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Biotecnologia tanatocrática

CRÍTICA

Biotecnologia tanatocrática

Hermínio Martins

Professor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

A plague upon humanity: the secret genocide of axis japan's germ warfare operation de Daniel Barenblatt. Londres: Souvenir Press, 2004, 260 pp.

Este livro apresenta um estudo lúcido e muito bem fundamentado sobre a guerra biológica praticada pelo Japão entre 1932 e 1945 na Manchúria, na Coréia e na China, mas também, em menor escala, nas áreas fronteiriças com a União Soviética e em vários locais no Pacífico. Curiosamente, a primeira guerra biológica moderna, ou a primeira "planejada cientificamente", como diz o autor, não marcou até hoje a consciência histórica comum, como se poderia esperar. Deveria contudo ter maior relevo na imagem média da modernidade, em razão do seu caráter inédito, da escala da mortandade engendrada (no mínimo 580 mil pessoas morreram nas epidemias antropogênicas na China, além de outras mortes devidas, por exemplo, aos surtos de fome induzidos pelas epidemias) e do indescritível sofrimento infligido às numerosíssimas vítimas das patogenias e dos maus-tratos "experimentais". Note-se que a guerra biológica japonesa foi muitas vezes conjugada com a guerra química, iniciada alguns anos antes, mas essa modalidade de guerra não-convencional tinha um notório precedente europeu em 1916-18 e um paralelo contemporâneo na guerra química conduzida pela Itália fascista na Etiópia nos anos 1930.

O caráter inédito desse grande empreendimento consistiu na aplicação de sofisticadas técnicas laboratoriais das ciências biomédicas, área em que o Japão já estava então no nível dos países ocidentais mais avançados, com descobertas notáveis, como a da etiologia da sífilis e da peste bubônica, e êxitos na preparação de vacinas e tratamentos para um amplo leque de doenças humanas. Essas técnicas foram sistematicamente utilizadas na exterminação seletiva e estratégica do inimigo, além da propagação de epizootias e da contaminação de culturas agrícolas para provocar surtos de fome recorrentes entre as populações civis nas áreas onde o exército japonês tinha um interesse especial, os quais também podiam contribuir para a vulnerabilidade das populações afetadas a epidemias. Ademais, esse empreendimento foi sustentado por um período de tempo jamais superado por qualquer dos outros países que em algum momento da história praticaram guerras químicas ou biológicas.

Já não se tratava da grosseira prática empírica da contaminação de cobertores para infectar indígenas "selvagens" com doenças contra as quais não tinham imunidade a que se dedicaram os colonizadores nas Américas, em especial a do Norte, a partir dos séculos XVI-XVII, promovendo ali, segundo o historiador Alfred Crosby, o "imperialismo biológico" que eliminou grande parte dos concorrentes à ocupação plena dos territórios, sobretudo nos Estados Unidos1 [1 ] Crosby, Alfred W. Ecological imperialism: the biological expansion of Europe, 900-1900. Cambridge: Cambridge University Press, 2004 (edição revisada). . No caso japonês, a cultura de bactérias e vírus cada vez mais letais e a determinação dos melhores vetores animais (as pulgas contaminadas foram muito estimadas) — testadas em cativos civis (os prisioneiros de guerra foram minoria) nos seus laboratórios ou mesmo em campo, pelos destacamentos médicos do Exército, que praticavam vivissecções nos camponeses nas áreas contaminadas — foram realizadas por pesquisadores e professores de faculdades e institutos de medicina e biologia, civis e militares. Milhares de médicos e cientistas nas áreas de microbiologia, hematologia, infectologia, genética etc., técnicos auxiliares e enfermeiros compunham uma espécie de corpo expedicionário tanatocrático que trabalhava intensamente numa dezena de centros nos três países referidos, propagando epidemias e epizootias numa área geográfica de dimensões ainda não ultrapassadas em qualquer episódio de guerra biológica, abrangendo centenas de milhares de quilômetros quadrados. Além disso, esses centros funcionavam como fábricas de morte, mesmo porque nenhum dos milhares de seres humanos usados como cobaias involuntárias saiu vivo desses estabelecimentos secretos de segurança máxima (com a exceção de uma única fuga, em 1932), onde os crematórios funcionavam dia e noite.

As comparações desse empreendimento com os precedentes do imperialismo biológico nas Américas delineado por Crosby parecem-me toscas, pois além da magnitude de seu impacto há um salto qualitativo de primeira ordem. Foi a primeira guerra biotecnológica moderna sustentada, com base em incessante "pesquisa e desenvolvimento" (P&D) de estirpes cada vez mais letais de agentes patogênicos mediante experimentos e vivissecções (predominantemente sem anestesia) em seres humanos vivos, aumentando progressivamente as taxas de mortalidade das doenças epidêmicas propagadas e caracterizando-o como um verdadeiro programa de biocídio e "democídio" (na expressão do cientista político Rudolph Rummel). Seu caráter inaudito se verifica ademais pelo fato de que certamente se desconhecia então qualquer paradigma de sabotagem ou guerra biológica plena acompanhando a guerra convencional.

Programas de guerra biológica (GB) já existiam em vários países, apesar da proibição tanto da guerra biológica como da guerra química na Convenção de Genebra de 1925 (e na II Guerra todos os principais beligerantes iniciaram ou reiniciaram seus respectivos programas, sendo que a União Soviética já estava empenhada na preparação da GB desde 1928, embora em pequena escala), mas durante o período da GB japonesa os únicos episódios correlatos ocorreram na desesperada luta soviética contra os nazistas na Batalha de Stalingrado, em 1942, e posteriormente no Sul da Rússia, mas esses episódios foram restritos, sem prosseguimento sistemático. Além do caso japonês, experimentos sistemáticos em seres humanos indefesos foram realizados principalmente nos campos de extermínio nazistas durante os anos 1942-45 — e também, em escala muito mais reduzida, de poucos milhares de vítimas, em prisioneiros nos Estados Unidos e na União Soviética, e provavelmente noutros países também, sem falar da área cinzenta dos experimentos em humanos na medicina normal (assunto discutido pelo médico Maurice H. Papworth num livro de 19672 [2 ] Papworth, Maurice H. Human guinea pigs — experimentation on man. Londres: Routledge and Kegan Paul, 1967. , e que merecia ser atualizado).

Como foi possível conceber, elaborar e sustentar ininterruptamente por mais de uma década esse programa mantido por um complexo médico-técnico-científico altamente especializado? As condições objetivas, necessárias mas não suficientes, decorreram obviamente da existência de uma biomedicina avançada no país, com numerosos laboratórios de microbiologia e ciências afins, hospitais sofisticados, universidades de primeira categoria que formaram sucessivas gerações de cientistas e uma ampla força de trabalho de profissionais de saúde. Isso num contexto, a partir dos anos 1930, em que as forças nacionalistas, racistas e militaristas do país começaram a ganhar o domínio do Estado contra as correntes liberais, democráticas e socialistas e a impor seu projeto expansionista com meios bélicos avançados, inicialmente sem direção certa (se para a Sibéria ou se para a China, a Ásia Oriental e o Pacífico).

O fato é que nem os políticos belicistas nem os militares comprometidos em maximizar a potência bélica ofensiva do país exigiram, solicitaram ou sequer imaginaram o programa de GB como complemento do seu armamentário. A iniciativa partiu do médico-pesquisador Shiro Ishii, um distinto especialista em hematologia e fundador de um departamento de imunologia. Levou alguns anos a convencer políticos e militares, mas finalmente conseguiu, e a partir de 1932 o programa de GB entrou em pleno funcionamento, como arma barata em termos financeiros (mas mobilizando recursos humanos preciosos) ou pelo menos altamente cost-effective, assistindo o esforço de guerra até a rendição do Japão, treze anos depois. Trata-se de mais um caso em que um importante programa de guerra científica no século XX se deveu essencialmente à iniciativa e à persuasão de cientistas, e não a políticos e militares malévolos e imaginativos, que muitas vezes foram renitentes a usar tais métodos (por inércia, conservadorismo ou falta de preparação científica).

Outros exemplos notáveis de "oferta" científica de novas modalidades de guerra aos políticos e militares podem ser listados brevemente: a iniciativa do químico Franz Haber de convencer o alto comando alemão a introduzir o programa de guerra química, com o lançamento de gases venenosos em grande escala nos campos de batalha; a iniciativa de físicos como Leo Szilard de tentar convencer o presidente Roosevelt da necessidade da construção de armas atômicas pelos Estados Unidos, tendo como intermediário o máximo expoente da comunidade científica, Albert Einstein (os físicos em questão tinham, é verdade, razões fortíssimas, embora estivessem enganados a respeito do programa nuclear para fins bélicos da Alemanha, que nunca esteve próximo do sucesso); a iniciativa de Edward Teller de convencer as autoridades norte-americanas do imperativo da construção da bomba de hidrogênio, contra o consenso dos seus colegas da física atômica e antigos colaboradores no Projeto Manhattan, que nunca lhe perdoaram esse intento; a iniciativa do biólogo molecular Yuri Ovchonnikov, vice-presidente da Academia das Ciências da União Soviética, em persuadir os militares e o próprio Brejnev, secretário geral do Partido Comunista, a implantar um gigantesco programa de P&D para a preparação da guerra biológica. Como esse último exemplo é de longe o menos conhecido dos três, vale a pena acrescentar alguns dados.

A conversão de Brejnev à causa resultou na promulgação de um decreto em 1973 que inaugurou o maior programa de preparação de GB defensiva e ofensiva em toda a história, que esteve em operação até 1991 (sim, até depois da perestroika), tornando a União Soviética uma superpotência nesse domínio. De fato, era um programa intensivo em termos de recursos econômicos, científicos e industriais, com utilização em grande escala da genética molecular, num país onde a genética clássica tinha sido eliminada da pesquisa e do ensino e onde há décadas muitos geneticistas haviam sido liquidados, física ou profissionalmente, por Stálin e Kruschov (mas florescia no Japão, onde esses preconceitos ideológicos específicos não tinham lugar). A nova genética entrou no país de maneira rapidíssima mas secreta, fora das universidades e industrializada para fins militares, mas se alguns resultados das pesquisas realizadas no âmbito do programa fossem publicados à época, teriam colocado o país na primeira linha mundial de pesquisa em áreas como a neurobiologia (quanto à aplicação, possivelmente alguns episódios locais durante a guerra do Afeganistão). O autor a que devo muitas dessas informações, Ken Alibek, um participante de alto nível desse empreendimento por muitos anos, formula as origens do programa de GB na União Soviética de maneira notável do ponto de vista da sociologia da ciência: "[Ovchinnikov] decidiu resolver a crise na biologia russa apelando aos interesses próprios dos chefes da nossa economia militarizada"3 [3 ] Alibek, Ken e Handelman, Stephen. Biohazard. Nova York: Random House, 1999, p. 41. .

Voltando à questão das origens e da efetivação do programa japonês, não há dúvida de que Ishii, um líder carismático e demoníaco, foi decisivo na inauguração do programa por sua infatigável persuasão de políticos e militares. No entanto, é óbvio que por si só ou mesmo com a cooperação de uns poucos colegas não poderia ter dinamizado o vasto programa que concebeu, com a instalação não só de um grande centro, a chamada Unidade 731, mas também de uma dúzia de sucursais (laboratórios-fábricas epidemiológicos) sobretudo na Manchúria e na China, em pleno funcionamento durante treze anos. A consecução do programa não seria possível sem a participação de milhares de médicos e pesquisadores oriundos dos centros de excelência de biomedicina ou das melhores universidades do país. Sem dúvida, uma parte das pesquisas tinha a ver com a prevenção e o tratamento de doenças e epidemias a que as tropas japonesas estariam sujeitas nas circunstâncias da guerra convencional (não se esperava que o inimigo tivesse os meios para desencadear uma contra-ofensiva de bioguerra), tarefas normais da medicina militar em toda parte, e ao que consta produziram-se mesmo dezoito novas vacinas no âmbito do programa.

A intrínseca dualidade funcional de todas as pesquisas biotecnológicas e biomédicas, com proveito tanto para fins preventivos e terapêuticos como para fins mortíferos em massa, sempre aliviou a consciência dos cientistas e médicos que trabalharam em laboratórios inseridos direta ou indiretamente nos esquemas de preparação da GB dos seus países, ou dos seus empregadores, embora as próprias satisfações intrínsecas da pesquisa científica sejam normalmente suficientes. No entanto, o dia-a-dia nesses centros de tanatocracia teria desiludido rapidamente qualquer profissional de saúde quanto aos objetivos principais do trabalho: a preparação de germes, micróbios, vírus e toxinas cada vez mais letais, à luz dos resultados das infecções deliberadas e vivissecções em seres humanos, e a determinação de uma grande variedade de métodos de disseminação dos agentes patológicos, como a invenção de bombas especiais de porcelana para a propagação dos microorganismos em vetores animais, a contaminação de poços de água, rios e reservatórios (os centros eram eufemisticamente chamados de "unidades de purificação de água") e a distribuição gratuita de doces contaminados para crianças, alvo especial da GB ao lado dos idosos, as faixas etárias menos imunes. As doenças epidêmicas bacteriais e virais propagadas a partir dos laboratórios da famigerada Unidade 731 e suas sucursais compreenderam, entre outras, a peste bubônica e a variante da peste pneumônica, o tifo e o paratifo, sífilis, cólera, difteria, febre amarela, meningite bacterial e viral, pneumonia viral, varíola, a doença do hantavírus, do anthrax etc. (a lista completa encontra-se nas páginas 67-68 do livro).

É difícil compreender como uma grande elite biomédica nacional pôde participar por tantos anos nesse empreendimento, convertendo-se, como disse, numa espécie de corpo expedicionário tanatocrático dedicado à prática diária de experimentos e vivissecções sem anestesia em seres humanos vivos, na sua grande maioria civis indefesos (incluindo gestantes e bebês), alegadamente necessários para a "pesquisa e desenvolvimento" de armas biológicas cada vez mais potentes para o seu país em guerra. Ao lado dos médicos nazistas, praticamente no mesmo período (embora estes se empenhassem nos experimentos humanos com maior intensidade no subperíodo de 1943-45, enquanto seus homólogos japoneses os praticaram por treze anos), a elite biomédica japonesa escreveu as páginas mais terríveis de toda a história da profissão médica, da biomedicina laboratorial e dos experimentos com humanos, reduzindo-os sistematicamente a cobaias de laboratório em nome dos interesses da pesquisa científica, em que todas as barreiras morais foram eliminadas.

A descrição dos horrores praticados nos centros japoneses apresentada no livro demonstra que os filmes de terror de Hollywood, as narrativas de sadismo da pulp fiction ou o "Inferno" de Dante ficaram todos aquém da realidade. Aliás, muitas fases do trabalho tanatocrático dos laboratórios foram fotografadas e filmadas para efeitos "científicos" didáticos, de registro histórico e de pedagogia da desumanização. Alguns desses filmes foram vistos no Japão durante a guerra por milhares de pessoas, incluindo algum público universitário, oficiais das Forças Armadas, o Alto Comando e até mesmo o imperador Hirohito e outros membros da família imperial. Em seu esforço para renovar constantemente os quadros do seu corpo expedicionário tanatocrático, o próprio doutor Ishii recorreu à exibição desses filmes a jovens destinados a carreiras científicas e biomédicas, bem como à organização de visitas aos seus centros de GB, para que adquirissem a necessária dessensibilização à morte e apreendessem o sentido da importância militar daquela operação de guerra, também alcunhada "o segredo dos segredos".

Poucos dos médicos criminosos da GB japonesa, verdadeiros torturadores e assassinos em série, foram julgados ou sofreram penas de prisão. Após a rendição do Japão, os participantes do programa selaram um acordo com as autoridades norte-americanas de ocupação mediante o qual receberam completa imunidade de julgamento por crimes de guerra em troca de todo o seu capital de conhecimento epidemiológico de bioguerra, com os dossiês pertinentes (slides de amostras de tecidos humanos, microfotografias, filmes, artigos secretos, arquivos). Esse material foi apropriado secretamente pelos Estados Unidos para o seu arsenal de armas não-convencionais — uma das "transferências de tecnologia" de interesse militar no pós-guerra, dos vencidos para os vencedores. É verdade que os cientistas japoneses procuraram disfarçar, até depois do acordo, as fontes de informação principais — os experimentos com humanos, inclusive prisioneiros de guerra dos Aliados —, mas os cientistas norte-americanos envolvidos nas negociações devem ter percebido que não se tratava de experimentos com macacos (o eufemismo dileto dos participantes da GB japonesa) ou outros animais. Decidiram no entanto fechar os olhos para esses crimes, dado o valor do capital científico que geraram, e ocultaram a verdade do tribunal internacional que julgou os criminosos de guerra japoneses em Tóquio. O próprio Ishii — por qualquer critério razoável autor moral, senão direto, de sérios, múltiplos e persistentes crimes de guerra e contra a humanidade — mereceu apenas uns tempos de prisão domiciliar e morreu pacificamente, em 1959, com sua patente de tenente-general e outras honrarias intactas.

O autor aponta que pelo menos algumas dezenas dos participantes da bioguerra ostentaram carreiras brilhantes no Japão democrático do pós-guerra, tanto nas faculdades de medicina e nos institutos nacionais de saúde como nos negócios: não obstante seus currículos de guerra, alguns deles chegaram se tornar executivos de grandes empresas farmacológicas (da prática da bioguerra à "big pharma", da tanatocracia para a biocracia!). Os únicos participantes responsabilizados criminalmente foram os acadêmicos e estudantes que fizeram experimentos sádicos com oito aviadores norte-americanos capturados quase no fim da guerra e os doze cientistas e médicos detidos pelas tropas soviéticas que invadiram a Manchúria em 1945, que ao contrário da grande maioria de seus colegas não haviam conseguido fugir para o Japão e acabaram sendo julgados em Khabarovsk em 1949. Alguns dos resultados obtidos pelos cruéis experimentos com humanos foram publicados na literatura científica japonesa na época da guerra e posteriormente citados na literatura internacional séria ("peer-reviewed") como fidedignos, supostamente provenientes de experimentos com macacos, sendo que mais recentemente até mesmo estes seriam considerados deontologicamente inaceitáveis e o seu uso escandaloso.

Algumas páginas do livro (227-32) tratam da espinhosa questão da guerra biológica imputada aos Estados Unidos pela União Soviética durante a Guerra da Coréia. Embora o autor deixe a questão em aberto, os métodos supostamente utilizados teriam sido precisamente os da GB japonesa, o que sugere um aproveitamento da sua metodologia. Segundo os arquivos russos, os experimentos químicos e biológicos em seres humanos foram continuados na Coréia do Norte depois de 1945. A prática dos métodos japoneses de disseminação de doenças epidêmicas — previamente revelados no tribunal militar de Khabarovsk, cujas atas foram publicadas em parte — teria permitido ao despotismo de Kim Il Sung demonstrar casos de infecção deliberada de prisioneiros e assim fornecer provas convincentes a alguns observadores científicos internacionais já dispostos a acreditar na culpabilidade dos Estados Unidos (mas é claro que hoje estamos muito mais dispostos a acreditar na culpabilidade do regime despótico da Coréia do Norte, que poderia ter cometido qualquer crime para imputá-lo ao inimigo e ganhar pontos no tribunal da opinião pública mundial).

Numa época em que se proclama incessantemente a obsolescência e até a nocividade do código hipocrático, do princípio da "santidade da vida" (propugnado pelo filósofo australiano Peter Singer e outros da sua escola de pensamento) e de todo o legado humanista, em que as barreiras morais e religiosas à biotecnologia e à engenharia genética desaparecem pouco a pouco, sujeitas a ataques sem fim por muitos bioeticistas e outros possuídos pela intoxicação dos avanços biotecnológicos à l'outrance, parece salutar fazer uma reflexão sobre essas questões à luz da experiência das numerosas vítimas da perversa curiositas da biomedicina, dos experimentos em humanos sem restrições e dos crimes cometidos na bioguerra japonesa, ainda hoje impunes. E não só salutar: trata-se de uma das coisas que minimamente devemos à memória das vítimas de uma elite biomédica que no seu afã de "pesquisa e desenvolvimento" resolveu abandonar o seu juramento, a tradição ética da "medicina experimental" de Claude Bernard (embora esta compreendesse a vivissecção de animais segundo padrões hoje questionáveis) e a simples humanidade, não só em casos isolados, mas intensiva e sistematicamente por mais de uma década (poucos desertaram desse campo de batalha ou se recusaram a participar dele).

De qualquer maneira, o espectro da guerra biológica, com suas armas baratas mas potencialmente eficazes para destruição em massa, está mais vivo e prepotente do que nunca, aliado às ameaças do terrorismo nacional e internacional, exigindo dos Estados Unidos e outros países um permanente estado de emergência. Trata-se de um domínio em que os meios de ataque estão sempre mais avançados do que os meios de defesa biomédicos: nesse campo não existe o equivalente da "Guerra nas Estrelas" de proteção contra armas nucleares (se é que esses meios são mesmo eficazes, o que foi muito contestado por diversos cientistas). Em certo sentido, hoje em dia somos todos chineses, quer dizer, somos potencialmente — e potencialmente somente por enquanto — como os chineses que sofreram a GB japonesa: potenciais objetos de guerras biológicas que podem ultrapassar nossos meios de prevenção e defesa.

  • [1
    ] Crosby, Alfred W.
    Ecological imperialism: the biological expansion of Europe, 900-1900. Cambridge: Cambridge University Press, 2004 (edição revisada).
  • [2
    ] Papworth, Maurice H.
    Human guinea pigs — experimentation on man. Londres: Routledge and Kegan Paul, 1967.
  • [3
    ] Alibek, Ken e Handelman, Stephen.
    Biohazard. Nova York: Random House, 1999, p. 41.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Jun 2006
    • Data do Fascículo
      Mar 2006
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