Acessibilidade / Reportar erro

Nabuco na intimidade

CRÍTICA

Nabuco na intimidade

Angela Alonso

Professora no Departamento de Sociologia da USP, pesquisadora do Cebrap e autora de Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império (São Paulo: Anpocs/Paz e Terra, 2002)

Diários de Joaquim de Nabuco. Evaldo Cabral de Mello (org.). Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi e Massangana, 2005.

Num tempo em que as pessoas se desnudam por inteiro em blogs, sites e orkuts, explodindo os limites entre vida íntima e pública, soam dissonantes os diários dos oitocentistas, como o de Joaquim Nabuco, editado agora, um século depois de concluído. Neles há o registro de uma intimidade nascente, que às vezes se exibe, às vezes se esconde.

Os diários pessoais foram se firmando no século XIX como registros de uma experiência social também em consolidação: a intimidade. Os indivíduos, seus narradores, não eram ainda senhores plenos do terreno, de modo que o gênero foi se fazendo na medida em que os limites entre um mundo público e outro privado foram se estabelecendo. Por isso é que os diários oitocentistas são tão variados, indo daqueles que podem ser lidos sem susto no salão de visitas aos que precisam ser mantidos nas alcovas. Por essa época, os diários aceitavam bem o relato dos feitos das mocinhas de boas maneiras, seus versinhos, os incentivos dos parentes, os votos das amigas. Tão públicos, tão feitos para essa sociabilidade de salão, que chegavam mesmo a ficar à disposição dos visitantes, ali por perto do piano. Em versão mais séria, masculina, desde o século XVIII os diários condensavam as aventuras e observações dos viajantes naturalistas e, depois, dos primeiros antropólogos, que nunca mais viveram sem ele. O diário foi aos poucos se popularizando — tal qual a fotografia — como cristalização de narrativas sobre vidas singulares. Entrou em moda junto com as autobiografias e as memórias, pelas quais se aventuraram vários dos ícones oitocentistas, como Chateaubriand, Spencer, Saint-Simon e o ídolo de Nabuco, Ernest Renan. Embora tenham se encaminhado cada vez mais para o campo da intimidade, os diários mantiveram ao longo de todo o século XIX essa oscilação entre o documento para o público e o registro especular de experiências desinteressantes ou inconfessáveis a terceiros.

Os diários de Nabuco não escapam a esse padrão, andando no meio-fio entre os relatos de viagem, a carreira, os contatos sociais e os negócios, de um lado, e as aventuras amorosas, os rancores e as doenças, de outro. Comparado ao do amigo André Rebouças, o diário de Nabuco é decepcionante como retrato de sua trajetória política. Nas páginas de Rebouças há mais detalhes sobre os eventos públicos do áureo ativismo abolicionista de Nabuco que nas suas próprias. Nessa fase jubilosa, Nabuco é lacônico. O diário é uma simples agenda, em que se enumeram compromissos, encontros políticos, eventos a comparecer. Sempre com muita parcimônia. A única surpresa é o registro da proteção que deu a um escravo fugido em 1886, prova de seu namoro com o radicalismo. De modo geral, todavia, esteve muito ocupado vivendo a vida pública, sem manter os pés em casa tempo suficiente para registrá-la. Quando, muito mais tarde, voltou a exercer cargo político, primeiro como advogado do Brasil na Europa, redigindo a reivindicação por parte do território das Guianas contra a Inglaterra, depois como embaixador em Washington, as anotações ficaram um pouco mais extensas, mas ainda assim pendentes para a sociabilidade, o círculo familiar e os achaques da velhice e da hipocondria.

Esses assomos de vida íntima vão se revelando num crescendo . Nas primeiras notas, tomadas durante a estréia como burocrata, funcionário do escritório diplomático do Brasil nos Estados Unidos, Nabuco ensaiou o clássico diário de viagens. À maneira de Tocqueville, comentava os costumes norte-americanos à luz do padrão de civilização europeu, mas, ao contrário do francês, seu foco juvenil está menos nas instituições que nas mulheres. Nabuco é um cortesão em férias, circulando entre jantares, viagens e paqueras. Páginas e páginas nos informam sobre o amor de ocasião, Fanny Work. Contudo, essas revelações vêm matizadas, misturadas a generalizações que afastam o foco dos sentimentos de quem escreve. O tempo todo aparecem projetos de livros sobre as experiências sensoriais, amorosas, sociais que o próprio diário registra — como se Nabuco se protegesse de nos contar a vivência, para nos ceder apenas conclusões morais ou intelectuais acerca dela.

Então, se à primeira vista o diário tende mais ao íntimo, à medida que a leitura avança as omissões, os silêncios e as interrupções é que se tornam mais expressivos da intimidade. A maior paixão de Nabuco, Eufrásia Teixeira Leite, com quem teve uma década de romance tumultuado, quase escapa à sua pena. Eufrásia é mencionada muito mais raramente do que a correspondência entre os amantes nos faria supor. Seria por reserva? Com Miss Work, Nabuco não se envergonha de descrever os dotes físicos da donzela, tampouco as sensações despertadas por eles. Talvez por despeito tenha apagado as notas sobre Eufrásia. Findo o caso, que foi duas vezes noivado, Nabuco se casou tardiamente com outro E, de Evelina. Pode ser que, para se coadunar com o novo estatuto de pai e esposo, tenham sido elididas as menções apaixonadas à preterida. Impossível saber se por rasura própria ou censura familiar póstuma. O diário não expõe muito esse terreno. Há, sim, sobretudo na maturidade, observações mais pessoais sobre a parentela, inclusive com menções ternas aos filhos e à esposa, e comentários às vezes encomiásticos — a Machado de Assis e Graça Aranha, por exemplo —, às vezes espinhudos — especialmente ao barão de Rio Branco e a Oliveira Lima — sobre os amigos. Todavia, comparados a outro contemporâneo, Couto de Magalhães, o diário de Nabuco nos priva do grosso do que agora chamamos de intimidade. Couto registra doenças, finanças, amores e até sonhos eróticos. Afora as doenças, Nabuco negaceia quase tudo.

É verdade que o casamento simultâneo ao alijamento político pela República transformou o dândi da juventude em reflexionador. O diário engorda na primeira década republicana. Em situação inversa à dos anos 1870, Nabuco ganhou tempo de sobra em casa e pouco o que fazer na rua. Sem herança, sem emprego, tendo perdido o dote da mulher numa especulação na bolsa argentina — eventos todos narrados sumariamente —, Nabuco não tinha dinheiro para manter o ostracismo digno na Europa. Assim, viveu a guerra civil sob Floriano exilado no mundo familiar. Sempre vaidoso de si, entrou a fazer ginástica e, esperançoso de abrir uma nova carreira, andou tomando aulas de contabilidade. Todavia, não achando ocupação, se pôs enfim a escrever livros longamente planejados. Primeiro, o elogio do Segundo Reinado, em O stadista do Império, a biografia do pai, que desde a década de 1880 aparece como projeto no diário. Depois, a condenação da República, em versão meio cifrada, em Balmaceda. Por fim, Nabuco tenta entender o próprio destino, produzindo uma autobiografia precoce, Minha formação. O diário registra todos esses propósitos e denota sua progressiva reconversão ao tradicionalismo de origem. Na política, o elogio da família imperial e dos estadistas do Segundo Reinado desemboca na crítica horrorizada à elite republicana e ao militarismo. No plano dos valores, o diário denuncia a reassimilação do catolicismo de infância, romanticamente recuperado em Minha formação, e a conversão do dândi namorador em prestimoso chefe de família. Assim, na década de 1890, o diário vai se tornando misto de comentários sobre o governo militar, leituras de vidas de santos e registro de prosaicos eventos familiares.

O tom melancólico predominante amaina um pouco quando Campos Sales tira do ostracismo o antigo correligionário de campanha reformista da década anterior. Nabuco — que tanto resistira a aderir ao novo regime no início e condenara os aderentes —, registra então o ressentimento dos amigos monarquistas quando decide aceitar uma missão diplomática na Europa. Essa volta ao mundo social e político é de início um choque para quem se acostumou tão duramente ao recolhimento. Nabuco reclama, alquebrado, dos eventos sociais, da rotina do trabalho e das doenças. A hipocondria indefinida da juventude é agora uma enxaqueca persistente, de clara origem nervosa. Vem somar-se a ela uma surdez progressiva, resistente a tratamentos. Além do próprio declínio físico, Nabuco acompanha, desolado, o desaparecimento dos companheiros de geração, como André Rebouças, Eduardo Prado e José do Patrocínio, da mãe e do irmão mais próximo, Sizenando. O diário fica então lúgubre, preparando a própria morte.

Não obstante, entremeadas à nota fúnebre, seguem pipocando as festas e as viagens, seus grandes prazeres. Nabuco circulou pelo mundo relevante de seu tempo, a Europa e as Américas, e lamentou apenas não poder realizar o sonho de ir à Grécia e ao Egito. Conheceu as estrelas da vida política européia, como Gladstone, e norte-americana, privando da intimidade da Casa Branca sob Roosevelt. Freqüentou tanto o mundo boêmio como as sacristias: esteve em casa de George Sand e Sarah Bernhardt e assistiu a missas de três papas.

Em meio a tanta atividade, sobraram irrealizados numerosos planos de livros de poesias, romances, estudos políticos, tratados morais e religiosos. A maioria suscitada por leituras de ocasião. O diário as registra em abundância: Nabuco encharcado de Chateaubriand, o que já sabíamos, mas na velhice também encantado com Cícero e Platão, como, na juventude, com Stendhal e Flaubert — o que não deixa de surpreender.

A bem da verdade, o diário muda muito de formato ao longo das mais de três décadas registradas. Há o diário de viagem no início e quase ao final; há a agenda de compromissos, durante a campanha abolicionista e na vigência dos postos diplomáticos já no século XX; há o registro efetivamente íntimo dos estados físico e emocional e da convivência social, sobretudo durante o ostracismo político e no fim da vida, quando o diário se torna também um caderno de rascunhos de cartas. Há o tempo todo esboços de projetos a realizar, temas para livros, observações sobre o funcionamento da vida social. De modo que o diário funciona como miscelânea, andando do mundo privado ao público e vice-versa.

A apresentação dessa edição — tão cuidada quanto cara —, não deixa saber quanto disso tudo é resultado de lapidação. O que Nabuco ele próprio nos conta é que usou suas notas para escrever Minha formação e Minha fé, os dois livros confessionais. Nessas horas terá por certo jogado papéis fora. Rebouças reescreveu seguidamente seus registros. Terá Nabuco feito o mesmo? Terá talvez na velhice suprimido observações comprometedoras, tanto das aventuras amorosas como das opiniões políticas? Terá quem sabe aplainado as protuberâncias radicais da juventude de modo a adequá-las ao conservador moderado da maturidade?

Na introdução, Evaldo Cabral de Mello ajuda o leitor desacostumado de Nabuco e do século XIX brasileiro a fazer pontes e preencher lacunas. Todavia, não esclarece muito sobre o estado geral em que se encontravam as agendas que deram base para esta edição do diário. Os melhores biógrafos de Nabuco, sua primogênita, Carolina, e Luiz Vianna Filho, dão sinais de ter sabido mais do que contam os volumes agora editados. O outro texto biográfico a que terão tido acesso é Anos de minha vida, que a edição não esclarece se publica parcialmente ou por inteiro. Já as notas são, em geral, elucidativas, complementando o diário com informações sobre o contexto e mesmo com trechos de cartas de Nabuco. Há, entretanto, pequenos deslizes: a data da morte de Nabuco de Araújo, o pai, está incorreta (vol. 1, nota 84, p. 222); a irmã de Eufrásia foi confundida com a mãe (vol. 2, nota 24, p. 166) e sua correspondência amorosa com Nabuco é declarada perdida (vol. 1, nota 2, p. 22). As cartas dele a Eufrásia, reza a lenda, teriam sido enterradas com ela. Muitas, de fato, sumiram, mas outras sobreviveram em número suficiente para nos dar idéia do fulgor do romance. Estão, aliás, depositadas no arquivo da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), sede também da editora Massangana, que publicou, com a Bem-Te-Vi, os dois volumes dos diários.

De modo geral, o diário de Nabuco apresenta ao público um personagem pouco conhecido. Ao lado do Nabuco incensado por biógrafos e admiradores em razão de seu período abolicionista, um outro ficou escondido. O Nabuco meio Brás Cubas, meio Dom Casmurro, bon-vivant na juventude, melancólico e amargurado na velhice. É essa face mais humana do mito que a edição dos diários deixa ver. Um Nabuco em carne e osso.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2006
  • Data do Fascículo
    Mar 2006
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento Rua Morgado de Mateus, 615, CEP: 04015-902 São Paulo/SP, Brasil, Tel: (11) 5574-0399, Fax: (11) 5574-5928 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: novosestudos@cebrap.org.br