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Apresentação de um amigo: clima

CRÍTICA

Apresentação de um amigo: clima

Tales A.M. Ab'Sáber

Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

EXPOSIÇÃO DE EDUARDO CLIMACHAUSHA

METADE CÉU, METADE TERRA

São Paulo: Eduardo Fernandes Galeria de Arte, 2005

MARCANTÔNIO VILAÇA, PASSAPORTE CONTEMPORÂNEO

São Paulo: MAC – USP, 2003

AGOSTO

São Paulo: Galeria Baró Senna, 2002

Canalha!

Comentário de aluna da Escola da Cidade, quando da performance de Clima "Eu sou Geraldo Pereira".

NOITE

É próprio das crianças acreditar que a noite é povoada de seres fantásticos. Nas origens de nossa hipermodernidade, artistas sensíveis como Maupassant anotaram o momento exato em que a noite perdeu todo mistério. Alguns anos antes, os românticos alemães acreditavam que o gênio trabalhava à noite, e que o espírito elevado era irmão do sonho. Como seria possível comparar essa experiência com a da arte moderna de Monet e Lautrec, que já conhecia a noite como espaço de continuidade feérica do dia? Naquele tempo as estrelas brilhavam mais que o sol; e a balconista e a prostituta, tão próximas à alegria do consumo e da circulação monetária, ocupavam o lugar da esposa na nova ordem da noite.

A organização de nosso mundo há muito já equacionou a noite como hora privada de reposição das energias para a mera reprodução totalitária do dia, ou então como espaço contido do lazer, onde pessoas, sem experiência, trocam experiências. Vista desse ponto de vista, a noite é o lugar de nossa boemia administrada, do consumo de diversão e do sexual onipresente, mas também de pouco valor simbólico, como tudo aquilo que se torna indústria. Para os que só conhecem a indústria da noite, ela é apenas a continuidade embebedada do banal e cada vez mais impossível trabalho do dia.

No entanto, toda noite, quem fica acordado pensando nas batalhas de papel e aço do dia que virá, mas nunca chega, ou escrevendo o texto que necessita atravessar uma noite para guardar a assinatura de alguém, reconhece prontamente um momento: a hora secreta em que olha do alto para a cidade que dorme e sabe que deve haver um outro sobrevivente da noite. Um outro que, no extremo do tempo, vive o vazio sem objeto, prenhe de horizontes contidos, de uma opaca experiência de nossa humanidade que só aparece nesse momento. Como se sabe, os cineastas modernos se interessaram muito por esse ponto suspenso e negativo no tempo e no espaço.

Ainda não ocorreu a ninguém escrever uma história da noite, embora algumas páginas importantes dessa história já tenham sido escritas. Os cachorrinhos, ou, melhor dizendo, os nobres vira-latas, que Eduardo Climachauska fotografou e montou nos finos painéis negros de sua exposição Agosto (2002), surgiam exatamente daquele momento de anulação do último humano na noite, na hora em que o último de nós dorme. Eles traziam o segundo exato, marca essencial da fotografia, em que à noite nos desidentificamos de nosso mundo e suportamos o vazio que ele absolutamente desconhece. Os animais lembravam também o fato de que esse lugar possível do não afetado, do avesso a todo excesso, da possibilidade de ficarmos sós, em suspensão objetiva — num tempo em que tudo está em contato no brilho excessivo do sempre exposto —, esse lugar potencial, caverna da rua, caótico e enegrecido em que os cães da noite vivem, esse último lugar nesse tempo limite, apenas fala a nossa humanidade na forma do mero sobrevivente. Tais manchas vivas no escuro evocam o sobrevivente universal, mas tão brasileiro, ser que, sem saber como, resiste a um mundo já acabado, cão vira-lata e a intimidade desértica de sua noite.

De fato, essa noite densamente negra é radicalmente não metafísica: lixo, bueiro, o fogo de algum mendigo ausente, o cão. Essa constelação opaca, essa seriação de coisas, poucas coisas, quase nada, sem nenhum contexto, na hora em que o mundo não está, é caverna do real em nosso tempo, o que, como já foi dito na luz de um filme ou na chama do filósofo, é um deserto.

Quando nos identificamos com aqueles lindos animais, miseráveis, resilientes, radicalmente marginais, mas tão potentes na sua sobrevivência avessa ao nosso próprio mundo, descobrimos algo de nossa antiga humanidade, ameaçada. Ela só parece mais verdadeira diante do ato desrespeitoso de sobreviver, de manter-se íntegro no espaço social esgarçado, que apenas existe, mas há muito não é para nós, nem para ninguém.

O sobrevivente íntegro a toda violência imaginável, e sem destino, no mundo que se tornou coisa, o mero sobrevivente, no mero mundo, o corpo do cão, é o nosso melhor auto-retrato. Ele brilha uma esperança corpórea, estranha esperança sem redenção, em uma noite que se tornou tão verdadeiramente escura quanto a antiga, e ainda humanista, noite dos solitários, bêbados, guarda-chuvas, cães e urubus, de outros tempos. Não deixa de fazer parte de tais obras o fato de que o artista que olha os olhos em chamas do cachorro, seus pêlos que mimetizam a coisa da noite, o asfalto da noite, estava lá, no tempo extremo.

Desse modo, na mesma exposição sensível, desafiadora do insensível, as grandes escultoras de pedras baianas cor-de-rosa que esmagavam as nostálgicas carrocinhas do interior, que ainda tentavam sobreviver, irônicas como as velhas tias, já sem função histórica, sujeitos desejantes sem nenhuma teleologia, repunham em outra configuração, agora constrangida, o problema do que é vivo e do que equaliza tudo à mesma massa informe que é a potência de nosso tempo — a noite ou o lixo da rua. Frente a elas, ressalta a idéia de como as qualidades sensíveis estremecem e tendem ao passado impossível, diante do presente inviável. Também, em um passado mais animado que o nosso tempo, o poeta moderno flagrou a história entre a massa do bonde e a frágil carroça, figurando na imagem mínima daquele impasse um tanto de nosso lugar inviável nos tempos modernos.

Esse dia travado das carrocinhas, entre a massa inominável que ameaça a resistência de todo material, e aquela noite densa, nas quais emergiam os únicos melhores homens, os cães da noite, resistindo com elegância ao peso obscuro e total do que não é, criam um diálogo impossível entre o corpo íntegro, o tempo impiedoso, o passado constrangido e a noite suja e real, que, desencantada e material, ainda guarda os segredos do mundo que acabou.

SAMBA

Conheci meu amigo Clima como as crianças de antigamente encontravam seus melhores amigos: na rua. Experiência extemporânea, que me trouxe de volta a memória perdida das finas potências da boemia e da amizade, quando assumidas plenamente.

Andando pelas duas ou três quadras de Pinheiros que circundam meu consultório, durante meses eu via de vez em quando aquele moço alto, com seus precoces cabelos prateados de europeu, vagabundo e elegante. Uma vez eu o vi em uma padaria, outra vez passando, apenas passando, tendo à frente de si uma meta clara e muito pessoal, que o movia, outra vez e ainda outra vez, sentado sozinho em uma mesa de bar de esquina, com uma cerveja e uma cachaça solitária.

Por vezes, um grupo de amigos podia unir-se a ele naquela mesa, mas, imagino, sua condição de presença ali era sempre um estar dentro, mas igualmente, um sempre estar fora. Alguns anos depois, ele me diria depois do quinto uísque: "Eu sempre escolho um bar de esquina, onde possa sentar e ver a encruzilhada, tudo que acontece. É a posição do cachorro, e, nos filmes, a do matador...". Nessa esquina que ele vive buscando pela cidade, o centro da sua atenção, durante a noite, cai no ponto em que habita o demônio, o exu mensageiro, o tranca-ruas: o meio do asfalto.

Nós, que conhecemos a cidade antes da radical cisão social iniciada na década de sessenta, guardamos em algum lugar a tecnologia humana, nacional, da amizade e da rua. Hoje, nas grandes cidades essa arte está extinta. Ainda me lembro do prazer de um ou outro amigo mais velho quando, há muitos anos, ainda podíamos ir de bar em bar, pelas ruas do centro boêmio, desejando o mundo e seu pensamento. Eu havia esquecido o lugar da noite, da bebida e da amizade na constituição do pensamento e de nossa possibilidade de vida subjetiva. O pequeno burguês dorme mal, e pesadamente, para tudo que não seja trabalho e conquista na desgraça de seu próprio mercado.

Com a amizade, a cachaça e o uísque restaurados, depois de dez anos de esquecimento, foi curioso ser apresentado ao samba, depois de passar praticamente a vida toda alheio à matéria e, provavelmente, estar velho demais para tanto. Não sei como chegamos ao assunto, mas quando percebi, eu queria saber mais e mais sobre a velha arte brasileira. Clima, de tão grande conhecedor da história do samba e de todo sambista, de tanto ouvir o tributo final de Batatinha, e os três únicos sambas, obras primas, de Bororó, de tanto prezar o espaço aberto da rua e da noite, deveria mesmo ter se tornado o sambista que ele também é. Com ele, um grupo de homens banalmente aburguesados redescobriu o indestrutível pacto de vida e forma do samba brasileiro, sobrevivente da noite, alta experiência estética e humana daqueles que não tiveram nenhum valor no andamento geral da história.

Sendo Clima compositor para o neo-samba de Rômulo Fróes, parceiro de Nuno Ramos em sambas novos, mas de estilo velho, bem como parceiro do artista em filmes-samba, para mim não foi surpresa ver um imenso samba exaltação do amor — e creio que só mesmo em samba isto é viável — composto pelos dois ser gravado por Gal Costa ("Jurei"), e fazer um suave sucesso no Rio de Janeiro e na Bahia. A profunda iniciação de Clima no samba talvez lhe seja mais cara e encarnada do que sua própria relação, turbulenta, com as artes plásticas.

Pois o samba ele sempre o leva consigo, e nada lhe custa. Diferente das revistas e livros de arte contemporânea e das exposições classistas, que uma vez por mês, como cachorro vagabundo e de forma despercebida, ele lê, em alguma livraria chique, ou vê em alguma galeria pela qual passa voando.

Também não foi surpresa vê-lo, por duas horas e meia, instigado e questionado por mim e por Rafic Farah em um seminário da Escola da Cidade, sustentar, com um violão, um punhado de sambas clássicos e o amigo Rui no violão sete cordas, um discurso improvável: falar do samba brasileiro, e um de seus personagens exemplares, desde o ponto de vista da primeira pessoa do singular. Naquela noite, que foi longa, Clima apresentou a si próprio desde o centro do título de seu happening, "Eu sou Geraldo Pereira". Até hoje alguns alunos da Escola, quando o encontram, costumam comprimentá-lo com um "Salve, Geraldo", paradoxal e amoroso.

ARTE

Um dia, no meio da semana, Clima me convida para acompanhá-lo na montagem de uma obra, feita para uma exposição coletiva em homenagem a Marcantônio Vilaça, que tomaria o MAC, na Cidade Universitária. Como tudo aconteceria muito cedo, às cinco da manhã, eu podia acompanhá-lo e estar, no horário, em meu trabalho. Na Cidade Universitária vazia da madrugada não se via uma alma viva. Até que ouvimos, vindo do horizonte de alguma rotatória, o caminhão que trazia a matéria da arte. Tratava-se de centenas de quilos de grandes ossos, descarnados e cortados, ossos de boi.

Uma montanha de ossos cortados como cilindros, de um diâmetro razoável. Eles seriam colocados em um grande triângulo, uma cunha, uma pirâmide cortada ao meio e aparada, de uma grossa lona transparente, que se encaixaria, muito grande, em alguma parede do museu, criando uma rampa, uma casa de ossos. A coisa toda tinha uns três metros de altura, por mais três de largura e uns quatro de profundidade e, com os dias, a matéria orgânica e viva ali condensada se manifestaria. Após uma semana o grande saco transparente chovia por dentro.

Mas antes que a ossaria fosse carregada para o seu continente, sarcófago e vitrine, dentro do museu, um fenômeno nos surpreendeu. Gradualmente, junto com o amanhecer, foram surgindo cachorros. Vindos de todas as direções, eles chegavam desconfiados, mas hábeis na aproximação. No auge do encontro, antes ainda de qualquer pessoa aparecer, contamos dezessete cachorros, dos mais variados formatos. Todos, interessados, fortes e simpáticos, se encontravam no fim da noite proporcionada pelo Clima.

Este trabalho teve o título de Herói.

CÉU

Muitas coisas bonitas podem ser ditas sobre Metade céu, metade terra, exposição de Clima realizada em setembro de 2005. Mas prefiro pensar que ela revela, até segunda ordem, o outro lado da moeda do mundo, o céu sublime das razões modernas, a elegância rigorosa do vagabundo.

A escultura do Escorpião, por exemplo, fina, transponível, desenho do espaço, como se estivéssemos soltos em sua própria constelação, tira o peso de um mundo para lá de pesado. Não é por acaso que nela os tirfors, mini-guindastes manuais que figuram a mecânica irregular das estrelas, estão em condições de atrair, e arrebentar, as paredes da mínima galeria. Um pouco de força — e todos desejamos mover aquelas alavancas — e as paredes se romperiam. Tudo isso diz respeito a como ter força para conter a velha invasão do mundo, e desenhar um mundo de razões plenas, que se contenham em suas próprias linhas, de forças necessárias. Talvez isso explique também os desenhos de cobre, objeto misto entre matéria, luz, minério e papel: em uma mineração do mundo, um gesto puro de luz deseja sobreviver ao que lhe é inteiramente alheio. Uma aula de esfera.

Mas essas heteronomias, onde a razão irônica tenta se equilibrar, aparecem como necessárias uma à outra. Tudo se torna visível sobre esse jogo de necessidade e forças, de constância e salto, de repetição e equilíbrio, no vídeo ícone de Clima e Daniel Augusto: a iconografia cifrada da arte ocidental, deslocada e condensada como ocorre nos sonhos, do Renascimento a Duchamp, sustenta o salto nas razões do fluxo, do sem centro, do infinito movimento nos limites do informe. Mas sabemos que toda agitação dos pensamentos sem ponto fixo de nosso tempo é apenas um truque, plenamente revelado pelo dispositivo. Tal mundo insólito é produto da acumulação histórica de uma ordem de razões que o sustenta, a sua metafísica de fundo, teórica e material, sem a qual nada de nossas agitações do espírito, aparentemente tão livres, se daria. Afinal, quem trabalha para girar a máquina de nosso aparente descentramento?

Certa vez, Clima escreveu um pequeno texto em que comparava e tentava compreender as posições estéticas e humanas dos maiores sambistas brasileiros, Nelson Cavaquinho e Cartola. Para ele, Nelson era o homem que desaparecia na rua e na noite, nos botecos e puteiros, o homem que pisa o morro onde sabe que morrerá e será enterrado. Seu universo é o chão, a terra, o concreto de seu violão e de seu sexo, de seus pés sobre as folhas, a densidade real da tristeza e da morte. Tratar-se-ia de uma divindade ctônica, encantatória desde o atrito do real das coisas: corpo, vida, desencanto e morte.

Já a alvorada no morro de Cartola, seu ponto de vista sublime da forma poética, suas rosas que falam o seu perfume, sua recusa apolínea ao amor proibido, sua exaltação delicada da vida, indicavam todo um movimento aberto ao alto, desde o ponto de vista do elevado, do ponto de equilíbrio do sublime, o clássico, o céu. No Olimpo da forma de Cartola, o mundo ganha a luz de sua criação, de sua emergência no necessário, onde seu reflexo se faz exato na forma.

Por fim, entre o céu de Cartola e o seu Nelson Cavaquinho vestido de Hades, Clima posicionou o movimento de fuga e ligação do elevado com o terreno. Este seria o lugar de Zé Kéti entre os clássicos de nosso samba, homem de grandes maravilhas e de grandes baixezas, mas, mais precisamente, homem da ligação entre os mundos, em movimento: diz que fui por aí.

Tudo isso é muito sugestivo da metade céu e da metade terra do próprio Eduardo Climachauska. Assumir o apelido que os amigos lhe deram, Clima, talvez também diga respeito a essa luta entre o concreto e o sublime que se verifica em seu trabalho. Nada é mais determinante da vida e mais real, geográfico, do que o clima, nenhuma dimensão de nossa existência material é mais aberta ao tempo, mais histórica, e vem tão do alto, do ponto de vista do todo, do que o clima.

Eu mesmo, de minha parte, quis escrever este texto do ponto de vista do terceiro personagem, o vagabundo, o cachorro vira-lata, o exu mensageiro. Do ponto de vista daquilo que os críticos de hoje gostam de desprezar e os psicanalistas preferem acentuar: o corpo vivo, o ser encarnado, o dado biográfico, ali onde ele se mistura às condições de forma e do pensável. Quis escrever sobre a arte daquele Clima que primeiro conheci, nas ruas mais comuns de São Paulo, e com quem muito tenho aprendido. Diz que fui por aí.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Mar 2006
  • Data do Fascículo
    Nov 2005
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