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Artifícios da criação: uma conversa com Juan José Saer

Artifícios da criação

Uma conversa com Juan José Saer1 [1 ] Entrevista realizada na USP em outubro de 1997 e publicada em espanhol em Cuadernos de Recienvenido, nº 14, setembro de 2000. Participaram da conversa José Luiz Martinez, Pablo Fernando Gasparini e Paulo César Thomaz, alunos da Pós-Graduação em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-Americana da USP. Novos Estudos agradece a Jorge Schwartz, por gentilmente autorizar a publicação da entrevista, e a Alexandre Morales, pela indicação editorial.

RESUMO

Em 1997 o escritor argentino Juan José Saer (1937-2005) foi recebido na USP para falar sobre literatura. Registrada em espanhol, essa entrevista é aqui reproduzida pela primeira vez em português. Saer fala do processo de criação de suas obras, questiona a noção de literatura latino-americana como categoria estética e critica a produção de autores consagrados, como Julio Cortázar, Mario Vargas Llosa e Umberto Eco. Com esse mesmo senso crítico agudo, estabelece uma distinção entre "entretenimento biodegradável" e "criação autêntica".

Palavras-chave: Juan José Saer; literatura latino-americana; literatura argentina.

SUMMARY

In 1997, Argentine writer Juan José Saer (1937-2005) was interviewed at USP. Registered in Spanish, the interview is published here for the first time in Portuguese. Saer speaks about his creating process, puts into question the notion of Latin-American literature as an aesthetic category and criticizes the production of important authors, such as Julio Cortázar, Mario Vargas Llosa and Umberto Eco. He also establishes a distinction between entertainment and "authentic creation".

Keywords: Juan José Saer; Latin-American literature; Argentine literature.

A passagem de Juan José Saer pela Universidade de São Paulo foi breve, porém luminosa. O mínimo que poderíamos dizer do grande escritor santafecino, morto em junho de 2005, é que se tratava de um interlocutor "opinativo", para fazer uso de um anglicismo. Afirmações como a de que a literatura latino-americana não é uma categoria estética, de que o "boom" da obra de autores como García Márquez e Vargas Llosa no exterior se reduz a um fenômeno de mercado, de que a originalidade em si não representa nenhum valor ou de que Cortázar não é um bom romancista, impregnavam o seu pensamento. Aliás, os dois maiores escritores argentinos do século XX exilados em Paris, Cortázar e Saer, mantêm o gesto da escrita como registro de uma dupla identidade e de uma literatura que atravessa a geografia. Também a consciência formal da construção dos seus romances é uma tônica que flui com intensidade durante as suas considerações sobre a própria produção textual.

Embora pouco conhecido no Brasil, Saer conta com quatro livros publicados em português: Ninguém nada nunca (1997), A pesquisa (1999) e A ocasião (2005), os três pela Companhia das Letras, e O enteado (Iluminuras, 2002), extraordinário romance que faz da antropofagia um dos núcleos temáticos da narrativa.

Abaixo, oferecemos ao leitor uma breve entrevista, concedida em São Paulo a um grupo de entusiasmados alunos da pós-graduação (Jorge Schwartz)

Você é conhecido como romancista, como prosador, e tem um livro intitulado El arte de narrar. Qualquer pessoa que leia esse título pensaria que é um livro de ficção, mas na verdade é um livro de poesia. Você poderia explicar sua relação com a poesia?

Nos anos 1950 e 60 havia na Argentina um considerável predomínio da poesia lírica, mas então teve início uma nova influência, que vinha do peso da poesia italiana e anglo-saxã. Pavese tem um livro de poemas narrativos chamado Trabalhar cansa, e em seus ensaios analisa a possibilidade de uma poesia narrativa. Ele diz que a poesia narrativa tem pouca vigência em nossa época, embora no século XIX tenha havido uma tendência à narrativa em verso, que no entanto se transformou em cancioneiro porque faltou certo elemento unificador. Pavese considera que no caso de Baudelaire há uma forte unidade temática, mas que faltou o elemento unificador que poderia fazer de um livro de poemas um único e longo poema narrativo. Comecei então a pensar muito em fazer esse tipo de poesia, sobretudo em razão da influência de poetas que eram muito lidos naquele momento, como Eliot, Pound e o próprio Pavese, de quem eu gostava muito. E aos poucos foi me parecendo que havia uma convergência entre essa poesia narrativa e alguns narradores do século XX que tendiam, digamos, a conceber a linguagem narrativa como linguagem poética, incorporando-a às vezes como simples aproximações teóricas e outras vezes como prática. Há por exemplo uma aproximação teórica em Thomas Mann, para quem a narrativa e o mito se identificam; e há também uma prática pela qual o valor rítmico ou verbal por vezes substitui o conteúdo, a ação, a intriga, todos os elementos tradicionais da narrativa.Tudo isso me parecia interessante, e para mim, no fundo, elaborar textos poéticos com alguns critérios de prosa e textos em prosa com alguns critérios de poesia foi simplesmente um princípio pessoal, uma norma de trabalho. Evidentemente, havia que dosar para não cair na mera prosa poética ou no inverso, na poesia narrativa. Por outro lado, como vocês sabem, há na Argentina uma tradição muito importante de poesia narrativa, que é a poesia gauchesca. Um dos maiores textos da literatura argentina é Martín Fierro [de José Hernández], que é um poema narrativo e suscitou muitas discussões acerca de seu gênero. Para [Leopoldo] Lugones seria uma epopéia, para Borges um romance, para [Ezequiel] Martínez Estrada conteria elementos teatrais muito importantes. E essa incerteza acerca do gênero me confortava teoricamente para trabalhar nesse sentido.

O fato de que meu livro se chame El arte de narrar é um pequeno manifesto pessoal, ou melhor, uma pequena indicação pessoal sobre o caráter narrativo daqueles poemas. Por outra parte, sempre pensei em elaborar um romance em verso, mas suponho que não o farei — seria por demais trabalhoso, confesso. Um de meus romances, El limonero real, comecei a fazer em versos, e depois me foi demasiadamente difícil manter uma tensão poética ao longo de centenas de páginas sem incorrer no prosaísmo. Num determinado momento me pareceu que talvez fosse mais interessante tentar elaborar uma música pessoal na prosa, encontrar ritmos pessoais, novos, inéditos na prosa, ou que pelo menos parecessem novos.

A propósito de O enteado: o que significa reescrever neste final de século o mito da antropofagia?

Posso dizer que a antropofagia é um elemento importante na narrativa, mas não é o objetivo principal do livro. Evidentemente a antropofagia é um tema muito forte, e cada vez que deparamos um caso real de antropofagia nos perguntamos sobre esses nossos antepassados que apreciavam a carne humana. É um enigma — e ao mesmo tempo uma tradição —, como tudo o que é proibido, como tudo o que não podemos fazer e que sempre parece ser melhor que aquilo que é permitido. Eu simplesmente parti de uma imagem, uma situação histórica, um fato que se passou realmente quando [Juan Días de] Solís chegou ao rio da Prata. Ele e um pequeno grupo de marujos desembarcaram e imediatamente foram atacados pelos índios, que os comeram crus diante dos que permaneceram no navio e assistiram à cena assombrados. Os que haviam ficado no navio voltaram à Europa, onde os devoraram de uma outra maneira... No entanto os índios pouparam um grumete, que acabou por viver entre eles por dez anos, o que é algo misterioso. O fato de terem comido Solís e os outros marujos não é tão surpreendente, uma vez que naquela época a antropofagia era corrente na América. Já o grumete que os índios deixaram viver é um personagem enigmático, do qual se sabe muito pouco. Sabe-se apenas que se chamava Francisco del Puerto, porque era órfão.

Era já um tema quase romanesco, e a partir dele eu queria fazer um romance com um personagem que fosse coletivo, em que os personagens não fossem individuais, mas uma comunidade — essa é a razão de ser de O enteado. Eu havia pensado esse romance sob a forma de quatro conferências sobre uma tribo: não havia narrador, mas simplesmente um cientista, um etnólogo que descrevia ou analisava diversos aspectos de uma sociedade, e essa sociedade era o personagem principal do romance. Depois, aos poucos, foi aparecendo o narrador, que de algum modo se converteu no personagem principal. Mas para mim há dois personagens nesse livro: um é o narrador e o outro é a tribo, que é um personagem, digamos, único, inteiro. Cheguei a descrevê-la como "a tribo de minhas pulsões ou de nossas pulsões": nossas pulsões são como uma tribo selvagem que pode ser mais ou menos domesticada, ou não, por aquilo que se chama civilização. Minha idéia era projetar nessa tribo uma série de comportamentos que iriam desde a antropofagia até a sexualidade desenfreada, passando pelos sentimentos de culpa e pela culpabilidade que depois se transforma em uma conduta social extremamente rígida, em rigidez de comportamentos e conseqüentemente rigidez moral. Ao mesmo tempo eu queria contar isso do ponto de vista dos índios, e do ponto de vista do narrador queria analisar a possibilidade de captar o sentido de uma experiência vivida — se é que isso é possível.

Dizem que é um dos meus romances mais clássicos. E no entanto há ali um tratamento deliberado do tempo, em que três ou quatro dias consomem cinqüenta ou sessenta páginas de relato, dez anos se resumem numas poucas páginas e depois cinqüenta ou sessenta anos ocupam muito poucas páginas. Em seguida entra toda uma parte em que não há relato, mas apenas uma espécie de reflexão sobre o sentido do comportamento dos índios, uma análise sobre as relações entre o interior e o exterior, o eu e o mundo, o que se chama o outro e o mesmo etc. E no final há três exemplos narrativos. De modo que há uma estrutura narrativa que só na aparência é clássica.

Mas não posso me esquivar ao tema da antropofagia, obviamente. Não posso dizer que a antropofagia é algo secundário, visto que é um tema tão forte. Em todo caso, meu romance não pretende ser uma análise nova dessa questão de muitas sociedades primitivas — o que não me seria possível fazer, porque careço dos meios necessários. Tampouco quis fazer disso uma metáfora social, como agora se costuma fazer (muito se diz que vivemos numa sociedade antropófaga, e geralmente o dizem aqueles que usam e desfrutam essa sociedade antropófaga). Simplesmente minha primeira intenção era fazer um romance com um personagem coletivo, e a segunda era elaborar uma narrativa com aparência clássica mas que tivesse diferenças formais em relação à narrativa clássica linear. Por fim devo dizer algo puramente anedótico quanto a uma série de descrições dos comportamentos dos índios, sobretudo quando depois de comer carne começam a beber, a se embriagar. Eu estava escrevendo o livro em Rennes, e ia aos bares da cidade observar as pessoas que chegavam do trabalho e começavam a tomar seu uísque, ver como o seu comportamento começava a mudar: daí saíram aquelas descrições.

A respeito desse ente coletivo de O enteado me ocorreu uma conexão com o livro A conquista da América, de Todorov...

Não o li, mas conheço a tese de Todorov, que é muito interessante.

Gostaria de saber o que você pensa da questão da escritura, que é um tema trabalhado por Todorov, e da questão da sexualidade. Você explica como os índios outorgaram ao grumete o papel de voyeur, e no entanto é psicologicamente difícil compreender que ele tenha vivido dez anos com os índios e não tenha mantido nenhuma relação sexual...

É deliberado que ele não tenha nenhuma relação sexual. Repare que antes de se encontrar com os índios o grumete praticamente se transforma em amante de todos os marujos do navio. Ele diz: "Resigno-me a isso; percebi que definitivamente o melhor era deixar". Diz ainda, de alguns marujos: "Neles encontrei o pai que não tinha". Mas depois efetivamente não há mais sexualidade, mesmo porque nas orgias dos índios ele vê tanta coisa durante dez anos a fio que então adota as crianças que nascem sem passar pela sexualidade. Isso é arbitrário, mas é uma convenção ficcional. Não se pode esquecer que a arte sempre é um pouco artificiosa ou artificial. Há artifício na arte, por exemplo, quando vemos certos planos nos filmes de Orson Welles e nos perguntamos como foram filmados. Essas cenas que parecem tão naturais quando as vemos exigiram toda uma série de esforços: o ator tinha de estar contorcido para que sua mão aparecesse de determinada maneira etc. Quando se escreve também há que fazer esforços. O narrador de O enteado tinha de ser uma espécie de asceta ao final, tinha de alcançar uma espécie de — vou dizê-lo em francês — non vouloir, de tal forma que todo o seu desejo se concentrasse somente na escritura. Assim é que se alimenta muito pouco e já não tem nenhum tipo de relação sexual, nem faz qualquer alusão à sexualidade. Tem uma existência extremamente ascética para poder contrastar com o quadro que observa: há como que uma preparação ascética para poder fazer reviver aquela tribo. José Carlos Chiaramonte, que é historiador e um amigo muito querido de Rosário, disse-me que parecia haver no romance uma teoria do bom selvagem. E me disse como uma reprovação, uma crítica. Provavelmente essa teoria está lá, embora eu tenha buscado evitar isso a todo custo. Sabemos porém que nem sempre se pode fazer o que se pretende, que a linguagem traz consigo para a obra certas coisas que não se havia desejado pôr ali.

E sobre a questão da escritura?

Há duas teorias sobre a escritura: uma afirma que ela está sempre no final e outra que está sempre no princípio. A primeira diz que a escritura é o corolário da experiência, que à medida que nos tornamos mais velhos adquirimos mais experiência e escrevemos melhor, e a segunda, a teoria da produção textual, diz que o texto gera seu próprio sentido. Poderíamos dar o exemplo de Goethe, que escreveu muitíssimo aos seus 70 anos, mas também podemos dar o exemplo de Rimbaud e Lautréamont, que escreveram seus textos mais sublimes quando ainda jovens, Rimbaud antes dos 19 e Lautréamont aos 21 ou 22 anos. Creio que as duas teorias têm algo de verdadeiro e algo de falso: a experiência não assegura o valor de uma escritura e a produção textual que não está controlada pelo intelecto não funciona autonomamente. A teoria da escrita automática pode ser válida para certos textos, mas deixa fora uma imensa maioria.

Como você pesquisa o tema que seleciona? E como compatibiliza o processo de pesquisa com a espontaneidade ou não do trabalho de criação?

Há muitos livros que exigem pesquisa, mas quando se pesquisa para escrever ficção não se pesquisa da mesma maneira que para escrever uma tese. É evidente que se alguém quer escrever uma tese sobre as relações de parentesco — já que falávamos de etnologia — não pode deixar de ler Lévi-Strauss e toda uma série de autores que escreveram sobre o mito, sobre o totemismo. Se alguém quer escrever um romance pode muito bem não ler nada. Se quero escrever um romance sobre o Império Romano posso não ler nada sobre o Império Romano (estou pensando no romance Os idos de março, de Thornton Wilder, no qual se vê que o autor sabe muito sobre Roma e nada sobre a arte de escrever romances), posso fazer o que quiser porque há uma total liberdade. É claro que nem todos os escritores trabalham assim e que há diversos tipos de exigências para o texto em que cada um esteja trabalhando. As leituras podem ser puramente de informação, e também pode haver leituras de desinformação. Quando li num certo livro de história, há muitos anos, o relato que desenvolvi em O enteado, eram apenas quatorze linhas, e isso foi tudo o que vim a saber. Quer dizer, li coisas como Hans Staden e algumas crônicas do século XVII, mas sobre aquele personagem nunca mais li coisa alguma. E apaguei todas as alusões e referências históricas precisas.

Certamente há leituras que não são de informação, mas de ambientação numa determinada atmosfera, e nesse sentido pode-se ler as coisas mais variáveis. São aquelas leituras que, por assim dizer, nivelam a pesquisa. Haveria que precisar esses termos, mas não temos tempo para isso aqui. Em todo caso, são leituras que inspiram no sentido de que dirigem o trabalho a certas zonas emocionais, semânticas ou de imagens que dizem respeito a determinadas problemáticas intelectuais, e que se depois não aparecem explicitamente no texto estão ali disseminadas, impregnando-o de maneira indireta. A despeito do trabalho de preparação de uma narrativa, que pode ser maior ou menor, a leitura é um prazer e uma necessidade, de modo que há núcleos de interesse muito diferentes e até mesmo contraditórios entre si, desde os filósofos pré-socráticos até os romances policiais. Mas não há de ser qualquer coisa, e sim aquelas que me dão prazer em ler e que me estimulam a escrever.

Numa entrevista ao jornal argentino Clarín você mencionou seu ceticismo quanto à existência de uma literatura latino-americana. Você poderia falar a respeito?

Deve ter sido uma matéria em que o jornalista me perguntou por que eu sempre criticava certos romancistas latino-americanos muito conhecidos e muito mais lidos do que eu. E eu respondi que vivem me perguntando sobre esses escritores desde 1980, quando publiquei um artigo intitulado "A selva espessa do real". Não escrevi esse artigo contra ninguém em particular, mas contra os meios literários ou editoriais franceses, que haviam criado uma categoria estético-literária que era a literatura latino-americana. Se determinadas obras não fossem escritas conforme essa categoria estética, se não entrassem nesse cânone, se não fossem histórias orais, primitivas etc., não seriam literatura latino-americana. A literatura latino-americana ou a literatura francesa são categorias históricas, não estéticas. É o caso dos franceses, que se dizem cartesianos. Os franceses inventaram aquilo que chamam de écriture blanche2 [2 ] A noção de "escritura branca" provém de Roland Barthes [N.T.]. , mas foram esses romancistas baratos que inventaram a écriture blanche para poder comprar suas casas de campo. Se analisamos as obras de Pascal e de Rabelais, de Balzac e de Flaubert, de Proust e de Céline, percebemos que não existe écriture blanche na tradição francesa.

Para mim a literatura latino-americana é apenas uma categoria histórica, ou sequer histórica, talvez uma categoria geográfica, não sei como chamá-la, mas não é uma categoria estética. Para mim não há nacionalidades de romancistas; para mim há escritores e ponto. Cada escritor é individual. Dou-lhes um exemplo brasileiro: gosto muito de Guimarães Rosa e de Carlos Drummond de Andrade e eles nada têm a ver um com o outro, embora tenham vivido a poucas quadras. É o mesmo caso de Borges e Arlt: são escritores da mesma geração — com a diferença de que Arlt morreu aos 42 anos e Borges viveu muito mais tempo — e moravam na mesma cidade, mas são opostos como o dia e a noite. É certo que há alguns pontos de contato entre eles, mas da mesma forma que há pontos de contato entre todos os grandes escritores, por mais diferentes que sejam.

Há um momento em que sentimos que estamos diante de um escritor de quem gostamos, e é aí que nos encontramos a nós mesmos: ele fala de nós, toda a literatura fala de nós. A mim não interessa um personagem, digamos, rabelaisiano do Caribe que pesa duzentos quilos e conta histórias maravilhosas se não me encontro a mim mesmo nisso. As categorias estéticas passam a ser retóricas quando se tornam prescritivas. A prescrição do romance não está dada de uma vez e para sempre. O romance tem de mudar se quer permanecer vivo. O realismo que define o romance, se quer seguir existindo, não pode continuar empregando os mesmos cânones realistas, a mesma visão ingênua do espaço, do tempo, do caráter e dos sentimentos humanos etc.

O que você espera da recepção de Ninguém nada nunca no Brasil?

Bem, o livro acaba de sair. Desde já posso dizer que a edição é belíssima, uma das melhores edições que já se fizeram de um livro meu, e a editora promoveu várias matérias na imprensa. Mas não alimento ilusões de que os jornalistas teriam roído as unhas pensando quando eu viria ao Brasil. Já haviam saído alguns artigos importantes sobre meus livros no Brasil — mas digo "importantes" pelo tamanho, porque nós autores julgamos isso pelo número de páginas, pela fotografia. Os artigos verdadeiramente importantes sobre os livros em geral não aparecem nos jornais. O jornalismo não tem tempo para fazer isso, mas é bom que diga coisas, mesmo que sejam arbitrárias, para impressionar a imaginação do leitor e que este vá correndo comprar o livro. O jornalismo é um pouco publicidade — digamos as coisas como são. Ademais, um jornalista, por mais inteligente e culto que seja (e conheço muitos que o são), não pode se expressar num jornal com toda a liberdade com que se expressaria num trabalho que faria em sua casa ou que publicaria num livro.

Alguns jornalistas me fizeram perguntas muito inteligentes, o que contribuirá para que meu livro se venda mais ou menos. Mas não quero ser um best-seller. Bem, não é que eu não queira: gostaria de ser um best-seller num mundo em que Ungaretti e Guimarães Rosa fossem best-sellers, ou Kafka, se bem que ele o foi, mas vinte anos depois de sua morte. Se todos os escritores de quem eu gosto fossem best-sellers eu me sentiria menos culpado... Vejam o exemplo de Gabriel García Márquez, que é o protótipo do best-seller latino-americano. Quando ele publicou seus dois ou três primeiros romances, não vendia; quando publicou Cem anos de solidão, de início venderam-se cinco mil exemplares, em seguida mais cinco mil, e logo já se vendiam quinze mil. Então ele mesmo disse: "Até aí eu estava contente, mas então comecei a me preocupar" — porque sabia que aí havia um problema. Qual é o escritor mais vendido do Brasil? Provavelmente Paulo Coelho; mas tenho certeza de que ninguém aqui considera Paulo Coelho um escritor.

As condições de trabalho cultural na França são muito difíceis para os franceses — se bem que para nós, que temos um verniz exótico, tudo se passa muito bem. Há um establishment vinculado à conquista de prêmios literários, e todos vivem um pouco disso. É certo que na França há alguns intelectuais importantíssimos, como Derrida, e que em certas especialidades há gente extraordinária — em ciências humanas, em estudos clássicos, em ciências exatas —, mas o escritor tem um estatuto que parece um pouco ao do show bizz. A ninguém ocorre que os cientistas tenham de ser best-sellers, e quando um deles se torna um best-seller toda a comunidade científica desconfia. Já na literatura há uma confusão entre o que é pura diversão — um entretenimento biodegradável, como costumo dizer — e o que é criação autêntica, tentativa de representação do mundo com os meios da ficção, reflexão sobre a realidade e o simulacro, sobre o conceito de verdade. Essa distinção já não existe. Começou com essa história de "não-ficção": na Europa e nos Estados Unidos todo mundo escreve romances ou memórias, e a literatura é isso. As memórias de uma atriz de cinema escritas por um escritor-fantasma: é isso o que as pessoas crêem que seja literatura. Quando um ministro perde o poder, o que faz é escrever romances. Pode-se escrever uma sátira interessante sobre isso...

Isso seria o oposto do que ocorria no século XIX, quando se escrevia um romance para tornar-se ministro...

Efetivamente. Eu sempre digo a meus alunos universitários que eles têm de aprender poesia se querem ser presidentes. Pompidou tinha formação literária e elaborou uma antologia da poesia francesa. Jospin e Chirac se retrucavam por meio de poetas. Ganhou o que fez a melhor citação. O único político que chegou a ser presidente sem ler nada foi Carlos Menem.

Gostaria que você abordasse uma genealogia da literatura argentina.

Neste momento há um problema chamado "o herdeiro de Borges". Mas há vários herdeiros de Borges, assim como há várias viúvas de Borges. Na Europa já não sabem como apresentar e vender um escritor argentino, e então o apresentam como herdeiro de Borges, como já ocorreu várias vezes. Borges não tem herdeiros, um escritor não tem herdeiros: um escritor pode ter influenciado toda uma geração, mas ele é único. Para poder ser como esse escritor há que ser algo totalmente distinto; para poder ser Borges ou melhor que Borges há que fazer algo completamente diferente (ainda que ninguém queira ser melhor que ele, tampouco eu).

Quanto à genealogia da literatura argentina, no meu tempo de garoto havia cartazes promocionais de filmes em que a imagem de um só ator ocupava todo o espaço, e outros em que havia várias fotos dispostas em pequenos círculos. Havia círculos maiores e menores, e havia estrelas de maior ou menor magnitude. Eu poderia dizer o mesmo da literatura argentina, quer dizer, vou simplesmente nomear quais são para mim os círculos maiores, mas há toda uma série de círculos menores e que me são muito caros, que leio e releio muito, mas que não vou nomear aqui porque não vou fazer um mapa da literatura argentina.

Para mim, os escritores que produziram obras fundamentais para a literatura argentina foram [Domingo Faustino] Sarmiento e [José] Hernández. Também gosto muito de [Lucio] Mansilla, em especial de Una excursión a los indios ranqueles. No século XX, creio que [Leopoldo] Lugones é um fenômeno que não se pode eludir. Sua obra é heterogênea, dispersa e desigual, mas tem alguns textos magníficos. Havia em Lugones um sentimento de onipotência retórica pelo qual se sentia capaz de tudo — e era —, mas que matava seu próprio talento; tinha uma desenvoltura verbal excessiva e desnecessária, um certo narcisismo por querer ser o primeiro (e efetivamente o era em seu tempo), e isso matava sua arte. Mas a despeito disso gosto muito de Lugones. Ao mesmo tempo há Macedonio Fernández, que é exatamente o contrário: uma coisa pouco evidente, totalmente obscura. A maior parte de sua obra restou em manuscritos dispersos que depois foram reunidos. Sua obra maior é Museo de la novela de la eterna, que foi editada postumamente.

Outros dois grandes escritores foram obviamente Borges e Arlt, que são da geração imediatamente posterior, de 1922. Escreveram obras totalmente distintas, opostas e contraditórias, e se ignoravam e se detestavam mutuamente. Não obstante, são obras de importância capital para a literatura argentina. Borges todo mundo o sabe, e Arlt talvez um pouco menos, mas a ele se atribui a criação da tradição do romance urbano, embora eu creia que isso seja muito pouco para Arlt. Com ele a narrativa começa a passar de um expediente pitoresco e naturalista para uma reflexão moral e universal sobre o homem, que em seus melhores textos alcança a perfeição. Para mim o melhor livro de Arlt não é Os lança-chamas nem Os sete loucos, romances dos quais gosto muito, mas El Jorobadito [O corcundinha], que é um livro de contos cuja leitura recomendo enfaticamente. Depois de Borges gosto muito dos primeiros contos de Cortázar. Admiro também de Bioy Casares A invenção de Morel, um romance de primeira linha, mas do resto de sua obra gosto menos.

Gosto muito da obra de Antonio di Benedetto, um escritor praticamente desconhecido fora da Argentina, embora tenha sido editado várias vezes na Espanha e traduzido em outros países europeus. Seu romance Zama, de 1956, é para mim o melhor que já se escreveu na Argentina. Nesse sentido, ele tem um destino semelhante ao de Guimarães Rosa. A diferença é que o romance de Guimarães é um universo muito vasto, enquanto Zama pode ser lido em uma tarde. Entre os poetas, admiro Juan L. Ortiz, o próprio Borges, [Evaristo] Carriego, Hugo Gola e Hugo Padeletti; também gosto de alguns poemas de Juan Gelman e de Leónidas Lamborghini, embora não compartilhe suas posições políticas.

Esse seria meu cânone argentino, por assim dizer. Quanto ao cânone latino-americano, entre os mexicanos aprecio Juan Rulfo, e entre os uruguaios Juan Carlos Onetti e Felisberto Hernández. E há também [Horacio] Quiroga, que não citei entre os argentinos porque há uma disputa: o pai de Quiroga era argentino e ele nasceu acidentalmente em Salto, no Uruguai. Admiro um dos maiores poetas do século XX, que é César Vallejo, e entre os prosadores peruanos gosto de [José María] Arguedas. Também gosto muitíssimo de Pablo Neruda. Quanto ao Brasil, li Guimarães Rosa e muita poesia: João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, que li menos. A obra de Drummond teve uma influência muito grande na poesia argentina nos anos 1950 e 60. Entre os poemas dele que marcaram minha geração, alguns dos quais trago na memória, lembro os clássicos "Poema de sete faces" e "No meio do caminho". Um dos meus contos dos anos 1960 tem uma citação de Drummond que me parece extraordinária: "Vejo tudo impossível e nítido, no espaço"3 [3 ] Cita-se o poema "Versos à boca da noite", de A rosa do povo [N.T.]. . Para mim isso diz tudo o que quero fazer de minha literatura, que é escrever a presença do mundo e ao mesmo tempo reconhecer esse caráter impossível das coisas que existem e nos rodeiam e que são misteriosas e enigmáticas.

Atualmente você está trabalhando numa indagação sobre a linguagem ou sobre a possibilidade do romance hoje?

Penso que nenhum dos grandes escritores do século XX escreveu romances. Musil, Proust, Kafka, Faulkner, Onetti, Guimarães Rosa não escreveram romances. Produziram coisas muito singulares, que em nada se parecem com os grandes romances do século XIX — estes sim eram romances, no sentido de que tampouco se pareciam com os do século XVIII. No século XIX o romance alcança a sua perfeição, mas esclareçamos: Flaubert é quem leva o romance à perfeição, e no entanto também começa a sua destruição. O único romance clássico que ele escreveu foi Madame Bovary, porque todos os outros, como Salambô e Educação sentimental, não têm uma fórmula de romance. Essa forma de representação ficcional dada pela inteligibilidade histórica, e também pela pauta naturalista que seus discípulos iriam seguir — inclusive Maupassant, que é seu discípulo mais próximo —, já está transgredida em Flaubert. De modo que tampouco Flaubert é romancista.

Em Borges também há um trabalho extraordinário sobre a linguagem. Quando ele chega à perfeição, relativamente cedo, já em meados dos anos 1930, com a História universal da infâmia, começa a polir sua prosa. Antes fazia coisas maravilhosas, mas com muita retórica: tinha uma retórica crioulista, uma ambição herdada de Macedonio Fernández, de modo que também teve de romper com Macedonio. Nos anos 1960, por exemplo, Borges analisa um texto dele próprio onde há o verbo "viver" e diz: "Esse infinitivo vem de Macedonio". Esses infinitivos que Borges usa em seus primeiros textos vêm todos de Macedonio.

No meu caso, estou buscando formas narrativas novas, únicas — "únicas" como um quadro é único: que sirvam para um romance e nada mais que um romance. Venho utilizando de maneira ocasional alguns procedimentos já demasiadamente codificados, como o monólogo interior, a descrição, a extração social e a história biográfica dos personagens, a intriga, a trama, o desenlace etc. Busquei romper com tudo isso, mas para tanto tratei de encontrar uma língua que tivesse como base aquela falada na região do Prata. Não de um modo naturalista, mas quanto às suas entonações. E freqüentemente acabo tendo problemas com os revisores. Por exemplo, quando escrevo "unicamente" eles substituem por "só". Mas ninguém diz "só" no Prata: todos dizem "unicamente". E onde escrevo "atrás de você" eles põem "atrás de si". Se digo a uma pessoa "a cadeira está atrás de si", ela vai rir de mim... Procuro então utilizar a língua coloquial, e gostaria de poder tratar de todos os temas com essa língua coloquial.

Ao mesmo tempo, busco introduzir elementos reflexivos na prosa, bem como elementos poéticos — "poéticos" no sentido que a prosa ilumine. Outro dia um amigo de Buenos Aires me disse que havia lido El rio sin orillas [O rio sem beiras] e que tudo o que eu havia dito ali era verdade. E eu disse a ele que tudo o que o que digo não é verdade, mas tem a aparência de verdade porque está dito de tal maneira que assim pareça. Parece algo natural porque o tom do discurso é natural, e o que o leitor aceita não são as verdades, mas o tom do discurso, que tende a criar uma relação de intimidade conceitual e intelectual. Não é que eu queira enganar o leitor ou mentir para ele, mas El rio sin orillas tem como subtítulo "tratado imaginário": é um livro de literatura, e não um ensaio.

Em quê você está trabalhando neste momento?

Recentemente concluí um romance que está saindo em Buenos Aires, chamado Las nubes. O enredo se passa no início do século XIX, mas há uma introdução que é atual, com o famoso tópico do manuscrito encontrado: o manuscrito foi digitalizado e o personagem o lê num computador. E estou planejando um romance maior, em que eu gostaria de trabalhar a partir do conceito de romance polifônico de Bakhtin, que qualifica os últimos romances de Dostoiévski, nos quais haveria vários núcleos de interesse. Mas não sei se vou poder fazê-lo: meus romances não são polifônicos, são antes breves, são mais propriamente textos "de câmara". E ademais tenho muita vontade de fazer um livro de textos curtos, um livro totalizante, que abarque muitas coisas com textos breves. Há ainda um romance que estou escrevendo há mais de cinco anos e que não sei se vou conseguir terminar4 [4 ] O romance Las nubes, lançado em 1997, foi o último publicado por Saer. Anuncia-se para 2005 a publicação póstuma de seu último e mais extenso romance, intitulado La grande e provavelmente inacabado [N.T.]. .

Você poderia dizer algo sobre a sua relação com o cinema? O que você gosta de ver e qual a sua opinião sobre as relações entre cinema e literatura?

Sempre gostei muito de cinema, mas agora menos. Até os anos 1960-70 vi praticamente todos os filmes: fui professor de história do cinema. Para mim a grande época do cinema foi a do apogeu do cinema de autor. Considero o cinema europeu mais importante que o norte-americano, no qual há apenas dois ou três grandes diretores, no sentido de que não fizeram concessões ao sistema — um deles é John Cassavetes e outro, obviamente, é Orson Welles. Há muitos outros diretores norte-americanos importantes, mas que por causa da queda-de-braço que sempre tiveram com o sistema viram fracassar muitas de suas obras. Eles mesmos se autocensuraram ou fizeram filmes no contexto do sistema, pois caso contrário não teriam podido realizá-los. E agora está pior do que nunca: chegou-se a um ponto catastrófico em que não mais existe um cinema norte-americano que pudéssemos julgar interessante, e bons diretores que apareceram nos anos 1960 e 70, como Peter Bogdanovich, praticamente não conseguem mais filmar.

Quanto às relações do cinema com a literatura, há uma anedota que diz: "Você leu a Crítica da razão pura? Não, mas vi o filme". O cinema se tornou uma espécie de substituto da cultura. Costumo dizer que agora o cinema não é uma arte, mas um tema de conversação à mesa. Em Paris não se pode conversar sobre um tema mundano sem falar de um filme de Woody Allen. Ele me parece uma pessoa das mais respeitáveis, mas já começaram a compará-lo com Bergman. Se a minha geração tinha Bergman e a geração atual tem Woody Allen, estamos fritos...

Voltando ao que é importante (vejo que os entusiastas de Woody Allen começaram a rir...), creio que nos anos 1930 o cinema efetivamente influiu na linguagem literária e em muitas outras. Exerceu uma influência interessante na narrativa, gerando uma filiação que abarcou desde os primeiros romances noir aos primeiros escritores comportamentalistas norte-americanos, os quais passaram a ter influência sobre a "geração perdida". Muitos textos da geração perdida têm o enfoque do romance comportamentalista em sua maneira de respeitar o ponto de vista. Esse enfoque teve uma influência muito grande no romance francês do pós-guerra, em Sartre, Camus etc., e chegou até o nouveau roman. Creio que aí houve efetivamente uma influência decisiva da linguagem cinematográfica, num momento da evolução da linguagem narrativa que levou às teorias do ponto de vista, que nos anos 1960 eram muito difíceis de transgredir. Escrevi todo um romance para me desembaraçar disso, Glosa, no qual volto ao narrador totalmente onisciente. Para isso havia que criar uma retórica nova, que permitisse introduzir a terceira pessoa sabendo-se que o autor daquele romance estava a par de todos os debates sobre o ponto de vista.

De resto, sou um bom telespectador de ficções: vejo os faroestes e as séries de televisão mais rasteiras. Posso assistir ou ler qualquer coisa, posso ler os romances mais abominavelmente mal-escritos e malfeitos de Agatha Christie, mas quando alguém quer escrever tem de ser consciente de seus alcances.

A originalidade é necessária?

Sabemos que a originalidade é um valor relativamente moderno em arte, e nunca penso que um escritor tem de ser original, no sentido de querer diferenciar-se de tudo e de todos. Musil, por exemplo, não é um autor original. Na verdade, O homem sem qualidades é um romance sistemático. Musil não quer falar de uma experiência metafísica. Para falar do amor místico entre irmão e irmã sem cair no obscurantismo o romance tem de ser sistemático e mostrar sua consciência de uma série de problemáticas intelectuais, culturais e políticas. Creio que a originalidade é uma idealização particular de uma obra de arte que produz no leitor ou no receptor um agradável sentimento de surpresa — não de assombro, mas de surpresa, de coisa inesperada. Nesse inesperado o leitor prontamente se reconhece a si mesmo, sente uma espécie de reminiscência de haver vivido aquilo: aí está a originalidade de uma obra.

Quando analisamos o cubismo, por exemplo, dizemos que era original na medida em que rompia com uma porção de coisas, mas havia uma lógica interna nos pintores cubistas e essa lógica interna não pretendia ser original: pretendia ser a única maneira possível de representar a figura, o espaço, o evento. De modo que no artista há primeiro um sentimento muito forte de necessidade, e me parece que essa é a pauta do verdadeiro artista. A originalidade aparece depois, por contraste, por comparação com outras coisas que existiam antes e que não eram dessa maneira. O que confere o sentimento de originalidade é essa diferença do novo que acaba de aparecer, "novo" cronologicamente. Podemos falar do sentimento de originalidade do impressionismo, para seguirmos com a pintura — mas vão pensar que entendo muito de pintura: é que são imagens que todos temos na cabeça... A originalidade do impressionismo diante do naturalismo foi tal que houve gente que disse que os quadros impressionistas eram incompreensíveis, que o que estava pintado não se via, que não se reconheciam os objetos. Os impressionistas não buscavam a originalidade: buscavam aplicar na tela uma visão do mundo exterior que parecia ser a única possível, porque era a necessidade que os levava a isso. É certo que havia toda um série de detalhes puramente culturais e anedóticos que davam encanto a seus quadros, mas a originalidade por si mesma não é nenhum valor.

A sua produção literária foi contaminada por seu exílio voluntário na França? Estou pensando no caso de Cortázar.

Creio que quando escreveu O jogo da amarelinha Cortázar buscou elaborar essa experiência de viver em dois lados, essa espécie de esquizofrenia que consiste em viver em vários lugares. Ele e eu vivemos na Argentina cerca de trinta anos, de modo que uma parte importantíssima de nossas vidas se passou ali, e depois fomos para a França. Creio que a ele couberam épocas piores que a mim, e que foi pertinente da parte dele ter escrito aquele romance, que a mim porém não agrada, embora tenha alguns fragmentos que aprecio. Parece-me que Cortázar não é um bom romancista; creio que é um excelente contista. Acho que num momento de sua vida há uma coisa política, declarativa, que interfere em sua produção.

Busco resolver o problema de viver fora da Argentina de outra maneira. Por exemplo, uma parte do meu romance A pesquisa se passa em Paris, mas é uma Paris de ficção, e o que transcorre ali é contado na Argentina. Acho que em O jogo da amarelinha Cortázar não conseguiu adotar um ponto de vista: a narração se dá entre dois pontos de vista, e esse conflito não foi resolvido formalmente no romance. Eu diria que esse livro, apesar de todo o barulho literário que fez, por seus lances formais, como estrutura aberta etc., é o menos literário de Cortázar, embora seja seguramente o mais lírico. Cortázar é um escritor que fala muito de si mesmo, e esse livro é o que está mais próximo de sua experiência, muito mais que outros livros em que ele quer falar de suas experiências políticas e que estão muito distantes dele mesmo. Creio que o grande mérito de Cortázar é o de ter introduzido esse aspecto lírico e cotidiano, muito rio-platense, em contos como os de As armas secretas, que trabalham de maneira nova toda uma série de tópicos da literatura fantástica, como o duplo, a metamorfose etc.

Você foi irônico com o jornalismo quando lhe perguntaram sobre a recepção de Ninguém nada nunca no Brasil. Por quê?

Confesso que eu havia me colocado a questão, embora eu não costume pensar na recepção de meus livros. Às vezes penso em alguém cujo juízo merece o meu respeito, em algum amigo, e de quando em quando em quem vai comprá-los e me pagar um adiantamento. Mas confesso que em relação ao Brasil tenho um branco, ou mais que um branco, algo muito colorido, e ainda que eu possa imaginar o leitor-modelo argentino ou espanhol me é impossível imaginar o leitor brasileiro.

Esta é a sua primeira visita ao Brasil?

Quase a primeira: certa vez estive um dia em Santos e outro no Rio de Janeiro. Mas li muita literatura brasileira em português e traduzi poemas de Drummond para o espanhol. A primeira vez que ouvi falar de Guimarães Rosa foi porque Mario Medina — um amigo que tinha uma livraria e depois acabou tendo um motel — tinha a primeira edição de Grande sertão. Repare que isso era no ano de 1959, antes do boom [da literatura latino-americana].

O fato de ter conhecido Guimarães antes do boom lhe põe numa posição de privilégio?

É bastante conhecida a minha opinião sobre o boom, pois os jornalistas freqüentemente me perguntam por que não coincido com os autores do boom. Em relação a Cortázar, por exemplo, dei-me conta de que ela havia perdido um pouco o senso da realidade no famoso prólogo que fez para a obra de Arlt. É uma coisa infame, que mostra seu desconhecimento de Arlt e certa pretensão de apreciá-lo como quem olha de cima. Quanto a Vargas Llosa, fui um dos primeiros a dizer que Batismo de fogo era um romance escrito para mostrar que há militares maus e militares bons. Creio que a filosofia dos autores do boom foi o mercado, que eles perceberam que nos Estados Unidos se começava a ver esse tipo de coisa que ia ser, na minha opinião, a destruição da literatura latino-americana.

Você compartilha a idéia de um espírito apocalíptico de fim de século, de decadência da cultura?

Não, de modo algum. O que ocorre é que sempre considerei que a literatura, a arte, se dá por períodos, não se dá o tempo todo.

E pensa que agora estamos num período de baixa...

Creio que agora há um debate importante sobre a cultura que há cinco ou seis anos não existia. Penso que anos atrás esse debate estava ocupado por gente que agora está caindo aos pedaços.

Umberto Eco seria um deles?

Uma das coisas que está desaparecendo deste planeta é o espírito crítico, e vou me permitir ser crítico com Eco, que não é um competidor imediato. Obra aberta foi meu primeiro contato com Eco. Li esse livro com muita atenção porque há nele um ensaio sobre Joyce, um ensaio acadêmico, de um medievalista italiano que quer ser moderno. Embora o ensaio seja muito bem feito, pois Eco é um tipo sério, as conclusões não têm nada a ver com a essência do que é Joyce. Ocorre o mesmo com o conceito de obra aberta, que é uma petição de princípio: ninguém vai querer escrever uma obra fechada, assim como ninguém vai dizer que sua concepção do mundo é estática, ainda que seja. Por outro lado, a oposição entre apocalípticos e integrados me parece uma oposição entre gente boa e gente boa que degola velhinhas. Com isso quero dizer que o problema com Eco é, às vezes, sua desonestidade — desonestidade, esperteza ou estupidez, dou-lhes várias opções para que escolham. Dito isso, eu o chamo afetuosamente "il professore", o que me sai bem mais simpático.

Você se compadeceu da geração que tem o cinema de Woody Allen, enquanto a sua teve Bergman. Essa não é uma posição decadentista?

Às vezes os filmes de Woody Allen lhe saem piores porque ele filma em demasia. Ele me parece um cineasta menor, embora isso não queira dizer nada, até porque acho que no cinema norte-americano Woody Allen é sem a menor dúvida uma das figuras mais interessantes. Pelo menos ainda é um ser humano que faz filmes: os outros são como que robôs pasteurizados.

Quais são seus critérios para atribuir valor estético, para além do pulsional?

Eu diria que o valor vem depois do gosto.

Mas quais são seus argumentos para justificar o valor?

Bem, isso é complicado... Como fundamentar o ato? Já sabemos que os valores são relativos. Sempre dizem que é muito difícil transformar a sociedade, e eu sustento que mudando dois ou três valores transforma-se a sociedade. A questão radica nos valores, e os valores na leitura são o prazer e o encontrar-se a si mesmo num texto. Na leitura há um momento em que se crê naquilo se lê e se identifica com aquilo. Sente-se, por exemplo, a música de uma prosa, a pertinência das imagens e das idéias, sente-se que as coisas são conduzidas no ritmo daquilo que está se passando. É um momento um pouco mágico, como aquele em que Musil faz seu personagem alçar à sua irmã e sentir que passa para o outro lado. É um momento mágico que dura uma fração de segundo, e na leitura temos muitos desses pequenos momentos.

Pequenas epifanias?

Exatamente. E quanto mais temos momentos desse tipo mais será positivo o nosso juízo, ainda que não se trate de uma questão de quantidade, é claro. E como se produz a objetividade do valor? Sabemos que é impossível que um valor seja absoluto, que é impossível, por exemplo, que a cor verde agrade a todo mundo. Penso que as razões pelas quais se crê na ficção são as mesmas pelas quais se crê em Deus: não há nenhuma diferença. Por que se crê em Deus? Crê-se em Deus porque se aspira a um sentido, e a narração tem um sentido. Se cremos em Deus e o mundo adquire sentido, quando cremos numa ficção é porque nela encontramos um sentido. Um sentido não quer dizer um significado: é uma intenção, uma pertinência, uma coerência. Essa pertinência pode ser negativa, pode resolver-se pelo absurdo.

Ao pensar assim não se corre o risco de fazer da arte uma espécie de tautologia alienante?

Podemos dizer que quando falamos de esteticismo falamos de uma espécie de alienação pela estética e de uma fetichização do belo, mas creio que a experiência estética sempre é libertadora. Acredito que essa experiência é libertadora porque nela há um sentimento de harmonia e exaltação, mesmo quando ela é negativa. E não estou falando apenas a partir da batida teoria da catarse de Aristóteles, mas também de outras teorias não psicológicas, como as que falam da súbita percepção de uma harmonia no objeto, que gera um sentimento de exaltação, abrigo, segurança.

Creio porém que não se tem esse sentimento de segurança, harmonia ou abrigo na sua literatura, que trabalha insistentemente sobre a percepção...

Todas as nossas experiências e percepções são convencionais. Embora as coisas tenham um valor prático, de uso prático, e acreditemos conhecê-las, esse conhecimento que temos sobre as coisas e as experiências que delas fazemos são convencionais e aproximativos. De alguma forma somos prisioneiros da percepção, porque nossa percepção é limitada. Em meus romances procuro trabalhar com a incerteza porque me parece que ela é o nosso verdadeiro fundo mental.

Certa vez, ao falar do caráter artesanal da literatura, você chegou a se qualificar como um "artesão da escritura". Como você definiria esse saber artesanal?

Certamente vai-se incorporando técnicas, mas há que criar o útil para cada ocasião ou circunstância. Há que fazê-lo pouco a pouco e com os meios que se tem, que são as idéias, as emoções, as visões. Com tudo isso, o escritor deve ir criando uma linguagem literária autônoma, pessoal, coerente e que sobretudo não transgrida as normas que ele mesmo se impôs. Há uma famosa frase de Borges — que na verdade não é dele, mas de um crítico norte-americano, embora Borges, como sempre, deva tê-la melhorado — que diz que nos romances de Faulkner não sabemos o que se passa mas sabemos que o que se passa é terrível. Essa frase é maravilhosa. Já um escritor profissional tem apenas técnicas, e as técnicas se desmontam perfeitamente.

Ao justificar suas leituras você enfatizou categoricamente a questão do prazer. Se a esse hedonismo somarmos a afirmação de seu caráter de artesão não será correto pensar que você está supondo uma volta à idéia de autor, um retorno quase teatral à primeira pessoa?

Por certo que sim, totalmente. Tenho uma profunda admiração por Barthes, e tive a sorte de acompanhar a última etapa de sua carreira, quando ele já era célebre e já havia criticado ele próprio a sua Análise estrutural da narrativa, que considero o seu pior ensaio. Obviamente, a noção de autor está desvalorizada desde o estruturalismo, mas é evidente que o autor é quem dá sabor ao texto. Não quero dizer com isso que esse sabor seja autobiográfico, mas que esse sabor tem a ver com essa espécie de artesanato, esse saber fazer e essa impregnação de elementos pessoais na linguagem que o autor utiliza e que no entanto sempre existirá fora dele.

Recebido para publicação em 28 de setembro de 2005.

tradução do espanhol de Alexandre Morales

Sobre Juan José Saer e sua obra, ver o depoimento de Beatriz Sarlo publicado nesta edição.

  • [1
    ] Entrevista realizada na USP em outubro de 1997 e publicada em espanhol em
    Cuadernos de Recienvenido, nº 14, setembro de 2000. Participaram da conversa José Luiz Martinez, Pablo Fernando Gasparini e Paulo César Thomaz, alunos da Pós-Graduação em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-Americana da USP.
    Novos Estudos agradece a Jorge Schwartz, por gentilmente autorizar a publicação da entrevista, e a Alexandre Morales, pela indicação editorial.
  • [2
    ] A noção de "escritura branca" provém de Roland Barthes [N.T.].
  • [3
    ] Cita-se o poema "Versos à boca da noite", de
    A rosa do povo [N.T.].
  • [4
    ] O romance
    Las nubes, lançado em 1997, foi o último publicado por Saer. Anuncia-se para 2005 a publicação póstuma de seu último e mais extenso romance, intitulado
    La grande e provavelmente inacabado [N.T.].
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Mar 2006
    • Data do Fascículo
      Nov 2005
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