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O espírito na América

LIVROS

O espírito na América1 [1 ] Agradeço os comentários de Florencia Ferrari e Stelio Marras para a redação deste pequeno texto.

Renato Sztutman

Doutorando em antropologia social pela Universidade de São Paulo e co-editor da revista Sexta-Feira

O CRU E O COZIDO (MITOLÓGICAS I)

de Claude Lévi-Strauss. Trad. de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

DO MEL ÀS CINZAS (MITOLÓGICAS II)

de Claude Lévi-Strauss. Trad. de Carlos Eugênio Marcondes de Moura, coordenação da tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

A edição, nos dias de hoje, de uma obra como as Mitológicas, de Claude Lévi-Strauss, é um ato ousado que merece ser recebido, no mínimo, com entusiasmo. Depois de reeditar, no ano passado, a tradução brasileira de O cru e o cozido (assinada por Beatriz Perrone-Moisés, autora do belo prefácio sobre o ofício de traduzir Lévi-Strauss), a Cosac Naify acaba de lançar Do mel às cinzas [1967], o segundo volume dessa tetralogia, e promete ainda, para os dois próximos anos, a chegada dos demais volumes, A origem dos modos à mesa [1968] e O homem nu [1971]. Com exceção de O cru e o cozido [1964], é a primeira vez que se traduz para o português os volumes das Mitológicas, o que significa que só agora o leitor brasileiro passará a ter acesso à íntegra desse exercício grandioso e complexo da análise estrutural que, apesar de ter causado alvoroço nas ciências humanas de sua época, ainda não foi suficientemente digerido.

A ousadia editorial à qual me refiro diz respeito, justamente, ao fato de as Mitológicas serem talvez a obra menos lida de Lévi-Strauss. Há muitos que ainda pensam que os seus três primeiros volumes tratam de temas ligados à culinária francesa e se espantam quando se deparam com uma infinidade de mitos indígenas, nos quais a cozinha e a etiqueta servem, antes de tudo, como metáforas para refletir sobre a questão mais fundamental da humanidade: a passagem da natureza à cultura. Com exceção de textos célebres e incansavelmente citados, como a "Abertura" de O cru e o cozido, e o "Final" de O homem nu, nos quais o autor expõe os fundamentos e responde às dificuldades daquilo que cunhou como análise estrutural do mito, são muitas as páginas das Mitológicas que clamam pela sua redescoberta. Guiando-se pela analogia arrepiante entre o mito e a música, que incide na estrutura da obra, concebida ao modo de uma sinfonia, Lévi-Strauss, nessas páginas, não poupa o leitor de uma situação permeada pelo mais profundo estranhamento: convida-o a mergulhar no universo fantástico dos 813 mitos ameríndios ali reunidos e, assim, entregar-se a um outro universo de sentido.

Finda a "Abertura" e a digressão sobre a ruptura entre a música clássica e a serial, Lévi-Strauss conduz o leitor ao Brasil Central, mais precisamente, a uma aldeia bororo, grupo de língua macro-jê, onde será apresentado o mito sobre um certo desaninhador de pássaros. Este mito atrairá, nas páginas seguintes, outros, da mesma população, todos eles transitando em torno do tema da "conquista da cultura". Lévi-Strauss, contrariando as críticas endereçadas ao seu método, faz questão de contextualizar o mito em questão a partir dos dados disponíveis sobre os Bororo e conclui que sem esse esforço de captura do conteúdo etnográfico não poderia haver análise estrutural. Esse mito bororo (M1) é designado, em razão de uma escolha algo ao acaso, como "mito de referência", e a aposta do autor, anunciada logo de cara na "Abertura", consiste no fato de que os demais mitos apresentados em seguida nada mais são do que o seu desdobramento, estabelecendo com ele uma relação de transformação, que não pressupõe, de modo algum, anterioridade lógica ou cronológica.

O centro do Brasil é, pois, o ponto de partida da análise que, aos poucos, ganha novos terrenos. Das populações vizinhas de língua jê até o noroeste da América do Norte, passando pelo Chaco, pelo norte-amazônico e por outros tantos cantos norte-americanos: eis o vasto percurso dos quatro volumes das Mitológicas. Os dois primeiros atêm-se à América do Sul (o segundo privilegiando extremos continentais, como a Guiana e o Chaco). No terceiro, inicia-se a transição para a América do Norte, que se completa no quarto. Em suma, as Mitológicas mantêm-se fiéis às Américas, continente que se presta como "campo mítico". E não tão arbitrariamente, pois ali o autor acredita ser possível vislumbrar uma história de trocas culturais muito antigas, que reverbera num diálogo profundo desempenhado pelos mitos.

A leitura das Mitológicas não é suave. É preciso paciência e atenção para seguir o fio das narrativas indígenas, bem como para acompanhar o raciocínio do autor, que extrai da imagística dos mitos formalizações e reflexões abstratas. No entanto, o desafio reside justamente nessa conjunção entre o prazer estético e o prazer intelectual, como se um e outro estivessem forçosamente imbricados.

O percurso das Mitológicas anuncia os limites da própria antropologia como ciência, ciência que se pergunta pelos fundamentos do social e pelas leis que subjazem à operação do assim chamado espírito humano, esse "hóspede imprevisto". Em um pequeno ensaio sobre os dois primeiros volumes da tetralogia, David Maybury-Lewis, antropólogo britânico, se perguntava se o esforço de Lévi-Strauss podia ser descrito como ciência ou se, de fato, não fazia senão resvalar em uma imensa bricolagem2 [2 ] Maybury-Lewis, David. "Science or bricolage?" e "Science by association". In: Hayes, Nelson & Hayes, Tanya (eds.). Claude Lévi-Strauss: the anthropologist as hero. Cambridge: M.I.T. Press, 1970. . Lembremos que bricolagem é a imagem — bastante cara aos franceses, por sinal — que Lévi-Strauss utiliza para se referir ao "pensamento selvagem", aquele que escolhe pensar por meio de signos em detrimento de conceitos abstratos, ferramentas da ciência e da filosofia. Decerto, as Mitológicas, no conjunto da obra de Lévi-Strauss, jamais estarão livres dessa tensão apontada por Maybury-Lewis. Que o estruturalismo tenha sido gerado por uma exigência científica, isso é inegável; mas inegável também é que as Mitológicas tocam justamente nos limites dessa exigência, pois declaram que se o pensamento científico nos permite compreender o pensamento mítico, este, que se teima menosprezar no Ocidente, responde a necessidades tão lógicas quanto aquele. A lógica do pensamento mítico reside, a princípio, no plano das qualidades sensíveis, mas arrisca, em momentos diversos, um rumo em direção a uma maior abstração, agarrando-se, assim, às formas geométricas e aos intervalos temporais.

A exigência científica da obra de Lévi-Strauss diz respeito a uma necessidade de explicação, que só pode ser atingida mediante o desenvolvimento de um método muito preciso. O estruturalismo defrontou-se com questões enormes, como o modo de funcionamento do intelecto humano, o que redundou em investigações sobre a operação de sistemas como o parentesco, as classificações totêmicas e a mitologia. Todos esses sistemas, que se assemelham quanto à forma aos sistemas da linguagem articulada, são regidos por regras de transformação que, em um nível mais abstrato ou inconsciente, revelam os caminhos para as leis do espírito humano, muitas vezes passíveis de serem traduzidas em fórmulas matemáticas. O estudo da mitologia segue, em Lévi-Strauss, o estudo do parentesco. Se, em As estruturas elementares do parentesco (1949), ele pôde inferir leis gerais que determinam a ocorrência de regras prescritivas de casamento, em um ensaio programático como "A estrutura dos mitos" (1955), extraía da comparação de mitos de diferentes proveniências, e que formariam supostamente conjuntos temáticos, leis da transformação mítica descritas de forma sintética em uma "fórmula canônica". Lévi-Strauss sempre lamentou o fato de não poder ter ido mais adiante com a formalização matemática dos mitos, tarefa mais bem-sucedida no estudo dos sistemas elementares de parentesco. Ainda que tenha voltado, em vários momentos de sua obra, a essa tentativa de formalização, ele confessa a Didier Eribon, na entrevista publicada em 1988, que a "ciência da mitologia", da qual insistem em falar os seus tradutores britânicos, jamais existiu como tal, permanecendo balbuciante: muito restaria a fazer, visto que "os problemas apresentados pela mitologia sempre pareceram indissociáveis das formas estéticas que os objetivam"3 [3 ] Lévi-Strauss, Claude & Eribon, Didier. De perto e de longe. São Paulo, Cosac Naify, 2005, p. 195. .

O desafio não é tanto o de traduzir em linguagem formalizada essas formas estéticas como o de demonstrar que elas são plenamente capazes de nos conduzir a um estado de abstração, ao exercício pleno do pensamento. Se podemos, de algum modo, nos referir a uma ciência da mitologia, é antes porque existe a possibilidade de uma mitologia comparável em termos lógicos à ciência, ou seja, um instrumento capaz de abstração e de explicação de questões tão profundas como aquela da passagem da natureza à cultura; não obstante, uma abstração cujo acesso depende do concreto e uma explicação que se alimenta de paradoxos e antinomias. É assim que Lévi-Strauss afirma que as suas Mitológicas são, elas mesmas, um mito, fazendo, assim, sua obra entrar em ressonância com o objeto estudado, o que não deixa de representar uma recusa do ideal da ciência moderna, qual seja, a ruptura necessária entre sujeito e objeto de conhecimento. Com as Mitológicas, a ciência advoga contra a ciência e, nesse sentido, deve, no final, pedir licença à arte, esse reservatório do "pensamento selvagem", para continuar existindo.

Como as mitologias, as Mitológicas buscam atualizar a grande sintaxe do espírito, e elas o fazem, como bem lembra Beatriz Perrone-Moisés no Prefácio, dentro dos limites da língua francesa. Essa atualização é, para Lévi-Strauss, análoga ao trabalho de um maestro, que não faz mais do que executar uma partitura já dada. Nesse sentido, a tarefa agarrada por Lévi-Strauss não consiste em explicar a mitologia ameríndia, mas sim recompor o encadeamento incessante dos mitos, e dos signos de que eles dispõem, como que em uma sinfonia. Como as mitologias, as Mitológicas seriam destituídas de autor; diferente das primeiras, as segundas ganham um maestro, um bricoleur que cria a sua orquestra-tetralogia a partir de pedaços de mitos cuja comunicação, segundo a sua aposta, revela o movimento do espírito humano que, livre das amarras dos sujeitos, brinca a sós consigo mesmo. As Mitológicas constituem, pois, uma obra literária que se coloca em oposição diametral ao romance, assim como uma obra científica que se recusa a tomar o seu objeto de uma perspectiva puramente externa.

As ressonâncias entre a obra e seu objeto desdobram-se, e podem ser encontradas na própria exposição do método que o autor realiza tanto na "Abertura" e no "Final" como no decorrer das demonstrações realizadas ao longo da tetralogia. Vejamos. Um mito não tem começo, nem fim. Um relato mítico não é mais do que um pedaço de uma narrativa maior e seu sentido não está contido jamais em si mesmo, mas deve ser buscado em outros relatos, muitas vezes em povos diferentes, onde poderá ser encontrado de maneira transformada. O mito, conclui-se, é colhido sempre em seu devir. Transcrevê-lo é, por isso mesmo, congelá-lo, retirá-lo do fluxo da oralidade para, então, reduzi-lo a uma narrativa linear. Um mesmo mito multiplica-se em suas diversas versões, cada qual carregando a marca de sua singularidade, e se transforma em outros mitos. Não há versões iguais, nem versões melhores: todas as versões são válidas e devem ser tratadas com seriedade pelo analista. De modo análogo, nas Mitológicas, o fim e o começo são igualmente decretados. O ponto de partida de O cru e o cozido, garante Lévi-Strauss, é claramente arbitrário: poderia ter-se começado de outro ponto, por outro mito. Os Bororo são, contudo, a população que o autor mais conhece, visto que viveu entre eles por um curto espaço de tempo durante a década de 1930. O ponto de chegada da análise estrutural também é arbitrário. Em O homem nu, Lévi-Strauss conduz, tal um maestro, o desdobramento dos mitos para que se chegue ao mesmo ponto de onde ele partiu — do alimento em estado cru ao homem desprovido de vestimenta — demonstrando, assim, que "a terra do mito é redonda" e, além disso, "oca". Todos os caminhos se encontram. Curto ou longo, nenhum percurso pode ser completo ou todos o são. As Mitológicas, como as mitologias, são intermináveis, inesgotáveis. O analista deve saber parar. O fim de O homem nu, contudo, não implicou verdadeiramente o fim das Mitológicas. Depois dele, Lévi-Strauss dedicou-se à preparação de mais três livros — A via das máscaras (1979), A oleira ciumenta (1985) e História de lince (1991) —, que ele mesmo chamou de "pequenas mitológicas", justamente por desenvolverem temas específicos já esboçados na tetralogia e por não abandonarem o campo americano.

Embora seja uma obra dedicada à mitologia dos povos ameríndios, as Mitológicas conferem um lugar ambíguo para o assim referido "pensamento ameríndio". Isso porque Lévi-Strauss alega que seu alvo não é o modo específico de pensar dos ameríndios, mas o funcionamento do intelecto humano. Se o autor situa o mito na dobradura entre a arte e a ciência, ele o afasta de certa metafísica e certa filosofia. No "Final" de O homem nu, Lévi-Strauss alega que a mitologia diz muito sobre a sociedade da qual provém e sobre o funcionamento do espírito humano; não obstante, diz muito pouco sobre a ordem do mundo, a natureza do real e a origem do homem e seu destino. Segundo Eduardo Viveiros de Castro, leitor assíduo das Mitológicas, essa última constatação seria problemática e mesmo contraditória em relação ao conteúdo da tetralogia, visto que a explicitação do modo de operação do espírito humano já traria em si, implícita, uma reflexão sobre a ordem do mundo. "O que eles [os mitos ameríndios] dizem — se preferir o leitor, o que eles ensinam — é que não há por que escolher, pois não há como separar, entre a natureza do real e o espírito humano, a ordem do mundo e o movimento da sociedade"4 [4 ] Viveiros de Castro, Eduardo. "A propriedade do conceito". Ms., 2001, p. 6. . O projeto de Viveiros de Castro, recentemente reverenciado pelo próprio Lévi-Strauss, consiste num reencontro com as "filosofias indígenas", ainda que a acepção desse antropólogo brasileiro do que venha a ser uma filosofia varie consideravelmente em relação àquela abraçada pelo antropólogo francês. Não há espaço, contudo, para prosseguir nesse debate; cabe-me aqui apenas tomá-lo como inspiração e apontar brevemente, no desenvolvimento dos dois primeiros volumes da tetralogia (que são, aliás, o objeto desta resenha), essa curiosa imbricação entre o modo de funcionamento do espírito e os objetos do pensamento ameríndio, imbricação que adiciona à obra mais uma tensão edificante.

Os mitos, segundo Lévi-Strauss, falam das coisas com as coisas, atingem a abstração por meio do concreto. Diante dessa constatação, o autor privilegia, contudo, o "com", ou seja, o modo como os mitos operam, como eles se apropriam de signos extraídos da experiência sensível para se expressar, e não os objetos dos quais eles falam. Não obstante essa hierarquização de intentos, as Mitológicas encontram-se povoadas de passagens em que reflexões indígenas sobre a ordem do mundo, a condição humana e o sentido da vida social vêm à tona. Esse aspecto ganharia maior destaque ao longo das páginas de História de lince, uma espécie de posfácio aos estudos sobre a mitologia americana desenvolvidos pelo autor durante quatro décadas. O livro tem como objeto um certo "dualismo", que passaria a designar menos um solo universal que o princípio fundador do pensamento ameríndio. Nas últimas páginas de História de lince, constatando a recorrência da figura dos gêmeos em narrativas cosmogônicas em diferentes partes do mundo, Lévi-Strauss compara os mitos americanos aos mitos indo-europeus para concluir que, se os últimos estão sempre em busca de uma solução de semelhança, os primeiros recusam-se ao mesmo, decretando um princípio de diferença irredutível e um desequilíbrio perpétuo entre os elementos opostos. Em suma, se o pensamento indo-europeu confere valor à identidade em detrimento da diferença, o pensamento ameríndio perfaz o caminho inverso, atribuindo à identidade um valor maléfico.

O argumento de História de lince pode ser reencontrado nas Mitológicas, porém de forma diversa e menos refletida. A filosofia extraída do mito dos gêmeos consiste na idéia de que há esferas que jamais poderão tocar-se, devendo permanecer apartadas por distâncias diferenciais. Em O cru e o cozido e Do mel às cinzas, Lévi-Strauss atenta para a obsessão indígena quanto aos perigos da conjunção não-mediada entre esferas normalmente separadas, perigo que faria o estado de "sociedade" — e, portanto, de diferenciação — resvalar em estado de "natureza" — e, portanto, de indiferenciação; ou, em outros termos, perigo que faria o estado de descontinuidade resvalar em estado de continuidade, impossibilitando, assim, o estabelecimento de um sistema de significações. Não importa o lugar, os mitos falam sempre de uma só questão: a passagem da natureza à cultura, isto é, o estabelecimento das regras de aliança e a separação entre humanos e não-humanos. O tempo do mito é justamente o tempo da passagem, o tempo quando natureza e cultura não estão dissociadas. Os mitos ameríndios, de sua parte, encontraram soluções originais para tratar essa questão, para refletir sobre essa passagem a um só tempo gloriosa — marca da aquisição da cultura — e trágica — ruptura da comunicação entre homens e animais.

O cru e o cozido e Do mel às cinzas, esses dois primeiros atos desse grande mito-Mitológicas, partilham, além do campo restrito à América do Sul, a primazia das metáforas culinárias na representação dessa passagem. Lévi-Strauss apresenta o conjunto de mitos do segundo volume como "avesso" daquele apresentado no primeiro. Isso porque se, em O cru e o cozido, os mitos versavam, em sua maioria, sobre a aquisição da cultura, em Do mel às cinzas, o tema privilegiado passa a ser, justamente, a perda da cultura e a regressão à natureza. De um lado, narra-se a obtenção do fogo de cozinha, dos ornamentos, da carne de caça e das plantas cultivadas (ambas matérias-primas da cozinha); de outro, narra-se a perda do mel cultivado para as abelhas e as árvores, da carne de caça, das artes da civilização e até mesmo das categorias lógicas. De um lado, a conquista; de outro, a derrocada. No primeiro volume, a oposição entre o "cru" e o "cozido" encontra-se em correlação perfeita com o par natureza e cultura. A cozinha, a mediação pelo fogo, é o que permite a passagem de um estado a outro. A dicotomia só viria a se complicar com a posição do "podre", espécie de ação causada pela própria natureza e que não implica a mediação da cultura. No segundo volume, as posições se complicam ainda mais. O mel, alimento dado pela natureza, está aquém da cozinha, ou seja, não se submete a qualquer mediação, ao passo que o tabaco, que deve ser consumido pelo fogo, situa-se além da cozinha. Se o mel representa, nos mitos, a emergência da natureza na cultura e é largamente associado à sedução e ao envenenamento, atos que implicam o perigo de regressão à natureza, o tabaco designa a manifestação da cultura no próprio seio da natureza e anuncia uma necessidade de mediação, de restabelecimento do contato perdido com o outro mundo. Se os mitos sobre o mel atentam ao perigo indesejado de um regresso à natureza dado por atos excessivos, os mitos sobre o tabaco referem-se à mediação desejada e mesmo fundamental entre o mundo humano e o mundo sobrenatural. Nesse ponto, Lévi-Strauss não esquece que o tabaco, entre os ameríndios, é fortemente associado às práticas xamanísticas, que têm como objetivo justamente promover essa comunicação necessária entre os homens e as esferas sobrenaturais.

Tanto em O cru e o cozido como em Do mel às cinzas, Lévi-Strauss discorre sobre as transformações recorrentes, nos mitos, do código culinário em código acústico para se referir às mesmas mensagens. No primeiro volume, a oposição entre o cru e o cozido desdobra-se naquela entre o ruído e o silêncio. Isso sinaliza uma acepção da cozinha, esse ato decisivo de mediação que se empresta para pensar o convívio social, como algo que deve realizar-se de modo reservado e moderado, longe de uma atmosfera de excesso e confusão, que no caso dos mitos em questão diz respeito à tensão entre parentes por afinidade. No segundo volume, o par mel e tabaco desdobra-se na antinomia entre dois tipos de instrumentos musicais — os instrumentos das trevas (matracas, tambores etc.) e os chocalhos —, antinomia que diz respeito tanto ao sensível (o tipo de som que eles produzem) como à forma (aspectos organológicos). Em O cru e o cozido, Lévi-Strauss tece considerações sobre o papel que os mitos atribuem à algazarra, sinalização de uma conjunção indesejável e perigosa de esferas separadas. A algazarra, fenômeno acústico, teria nos mitos correlatos visuais, como o eclipse e o arco-íris. Segundo Lévi-Strauss, o pensamento ameríndio investe esses fenômenos, que representam instâncias de conjunção (dia e noite, continuidade das cores), de um valor maléfico. Assim, o cromatismo, escala baseada em pequenos intervalos, em sua versão visual ou musical, seria tomado pelo pensamento ameríndio como expressão de uma confusão entre esferas naturais e culturais e, por isso, índice de um perigo iminente, como a doença e a morte. Não seria fortuito, assim, o fato de os ameríndios associarem o arco-íris, e seu cromatismo empírico, aos venenos de guerra, caça e pesca. Todos significariam modos pelos quais se torna possível produzir intervalos minúsculos, zonas de indiscernibilidade, continuidade entre esferas apartadas.

A discussão sobre os perigos da continuidade reaparece em Do mel às cinzas, porém de maneira mais complexa. Nos mitos, o mel é aproximado à constelação das Plêiades, que já figuravam em O cru e o cozido. As Plêiades são associadas pelos ameríndios à transição das estações seca e chuvosa, à passagem do estado de abundância para o estado de escassez e, portanto, a um sentimento de ambigüidade. Em linhas gerais, a referência a elas reenvia ao perigo de a humanidade se reaproximar do estado de natureza e, assim, perder as aquisições culturais. Diante desse quadro drástico, o tabaco oferece uma última esperança, qual seja, a mediação com a sobrenatureza e a possibilidade de reaver o que se perdeu. Nos mitos, como já salientado, o tabaco e sua propriedade de mediação estão associados aos chocalhos, instrumentos de mediação que portam a mensagem dos espíritos, promovendo, assim, uma conjunção desejada. Os instrumentos das trevas, com suas batidas percutidas, pelo contrário, fazem com que os espíritos capturem os homens, promovendo uma conjunção temida e nociva.

Lévi-Strauss sugere que os mitos de O cru e o cozido enfatizam uma fisiologia da aliança matrimonial, mantendo a culinária como metáfora do andamento harmonioso da sociedade e do cosmos. Elementos como a algazarra e o eclipse descreveriam uma espécie de "patologia cósmica", ou seja, acidentes naturais que ameaçariam essa harmonia cultural estabelecida. Em linhas gerais, neste primeiro grande conjunto de mitos, a passagem da natureza à cultura ocorre de um estado de ausência a um estado de abundância absolutos. E se há perigo de perda, esta será igualmente absoluta. Já os mitos de Do mel às cinzas, cujos elementos centrais não constituem uma culinária propriamente dita, referem-se sempre a uma ausência relativa, produzida, por exemplo, pela alternância sazonal entre períodos de abundância e escassez. Nesse sentido, a ausência estaria dada não por uma patologia, mas justamente na regularidade cósmica. O patológico, por sua vez, residiria justamente nesses "acompanhamentos culinários", como o mel e o tabaco, nem natureza, nem cultura, mas a emergência de uma ordem em outra. Não é fortuito, assim, que os mitos sobre o mel refiram-se tão freqüentemente ao caráter desagregador das relações de afinidade. Em suma, os mitos sobre o mel e o tabaco alertam sempre ao risco de perder, seja para o lado da natureza, seja para o lado da cultura. E se eles remetem a um horizonte de conjunção, esta pode ser mediada e, portanto, desejada e necessária, ou não-mediada e, assim, indesejada e perigosa. A primeira garantindo as distâncias diferenciais, a última, entregando-se ao contínuo.

Os mitos de obtenção da culinária e aqueles sobre o mel e o tabaco referem-se à passagem da natureza à cultura ou, em termos mais abstratos (já que o que nós concebemos como um estado e outro não corresponde necessariamente à maneira pela qual os ameríndios o fazem), à possibilidade de instalar a descontinuidade a partir de uma situação inicial marcada pela continuidade. No entanto, seguem direções opostas: se os primeiros fazem um elogio da aquisição da cultura e advertem quanto à possibilidade de uma reversão devido a uma patologia cósmica, que impõe a continuidade, os últimos atentam para as vicissitudes dessa aquisição que, aliás, jamais se completa, o que faz da vida social e da aliança estados permanentemente defrontados com a sedução do contínuo. Em outras palavras, a passagem, longe de se completar, encontra-se sempre em processo, e é necessário cuidar para que ela não resvale em uma regressão irreversível, o que exige um esforço contínuo de mediação (e não de "purificação") entre as esferas separadas. Essas reflexões, aqui apenas tateadas, vão além de uma simples demonstração do método estruturalista e de uma indagação sobre o modo de operação do espírito humano. Além de perseguir como os mitos em questão representam a passagem da natureza à cultura, elas expõem as soluções originais que os ameríndios encontram para essa instalação na descontinuidade, sinalizando, assim, o que eles têm a dizer a respeito do mundo, da condição humana e da vida social.

Um mergulho profundo nos termos desse pensamento ameríndio constitui as reflexões recentes de antropólogos americanistas como Joanna Overing, Philippe Descola e, sobretudo, Eduardo Viveiros Castro. Para todos eles, as Mitológicas de Lévi-Strauss cumprem, em maior ou menor grau, o papel de referência obrigatória. Com esses autores, no entanto, o foco nas filosofias e ontologias ameríndias deixou de lado o interesse pela epopéia do espírito, como que em uma recusa de reduzir a pesquisa antropológica a um projeto unificador. Lévi-Strauss, na escritura de suas Mitológicas, teria talvez pressentido esse movimento, mas a sua fidelidade à tradição humanista e racionalista o impediu de abandonar por completo a idéia de espírito humano, ainda que a tenha conduzido até o limite. Eis que este retorna retumbante, mas sob a condição de encarnar-se. O espírito perseguido na tetralogia é, portanto, o espírito em sua versão ameríndia, iluminado durante o diálogo intensivo com o pensamento dos povos ameríndios. As Mitológicas, obra de toda uma vida, convidam o leitor a partilhar esse diálogo, embriagar-se com sua imagística e reencontrar, de uma maneira totalmente inesperada, as questões mais fundamentais da humanidade, ainda que se tenham perdido todas as esperanças de vê-la unificada.

  • [1
    ] Agradeço os comentários de Florencia Ferrari e Stelio Marras para a redação deste pequeno texto.
  • [2
    ] Maybury-Lewis, David. "Science or bricolage?" e "Science by association". In: Hayes, Nelson & Hayes, Tanya (eds.).
    Claude Lévi-Strauss: the anthropologist as hero. Cambridge: M.I.T. Press, 1970.
  • [3
    ] Lévi-Strauss, Claude & Eribon, Didier.
    De perto e de longe. São Paulo, Cosac Naify, 2005, p. 195.
  • [4
    ] Viveiros de Castro, Eduardo. "A propriedade do conceito". Ms., 2001, p. 6.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Mar 2006
    • Data do Fascículo
      Jul 2005
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