourdieu, después Foucault. (Entrevistado Crisorio, 2021).

O entrevistado Crisorio, além de confirmar a importância de Le Boulch, cita outro autor francês central no contexto argentino: Pierre Parlebas, idealizador do que é conhecido como Praxiologia Motriz. A centralidade dessa teorização francesa da Educação Física pode ser atestada em 1993, quando Le Boulch e Pierre Parlebas, sob a coordenação de Raúl Gómez, compuseram a mesa intitulada “Los problemas principales de la Educación Física actual”, no “I Congresso Argentino de Educação Física”, realizado na cidade de La Plata (AAVV, 1993)¹. O excerto supracitado da entrevista com Crisorio também menciona referências conceituais recuperadas de autores das Ciências Sociais, questão que evidencia diálogos com outras disciplinas nesse processo de crítica e renovação da Educação Física na Argentina.

Além da França, a Espanha também foi, talvez em menor extensão que a francesa, uma literatura consumida pelos argentinos, em especial as proposições de José Maria Cagigal, autor citado por todos os entrevistados dessa investigação. Cagigal visitou pelo menos seis vezes a Argentina para ministrar cursos de capacitação e/ou conferências em 1969, 1977, 1978 e 1979. Segundo a interpretação de um deles,

Cagigal entro y fue considerado, y fue utilizado, pero yo diría que fue más utilizado para los discursos formales, es decir las autoridades lo traían, las autoridades de educación física, las autoridades digo autoridades políticas ministeriales Alberto Dallo, los que estaban en la dirección nacional de educación física que todavía existía en ese momento, creo que podemos comentar un poco si se hace falta, porque lo habían conocido a Cagigal. Yo también leí varias cosas de Cagigal, lo tengo aquí, me parece digamos una reflexión interesante, pero no deja de ser muy a ver muy cercana al poder, se le nota mucho digamos la ¿no? A pesar de que tiene un discurso humanista y que pone al deporte en cuestión también a pesar, pero lo adora al mismo tiempo, yo siempre le vi como un tufo muy oficial, muy formal y muy burgués digamos ¿no? Y acá fue considerado en muchos escritos, pero en los discursos críticos Cagigal no ha tenido ninguna presencia, creo yo, por lo menos que yo sepa no. (Entrevistado Rozengardt, 2021).

De acordo com Levoratti (2017, p. 130), estes autores “[...] franceses y españoles, tenían como punto en común que producían un estudio desde las ciencias sociales o las ciencias de la educación y buscaban distanciarse de los saberes de las ‘ciencias biológicas”.

Essa teorização europeia também reverbera nos programas disciplinares dos cursos formadores. Cagigal, conforme a análise dos programas de disciplina da Universidad Nacional de La Plata realizada por Levoratti (2017, p. 32), é referência obrigatória em muitas matérias. No que diz respeito a Le Boulch, no caso de “Ginástica I”, ofertada pelo professor Ernesto Rogg no ano de 1976,

En la “bolilla 2” se afirmaba “Las dimensiones Psicomotriz, grupal y social del hombre en los ámbitos correspondientes (psicosocial, socio dinámico e institucional) a través de la Historia” (UNLP, 1976, p. 2). En la bibliografía se citaba a Picq y Vayer “Educación Psicomotriz y retraso mental”, Rosell “Educación Psicomotriz”, Pierre Vayer “El niño frente al mundo (Edad aprendizaje escolar)” y “El diálogo corporal”. Por último, aparece el trabajo de Jean Le Boulch “La Educación por el movimiento”. Textos que evidencian la presencia tanto de autores vinculados a la educación física desde una concepción psicomotriz, como de autores de la psicología que permiten argumentar sobre los procesos de “desarrollo” y “aprendizaje” en el ámbito escolar. (Levoratti, 2022a, p. 32).

Foi nesta proposta curricular que transitou um dos entrevistados, o qual teve um papel nas instâncias de redação e problematização dos CBC.

Em 1986, no programa de “Introducción a la Educación Física”, ainda repercutia distintas versões da psicomotricidade na disciplina ministrada por Jorge Fritman. No plano de estudos da Universidad Nacional de La Plata do ano de 2000, mesmo que as referências teóricas sejam heterogêneas, continuou aparecendo Le Boulch.

Também em documentos curriculares da Educação Física argentina, como os CBC, estão presentes conceitos de Le Boulch. Ricardo Crisorio e Raúl Gómez, docentes da Universidad Nacional de La Plata responsáveis pela redação dos CBC de Educação Física, disseram que categorias como “disponibilidade corporal” e “esquema corporal” foram empregados numa clara alusão ao professor francês. Ambos visavam, com este aporte teórico de Le Boulch, enfatizar no plano de La Plata a crítica que eles próprios já vinham fazendo sobre as concepções de corpo vinculadas ao organismo, ao físico-fisiológico, favorecendo, ao mesmo tempo, um modo de compreender corpo e movimento em uma perspectiva mais integral (Levoratti, 2018)². Segundo a avaliação que uma das entrevistadas realiza desse processo conduzido por Crisorio e Gómez,

Me parece que eso porque también que pasó ahí pasaron varias cosas y yo digo que Raúl [Gómez] y Ricardo [Crisorio] cuando estaban construyendo los documentos, Raúl con un anclaje bien fuerte en la psicomotricidad y en la praxiología, y Ricardo queriendo salir de ahí. Entonces [...] digamos lo que podían consensuar era lo que terminaban escribiendo. (Entrevistada Amuchástegui, 2021).

Também no âmbito do CBC se nota a influência de Parlebas, já que a definição de esporte, neste documento, foi organizada a partir de conceitos praxiológicos como proposto pelo professor francês (Levoratti, 2017). A referência a Parlebas também se revela na decisão do Instituto Nacional de Formação de Professores (INFD) em publicar as “Recomendaciones para la elaboración de diseños curriculares”, de 2009³, oportunidade em que conceitos praxiológicos, como ação motriz, conduta motriz e sociomotricidade, foram mobilizados para explicar o sentido da motricidade e corporeidade.

Outros autores europeus são referenciados pelos entrevistados, exercendo influência não somente em suas biografias, mas repercutindo também em documentos e bibliografias do campo. Este é o caso, por exemplo, de Manuel Sérgio, uma referência importante na trajetória do entrevistado Gómez, conforme já havia sido explicado a Levoratti (2018) em outro depoimento. Ele mobilizou os conceitos do filósofo português para definir o conceito de corporeidade nas “Recomendaciones para la elaboración de diseños curriculares”⁴. Mas como o próprio depoente admitiu na entrevista, foi muito limitada as apropriações de Manuel Sérgio na Argentina.

Apesar dessa inegável “colonização” epistemológica, na Argentina consumiu-se bibliografia de Educação Física não só da Europa. Existem indícios de um diálogo com a Educação Física brasileira já nos anos 1980, quando a perspectiva “Esporte para Todos” (EPT) se difundiu na América Latina. Dois dos entrevistados mencionaram o professor brasileiro Lamartine Pereira da Costa como uma referência nessa direção, que se desenvolveu na Argentina durante do governo presidencial de Raúl Alfonsín. Um deles, inclusive, esteve no Brasil em 1982 para participar do I Congresso sobre “Esporte para Todos”, na cidade de Curitiba. Segundo seu relato, “Nos enteramos de que había un movimiento ahí de Deporte para Todos, teníamos, habíamos conseguido un libro de los que editaban ahí en Brasil con estos programas, y nos parecía muy interesante, raro porque Brasil también estaba en un clima de dictadura y sin embargo estaban formulando algunas ideas que para nosotros eran digamos, nos convocaba el punto de vista de que algo diferente pasaba” (Entrevistado Rozengardt, 2021). Mais informações sobre a ida deste depoente ao supracitado Congresso podem ser encontradas em Rozengardt (2014). Vale lembrar que Lamartine Pereira da Costa esteve na Argentina em 1973 para participar de uma sessão do EPT nas “Jornadas Internacionais de Estudo sobre o Desporto”, realizada em Buenos Aires. Neste encontro também participou o alemão Jürgen Palm, diretor-executivo de esporte da confederação alemã no período de 1970-1998, cuja atuação foi decisiva nas campanhas brasileiras e argentinas do EPT. Sobre o desenvolvimento do EPT no Brasil e a atuação de Lamartine Pereira da Costa, consultar Pazin (2004, 2014). Na Argentina, dois entusiastas do EPT foram Rodolfo Valgoni e Oscar Incarboni.

Os interlocutores desta investigação destacam, sobretudo a partir dos anos 2000, o crescente diálogo e as parcerias estabelecidas com outros autores brasileiros, como Silvino Santin, Paulo Fensterseifer, Alexandre Fernandez Vaz, Ana Márcia Silva etc. Destaca-se, entre os entrevistados desta investigação, o nome de Valter Bracht, conforme pode-se notar nos depoimentos a seguir:

En el año 94, yo lo conozco a Valter personalmente en Tucumán en un congreso, había circulando una idea de quien era Valter, pro muy poca referencia puntual, no teníamos todavía la bibliografía ni de él ni del movimiento renovador brasileño, pero ahí estuve participando en el curso, el dio un curso de investigación en la educación física, dio una conferencia, estuvo en un panel, hizo varias actividades yo estuve en todas presente, después estuve conversando con él, lo mismo con algunos otros colegas. Poquito antes había empezado los congresos en La Plata, en el año 93 habían empezado sobre todo animados por Ricardo Crisorio y se estaba viendo que estaba pasando algo también en la Argentina, pero la referencia con Valter y donde el claramente habla de un mensaje desde una posición a la cual yo, con la que yo me identificaba desde una posición política y teórica que me resultaba muy familiar a mis ideas. (Entrevistado Rozengardt, 2021).

Bien, entonces ahí encuentro también un libro de Santin Educación Física, Ética, Estética y Salud, un libro viejísimo pero hermoso que son sus conferencias que hizo en Chile, un libro lindísimo. Entonces, Manuel Sergio y Silvino Santi para mí son dos libritos digamos de la mesita de luz como decimos nosotros, de la eso que está ahí siempre, por lo menos en mis cátedras están siempre, y Valter con su libro Educación Física escenas de un casamiento infeliz [...]. Año dos mil cinco, dos mil seis por ahí más o menos, y Valter entonces lo invitamos desde él tenía que venir a una gira que venía a Uruguay que se yo, entonces lo invitamos a que diera un saltito para acá, dio una conferencia en Buenos Aires en nuestra facultad, ahí yo lo conocí personalmente a Valter, y enseguida entramos en buena sintonía, nos pusimos a hablar de estas cosas se imaginan, y yo diciéndole te estoy tomando como referente fundamental en este salto de la pedagogía tradicional a la pedagogía crítica y una pedagogía renovadora bueno estaba feliz y más como es Valter que es humilde, sensible y fuimos charlando y viajamos juntos con el de Buenos Aires a Neuquén, para hacer otra charla de Valter en nuestra sede de la facultad. (Entrevistado Gómez, 2021)⁵.

Hoy creo que la educación física es una disciplina pedagógica, que tematiza como Valter, o sea tomando claramente un posicionamiento alineado con Valter que tematiza digamos configuraciones de movimiento de la cultura corporal del movimiento, entiendo la cultura corporal del movimiento como un conjunto de prácticas, que tienen prácticas en el sentido de Michel de Certeau, de prácticas como producciones de conocimiento cultural, que bueno, que forman parte del patrimonio de la humanidad y que son tangibles en tanto digamos se practican, pero que es difícil de pensarlas como conocimiento, no para nosotres, probablemente pero si es difícil me parece el concepto porque la palabra práctica se asocia, se pega mucho al menos en el idioma español con el practicar algo. (Entrevistada Amuchástegui, 2021).

Os depoimentos revelam a constante presença deste autor brasileiro nos debates sobre a Educação Física escolar na Argentina. Este processo é resultado de sua participação, desde os anos 1990, em congressos e seminários naquele país, da coautoria do livro “A Educação Física no Brasil e na Argentina: identidade, desafios e perspectivas”, publicado com um dos entrevistados desta investigação, da criação da Rede Internacional de Investigação Pedagógica em Educação Física Escolar (REIPEFE), que reúne muitos pesquisadores brasileiros e argentinos etc., instâncias que mostram a participação desta referência regional com diferentes grupos e coletivos do campo argentino instancias que grafican la participación de esta referencia regional con distintos grupos y colectivos del campo argentino. Neste contexto, reveste-se de importância a tradução, em 1996, da obra “Educação Física e Aprendizagem Social”, que foi consumida por muitos colegas na Argentina⁶.

Essa influência da Educação Física brasileira também repercute na legislação voltada à disciplina daquele país. Os NAP, orientação que substituiu os CBC, propuseram, para o nível secundário, que, entre as finalidades da Educação Física, está a necessidade de se apropriar criticamente da cultura corporal e motriz. Segundo a interpretação de Levoratti e Kopelovich (2021), há diálogo claro com o enfoque crítico proposto pelo brasileiro Valter Bracht. Levoratti (2017, 2021) descreve a referência a Valter Bracht em outros documentos curriculares do país. Evidencia também que a publicação do livro “A Educação Física no Brasil e na Argentina” teve um impacto na escolha das bibliografias dos programas disciplinares da formação em Educação Física na Universidad Nacional de La Plata.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo ofereceu, com a colaboração de quatro entrevistados e com base na literatura disponível, uma descrição de tendências internacionais no campo da Educação Física argentina, além de ter assumido como recorte temporal as três últimas décadas do século XX, oportunidade para analisar o diálogo estabelecido por autores/atores e instituições da Educação Física argentina com perspectivas oriundas da Alemanha, da França, da Espanha, de Portugal e do Brasil.

Neste contexto, a Educação Física argentina se encontrou inscrita em um processo de discussão e análise que colocou em tensão visões consideradas “tradicionais” ligadas ao rendimento físico-esportivo. Perspectivas foram mobilizadas para promover uma crítica a essa tradição, oferecendo, consequentemente, uma alternativa à forma escolar dominante naquele país. Nessas circunstâncias, houve um processo de reflexão sobre a identidade disciplinar, o que resultou em uma crise que colocou no centro da discussão a problemática do corpo e do movimento, e foram promovidos diálogos frutíferos com as Ciências Sociais e as Ciências da Educação. Isso produziu modificações de diversas ordens, com impactos epistemológicos e pedagógicos que foram sentidos, anos depois, nos documentos curriculares destinados à formação de professores na Educação Física escolar.

Chama a atenção, por meio das entrevistas, como os depoentes foram experimentando as transformações em curso, incorporando às suas trajetórias compreensões sobre uma Educação Física renovada. Os documentos curriculares analisados evidenciam um ecletismo conceitual (às vezes problemático), reunindo autores e tradições de pensamento que nem sempre convergem em suas proposições. Manuel Sérgio, Parlebas, Le Boulch, Valter Bracht, Cagigal, entre outros, a despeito de suas diferenças internas, são convocados para fundamentar a renovação pretendida na Educação Física argentina. Cada um deles também impactou distintamente nas biografias que serviram de vozes para a narrativa aqui descrita.

Importa ainda destacar que este fenômeno renovador não foi exclusivo da Argentina, mas ocorreu em outros países do continente sul-americano em época similar, como Brasil, Uruguai, Chile e Colômbia. Portanto, a colaboração alemã no campo da Educação Física e dos Esportes e o consumo de uma literatura “alternativa” (a psicomotricidade em suas distintas versões, Parlebas, Cagigal, Valter Bracht, Esporte para Todos etc.), evidenciam traços comuns na região de um movimento orientado a reinventar a tradição instituída na disciplina.

O exercício realizado neste artigo carece não apenas de escutar outras biografias que viveram este processo, cotejando suas memórias com outras materialidades (fontes), mas merece, além disso, ser expandido para outras regiões da América do Sul, tarefa que permitiria conhecer, nas últimas décadas, iniciativas que visam reinventar a história da Educação Física numa direção que pode ser chamada, ainda que frouxamente aqui, de crítica.

• 1
  Parlebas escreveu o prólogo do livro de Raúl Gómez, “La enseñanza de la Educación Física en el nivel inicial y el primer ciclo de la EGB”.
• 2
  Na proposta curricular da província de Buenos Aires do ano de 1999 é possível encontrar Le Boulch e seus conceitos (Levoratti, 2017). Essa compreensão também se reproduz nas “Recomendaciones para la elaboración de diseños curriculares” (Argentina, 2009), que se refere a uma tendência psicomotriz na formação.
• 3
  A comissão de professores de Educação Física responsáveis por elaborar este documento era composta por: Luis Castillo, Silvia Ferrari, Jorge Gómez (um dos professores entrevistados) e Eduardo Prieto. Ferrari, Gómez e Renzi, junto a Nidia Corrales, no ano de 2020, publicaram o livro “La formación docente en educación física. Perspectivas y prospectiva”. Nele há uma condensação que retoma boa parte da proposta presente nas recomendações do INFD (Levoratti, 2018).
• 4
  Grasso (2008) compreende, assim como o próprio entrevistado Gómez, que o desenvolvimento do conceito de corporeidade na Educação Física é tributário da Ciência da Motricidade Humana, proposição do filósofo português.
• 5
  O mesmo entrevistado relata um encontro com Valter Bracht, em 2002, num evento organizado por Víctor Pavía, em Cipolletti, Río Negro. O encontro era “[...] sobre el objeto de estudio de la Educación Física, me ayudó a instalar la idea que es las prácticas de intervención sobre la constitución de la corporeidad, a las que él alude en algún momento, además de centrarse en la cultura corporal de movimiento” (Entrevistado Gómez, 2022).
• 6
  Um relato sobre a presença de Valter Bracht na Educação Física argentina pode ser encontrado em Crisorio (2014) e Rozengardt (2014), ambos entrevistados nesta investigação. O valor de sua contribuição é expresso pelo título de reconhecimento que recebeu da Universidad Nacional de La Plata.

• FINANCIAMENTO

  Este artigo é uma ação vinculada aos projetos de pesquisa “A constituição de um pensamento renovador da Educação Física na América do Sul: uma análise comparada entre Brasil, Uruguai, Argentina, Chile e Colômbia” e “Formação de professores de Educação Física no Espírito Santo e na América do Sul”. As investigações são financiadas pela Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (FAPES), a quem agradecemos pelo apoio (Edital Profix 15/2022. Processo 2022-Z3971; Edital Universal 03/2021. Processo 2021-B3GXG; Bolsa Pesquisador Capixaba 06/2021. Processo 2022-D93DK).

REFERÊNCIAS

• AAVV. Actas “I Congresso Argentino de Educação Física”. La Plata: Departamento de Educación Física, Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación, Universidad Nacional de la Plata; 1993.
• Argentina. Ministerio de Relaciones Internacionales. Resolución n° 486 de 1 de diciembre de 1971. Boletín Nacional; Buenos Aires; 1 dic. 1971.
• Argentina. Ministerio de Educación. Recomendaciones para la elaboración de diseños curriculares: profesorado de Educación Física. Buenos Aires: Ministerio de Educación; 2009.
• Cena M, Fassina M, Garro M. La Educación Física en la transición democrática. Camino de democratización y de recuperación pedagógica. Un fragmento de la historia de la Educación Física en Córdoba (1983-1995). In: Rozengardt R, editor. Apuntes de historia para profesores de Educación Física. Madrid: Miño y Dávila; 2006. p. 265-80.
• Crisorio R. Valter Bracht em Argentina: una mirada. In: Almeida FQ, Gomes IM, editores. Valter Bracht e a Educação Física: um pensamento em movimento. Ijuí: Unijuí; 2014. p. 161-70.
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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  04 Dez 2023
• Data do Fascículo
  2023

Histórico

• Recebido
  22 Maio 2023
• Aceito
  06 Set 2023