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Pesquisa em atividade física e saúde: a urgência de uma epistemologia decolonial

Research in physical activity and health: the urgency of a decolonial epistemology

Investigación en actividad física y salud: la urgencia de una epistemología decolonial

RESUMO

O objetivo do presente ensaio é refletir acerca da ideia de uma condição colonizada das investigações em atividade física e saúde, bem como, sobre a urgência de uma agenda decolonial para o desenvolvimento de pesquisas nesta área. Assumimos que o método epidemiológico hegemônico tem sido reproduzido acriticamente e de forma submissa. Propomos, assim, romper com a colonização deste saber epidemiológico do Norte global para resolvermos nossos próprios problemas de pesquisa. Para tanto, entendemos ser urgente refletirmos sobre uma epistemologia decolonial que não esteja atrelada à perspectiva dos fatores de risco, escute com as demandas das populações, bem como, contribua para superar as iniquidades nas quais as populações estão expostas.

Palavras-chave:
Exercício físico; Epistemologia; Colonialismo; Epidemiologia

ABSTRACT

The objective of this essay is to reflect on the idea of a colonized condition of investigations in physical activity and health, as well as on the urgency of a decolonial agenda for the development of research in this area. We assume that the hegemonic epidemiological method has been reproduced uncritically and submissively. We propose, therefore, to break with the colonization of this epidemiological knowledge of the global North in order to solve our own research problems. Therefore, we understand that it is urgent to reflect on a decolonial epistemology that is not linked to the perspective of risk factors, listens to the demands of the populations, as well as contributes to overcoming the iniquities to which populations are exposed.

Keywords:
Physical exercise; Epistemology; Colonialism; Epidemiology

RESUMEN

El objetivo de este ensayo es reflexionar sobre la idea de una condición colonizada de las investigaciones en actividad física y salud, así como sobre la urgencia de una agenda decolonial para el desarrollo de investigaciones en esta área. Suponemos que el método epidemiológico hegemónico ha sido reproducido acrítica y sumisamente. Proponemos, por tanto, romper con la colonización de este saber epidemiológico del Norte global para resolver nuestros propios problemas de investigación. Por tanto, entendemos que es urgente reflexionar sobre una epistemología decolonial que no se vincule a la perspectiva de los factores de riesgo, escuche las demandas de las poblaciones, así como contribuya a la superación de las iniquidades a las que están expuestas las poblaciones.

Palabras clave:
Ejercicio físico; Epistemología; Colonialismo; Epidemiología

INTRODUÇÃO

No Brasil, a partir de meados do século XIX, foi fomentado um importante projeto de eugenização da população. O plano consistia em alterar a composição racial dos brasileiros, à época já constituída por uma quantidade bastante expressiva de negros. O modo como o capitalismo se construiu no país evidenciou a desqualificação dos negros e dos demais brasileiros como trabalhadores. Dentro deste contexto, o progresso da nação, para aqueles que concebiam esta ideia, estaria dependente do embranquecimento do povo, algo que selou o destino dos negros após a “abolição” (Cardoso, 2008Cardoso A. Escravidão e sociabilidade capitalista: um ensaio sobre inércia social. Novos Estud CEBRAP. 2008;(80):71-88. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002008000100006.
http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002008...
; Soares, 2004Soares CL. Educação Física: raízes europeias e Brasil. Campinas: Autores Associados; 2004.).

A Educação Física brasileira, neste percurso, assumiu um importante papel colaborativo. Em consonância com a educação higiênica das elites e com a tradição colonizadora, por exemplo, tornou-se possível prescrever as normas do “comportamento saudável”, além de incutir valores de urbanidade, racismo, superioridade masculina, entre outros aspectos. Ademais, o desenvolvimento de uma “política familiar”, contendo “ações pedagógicas” que incluíam a ginástica, por parte de higienistas, buscou dar conta das demandas da classe dominante em direção a uma raça superior. Assim, os métodos de ginástica francesa, alemã ou sueca tomaram força no pensamento do início da Educação Física no Brasil (Soares, 2004Soares CL. Educação Física: raízes europeias e Brasil. Campinas: Autores Associados; 2004.).

A compreensão genérica sobre as relações entre a prática de atividades físicas e a saúde encontra suporte em uma série de estudos epidemiológicos muito bem elaborados (Kyu et al., 2016Kyu HH, Bachman VF, Alexander LT, Mumford JE, Afshin A, Estep K, et al. Physical activity and risk of breast cancer, colon cancer, diabetes, ischemic heart disease, and ischemic stroke events: systematic review and dose-response meta-analysis for the Global Burden of Disease Study 2013. BMJ. 2016;354:i3857. http://dx.doi.org/10.1136/bmj.i3857. PMid:27510511.
http://dx.doi.org/10.1136/bmj.i3857...
). Além disso, tal literatura tem fundamentado inúmeros guias, posicionamentos ou planos de ação com o propósito de enfatizar a importância dos indivíduos se manterem ativos (Brasil, 2021Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Promoção da Saúde. Guia de atividade física para a população brasileira [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [citado em 2023 Fev 26]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_atividade_fisica_populacao_brasileira.pdf
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).

Ainda que tal compreensão possa ter seu valor, cabe destacar que grande parte das investigações científicas acerca do tema é originária do Norte global, isto é, foi produzida por pesquisadores de países mais ricos e teve como participantes de pesquisa pessoas destes mesmos países. E, em que pese as questões investigadas a partir de uma matriz teórica das ciências biológicas possam ser, de certo modo, semelhantes para nossa realidade e, assim, passíveis de serem importadas, entendemos que nossos problemas são outros, requerem uma aproximação com as ciências sociais e humanas, além de uma abordagem que rompa com a colonização dos saberes.

Neste sentido, o objetivo do presente ensaio é refletir acerca da ideia de uma condição colonizada das investigações em atividade física e saúde, bem como, sobre a urgência de uma agenda decolonial para o desenvolvimento de pesquisas nesta área, considerando que as epistemologias e métodos de pesquisa decolonizadores ganharam força tanto nas ciências sociais, quanto até mesmo nas biológicas.

ATIVIDADE FÍSICA E SAÚDE: O REDUCIONISMO DA PERSPECTIVA BIOMÉDICA

Diferentes posicionamentos, guias ou estudos têm assumido e enfatizado que as pessoas deveriam se manter fisicamente ativas, a despeito do domínio de atividade física envolvido. Em outras palavras, “toda atividade física conta” (Hallal et al., 2012Hallal PC, Andersen LB, Bull FC, Guthold R, Haskell W, Ekelund U. Global physical activity levels: surveillance progress, pitfalls, and prospects. Lancet. 2012;380(9838):247-57. http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(12)60646-1. PMid:22818937.
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; Brasil, 2021Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Promoção da Saúde. Guia de atividade física para a população brasileira [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [citado em 2023 Fev 26]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_atividade_fisica_populacao_brasileira.pdf
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco...
). Essa noção assume uma posição, poderíamos dizer, moralista e colonizadora, no sentido de que há algo certo a fazer, uma ética normativa, prescritiva e, acima de tudo, advinda dos países desenvolvidos e de organizações internacionais que dizem ao mundo aquilo que é bom.

Dentro desta perspectiva, Hallal et al. (2012)Hallal PC, Andersen LB, Bull FC, Guthold R, Haskell W, Ekelund U. Global physical activity levels: surveillance progress, pitfalls, and prospects. Lancet. 2012;380(9838):247-57. http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(12)60646-1. PMid:22818937.
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ressaltam que, a partir da Revolução Industrial, novas tecnologias contribuíram para a redução da quantidade de esforço físico realizado durante o trabalho, de tal forma que nos Estados Unidos, o gasto energético diário relacionado às atividades físicas ocupacionais diminuiu mais de 100 calorias por dia durante os últimos 50 anos, embora nos países de baixa e média renda os estudos sejam muito escassos e, quando disponíveis, inconsistentes. Ainda assim, as recomendações são feitas e as insinuações de que esta redução pode contribuir para evitar milhões de mortes são mantidas.

Além disso, em que pese, a literatura apontar que a atividade física no lazer está associada com a redução de inúmeras doenças, não há consenso de que a atividade física ocupacional previna doenças. Ao contrário e, talvez, paradoxalmente, diferentes estudos têm demonstrado que a atividade física no trabalho e doméstica podem contribuir negativamente à saúde (Coenen et al., 2018Coenen P, Huysmans MA, Holtermann A, Krause N, van Mechelen W, Straker LM, et al. Do highly physically active workers die early? A systematic review with meta-analysis of data from 193696 participants. Br J Sports Med. 2018;52(20):1320-6. http://dx.doi.org/10.1136/bjsports-2017-098540. PMid:29760168.
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; Paiva e Palma, 2021Paiva GB, Palma A. O paradoxo da atividade física: esquadrinhando as atividades físicas ocupacionais e domésticas. In: Palma A, Rodrigues P, Reis EC, organizadores. Práticas Corporais & Atividades Físicas: saúde e sociedade. Curitiba: CRV; 2021. p. 111-132.).

Alguns autores têm tentado demonstrar que existe um mecanismo biológico preservado dos primeiros hominídeos, de tal forma que determinados genes foram selecionados naturalmente a partir de um ambiente que demandava elevados níveis de atividades físicas. De maneira semelhante, isso ocorreu também com o armazenamento da gordura em nossos corpos. Assim, as relações entre o consumo de energia e o gasto energético dos seres humanos atuais parecem similares àquelas dos hominídeos que viviam como caçadores-coletores. Dentro desta perspectiva, para estes autores, na medida em que as novas tecnologias contribuem para a redução de boa parte das atividades físicas, o risco para a ocorrência de doenças crônicas vem aumentando (Cordain et al., 1998Cordain L, Gotshall RW, Eaton SB, Eaton Iii SB. Physical activity, energy expenditure and fitness: an evolutionary perspective. Int J Sports Med. 1998;19(5):328-35. http://dx.doi.org/10.1055/s-2007-971926. PMid:9721056.
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; Hawley et al., 2014Hawley JA, Hargreaves M, Joyner MJ, Zierath JR. Integrative biology of exercise. Cell. 2014;159(4):738-49. http://dx.doi.org/10.1016/j.cell.2014.10.029. PMid:25417152.
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).

Além disso, Hawley et al. (2014)Hawley JA, Hargreaves M, Joyner MJ, Zierath JR. Integrative biology of exercise. Cell. 2014;159(4):738-49. http://dx.doi.org/10.1016/j.cell.2014.10.029. PMid:25417152.
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ressaltam a importância de os estudos sobre a biologia do exercício necessitarem integrar as análises e conhecimentos sobre os genes, moléculas e células, muito embora a integração seja uma incorporação apenas das entidades biológicas do ser; isto é, uma integração acrítica que se revela desconectada da sociedade, da realidade social.

Tome-se, por exemplo, o estudo de Souza (2021)Souza ER. Rebocadores urbanos e capitalismo de plataforma. Ensaio sobre a entrega por bicicleta em São Paulo [tese]. São Paulo: Escola de Educação Física e Esporte, Universidade de São Paulo; 2021. que investigou entregadores de alimentos e outros produtos na cidade de São Paulo e revelou a enorme precarização do trabalho de entrega por bicicleta. Os trabalhadores chegavam a enfrentar 12 horas de jornada laboral por dia; inalando uma quantidade excessiva de poluentes, na medida em que ocorre um aumento considerável da frequência respiratória dos trabalhadores em esforço físico, além de grande insegurança ao se deslocar pelo ambiente urbano.

A pesquisa de Mourão (1999)Mourão L. Representação social da relação do trabalho feminino da diarista com opções de lazer na comunidade de Queimados. Motus Corporis. 1999;6(2):52-72. objetivou compreender as representações que trabalhadoras domésticas tinham acerca do lazer na região onde moravam. As mulheres trabalhavam em bairros de classe economicamente elevada da cidade do Rio de Janeiro e residiam na cidade de Queimados, na Baixada Fluminense do Estado do Rio de Janeiro. Na rotina do dia-a-dia, elas levavam, em média, três horas para chegar ao local de trabalho; trabalhavam aproximadamente oito horas por dia; e gastavam cerca de quatro horas para retornar à casa. Além disso, realizavam as tarefas domésticas dentro da própria residência, como preparar o jantar, limpar a casa, cuidar dos filhos etc. Por óbvio, as trabalhadoras não realizavam atividades físicas no lazer... na verdade, não tinham lazer! E revelaram um profundo esgotamento físico, em razão das diferentes jornadas que enfrentam.

Parece-nos, portanto, inapropriado, ou mesmo cínico, acreditar que toda “atividade física conta”.

RAÇA, SEXO, CLASSE SOCIOECONÔMICA COMO CATEGORIAS EPIDEMIOLÓGICAS A-HISTÓRICAS

A forma hegemônica como a epidemiologia é utilizada para investigar e explicar um objeto tem ocorrido de modo reducionista, na medida em que trata de determinados fatores sem considerar seu contexto. Em outras palavras, a abordagem analítica tem limitado a consideração das circunstâncias sociais, políticas e históricas em que dados fatores se estabelecem.

Tratados, muitas vezes, como variáveis, os fatores têm sido analisados separadamente e, de certo modo, isoladamente das conjunturas que as produzem. Assim, a prática epidemiológica hegemônica reduz sua análise, associando tais fatores a um determinado desfecho, a partir das bases das ciências biomédicas e matemáticas.

Sevalho (2022)Sevalho G. Contribuições das críticas pós-colonial e decolonial para a contextualização do conceito de cultura na Epidemiologia. Cad Saude Publica. 2022;38(6):e00243421. http://dx.doi.org/10.1590/0102-311xpt243421. PMid:35703670.
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, apoiando-se em Stuart Hall, comenta que os processos de atribuição de identidades raciais, de gênero ou de sexualidade, entre outras, assumem função primordial na formação discursiva, que pode silenciar a crítica e naturalizar tais identidades em conformidade aos sistemas de poder e opressão. Neste sentido, para Hall (2016)Hall S. Diásporas, ou a lógica da tradução cultural. Matrizes. 2016;10(3):47-58. http://dx.doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v10i3p47-58.
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, os processos de atribuição de identidades acabaram por desempenhar papeis fundamentais na colonização e nos sistemas pós-coloniais de poder.

Com base em Hall (2016)Hall S. Diásporas, ou a lógica da tradução cultural. Matrizes. 2016;10(3):47-58. http://dx.doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v10i3p47-58.
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, é possível considerar que a linguagem dos discursos hegemônicos produzidos pela epidemiologia tornou-se “ideológica” quando se submeteu a um poder que investiu sobre ela procurando fechar o sentido, fixando limites e, sobretudo, retirando a linguagem das pressões da luta social. Assim, afirma o autor, o poder e a linguagem se articulam, não como algo natural ou inevitável, mas, antes, como conexões que se dão especifica e historicamente. Portanto, raça, gênero, sexualidade são construtos políticos e sociais, na medida em que os grupos sociais compartilham padrões de cultura e crenças, não em decorrência de algo transmitido biologicamente, mas como consequência de experenciarem uma vida deparando-se com opressões de raça, gênero, classe social, sexualidade etc.1 1 Categorias como raça, gênero, classe social, sexualidade ou congêneres podem apresentar pequenas distinções de concepção entre os diferentes autores aqui utilizados. Contudo, o refinamento conceitual, no presente texto, não será possível em razão do espaço limitado.

Segundo Harvey (2021), aHarvey M. The political economy of health: revisiting its marxian origins to address 21st-century health inequalities. Am J Public Health. 2021;111(2):293-300. http://dx.doi.org/10.2105/AJPH.2020.305996. PMid:33351658.
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noção de “economia política da saúde” está fortemente associada à tradição teórica marxista, presente em trabalhos de Jaime Breilh, Asa Cristina Laurell, Vicente Navarro, entre outros. Tal literatura incorpora conceitos e questões desenvolvidos por Marx e Engels, como luta de classes; desigualdades materiais; acumulação de capital; exploração da força de trabalho; processo, organização e condições de trabalho, além de tratar de imperialismo global e desenvolvimento econômico e social. Para Harvey (2021)Harvey M. The political economy of health: revisiting its marxian origins to address 21st-century health inequalities. Am J Public Health. 2021;111(2):293-300. http://dx.doi.org/10.2105/AJPH.2020.305996. PMid:33351658.
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, no entanto, a despeito da centralidade do nome de Karl Marx, a base do pensamento acerca da economia política da saúde é frequentemente atribuída à Friedrich Engels e seu clássico livro A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Nessa publicação, Engels explorou as consequências do desenvolvimento do capitalismo industrial sobre a saúde dos trabalhadores ingleses, apontando como as condições sociais e de trabalho, produzidas pelo modo industrial da economia política capitalista, resultaram em sofrimento e morte entre os trabalhadores, simultaneamente a um processo que gerava um importante aumento da riqueza dos detentores do capital. É dentro dessa perspectiva, que Harvey (2021)Harvey M. The political economy of health: revisiting its marxian origins to address 21st-century health inequalities. Am J Public Health. 2021;111(2):293-300. http://dx.doi.org/10.2105/AJPH.2020.305996. PMid:33351658.
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advoga que as desigualdades em saúde podem ser compreendidas como consequências da estrutura de classes, da pobreza, das condições de trabalho e da privação em suas várias formas.

Há, por outro lado, um ponto essencial no trabalho desenvolvido por Engels, a saber, a escuta e o aprendizado com os próprios trabalhadores. Estes o ensinaram que a sociedade “pôs os operários numa situação tal que não podem conservar a saúde nem viver muito tempo; que ela, pouco a pouco, debilita a vida desses operários, levando-os ao túmulo prematuramente” (Engels, 2010, pEngels F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo; 2010.. 136). E, por essa razão, os trabalhadores designavam tal situação de “assassinato social”. Engels (2010)Engels F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo; 2010. considerava que a sociedade tinha pleno conhecimento da precária situação dos trabalhadores e o quanto esta era prejudicial à saúde, mas, a despeito disso, nada fazia para melhorá-la. Neste sentido, na medida em que se conhece as consequências do sistema, o modus operandi não se tratava de um simples homicídio, mas de um assassinato qualificado.

Harvey et al. (2023), aHarvey M, Piñones-Rivera C, Holmes SM. Structural competency, Latin American social medicine, and collective health: exploring shared lessons through the work of Jaime Breilh. Glob Public Health. 2023;18(1):2220023. http://dx.doi.org/10.1080/17441692.2023.2220023. PMid:37272349.
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partir de insights da produção da Medicina Social Latino-americana e dos estudos de Jaime Breilh, advogam a necessidade de se identificar e reagir à ocorrência das doenças e agravos à saúde, e sua distribuições desiguais, como algo resultante das estruturas sociais e os sistemas interligados de diferentes opressões. Enquanto noções de iniquidades em saúde enfatizam a importância das relações entre as condições sociais e as consequências para a saúde ou, ainda, tratam alguns aspectos acriticamente como variáveis que podem ser associados estatisticamente a determinados resultados, a ideia de “competência estrutural” considera as estruturas sociais como a matriz e a mantenedora das desigualdades das condições sociais que interferem na saúde, a partir das construções de classe social, raça, gênero, sexualidade, nacionalidade etc. Desse modo, os conceitos de racismo estrutural, violência estrutural ou desemprego estrutural podem ser utilizados para descrever os arranjos políticos, sociais, econômicos, jurídicos e institucionais que colocam indivíduos e populações em situação de opressão, precarização ou desigualdade, enquanto beneficiam outros grupos sociais. Por outro lado, os autores chamam a atenção para o conceito de “humildade estrutural”, o qual sopesa que os profissionais de saúde deveriam ouvir e abraçar as prioridades demandadas pelos pacientes ou coletivos com quem trabalham, ao invés de se utilizar do próprio status profissional para reproduzir hierarquias nas relações profissional-paciente ou cientista-comunidade.

Dentro dessa perspectiva, parece emblemático o uso recorrente da classe socioeconômica, da raça, do gênero etc. como categorias epidemiológicas a-históricas, apolíticas e/ou acríticas. Em geral, parece existir certa naturalização destas categorias, como se estas não fossem resultado das construções humanas, mas, antes, aspectos biológicos ou acidentais.

Breilh (2021)Breilh J. Critical epidemiology and the people’s health. New York: Oxford University Press; 2021.. http://dx.doi.org/10.1093/med/9780190492786.001.0001.
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destaca as relações assimétricas entre paradigmas científicos hegemônicos e subalternos, bem como a mútua valoração existente. Para o autor, as ciências da saúde dominantes adotam uma perspectiva “eurocêntrica” ou “nortecêntrica”, assumem-se como um repositório dos conhecimentos verdadeiros sobre saúde e demonstram um explícito desinteresse por quaisquer contestações críticas. Além disso, desconsideram os saberes e pensamentos produzidos por outras formas de conhecimento.

É neste sentido que se faz necessário estabelecer, como sugere Breilh (2021)Breilh J. Critical epidemiology and the people’s health. New York: Oxford University Press; 2021.. http://dx.doi.org/10.1093/med/9780190492786.001.0001.
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, um inventário epistemológico crítico para descolonizar os saberes, as investigações e as práticas. Para tanto, o trabalho acadêmico crítico deve superar o silenciamento epistêmico dos diferentes grupos sociais, sejam estes cientistas em posição não hegemônica ou, especialmente, pessoas ou grupos socialmente marginalizados, obrigando, assim, pensarmos em uma “descolonização metodológica”, na desconstrução das relações de poder, na não reprodução de um sistema acadêmico-científico dependente epistemológica e intelectualmente do Norte hegemônico, na suspensão do epistemicídio das outras formas de pensamento e conhecimento, bem como, na compreensão dos planos de enfrentamento das crises sociais e epidemiológicas das sociedades neoliberais.

A URGÊNCIA DE UMA EPISTEMOLOGIA DECOLONIAL PARA AS INVESTIGAÇÕES DAS RELAÇÕES ENTRE ATIVIDADES FÍSICAS E SAÚDE

Em que pese as inúmeras divergências conceituais entre os pensamentos pós-colonial, estudos subalternos e decolonial (Ballestrin, 2013Ballestrin L. América Latina e o giro decolonial. Rev Bras Ciênc Polít. 2013;(11):89-117. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-33522013000200004.
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), é possível reconhecermos algo em comum e, portanto, considerar que possam servir de apoio para refletir sobre uma epistemologia decolonial que trate das investigações sobre as relações entre atividades físicas e saúde. Aqui, entendemos que as expressões “decolonial”, “decolonialidade” ou termos similares expressam uma ruptura à dominação intelectual, cultural, social, política e/ou econômica eurocêntrica (ou nortecêntrica), buscando resguardar os direitos dos indivíduos ou comunidade.

A construção de uma classificação social fundamental para a empreitada colonial operou com a ideia de raça. A ideação da diferença, da superioridade e da pureza dos sujeitos brancos é um lance extraordinário (Ballestrin, 2013Ballestrin L. América Latina e o giro decolonial. Rev Bras Ciênc Polít. 2013;(11):89-117. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-33522013000200004.
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). Quijano (2000)Quijano A. Colonialidad del poder y clasificacion social. J World-syst Res. 2000;6(2):342-86. http://dx.doi.org/10.5195/jwsr.2000.228.
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destaca que o poder capitalista apresenta a colonialidade como um dos seus elementos constitutivos, a qual se funda na determinação de uma classificação étnico-racial da população mundial como um constructo basilar do padrão de poder e permeia toda existência social cotidiana. Em conjunto com a classificação étnico-racial, o gênero e o trabalho formam os três elementos fundamentais de classificação que integram a formação do capitalismo colonial presente no século XVI, e nos quais as relações de exploração e dominação estão configuradas (Ballestrin, 2013Ballestrin L. América Latina e o giro decolonial. Rev Bras Ciênc Polít. 2013;(11):89-117. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-33522013000200004.
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; Quijano, 2000Quijano A. Colonialidad del poder y clasificacion social. J World-syst Res. 2000;6(2):342-86. http://dx.doi.org/10.5195/jwsr.2000.228.
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). Neste sentido, a identificação das pessoas ou comunidades e a distinção entre os grupos sociais, em razão destas marcas, foi crucial para o poder colonial. É relevante, portanto, compreender que a raça e o racismo fizeram parte do princípio organizador de todas as hierarquias do sistema-mundo (Ballestrin, 2013Ballestrin L. América Latina e o giro decolonial. Rev Bras Ciênc Polít. 2013;(11):89-117. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-33522013000200004.
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).

Ademais, é preciso ressaltar, o colonialismo, e o consequente epistemicídio, não se forjaram apenas como uma imposição de valores e saberes, de forma simbólica. Estes foram acompanhados, com frequência, de violência física, assassinatos e perseguições (Quijano, 2000Quijano A. Colonialidad del poder y clasificacion social. J World-syst Res. 2000;6(2):342-86. http://dx.doi.org/10.5195/jwsr.2000.228.
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; Maldonado-Torres, 2008Maldonado-Torres N. La descolonización y el giro des-colonial. Tabula Rasa. 2008;(9):61-72. http://dx.doi.org/10.25058/20112742.339.
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; Grosfoguel, 2016Grosfoguel R. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Soc Estado. 2016;31(1):25-49. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69922016000100003.
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69922016...
). Grosfoguel (2016, pGrosfoguel R. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Soc Estado. 2016;31(1):25-49. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69922016000100003.
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69922016...
. 31) destaca quatro relevantes genocídios/ epistemicídios ao longo do século XVI:

1. contra os muçulmanos e judeus na conquista de Al-Andalus em nome da “pureza do sangue”; 2. contra os povos indígenas do continente americano, primeiro, e, depois, contra os aborígenes na Ásia; 3. contra africanos aprisionados em seu território e, posteriormente, escravizados no continente americano; e 4. contra as mulheres que praticavam e transmitiam o conhecimento indo-europeu na Europa, que foram queimadas vivas sob a acusação de serem bruxas.

Contudo, estas violências não se restringiram a um determinado momento histórico conhecido como Mercantilismo; tampouco, a específicos e poucos períodos da história. Para exemplificar, é possível trazer à tona as ações que as ditaduras civis-militares, entre as décadas de 1960 e 1990, na América do Sul, impuseram aos cientistas, com regimes de exceção, repressão e censura; ou, ainda, o processo de emigração de pesquisadores do Brasil, durante o recente governo do país, que estimulou o negacionismo científico e o ataque às universidades públicas, bem como, reduziu substancialmente o aporte financeiro para o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (Waitzkin et al., 2001Waitzkin H, Iriart C, Estrada A, Lamadrid S. Social medicine in Latin America: productivity and dangers facing the major national groups. Lancet. 2001;358(9278):315-23. http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(01)05488-5. PMid:11498235.
http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(01)...
; Nader, 2014Nader HB. 50 anos de golpe militar: a SBPC na luta pela democratização do país. Cienc Cult. 2014;66(2):4-5. http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252014000200002.
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; Silva et al., 2021Silva JR Jr, Catani AM, Fargoni EHE. La fuga de cerebros en Brasil bajo la politica del Bolsonarismo. Argumentos: Revista de Crítica Social. 2021;24:317-34.). Cabe destacar, também, o movimento crítico da educação física, em meados dos anos 1980, ao final e/ou após o regime ditatorial, em que um pensamento renovador ganhou força, mas que revela o silenciamento imposto aos pesquisadores durante o período.

Ballestrin (2013)Ballestrin L. América Latina e o giro decolonial. Rev Bras Ciênc Polít. 2013;(11):89-117. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-33522013000200004.
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, apoiada em Enrique Dussel, ainda destaca que a modernidade seria um mito que encoberta a colonialidade e se constrói a partir dos seguintes aspectos: i) a civilização moderna europeia se autodescreve como mais desenvolvida; ii) a civilização “superior” se obriga a desenvolver os “mais primitivos”; iii) o caminho educativo, unilateral, deve seguir os padrões dos “mais civilizados”; iv) como as pessoas ou comunidades “primitivas” fazem oposição/ resistência ao processo civilizatório, torna-se essencial exercer a violência, quando necessário; v) esse processo de dominação produz vítimas, mas a violência é entendida como algo inevitável e mesmo positivo para superar o “primitivismo”; vi) por óbvio, o “primitivo” tem culpa por tentar resistir ao processo civilizatório que a civilização “superior” entendeu ser mais adequada; vii) por fim, admite-se que o processo civilizatório, de “modernização”, apresenta inevitavelmente sacrifícios, custos ou sofrimentos dos povos “atrasados”, das “raças escravizáveis”, do sexo frágil, dos pobres etc. Assim, a modernidade (e seu projeto iluminista) está intimamente ligada à colonialidade, de tal forma que a primeira não existe sem a última.

Para Maldonado-Torres (2008), aMaldonado-Torres N. La descolonización y el giro des-colonial. Tabula Rasa. 2008;(9):61-72. http://dx.doi.org/10.25058/20112742.339.
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ideia de descolonização ou de atitude decolonial tem seu núcleo no horror diante do genocídio (e epistemicídio) promovido pelo processo de colonização. Tal atitude, para o autor, é fundamental para uma conduta ético-política e epistêmica que exige outras bases para “o conhecer”, e que ele denomina de “razão decolonial”. Maldonado-Torres (2008)Maldonado-Torres N. La descolonización y el giro des-colonial. Tabula Rasa. 2008;(9):61-72. http://dx.doi.org/10.25058/20112742.339.
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ainda sustenta que ambas, atitude e razão decoloniais, são aspectos centrais do giro decolonial, o qual compreende a descolonização, mas não a modernidade, como um projeto ainda não finalizado. Segundo o autor, a dependência ao colonizador não pode ser explicada, apenas, a partir da astenia frente às forças exteriores impostas aos colonizados, mas também às forças interiores que buscam manter as hierarquias raciais, as quais continuam sendo reproduzidas

Grosfoguel (2007)Grosfoguel R. The Epistemic Decolonial turn. Cult Stud. 2007;21(2-3):211-23. http://dx.doi.org/10.1080/09502380601162514.
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ressalta que sempre se fala de um espaço específico nas estruturas de poder, representativo da posição que se ocupa nas hierarquias de classe socioeconômica, raça, gênero, sexualidade, religião, língua e geográfica presentes no sistema-mundo moderno, colonial, capitalista e patriarcal. O autor ainda destaca que isto não se trata de uma questão de valores sociais na produção do conhecimento, mas que é fundamental considerar o lócus da enunciação, em outras palavras, a localização geopolítica e corporal-política do sujeito que fala. Assim, percebe-se que nas ciências, hegemonicamente “nortecêntricas”, aquele que fala está sempre oculto, apagado da análise, não situado.

A partir desta perspectiva, entendemos que se faz urgente pensar sobre uma epistemologia decolonial (ou epidemiologia decolonial) para investigar as relações entre a realização de atividades físicas e a saúde2 2 É necessário ressaltar que não se pretende propor algo que parta “do zero”, do “nada”. Há, sem dúvida, inúmeras produções de conhecimentos que têm sido invisibilizadas e sufocadas, tais como o "vivir sabroso", colombiano, e o "bien vivir", equatoriano. . Sevalho (2022)Sevalho G. Contribuições das críticas pós-colonial e decolonial para a contextualização do conceito de cultura na Epidemiologia. Cad Saude Publica. 2022;38(6):e00243421. http://dx.doi.org/10.1590/0102-311xpt243421. PMid:35703670.
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traz importantes contribuições para refletirmos nesta direção. Compreendemos, como o autor, que a produção de dados em escuta mais apurada ou diálogo com os investigados pode contribuir para um conhecimento epidemiológico mais abrangente. Neste sentido, talvez seja preciso explorar os modos de vida dos sujeitos, considerando os aspectos sociais, históricos e culturais que atravessam o processo saúde-doença, ao contrário da perspectiva centrada em estilos de vida ou comportamentos de risco que imputa ao indivíduo toda causa de seu sofrimento ou condição. Para tanto, não bastaria incorporar variáveis como classe socioeconômica, raça, gênero, sexualidade, deficiências etc. nos modelos de análise bioestatísticos, subordinados aos saberes biomédicos. Para além disso, torna-se indispensável apreender os processos de aporofobia, racismo, machismo, sexismo, homofobia, capacitismo etc. para tomar consciência dos significados histórico, social e cultural que os números “frios” não demonstram.

Assim, a análise epidemiológica, em sua forma hegemônica, como ressaltou Breilh (1991)Breilh J. Epidemiologia: economia, política e saúde. São Paulo: Unesp/Hucitec; 1991., tem buscado inventariar alguns fatores, nomeados como “de risco”, para poder manipulá-los, aplicar cálculos matemáticos e transformá-los em “entidades causais”. A variável, portanto, assume o status de causa. Em síntese, entendemos que o cálculo matemático tem assumido a interpretação dos resultados dos estudos, em prejuízo à compreensão mais ampla da produção social que proporciona determinadas consequências. É deste modo que seria de extrema importância buscar compreender os processos de reprodução social e analisar a complexidade do contexto histórico, político, econômico, social e cultural que contribuem para a saúde das pessoas. Defendemos, desta forma, a necessidade de refletir sobre uma epidemiologia crítica decolonial que permita transcender as abordagens conservadoras, as quais invisibilizam e/ou silenciam as opressões de grupos sociais minorizados (Breilh, 1991Breilh J. Epidemiologia: economia, política e saúde. São Paulo: Unesp/Hucitec; 1991.; Palma et al., 2022Palma A, Paiva GB, Araújo MFS. Vidas precárias, Saúde e Educação Física: reflexões sobre a determinação social da atividade física. In: Carvalho RMA, Palma A, Souza AS, organizadores. Educação física, soberania popular, ciência e vida. Niterói: Intertexto; 2022. p. 55-67.).

Tomemos como exemplo o estudo de Saffer et al. (2013)Saffer H, Dave D, Grossman M, Leung LA. Racial, ethnic, and gender differences in physical activity. J Hum Cap. 2013;7(4):378-410. http://dx.doi.org/10.1086/671200. PMid:25632311.
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, que procurou examinar as disparidades étnico-raciais e de gênero na realização de atividades físicas. Como a maioria das investigações presentes na literatura, os autores verificaram que pessoas negras e hispânicas realizam menos atividades físicas no lazer do que os brancos, embora os primeiros estejam mais envolvidos com atividades físicas ocupacionais. Mulheres estão menos engajadas nas atividades físicas de lazer quando comparadas aos homens, ao mesmo tempo em que realizam mais atividades físicas domésticas do que eles. Questões relacionadas à renda também foram identificadas, verificando-se que pessoas de menor renda fazem menos atividades físicas no lazer e mais no trabalho. A despeito desses achados, em nenhum momento, e isso é comum nos diferentes trabalhos científicos, foi trazido à tona o racismo, o machismo, o sexismo ou o modo de produção capitalista que institui as iniquidades socioeconômicas para explicar tais resultados. De modo semelhante, nada se discute sobre como as atividades físicas doméstica e ocupacional podem estar representando uma forma de exploração de determinados grupos sociais. O problema se encerra nos números.

O estudo de Marshall et al. (2007)Marshall SJ, Jones DA, Ainsworth BE, Reis JP, Levy SS, Macera CA. Race/ethnicity, social class, and leisure-time physical inactivity. Med Sci Sports Exerc. 2007;39(1):44-51. http://dx.doi.org/10.1249/01.mss.0000239401.16381.37. PMid:17218883.
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toma caminho semelhante à pesquisa de Saffer et al. (2013)Saffer H, Dave D, Grossman M, Leung LA. Racial, ethnic, and gender differences in physical activity. J Hum Cap. 2013;7(4):378-410. http://dx.doi.org/10.1086/671200. PMid:25632311.
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e encontram resultados análogos. Em que pese investigar variáveis como sexo, raça/etnia, nível de escolaridade e renda familiar, além de permitir a análise interseccional de sexo, raça/etnia e condição socioeconômica nenhuma contextualização sobre racismo, sexismo, desigualdades de classe social ou interseccionalidade foi realizada.

Em outras palavras, os pesquisadores têm se utilizado de determinadas categorias apenas como variáveis a serem associadas com os desfechos, sem que atentem para a dimensão social e políticas destas categorizações. Sevalho (2022)Sevalho G. Contribuições das críticas pós-colonial e decolonial para a contextualização do conceito de cultura na Epidemiologia. Cad Saude Publica. 2022;38(6):e00243421. http://dx.doi.org/10.1590/0102-311xpt243421. PMid:35703670.
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, contudo, lembra que tais classificações epidemiológicas são construções socioculturais dos próprios pesquisadores, das sociedades em que estão inseridos e de suas visões de mundo. E como lembra Breilh (2006, pBreilh J. Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006.. 202), o paradigma do risco e seu modelo reducionista da realidade apresenta como prioridade os denominados “fatores causais”, nos quais são aplicados critérios probabilísticos, quando a análise deveria incorporar um modelo integrado, em que as condições sociais, econômicas, políticas, culturais da população fossem consideradas em toda sua complexidade. Ainda segundo o autor:

A lógica do ‘paradigma do risco’ é vertical, com uma racionalidade centrada no presente fatorial, um presente desvinculado dos processos históricos de gênese (passado) e de emancipação (utopia), razão por que é uma teoria de enorme utilidade para os modelos de gestão neoliberal e para a manipulação da hegemonia na saúde. Ela é a base de uma epidemiologia sem memória e sem sonhos de emancipação, presa à ditadura de um presente cuja persistência é conseguida mediante mudanças de forma que chamamos de mudanças cosméticas, as quais deixam intacta a estrutura insalubre.

Portanto, é possível considerar que a concepção epistemológica da epidemiologia crítica proposta por Breilh (1991Breilh J. Epidemiologia: economia, política e saúde. São Paulo: Unesp/Hucitec; 1991., 2006Breilh J. Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006., 2021Breilh J. Critical epidemiology and the people’s health. New York: Oxford University Press; 2021.. http://dx.doi.org/10.1093/med/9780190492786.001.0001.
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) pressupõe fomentar a exigência de um novo sonho dirigido à superação das opressões e iniquidades sociais que se relacionam com a saúde, ao mesmo tempo em que compreende que a epidemiologia hegemônica, nortecêntrica, atende a outros interesses que não aqueles demandados pelos grupos sociais vulnerabilizados. Para Breilh (2006), aBreilh J. Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006. epidemiologia crítica é uma disciplina contra-hegemônica, a qual se posiciona conceitualmente e em intervenção a serviço dos grupos “sem-poder”, lutando contra as iniquidades a que estão expostos, fortalecendo-os, bem como, procurando atendê-los em suas demandas históricas. E, neste sentido, atenta para as dimensões históricas estruturais relacionadas às opressões, presentes nas iniquidades relacionadas à raça, gênero e classe econômica.

De acordo com Adebisi (2023), oAdebisi YA. Decolonizing epidemiological research: a critical perspective. Avicenna J Med. 2023;13(2):68-76. http://dx.doi.org/10.1055/s-0043-1769088. PMid:37435557.
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processo de descolonização da investigação epidemiológica é um empreendimento fundamental. Historicamente, as ideologias coloniais e imperialistas têm acompanhado o método epidemiológico hegemônico, conduzindo a uma análise que atende aos interesses “nortecêntricos”, além de negligenciar as demandas e experiências dos grupos minorizados. Portanto, segundo o autor, torna-se imperioso descolonizar a pesquisa epidemiológica e sugere admitir como verdadeiro e valorizar o conhecimento das populações minorizadas e integrar o conhecimento por elas produzido; garantir que a trabalho epidemiológico seja contextualmente relevante às experiências e demandas dessas populações; além de enfatizar a necessidade de capacitação e colaborações de pesquisa e dividir a autoria das publicações.

À GUISA DE CONCLUSÃO

O presente trabalho não é uma crítica à epidemiologia ou aos estudos produzidos pelo Norte global. Trata-se, antes, de uma crítica à submissão cega ao colonialismo, ao imperialismo ou ao nortecentrismo presentes nos métodos epidemiológicos que seguimos.

Talvez seja importante perguntar a nós mesmos: os problemas científicos propostas pelos pesquisadores da Europa, da América do Norte ou Oceania devem ser os mesmos que devemos propor? As categorias que propomos investigar estão sendo historicamente contextualizadas ou assumem, apenas, uma perspectiva de fatores de risco? Os grupos que iremos pesquisar estão sendo ouvidos em suas demandas? Nossos achados estão ajudando a superar as iniquidades nas quais as populações estão expostas? E, sobretudo, qual a consequência sobre a nossas práticas na educação e nos cuidados em saúde?

Este ensaio reclama a atenção para estas questões, tentando formular o debate a partir de uma outra perspectiva, que busca descolonizar o saber epidemiológico. Para tanto, é fundamental que haja outra perspectiva epistemológica a qual requeira um pensamento mais abrangente; que não esteja baseada em categorias abstratas, mas em contextos histórico, econômico, político e social, além de dialogar criticamente com os diferentes projetos epistêmicos; e que considere seriamente os pensadores do Sul global.

  • 1
    Categorias como raça, gênero, classe social, sexualidade ou congêneres podem apresentar pequenas distinções de concepção entre os diferentes autores aqui utilizados. Contudo, o refinamento conceitual, no presente texto, não será possível em razão do espaço limitado.
  • 2
    É necessário ressaltar que não se pretende propor algo que parta “do zero”, do “nada”. Há, sem dúvida, inúmeras produções de conhecimentos que têm sido invisibilizadas e sufocadas, tais como o "vivir sabroso", colombiano, e o "bien vivir", equatoriano.
  • FINANCIAMENTO

    O presente trabalho não contou com apoio financeiro de nenhuma natureza para sua realização.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Ago 2023
  • Aceito
    09 Out 2023
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