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Entre mortos e feridos: Novos Estudos e Cebrap de 1987 a 1995

Entre mortos e feridos

Novos Estudos e Cebrap de 1987 a 1995

Rodrigo Naves

Crítico, historiador da arte e professor. É autor de A forma difícil (Ática,1996) e O filantropo (Companhia da Letras,1998)

RESUMO

Neste breve artigo, o crítico de arte Rodrigo Naves rememora o período em que atuou como editor de Novos Estudos. O autor discorre sobre os impasses vividos pelo Cebrap, faz um descrição afetiva dos membros do Conselho Editorial e reflete a respeito das transformações por que passou a revista.

Palavras-chave: Cebrap; revistas acadêmicas; Novos Estudos; ciências humanas

SUMMARY

In this short essay, art critic Rodrigo Naves writes about his experience as the editor of Novos Estudos. The author remembers the dilemmas that Cebrap had to deal with, describes the meetings of the Editorial Board and reflects about the challenges faced by Novos Estudos during late 80’s and early 90’s.

Keywords: Cebrap; academic journals; Novos Estudos; human sciences

À memória de Vilmar Faria

I

Já editei, ou ajudei a editar, muita palavra alheia: suplemento cultural, livros, revistas, verbetes de enciclopédia, textos de amigos, teses universitárias, jornal estudantil, ensaios e mesmo ficção. Todas as vezes porém que procurei refletir sobre essas experiências, o resultado ficou aquém da riqueza e complexidade que elas envolvem — seja por dificuldade pessoal para pensar teoricamente sobre as coisas, seja porque a tarefa de edição, por se ocultar naquilo que ela ajuda a compor, de fato torna a análise difícil. As linhas que seguem devem portanto ser lidas tendo isso em conta. São praticamente memórias do tempo que passei no Cebrap editando Novos Estudos — de 1987 a 1995, oito anos e meio, com a grande ajuda de Otacílio Nunes, Marfísia Lancellotti e Mariza Cabreira — e que teve para minha formação uma importância difícil de avaliar.

II

Em 1987, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento não era mais a instituição que havia sido fundada em junho de 1969 para abrigar intelectuais cassados pela ditadura militar, criando um ambiente em que pudessem continuar a desenvolver seu trabalho e a criar perspectivas críticas para o país. A política já levara importantes quadros da instituição — como um de seus fundadores, o futuro presidente Fernando Henrique Cardoso — e não parecia existir muitos intelectuais à altura daqueles que se viram forçados a deixar a casa: pesquisadores que combinassem sofisticação teórica e engajamento político, formação acadêmica de qualidade e vontade de contribuir para um país mais igualitário. Divergências políticas e teóricas também contribuíram para que alguns antigos membros do Cebrap deixassem a instituição e fundassem outros centros de pesquisa.

O panorama intelectual mudara tanto fora quanto dentro do Brasil e já não era possível conseguir financiamentos suficientes para investigações que não se apoiassem solidamente em pesquisas empíricas metódicas e extensas e em questões específicas de recorte claro. O Cebrap nunca desprezou esse tipo de trabalho e a notável obra de Elza Berquó bastaria para comprová-lo. As novas exigências porém dificultavam a realização de estudos à maneira do "velho" Cebrap, que quase sempre tinham em mira o país e suas possibilidades de transformação.

Esse perfil das agências de fomento à pesquisa conduziu à formação de novos grupos na casa — os economistas do grupo de acompanhamento da conjuntura, os pesquisadores ligados às formas emergentes de produção e de sociabilidade, as investigaçãoes que estudavam aspectos da população negra do país, os bolsistas que tiravam proveito da interdisciplinaridade da instituição enquanto levavam adiante suas teses — e impulsionaram investigações indiscutivelmente relevantes. Mas a dificuldade de reatar com uma visão mais abrangente deixava no ar uma insatisfação clara. Restaria avaliar também o quanto a crescente complexidade nacional contribuiu para acentuar a dificuldade de se obter uma concepção abrangente do Brasil, frustrando a realização de um projeto que, em última análise, vinha das ambições da década de 1960.

Havia ainda, sobretudo a partir dos anos 1990, uma crescente pressão — em geral por parte de fundações internacionais — para que os centros de pesquisa realizassem intervenções práticas em suas áreas de estudo, implicando operações a que o Cebrap não estava acostumado e relutava a aderir. E a normalização da vida universitária, com a redemocratização, passou a exigir de vários pesquisadores da casa uma dedicação que "roubou" parte do tempo que coubera à instituição. Junte-se a todos esses desafios a falta crônica de dinheiro, e podemos ter uma idéia razoavelmente clara das turbulências por que passou o Cebrap nas décadas de 1980 e 1990. Num ambiente democrático e de esquerda isso também significou uma série infindável de reuniões e discussões, de dar inveja a qualquer velho militante comunista.

III

Foi em meio a essa situação de intensos debates sobre a identidade e a vocação do Cebrap que atravessamos uma conjuntura política das mais ricas dos últimos tempos: o final das votações da Constituinte de 1988, a discussão em torno do presidencialismo e do parlamentarismo (ou, até mesmo, sobre a volta da monarquia), as primeiras eleições livres desde o golpe militar de 1964 etc. Todas essas questões geraram grandes debates dentro da instituição, desde as mais formais — realizadas no auditório da casa — àquelas que rolavam soltas nos corredores e no café, sem falar nas freqüentes intervenções públicas de cebrapianos na imprensa e em outros meios de comunicação. Houve estremecimentos de velhas amizades, bate-bocas inflamados e um clima constante de entusiasmo. Parecia que daquela vez as coisas podiam mudar pra valer. De todo modo, sobrevivemos todos, com algumas relações pessoais meio arranhadas, mágoas e uma história rumorosa sob os pés.

Porém uma outra dinâmica aos poucos se sobrepôs a todas as demais, ao menos no Cebrap: a crescente polarização da vida política nacional entre o PT de Lula e o PSDB de Mário Covas e Fernando Henrique Cardoso. O Cebrap tinha sido fundado por pesquisadores que também estavam na origem daqueles que se tornaram os dois mais importantes partidos nacionais e, até pela proximidade pessoal, essa divisão política rachou a casa de alto a baixo — não necessariamente no meio, pois o lado petista sempre foi mais numeroso. Uma coisa é se entregar ao debate político com adversários distantes, com quem só cruzamos nas páginas de um jornal e em quem só pensamos como entidade abstrata a encarnar posições teóricas contrárias, que cumpre enfraquecer com argumentos, torneios verbais ou mordacidades. Outra coisa é topar com o alvo de artigos inflamados no corredor do local de trabalho, com os olhos ainda meio inchados pela noite de mau sono.

Num país em que — como comentou certa vez um pesquisador alemão que andou pelo Cebrap — se tem a impressão de que as pessoas estão numa mesa de bar quando discutem política e que discutem ardorosamente política quando se encontram em torno de algumas garrafas de cerveja, a prática de discussão levada a cabo na instituição teria muito a ensinar. De alguma maneira, a inversão apontada acima — um desdobramento da boa e velha informalidade nacional — ganhou entre nós uma versão elevada: por convivermos todos num mesmo ambiente de trabalho, tornaram-se inevitáveis as susceptibilidades pessoais feridas, mas não me lembro, em nenhum momento, de que as divergências tenham conduzido a rompimentos irreversíveis ou, o que seria pior, à conspiração para pôr para fora da instituição os adversários políticos.

IV

Salvo engano, todas as revistas que tiveram alguma relevância na vida cultural e política se apoiaram em grupos mais ou menos informais que davam vida e personalidade às publicações. Do Les Temps Modernes à Civilização Brasileira, todas eram animadas pela associação de pessoas que tinham algo em comum a dizer e fizeram dessa aproximação uma forma de ampliar seus horizontes e de dar maior ressonância a suas opiniões. E a verdade disso pode ser confirmada pelas próprias publicações mencionadas atrás. O Les Temps Modernes continuou a existir depois do afastamento de Sartre, Merleau-Ponty, Michel Leiris, Simone de Beauvoir, entre outros, mas decididamente perdeu muito de sua relevância. E a tentativa mais "profissionalizada" de relançar a Civilização Brasileira já em tempos de abertura democrática não teve a receptividade esperada.

Poucas revistas político-culturais brasileiras chegaram aos 25 anos, se é que houve alguma outra. Sem dúvida, a relativa longevidade de Novos Estudos se deve ao apoio que sempre recebeu do Cebrap (e, em menor escala, de agências como a Finep, o CNPq e a Fapesp). No entanto, o que de fato garantiu e garante o seu interesse e sua pertinência foi esse clima de debate, de engajamento e de respeito democrático que, sumariamente, descrevi atrás.

Novos Estudos sempre foi concebida e pautada por um comitê editorial composto por pesquisadores da casa e intelectuais "de fora" que mantinham relações mais ou menos estreitas com o Cebrap. Mas as discussões nacionais e internacionais que mobilizavam a instituição inevitavelmente invadiam as reuniões do comitê editorial da revista, ganhando então novas vozes, pela participação daqueles que não freqüentavam sistematicamente a casa. Talvez não me equivoque ao afirmar que éramos todos de esquerda. Só que "ser de esquerda" já adquirira uma conotação tão vaga que mal se podia vislumbrar os seus contornos. Seja como for, todos os membros mais ativos do conselho da revista tinham um compromisso forte com mudanças que conduzissem a uma maior igualdade social no Brasil. Ou seja, o esforço comum estava em saber quais análises e práticas se revelariam realmente "de esquerda".

Esse engajamento fez toda a diferença na configuração que Novos Estudos adquiriu nessas 75 edições. Basta folhear os números editados para se convencer da capacidade de seu comitê editorial para detectar quase todas as questões relevantes que se discutiam dentro e fora do país — da economia à literatura. Há altos e baixos, edições melhores e piores, mas dificilmente deixaremos de encontrar vários ensaios de interesse numa edição de Novos Estudos. E estou convencido que foi a heterogeneidade e o espírito democrático — com um horizonte comum — dos intelectuais que compuseram e compõem o comitê editorial de Novos Estudos que permitiu não apenas a riqueza temática da revista como sua sobrevivência editorial.

V

A diferença entre grupo e grupelho talvez resida no fato de que os grupelhos — não necessariamente pequenos agrupamentos — tendem a moldar os fatos de maneira a caber no esquema teórico que os une, em lugar de se abrirem realmente às mudanças históricas, refazendo seus parâmetros à medida que deixam de dar conta da realidade em que pretendem intervir.

O conselho editorial de Novos Estudos — e mesmo o Cebrap — constituía um grupo. E se Giannotti — um intelectual que bate duro mas que também assimila golpes com um fair play admirável — procurava combinar a compreensão de uma lógica prática da ordem capitalista à atenção às mais comezinhas inflexões da conjuntura política e cultural, Chico de Oliveira — talvez mais um capoeirista do que um boxeur —, trilhando um caminho semelhante ao de Giannotti, acrescentava a essa busca um pessimismo realista de quem conhecera de perto as piores oligarquias no Nordeste brasileiro. E nunca vi nenhum dos dois falar pelas costas do outro coisas que não se diziam de frente. Tratava-se talvez de dois "otimismos" diversos. Ambos ansiosos por ver um país melhorado. Só que Chico de Oliveira deixava-se cutucar mais pelos espetos do capital, enquanto Giannotti privilegiava as frestas que a dinâmica econômica deixava entrever.

Giannotti — que foi a pessoa que me convidou a editar Novos Estudos — sempre teve enorme dificuldade com reuniões ou seminários longos, o que nunca ocultou. Por vezes, se desculpava e passava a rodar em torno da mesa em que nos reuníamos. De certa maneira essa impaciência se transpunha para o seu raciocínio, na ânsia de vislumbrar alternativas ao finalismo meio imobilista do velho marxismo. Chico de Oliveira infalivelmente fazia uma sesta após o almoço, deitado no carpete de seu escritório, tendo apenas um travesseirinho de macela a lhe dar conforto. Era de esperar que tivesse mais paciência com o processo histórico.

Luiz Felipe de Alencastro, que entrou no Cebrap na segunda metade da década de 1980, dava a impressão de ter sido formado na instituição, tal a sua afinidade com o projeto do "velho" Cebrap. Na sua boca, o elogio supremo era a expressão "grande brasileiro". Ela podia se aplicar a Joaquim Nabuco ou Celso Furtado, embora pesquisadores da casa também merecessem a honraria. Sua memória privilegiada, de par com uma grande atenção ao presente e uma longa permanência fora do país como exilado, fazia com que seu raciocínio se movesse de Angola a Recife, de Berlim a Argel. E a revista sempre se valeu dessa sua versatilidade. Scholar rigoroso, era ao mesmo tempo um publicista do século xix, a terçar armas na imprensa com uma retórica aprendida nos anos passados na França. Tinha um caderninho em que acumulava expressões amealhadas no longo convívio com manuscritos. E por vezes não se sabia bem se aplicava aqueles termos para tornar mais atraentes seus artigos, ou se certas catilinárias ou análises não passavam de pretexto para pôr em circulação termos por que nutria grande estima.

Roberto Schwarz era um dos "de fora" que mais colaboravam com Novos Estudos. Trazia artigos, sugeria pautas, levantava aspectos da vida nacional que deveriam ser discutidos. Falava pouco e, quando falava, pontuava suas intervenção com silêncios elásticos, sempre acompanhados por um olhar distante que buscava na parede da sala de reuniões uma superfície neutra que ajudasse a diagramar seus raciocínios. À altura do ombro, mantinha os dedos fechados, as pontas encostadas umas nas outras, como que antecipando a convergência de idéias que ainda permaneciam algo distantes na tela branca que mirava. Aos poucos as pausas diminuiam e a proximidade antecipada pelos dedos fechados em cunha se deixava formular. A retórica nunca foi seu forte e cada formulação fazia supor um real esforço de raciocínio. Sempre se preocupou em trazer para a revista questões internacionais que ampliavam o horizonte das discussões nacionais. Sempre disse abertamente o que pensava e também não era de falar por trás. Sabia também bater duro, ouvir argumentos igualmente ásperos e, ao final das reuniões, restituir um clima que praticamente punha entre parênteses as diatribes passadas.

Flávio Pierucci, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Ruth Cardoso e Vilmar Faria — pessoas muito diferentes entre si — se pautavam por uma conduta mais cuidadosa, o que não significava, nem de longe, comodismo ou vacilação. Procuravam priorizar estudos que dessem conta de questões mais específicas e solidamente argumentadas. Com Ruth Cardoso aprendi a grandeza que o menosprezado bom senso pode adquirir: a coragem de dar de ombros para esquemas bem armados e no entanto totalmente alheios à realidade.

Custei a me aproximar de Vilmar Faria, mineiro arisco e muito amoroso. Talvez não tenha conhecido ninguém a quem os problemas nacionais amargurassem tão intimamente. Conhecia como poucos as particularidades sociológicas do país e conseguia aproximar os temas mais díspares — antes de ele revelar sua afinidade, bem entendido: novelas de TV e fecundidade, sofisticações estatísticas e pessoas solitárias. Para quem trazia a amargura na alma surpreende a sua ilimitada generosidade. Vilmar parecia torcer para que sua ajuda fosse solicitada. E então se entregava completamente à empreitada. Foi o que fez quando participou do governo Fernando Henrique Cardoso. Infelizmente não pode nos ajudar mais.1 [1 ] Escusado dizer que esses retratos sentimentais não têm a menor pretensão de explicar as complexas formulações teóricas dos intelectuais esboçados afetivamente.

Ricardo Terra e eu — mais jovens naquele ninho de corações veteranos — tentávamos aparar arestas, encontrar saídas em momentos de impasse, embora meu temperamento pouco sereno muitas vezes tenha dificultado a tarefa, o que jamais ocorria com Ricardo.

V

Nunca foi fácil conquistar para uma publicação como Novos Estudos uma visibilidade muito ampla. O país não criou essa tradição, os suplementos culturais dos jornais diários muitas vezes preencheram essa lacuna com dignidade e a enorme força da indústria cultural num país de pouca tradição letrada dificilmente reverterá essas dificuldades. Camus dizia que nos nossos dias era preciso imaginar Sísifo feliz. Não saberia dizer ao certo se é esse o nosso caso. Poucos de nós porém se sentem a gosto com pedras ao pé da montanha.

Recebido para publicação em 26 de maio de 2006.

  • [1
    ] Escusado dizer que esses retratos sentimentais não têm a menor pretensão de explicar as complexas formulações teóricas dos intelectuais esboçados afetivamente.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Abr 2008
    • Data do Fascículo
      Jul 2006
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