Acessibilidade / Reportar erro

O que é a Multidão? Questões para Michael Hardt e Antonio Negri

Resumos

Multidão, livro mais recente de Michael Hardt e Antonio Negri, é uma tentativa de nomear e compreender as condições que envolvem a dinâmica social do século xxi. Na entrevista a seguir, Hardt e Negri discorrem sobre as possibilidades de constituição da multidão como agente político, discutem os fundamentos do livro e defendem conceitos que consideram determinantes para a compreensão dos novos tempos, tais como biopolítica e biopoder.

multidão; capitalismo; marxismo; biopolítica


Multitude, Michael Hardt and Antonio Negri’s latest book, is an attempt at understanding conditions involving social dynamics in the xxi century. In the interview below, Hardt and Negri consider the constitution of the multitude as a political agent, discuss the structure of their book and support concepts seen as crucial for the comprehension of our time, such as biopolitics and biopower.

multitude; capitalism; marxism; biopolitics


O que é a Multidão?

Questões para Michael Hardt e Antonio Negri

Nicholas BrownI; Imre SzemanII

IProfessor associado de Inglês na Universidade de Illinois, em Chicago, e autor de Utopian Generations: The Political Horizon of 20th Century Literature

IIOcupa a cadeira Senador William McMaster de Estudos Culturais e Globalização na Universidade McMaster, em Ontário, e é autor de Zones of Instability: Literature, Postcolonialism, and the Nation

RESUMO

Multidão, livro mais recente de Michael Hardt e Antonio Negri, é uma tentativa de nomear e compreender as condições que envolvem a dinâmica social do século xxi. Na entrevista a seguir, Hardt e Negri discorrem sobre as possibilidades de constituição da multidão como agente político, discutem os fundamentos do livro e defendem conceitos que consideram determinantes para a compreensão dos novos tempos, tais como biopolítica e biopoder.

Palavra-chave: multidão; capitalismo; marxismo; biopolítica

SUMMARY

Multitude, Michael Hardt and Antonio Negri’s latest book, is an attempt at understanding conditions involving social dynamics in the xxi century. In the interview below, Hardt and Negri consider the constitution of the multitude as a political agent, discuss the structure of their book and support concepts seen as crucial for the comprehension of our time, such as biopolitics and biopower.

Keywords: multitude; capitalism; marxism; biopolitics.

Império, de Michael Hardt e Antonio Negri, um dos mais influentes e controvertidos livros acadêmicos de nosso jovem século, termina com a grande visão utópica da "multidão contra o Império": o poder constituinte das massas desejantes contra a nova forma de soberania global sendo forjada sob nossos próprios olhos. Mas algumas questões ficaram deliberadamente por responder: de que maneira a multidão constituirá a si mesma como sujeito político? "Não temos quaisquer modelos a oferecer para esse acontecimento".1 [1 ] Michael Hardt e Antonio Negri. Empire, Cambridge: Harvard, p. 41. [ Há edição brasileira: Império, Rio de Janeiro,Record,2005,7ed.] Como eles próprios dizem noutra entrevista concedida a nós2 [2 ] “The Global Coliseum: on Empire”, Cultural Studies,16 — 2,março de 2002, 177-192. : "Uma das maiores autocríticas de nosso livro é que o conceito de multidão permaneceu muito indefinido, poético demais. Isso se deve em parte ao nosso foco principal sobre o Império e a dimensão requerida pela análise de sua natureza e suas estruturas. Seja como for, a multidão é o foco de nosso trabalho atual e esperamos ser capazes de desenvolver o conceito mais plenamente no futuro". Seu novo livro, Multidão, assume o desafio de desenvolver o outro lado da "multidão contra o Império", trazendo o conceito de multidão "da poesia da imaginação para a prosa do pensamento"3 [3 ] G.W.F.Hegel. Lectures on Fine Art, vol. 1.Oxford:Clarendon,1975,p.89. .

Assim como Império, Multidão recobre uma enorme extensão – dos conflitos armados dos movimentos contemporâneos de squatter na África do Sul até os Federalist Papers – intercalados com passagens líricas que iluminam o texto principal de maneiras surpreendentes, além de excursos mais longos que enquadram os assuntos teóricos e práticos levantados pelo livro4 [4 ] Michael Hardt e Antonio Negri. Multitude: War and Democracy in the Age of Empire, New York: Penguin, 2004. [ tradução brasileira: Multidão, Rio de Janeiro,Record,2005] . A admirável ambição, presente em Império, para apresentar novas idéias a um público mais amplo, continua e é até mesmo radicalizada em Multidão, que procura teorizar sobre o conceito de multidão – o qual, como muitos conceitos intuitivamente simples, vêm a ser mais complicados do que parecem – através de uma linguagem livre de jargões, mais acessível a um público não-acadêmico. O conceito de multidão tem sido extraordinariamente produtivo para nós, e ainda – nos limites do conceito, por assim dizer – apresenta aspectos obscuros e nos deixa hesitantes em aceitá-lo. Grande parte dessa entrevista impõe, da perspectiva dessas hesitações e incertezas, a pergunta que Multidão procura responder: o que é a multidão?

Nicholas Brown e Imre Szeman – A despeito da opinião que as pessoas em geral tiveram sobre ele, Império teve um impacto enorme em círculos intelectuais mundo afora. Existem pontos específicos que os surpreenderam na recepção do livro – pontos que ajudaram a dar forma a Multidão? Por exemplo, no começo de Multidão vocês dizem explicitamente que o livro não pretende responder à questão "o que fazer?" ou estabelecer um mapa específico para uma determinada forma de mudança política, mas que esse é um livro de filosofia. Também nos parece, ainda que o livro esteja comprometido com a filosofia, que formalmente ele está aberto para um público maior e mais amplo que o de Império – um público não conhecido exatamente por seu interesse em filosofia!

Michael Hardt e Antonio Negri – Talvez filosofia não seja o termo apropriado para esse caso, já que o que escrevemos tem provavelmente pouca relação com a disciplina contemporânea "filosofia". Até o ponto em que estamos fazendo filosofia em Multidão, é certamente filosofia num sentido bastante amplo, ou seja, buscando produzir conceitos adequados para a situação contemporânea e investigar os valores emergentes do nosso mundo. Mas até mesmo quando se propõem valores e alternativas, quando se descobrem novos modos de viver, não se devem esquecer as dimensões materiais da vivência de formas de organização política e social, com todos os seus desejos e sofrimentos. Talvez Multidão insista demais na busca dessas dimensões materiais (que apenas parcialmente encontra). Esse talvez seja um dos aspectos mais positivos do livro (e, ao mesmo tempo, uma de suas limitações), mas é certamente o espírito que o anima. Essa pode ser também a questão sobre o que se pode e deve esperar de um livro político como esse. O que pode fazer um livro político? Ficamos muito satisfeitos com o fato de tanta gente ter reconhecido e explorado as implicações políticas de nosso argumento em Império, mas ficamos também surpreendidos pela freqüência com que as pessoas nos dizem que o livro faz mais, que ele traça o mapa de um caminho político prático ou proporciona um programa político concreto. Seria inútil para nós inventar tais projetos práticos e exigir que eles devessem ser seguidos se o seu potencial ainda não existe na prática coletiva. Falando de uma maneira geral, nosso trabalho, ao invés disso, toma os desejos e práticas políticas atualmente existentes como uma base para formular alternativas potenciais à ordem mundial de hoje. Isso faz parte do que estamos tentando indicar quando enfatizamos (talvez erroneamente) a natureza filosófica de nosso livro.

Permitam-nos perguntar, talvez ingenuamente: por que esse projeto é necessário hoje? No que consiste exatamente esse fato de que a filosofia em sentido amplo – aquilo que Gilles Deleuze e Félix Guattari descreveram como "a arte de dar forma, inventar e fabricar conceitos"5 [5 ] Gilles Deleuze e Félix Guattari. What is Philosophy, tradução de Hugh Tombinson e Graham Burchell,Nova York: Columbia University Press, 1994,p.2. – pode fazer pelas situações políticas descritas por vocês ao longo do livro? Na esteira do 11 de setembro, alguns críticos enfatizaram que devemos fazer uma pausa e produzir uma teoria melhor (ao invés de abandonar a filosofia pela política, supostamente seu contrário); isso parece encontrar um eco em sua insistência em fabricar conceitos adequados para nossa conjuntura histórica antes do lançamento de qualquer programa político concreto. Ao mesmo tempo, lembramos a avaliação crítica de Perry Anderson, em Considerações sobre o marxismo ocidental, sobre a mudança da economia política e da revolução para as questões de método e o pessimismo. Em que medida Multidão é um livro de filosofia que ultrapassa a filosofia como sintoma de estagnação e bloqueio de energias políticas?

Bem, esta é provavelmente a primeira vez que nosso trabalho é associado ao pessimismo! E, de maneira geral, esse tipo de trabalho filosófico não nos parece envolver pessimismo – nem otimismo. Ele certamente implica encarar sem ilusões as formas de poder, exploração e opressão contemporâneas, mas também implica a criação de conceitos que possam considerar o potencial efetivo dos desenvolvimentos e libertações alternativos.

Pode-se entender o que estamos fazendo nesses dois livros como o começo de uma enciclopédia para o século 21. E é claro que não somos os únicos que embarcaram nesse projeto. É sobretudo um amplo esforço coletivo para inventar (e reinventar) conceitos adequados às necessidades do pensamento político contemporâneo. E também, é claro, de desmistificar conceitos que obscurecem a realidade. Tentem pensar numa lista deles: biopolítica e biopoder, o comum, comunicação, comunismo, poder constituinte, democracia, diferença, decisão, dependência e interdependência econômicas, Império, êxodo, amigo/inimigo, governo, hibridez, migração, miscigenação, modernidade/pós-modernidade/"outras" modernidades, representação, revolução, e a lista poderia continuar... Talvez quando considerado assim, nosso trabalho realmente pertença à tradição filosófica do Iluminismo, à espera de um movimento real que poderia se ligar a esse trabalho filosófico, à espera de uma nova prática que se casaria com esse novo léxico.

Mas isso não é tudo e nos devolve à avaliação de Perry Anderson citada por vocês. Certamente não pensamos que hoje deve haver um afastamento da prática em direção à teoria ou da economia política e da revolução em direção a questões de método. A investigação deve avançar em ambos os campos, simultaneamente. E seria um erro assumir nesse caminho uma divisória entre teoria e prática. Os movimentos sociais de hoje – contra a guerra, sobre as condições de trabalho, imigração, o desenvolvimento, desigualdades de gênero e como muitos outros assuntos – não estão simplesmente dedicados à prática. Há um nível elevado de teorizações que se dão no dia-a-dia nos movimentos, e freqüentemente trabalhando com conceitos iguais ou comparáveis aos que estamos explorando.

Assim, finalmente, para voltar à sua questão inicial: esse tipo de filosofia é necessário hoje porque precisamos de um novo vocabulário e de enquadramentos conceituais novos para entender o mundo contemporâneo e as possibilidades que ele nos proporciona. E parece-nos que esse tipo de engajamento filosófico ou de renovação conceitual está em curso muito mais abrangentemente do que se pode imaginar.

Vocês afirmam explicitamente que a tarefa primordial de Multidão é reconceitualizar o conceito de democracia, e um dos aspectos mais poderosos de seu trabalho é a preeminência dada à possibilidade de democracia numa escala global. Vocês compreeendem a questão da democracia à luz das limitações profundas que se impuseram ao conceito desde sua formulação contemporânea nos finais do século xviii (quando as possibilidades presentes na polis grega foram redimensionadas para a escala do Estado-nação), mas também referindo-se ao que vocês vêem como a abertura potencial hoje disponível para a atualização da "democracia real do governo de todos para todos, baseado em relações de igualdade e liberdade" (p.67).

Há particularmente dois limites conceituais e materiais que precisam ser ultrapassados antes que o governo de todos para todos possa vir a existir: primeiro, a associação de democracia com representação, que tem sido fundamental tanto para as várias formas de republicanismo como também para as de socialismo; segundo, o conceito de soberania, que restringe o processo de decisão a uma unidade (de qualquer modo constituída) ao invés de a uma pluralidade da multidão. Vocês podem falar sobre cada um desses limites e sobre a possibilidade de democracia que existe no outro lado de cada um deles?

Vocês estão certos ao dizer que representação e soberania constituem os dois obstáculos centrais ou pontos de conflito para qualquer inovação teórica ou experimentação prática preocupada com a renovação da democracia. No caso da soberania, a tarefa é relativamente clara: destruir de uma vez por todas o elemento transcendente (ou, pior, o elemento místico) no qual se apóiam a idéia da política em todas as suas formas e a idéia de governo em sua articulação com o domínio do capitalismo tardio. Já o conceito de representação coloca-nos um desafio mais complexo. Certamente as formas operacionais predominantes de representação hoje em dia, especialmente os arranjos eleitorais correntes, são extremamente limitadas. Mas isso não deve nos levar a buscar a abolição imediata de todas as formas de representação – ou até, em termos práticos, exigir que os esquemas representativos existentes estejam inteiramente de acordo com suas promessas. Somente poderíamos caminhar para além da representação, se isso for um projeto factível, ao fazer pressão nas formas existentes e experimentando novas formas de representação.

A relação com a história, sob esse ponto de vista, é dupla. Há caminhos nos quais os desafios e possibilidades de nossa era são novos, mas temos muito a ganhar ao reconhecer certas continuidades com o passado. Por exemplo, não se apressem em colocar o republicanismo como um todo no campo da soberania e da representação. Thomas Jefferson, no final de sua vida, após seu mandato presidencial, tentou esclarecer como o termo "republicanismo" deveria ser utilizado. Nos primeiros tempos dos Estados Unidos, existiam muitos e vagos usos do conceito: "consideramos que tudo o que não seja monarquia é republicano".6 [6 ] Thomas Jefferson. Writings,Nova York:Library of America,1984,p.1.396. Agora, eis uma tentativa de Jefferson de definir com mais precisão. "Se eu atribuísse a esse termo uma idéia precisa e definitiva, diria pura e simplesmente que ele significa um governo dos próprios cidadãos, em massa, agindo direta e pessoalmente, de acordo com regras estabelecidas pela maioria; e que qualquer outro governo é mais ou menos republicano na proporção em que possui em sua composição mais ou menos desse ingrediente de ação direta dos cidadãos" (p. 1392). Jefferson tentava se opôr às distantes e controladas formas de representação previstas pela Constituição e pelos Federalistas com algum tipo de ação e participação diretas dos cidadãos. Com isso não queremos dizer que podemos encontrar as respostas no passado, mas reconhecer que nossa continuidade em relação a determinadas tradições pode ajudar a encontrar o caminho correto.

As respostas efetivas, é claro, somente virão com a prática. A crise generalizada da representação coloca no centro da agenda política a necessidade de experimentar novas formas de representação e formas não-representativas de organização democrática. Um dos aspectos da nossa tarefa teórica é acompanhar essas experimentações à medida que surgem.

Em Império, a potência responsável por essas experimentações, teorizada como "a multidão contra o Império", ficou, como vocês mesmos reconhecem, ainda muito vaga conceitualmente. Para nós, o conceito de multidão é ao mesmo tempo o grande atrativo de Império e também seu maior problema. Por isso encaramos Multidão com tanta expectativa. Nas primeiras páginas do prefácio, vocês colocam em primeiro plano o que consideramos a principal contradição do conceito de multidão. De um lado, podemos notar o "projeto da multidão", a construção de uma vida em comum, numa democracia global. Por outro lado, "a multidão não pode jamais ser reduzida a uma unidade". Mas acontece que um projeto é necessariamente tal unidade! Como resolver essa contradição? Podemos pensar em várias soluções insatisfatórias, desde a idéia segundo a qual o desejo progressivo da multidão é uma média estatística de todos os desejos contraditórios entre si, até o simples postulado a priori de uma vontade universal em direção à democracia. Já outra solução parece mais defensável conceitualmente: a unidade de um projeto deve ser, por assim dizer, "imposta a partir de dentro" da própria multidão. Mas quem a imporá, a não ser uma vanguarda de intelectuais e ativistas? Contudo, o vanguardismo político é tido por vocês como um elemento conservador especialmente nocivo e anacrônico.

O assunto é uma versão da velha questão da "unidade entre teoria e prática", que perdeu muito do seu significado. Mas o problema que subsiste é real. Estamos pensando especificamente num ensaio de Lukács, pouco lido hoje em dia, que tem o proibitivo e enferrujado título "Para uma metodologia do problema da organização". Ele argumenta que tal projeto social – digamos, a democracia global – é abstrato a ponto de não significar nada, a menos que seja mediado por uma organização social. "Aspire à paz mundial", como uma frase de pára-choque de caminhão, literalmente não quer dizer nada, mas todos podemos concordar em "paz", aqui, precisamente porque não sabemos o que ela significa. Qualquer mobilização social efetiva que tiver a paz mundial como alvo ao mesmo tempo concretizará a "paz" e irá de encontro a todo tipo de oposição."Democracia" é outra dessas abstrações, e começamos realmente a desistir da idéia de que a democracia como projeto político pode ser salva na sua concretização atual, nos vários métodos coercitivos e sedutores pelos quais as políticas de privatização e do laissez-faire estão estabelecidos pelo mundo.

Por outro lado, um aspecto atraente de Multidão é a concepção de democracia solidamente ancorada na insistência de uma expansão do que é comum a todos. Tal como a entendemos, a multidão exerce a função de organização social mediadora entre aquele conceito ainda por demais abstrato (democracia global) e a prática política. O modo de organização endógeno da multidão é a rede distribuída: se não estivermos simplificando demais, o modelo é mais ou menos o de alianças espontâneas e temporárias coordenando agendas diferentes, sem um comando central. Hoje, certamente, esse modo de organização é efetivo, ao menos quando se trata de mobilizar demonstrações de massa contra os abusos da ordem contemporânea. Mas o modo de organização que caracteriza "a multidão contra" seria adequado à construção de um projeto político positivo, "a multidão a favor de"? Porque é possível identificar atores globais a favor de, digamos, encorajar o estripação do sindicalismo e ao mesmo tempo a exploração impensada dos recursos naturais no Terceiro Mundo, grupos como, por exemplo, o FMI. Organizações de direitos indígenas, centrais sindicais e desenvolvimentistas podem juntos se organizar para protestar contra o FMI. Mas isso não significa que seus interesses sejam semelhantes, que possam sobreviver a uma série de concessões táticas, ou que poderiam estar de acordo quanto a um programa político concreto e positivo em direção à democracia global.

Deixem-nos elaborar a questão da unidade de modo diferente. Um aspecto da reinvenção atual da democracia é a necessidade de destruir a separação entre a sociedade civil e o Estado ou, para dizê-lo em termos diferentes, a separação entre o social e o político. Esse é um projeto de longo prazo da tradição marxista, freqüentemente expresso na própria obra de Marx. Hoje, contudo, parece finalmente existir as condições para destruir essa separação. As condições estão dadas pela própria natureza da crise contemporânea. De fato, a passagem à pós-modernidade política e o reconhecimento prático do biopoder e da biopolítica têm um papel-chave para ir além da separação burguesa entre social e político. Por um lado, o capital contemporâneo precisa seguir esse processo porque, na sua forma de biopoder, precisa explorar o social diretamente através do poder político. Por outro, o processo de formação da multidão está profundamente envolvido com a destruição dessa separação. Mas esse estreitamento pode acontecer de várias maneiras e isso não resulta necessariamente numa unidade. Na verdade, para a multidão não é essencial que isso resulte numa unidade.

A multidão está engajada na produção de diferenças, invenções e modos de vida. Deve, assim, ocasionar uma explosão de singularidades. Essas singularidades são conectadas e coordenadas de acordo com um processo constitutivo sempre reiterado e aberto. Seria um contra-senso exigir que a multidão se torne a "sociedade civil". Mas seria igualmente ridículo exigir que forme um partido ou qualquer estrutura fixa de organização. A multidão é a forma ininterrupta de relação aberta que as singularidades põem em movimento.

Será que esse projeto é de fato uma enorme abstração? Não parece que seja, ao menos até o ponto em que um esquema imaginário racional não é abstrato quando responde à crise do sistema de autoridade vigente. O desejo vai naturalmente aonde está o perigo; a imaginação vai naturalmente ao âmago da crise. A imaginação da multidão predispõe as subjetividades para uma ação comum diante da crise.

Mas o comum não é unidade, nem quando envolve resistência contra o inimigo, nem quando implica a construção coletiva de terreno para a existência da polis – em resumo, nem quando é "multidão contra", nem quando é "multidão a favor". "Multidão contra" significa resistência a forças que não desejam o comum, que o bloqueiam e o dissolvem, que o separam e se reapropriam dele privadamente. "Multidão a favor", pelo contrário, significa afirmação do comum em sua diversidade e em cada uma de suas expressões criativas. Se chamarmos isso de unidade, teremos de fazê-lo como unidade paradoxal, composta unicamente por diferenças. Mas essa formulação tende a reduzir e negar diferenças. Eis porque preferimos conceitos como multiplicidade e singularidade.

O que vocês dizem sobre a unidade imposta a partir de dentro da multidão aproxima-se do que diríamos, mas continuamos convencidos de que unidade é um conceito errado. Quem já viveu experiências de luta política e períodos de êxodo sabe que as articulações entre o "contra" e o "a favor", constitutiva e ontologicamente reais e positivas, são criadas de dentro do próprio movimento. Até mesmo a vanguarda leninista (ou a imaginada por Lukács) não vem de fora, mas sobretudo de dentro do próprio movimento.

Por que unidade? Vocês parecem pensar que o único caminho para as forças de resistência desafiarem os poderes dominantes é se unir, mesmo que essa unificação contrarie nossos desejos de democracia, liberdade e singularidade. É uma concessão, vocês parecem dizer, que lamentavelmente devemos aceitar em face das duras realidades do poder. Não estamos convencidos disso. De fato, mesmo que se aceite por um momento pensar apenas em termos de efetividade e suspender todos os desejos políticos, não acreditamos que a unidade seja a chave. Pensemos apenas em termos das atuais lutas políticas concretas de resistência. Seriam realmente mais efetivas se estivessem unificadas? O poder de algumas delas não está diretamente ligado à diversidade interna e suas expressões de liberdade? Pelo conteúdo, aquilo que o conceito de multidão indica (e vemos isso emergir em movimentos por toda a parte) é uma organização social definida pela capacidade de agir em conjunto sem qualquer unificação.

Que papel o isomorfismo – entre, digamos, essa capacidade da multidão de agir em conjunto sem unificação e a "constituição mista" do próprio Império – desempenha em Multidão? Estamos pensando, novamente, na figura da rede, que é simultaneamente uma descrição da forma material assumida pelo poder global contemporâneo, a forma necessária de insurgências contra esse poder e também modelo de uma vida comum formada entre singularidades. Outro isomorfismo pode ser visto no próprio conceito de multidão, que encontra paralelo no "enorme poder de abstração" do mundo das finanças, embora vocês acrescentem igualmente que a expressão da riqueza social "é distorcida pela propriedade privada e pelo controle nas mãos de poucos". Como devemos relacionar esses isomorfismos à compreensão das condições históricas da possibilidade de expressão do potencial democrático desde sempre presentes na multidão? E como relacioná-los ao enquadramento da estratégia política contemporânea, às ações que pretendem tornar efetivo o potencial latente da multidão?

Vocês estão certos em enfatizar os isomorfismos presentes em nosso livro. Poderia ser útil pensá-los, em primeiro lugar, em relação aos isomorfismos da obra de Foucault, especialmente na fase da "arqueologia". Segundo ele, o isomorfismo ajuda a reconhecer a coerência e a consistência nos diferentes setores de uma época específica ou de uma dada formação social. As rupturas entre os períodos são mais claramente marcadas pela troca por uma nova figura isomórfica. Entretanto, em Foucault, o que essa análise não ilumina são as diferenças entre estratégias de poder e as de resistência. Em outras palavras, olhando estritamente para essas relações isomórficas, poder e resistência têm a mesma forma e podem aparecer indistintamente. E isso também é verdade em relação a nosso trabalho, como vocês já apontaram. Contudo, toda essa análise dos isomorfismos é limitada a uma perspectiva descritiva. Isomorfismos são procedimentos descritivos no sentido de que guardam relação com uma determinada "forma de exposição". Esse panorama muda completamente quando trocamos o ponto de vista descritivo pelo ontológico. Do ponto de vista ontológico, cada um desses procedimentos descritivos é dirigido por um motor fundamental, que poderíamos chamar, dependendo do caso, tanto o motor do trabalho vivo quanto o da "marcha da liberdade". Quando adotamos o ponto de vista da dinâmica do trabalho vivo, podemos ver como a rede de lutas precede as formas da norma capitalista, das transformações tecnológicas às mudanças na jornada de trabalho e até mesmo às formas do mundo das finanças – em outras palavras, por toda a parte em que estão constituídas as formas coletivas da gestão do capital. A construção de um horizonte democrático da multidão exige a quebra da solidez e da reiterada afirmação ou reconstrução do modelo abstrato e geral da rede produtiva e financeira do capital. Essa é, em primeiro lugar, uma ruptura ontológica, uma espécie de vôo, um movimento além, um êxodo, ou realmente uma decisão que marca a irreparabilidade do ponto de vista do capital. Isso não significa que as instituições capitalistas não podem ou não devem ser usadas para fins revolucionários. É sobretudo uma questão de encontrar na rede os pontos de intervenção privilegiados e, por conseguinte, de ruptura. Quando a multidão consegue agir em relação a esses pontos, não apenas propõe um tipo de isomorfismo invertido (na linha da dialética negativa), mas sobretudo exerce a força da produção imaterial, cognitiva e afetiva, de acordo com o desígnio requerido pela construção do comum, que está implícito nessa produção.

Falando então da dialética: o que há de errado com ela? Fizemos essa questão antes a vocês de diferentes formas. Para nós, muitos dos seus mais profundos insights são profundamente dialéticos – até mesmo no sentido clássico – e no entanto a dialética é tratada como um anátema, tanto em Multidão quanto em Império. É claro que há muita coisa em Hegel que precisa ser descartada, como acontece com qualquer filósofo que continue vital. Não se engole integralmente até mesmo Espinosa. E como em outros filósofos, há apropriações vulgares embaraçosas, até mesmo algumas historicamente poderosas, que precisam ser desacreditadas. Mas como vocês bem sabem, hoje existe um repensar importante de Hegel que considera muitos dos estereótipos hegelianos – teleológico, eurocêntrico, panlogicista..., os suspeitos de sempre – simplesmente irrelevantes em relação ao que há de mais importante em Hegel. A certa altura, vocês apontam para o debate entre Butler, Laclau e Zizek como uma evidência de que mesmo argumentos em torno da dialética são inúteis e chatos. Mas Zizek – sejam quais forem os méritos da sua tentativa recente de revelar um Deleuze completamente hegeliano – venceu sem grande esforço esse debate!

Não discordamos de que Zizek venceu a troca de idéias, como vocês dizem, mas isso não torna esses argumentos sobre a dialética mais úteis ou interessantes para nós próprios. Vale a pena repetir que se por dialética vocês entendem simplesmente enfatizar a trama das relações da realidade material (à la Bertell Ollman), então não temos argumentos contrários. Mas se vocês, ao invés disso, entendem por dialética um movimento teleológico capaz apenas de reconhecer diferenças como contradições e, a partir daí, recuperar toda diferença numa unidade final – e é assim que entendemos Hegel – então temos realmente um problema. O que está em evidência no contexto de nossa conversa é o conceito da multiplicidade em si, o qual achamos que é recusado pela dialética hegeliana.

Vocês estão certos, contudo, de que é possível flexibilizar nossa compreensão dessas figuras históricas. Podemos ser rígidos em nossa oposição à teleologia, ao eurocentrismo e a outros aspectos apontados por vocês, e ao mesmo tempo abertos a novas interpretações de Hegel (de qualquer modo, a tentativa de Zizek talvez não fosse descobrir um Deleuze hegeliano, mas sobretudo trazer à luz aspectos deleuzianos de Hegel, o que poderia, é claro, nos tornar mais simpáticos à empreitada).

Como sugere a dicotomia de vocês, há um interessante terreno comum aqui. Mas, por enquanto, gostaríamos de sugerir uma versão hegeliana de uma passagem que consideramos central em seu trabalho: o momento em que a multidão "surge como sujeito e declara que ‘um outro mundo é possível’". Não estariam vocês propondo a transição explosiva de uma "multidão em si" para uma "multidão para si"? A dificuldade apresentada por vocês é como tal transição é possível sem a unidade imposta por uma regra soberana ou algo parecido (digamos, disciplina partidária). A analogia que vocês fazem com a neurociência é poderosa. O cérebro não tem um comando central; ele "decide" sem que seja uma unidade real. O que parece e é sentido em nosso dia-a dia como uma decisão subjetiva é na verdade o resultado de inúmeros processos paralelos sem qualquer centro determinado. A consciência é, na frase memorável de Tor Norretranders, não mais que uma "ilusão do usuário", uma heurística conveniente.7 [7 ] Tor Norretranders. The User Illusion: Cutting Consciousness Down to Size,Nova York: Viking,1998. Isso tudo parece razoável e até mesmo óbvio, mas falta levar em consideração a "realidade da aparência". Sim, a consciência pode ser somente aparência, mera ilusão de um comando central, mas o que não se perguntou foi exatamente o que acontece se a ilusão for eliminada. Parece que a ilusão é em si mesma uma parte vital – e, desse modo, real – do funcionamento real dos processos que ela mascara.

Podemos então devolver a analogia ao terreno da subjetividade política? A ilusão de unidade transcendental é essencial para o funcionamento de multiplicidade imanente real? É possível que a estrutura da soberania (ou algo parecido) seja de fato necessária à construção de um sujeito político, uma ficção que seja todavia essencial à operação de fato do poder constituinte?

A questão é muito sutil e propõe um compromisso interessante entre reconhecimento teórico (da multiplicidade) e necessidade política (de unidade). Apesar disso, não estamos convencidos da necessidade de um sujeito político unitário. Talvez o advento do "para si" da multidão seja apenas a explosão definitiva da unidade ontológica que todos os conceitos do político – conceitos de autoridade, soberania e de sujeito – tentavam expressar.

Parece-nos, hoje, que importa menos procurar o tipo de garantia fornecida pela unidade, e até mesmo pela aparência dela, do que enfatizar os riscos, as incertezas e as possibilidades da atual situação. Nesse período de transição, equilibrados como estamos no limite mais distante da modernidade, poderíamos pensar novamente nos tipos de criatividade que caracterizaram em seu nascimento o humanismo florentino. No início, o ser estava dado (num sentido neoplatônico) entre o nada e o desejo, e ele emerge na descoberta do novo. É um caminho difícil por uma floresta escura, não uma rodovia bem iluminada. Mais uma vez os conceitos foucaultianos parecem adequados: genealogia e dispositif, episteme e produção de si são ferramentas de trabalho nesse contexto de incertezas. E o que nos orienta através de tudo isso, parece-nos, é o desejo.

Existem dois conceitos reciprocamente ligados, apresentados de início em Império, que desempenham papel importante na discussão da guerra e da democracia em Multidão: biopolítica e trabalho imaterial. Vocês argumentam convincentemente que o trabalho imaterial e afetivo se tornou hegemônico – não porque muitas pessoas são pagas para produzir afetos mas porque, como o trabalho fabril antes dele (que nunca eclipsou o trabalho agrícola em termos numéricos), impôs uma tendência sobre todas as outras formas de trabalho. Essa tendência exige delas que "se informatizem, tornem-se inteligentes, tornem-se comunicativas, tornem-se afetivas". Como o termo "imaterial" pode dar a entender que o trabalho perdeu suas características materiais, vocês propõem essa nova tendência como "trabalho biopolítico... trabalho que cria não apenas bens materiais mas também relacionamentos e ultimamente até a própria vida social". Não poderíamos descrever toda forma de trabalho como igualmente produtora de relacionamentos e da vida social? Seria equivocado ver o trabalho – todas as formas de trabalho – como necessariamente afetivo, até um grau que não pode ser ignorado e que torna difícil estabelecer tais distinções? A biopolítica refere-se em parte à perda de foco das distinções tradicionais entre o econômico, o político, o cultural e o social. Mas será que essas distinções não eram apenas conceituais e que, na prática, esses campos sempre estiveram indistintos?

Sim, o trabalho sempre produziu bens imateriais. Em Petrônio, pode-se ler como os escravos produziram bens afetivos. E os escribas medievais cristãos e islâmicos eram tão alienados no trabalho de copiar quanto os trabalhadores da informação e do computador. Mesmo as massas de trabalhadores das indústrias do aço e automobilística, que apoiaram a organização coordenada do trabalho industrial, criaram comunidades tanto no processo produtivo quanto nas greves: afetos e inteligência produtiva caminharam juntos com a faina diária do processo produtivo. Entretanto, o que é diferente hoje, na era da produção biopolítica, é que a invenção intelectual e/ou afetiva se tornou a fonte principal de valor e riqueza na sociedade. Ou seja, algo que sempre existiu, assumiu hoje posição dominante.

O interessante é que tanto vocês quanto nós estamos inclinados a redistribuir os papéis históricos a partir de nosso atual ponto de vista – algo parecido ao que Marx disse na introdução aos Grundrisse: a anatomia do homem tem a chave para a anatomia do macaco. Precisamente por causa do domínio da produção imaterial, a tendência hoje é ver isso de modo mais claro. Justamente porque esse trabalho imaterial produz relacionamentos e a vida social de maneira direta, podemos ver, com clareza inédita, que o alvo do capital é realmente a produção de relações sociais. A produção de mercadorias materiais – como geladeiras, carros e soja – são na verdade apenas estágios intermediários no processo produtivo. Os objetos reais são as relações sociais que essas mercadorias materiais criam ou facilitam. Do ponto de vista de uma economia dominada pela produção imaterial, podemos ver isso com nitidez. Olhando retrospectivamente, podemos reorientar nossa história na direção desse reconhecimento.

Em Multidão, é surpreendente a distinção entre sua relação com Marx e sua relação com o marxismo. Sob certos aspectos, seu excurso sobre o método de Marx é uma defesa de seu próprio método contra os marxistas "ortodoxos" – diríamos, aqueles que, contra o espírito das análises do próprio Marx, recusam-se a historicizar Marx. Vocês apontam vários procedimentos análogos entre seu próprio trabalho e o de Marx, cada qual levando-os a conclusões diferentes de uma linha marxiana "ortodoxa", mas não obstante ainda visível, de forma mais ou menos incipiente, nos próprios escritos de Marx.

Um paralelo importante não mencionado por vocês é o da coincidência da forma de trabalho hegemônica com a forma de exploração hegemônica em Marx. Na análise clássica marxista, o proletariado ao mesmo tempo produz a ordem industrial e tem o máximo a ganhar ao ir para além dele. Agora, enquanto o trabalho imaterial se espalha e em algumas circunstâncias é até bem remunerado, vocês argumentam que os pobres – através de migrações, invenção lingüística, modos de sociabilidade, saberes tradicionais, etc. – produzem muito de nossa vida em comum. De fato, "os pobres corporificam a condição ontológica da própria vida produtiva". Como em Marx, a forma hegemônica de exploração e a forma hegemônica de trabalho coincidem. Por que não dar um passo adiante e chamar os pobres de classe revolucionária? Por que não dizer que o problema é a transformação de massas despossuídas, ainda uma classe "em si" – "os sujeitos monetários sem dinheiro" de Robert Kurz, pessoas incluídas no capitalismo mas absolutamente sem capital – em uma classe "para si"? Por que o problema é transformar a multidão num sujeito político ao invés de transformar os pobres ("e seus aliados", como se costumava dizer) num sujeito político?

Em primeiro lugar, os pobres não podem constituir uma classe. A pobreza é um limite-ideal, embora os pobres em si sejam uma realidade material – mesmo quando demandam por esmolas como simples massa numérica, eles participam na dimensão coletiva da atividade humana e seus modos de vida. Os pobres nos ajudam a compreender o poder do que é comum. Um de nossos pontos polêmicos sobre os pobres (e vocês parecem ter aceitado isso) é que não devemos realmente considerar os pobres como excluídos, igualmente porque a atividade dos pobres é socialmente produtiva e porque quando o desejo dos pobres (ou sua indignação ou ódio, como diria Espinosa) se torna concreto, então ele está incluído, constituindo um objeto de desejo coletivo. Mas nada disso faz dos pobres uma classe em separado.

O mais importante, contudo, é que não aceitamos a noção segundo a qual um reconhecimento analítico do domínio de uma forma de trabalho na economia deveria implicar o domínio daquela classe na luta política. Por essa razão, quando dizemos que hoje o trabalho imaterial se tornou dominante sobre outras formas de trabalho, isso não significa para nós que os produtores imateriais devem ter o privilégio de exercer um papel dominante nas lutas políticas. Pensem em todas as tragédias a que essa lógica levou no passado: colocando a prioridade política dos trabalhadores industriais por sobre os camponeses, assalariados homens sobre o trabalho doméstico feminino e assim por diante. Nossas noções dos pobres e do que é comum nos levam a, pelo contrário, uma concepção expansiva e aberta do proletariado.

Gostaríamos de fazer uma pergunta que vocês devem estar cansados de ouvir, mas talvez possamos fazê-la de um modo diferente. Mais uma vez, estamos inteiramente persuadidos por suas conclusões a respeito da constituição mista do Império e a base necessariamente supra-nacional para resistir a ele. Ao mesmo tempo, muitos de nossos colegas do hemisfério sul insistem que o tema principal para a esquerda deve ser a auto-determinação nacional. E eles tocaram no ponto. Em muitos países do terceiro mundo cujas economias são determinadas em grande parte por outras nações, por instituições internacionais, por grandes corporações e pelos mercados financeiros sobre os quais elas têm pouco controle, até mesmo a questão de um programa político progressista moderado torna-se inseparavelmente associada à questão da auto-determinação nacional. Pensem nos despejos vergonhosos dos squatters feitos pelo governo sul-africano em nome do interesse do capital estrangeiro pela garantia dos direitos de propriedade, ou a tentativa de chantagem que os mercados financeiros fizeram ao eleitorado brasileiro. É claro que a questão da auto-determinação é facilmente desviada para objetivos nacionalistas estreitos, e é claro que à soberania global emergente do Império não se pode opor exitosamente uma insistência reacionária na soberania nacional. Ao mesmo tempo, em grande parte do mundo parece que a questão nacional é não só ainda importante mas permanece fundamental. Assim, vocês acham que a resistência ao Império pode ter uma base nacional e outra supra-nacional? Ou essas duas perspectivas são em última instância incompatíveis e antagônicas? A antiga posição é naturalmente a mais atraente, mas existem razões para ser cético em relação a ela.

Essa é uma questão importante e não estamos certos de que possa ser respondida de maneira genérica. Como vocês sugerem, as lutas políticas nacionais e supra-nacionais não se excluem entre si necessariamente. Por exemplo, no excurso sobre a geopolítica, tentamos apontar caminhos pelos quais os esforços internacionais de nações subordinadas podem efetivamente bloquear ou se pôr contra algumas políticas do capitalismo global e suas instituições. Em outras palavras, está claro que um único país, como por exemplo a Argentina, não pode desafiar exitosamente as políticas do fmi ou da omc, mas que junto a uma coalizão de países nos quais se inclui talvez o Brasil, a China, a Índia e a África do Sul, uma operação como essa poderia ser exitosa, pelo menos até certo ponto. O colapso dos encontros de Cancun promovidos pela omc é um desses exemplos. Talvez possamos pensar nisso como uma troca da teoria da dependência (que poderia implicar uma estratégia de auto-determinação nacional) para uma teoria da interdependência, confiando nessa coalizão de poderes nacionais.

É claro que devemos ter em mente que todas essas noções de alianças estratégicas com o que chamamos de aristocracias do Império (incluindo esses governos nacionais subordinados) são apenas provisórias. É importante para a multidão se engajar com elas mas também é importante nunca conceder seu destino a elas.

Em Multidão, vocês novamente empregam inserções em itálico e partes que são descritas como excursos. Em Império, as inserções significam uma homenagem ao uso que Espinosa faz dos escólios na Ética, e são espaços que se abrem para maneiras diferentes de interação com as idéias do livro. As inserções em Multidão têm a mesma função formal? E o que dizer dos três excursos que tratam de questões de método, organização e estratégia?

As inserções em Multidão realmente têm a mesma função, novamente como o escólio para Espinosa, de interromper a discussão e se aproximar do assunto por outra perspectiva. Cada inserção realiza isso de modo diferente. Durante a composição de Multidão, pensamos em criar uma função sistemática para as inserções. Uma de nossas idéias (mas agora mais com Marx em mente do que com Espinosa) era ter algumas inserções que atacariam as "sagradas famílias" – ou seja, preconceitos comuns do pensamento – e outras que apresentariam "Comunas de Paris" – ou seja, momentos históricos de inovações na luta revolucionária. A inserção de Huntington poderia ser um exemplo da primeira e as inserções da Rebelião de Shay, Berlim, Seattle e os White Overalls, exemplos da segunda. Mas nunca conseguimos realizar isso de modo sistemático.

Já os excursos são diferentes. Pensamos neles como suplementos que coordenam e aprofundam a discussão política. Ocorreu-nos também, enquanto escrevíamos, que faria sentido ler simplesmente os três excursos conjuntamente: método, organização e geopolítica. Eles dariam uma visão do projeto político como um todo.

Admiramos o comedimento utilizado por vocês ao trazer o 11 de Setembro e a Guerra em curso no Iraque para a análise dos desafios em face da constituição de uma democracia global. Vocês não se intimidam em falar sobre esses acontecimentos, mas eles não dominam a análise: são parte de uma narrativa maior sobre a biopolítica e o biopoder – certamente parte da história da política contemporânea, mas não o acontecimento único e dominante ou o assunto que deve desempenhar um papel decisivo na estratégia ou na teoria política. Alguns de nossos colegas citaram o 11 de Setembro e a inflexão do poder nacional americano como provas positivas contra a explicação da "constituição mista" da soberania contemporânea pressuposta por Império. Isso nos parece claramente um equívoco – um tipo de tendência a enfatizar excessivamente o presente, que atropela o que é necessariamente uma análise de longo prazo. Ao compor Multidão, quanta atenção foi dedicada ao modo pelo qual vocês incluiriam os problemas levantados pelo 11 de Setembro?

Vocês estão certos quando dizem que tentamos analisar o 11 de Setembro e a Guerra do Iraque não como rupturas de época mas como sintomas terríveis e horrendos de um acontecimento que já ocorreu. Como vocês mesmos dizem, é mais útil enxergá-los no contexto de uma análise histórica mais ampla. Antes mesmo de setembro de 2001 havíamos começado o capítulo da guerra civil global e da questão da violência. Assim, para nós, talvez, tudo isso só reforçou o que já vínhamos pensando.

Gostaríamos de finalizar tal como Multidão: com o amor. O amor já aparece nos interstícios de Império (relacionado, por exemplo, às formas diferentes de amor identificadas por Espinosa), e recentemente o amor militante do apóstolo Paulo se tornou uma pedra de toque de um tipo de versão esquerdista, oficialmente ateísta, do cristianismo. Qual a importância do amor para a política contemporânea – e para a democracia que está para vir?

Essa é uma intuição que ainda não desenvolvemos completamente. Seria possível articular uma série de terrenos que o tema do amor pode abrir no campo da ciência política: amor como livre expressão dos corpos, como inteligência somada ao afeto, como geração contra a corrupção. Mas há um peso cultural que dificulta o desenvolvimento de uma concepção política do amor. Precisamos livrar o conceito dos limites do casal romântico e despojá-lo de sentimentalismo. Precisamos de uma concepção inteiramente materialista do amor, ou de uma concepção verdadeiramente ontológica: o amor como poder da constituição da existência.

Sim, como vocês mesmos sugerem, o Cristianismo (bem como o Judaísmo e provavelmente também as outras religiões) realmente oferece uma concepção política do amor. Pensamos em nossa própria concepção de amor como uma concepção primordialmente espinosana, mas vocês sabem, é claro, o quão profundamente enraizado ele está nas tradições cristãs e judaicas. O amor, para Espinosa, está baseado num reconhecimento duplo: reconhecimento do outro como diferente e reconhecimento de que a relação com esse outro aumenta nosso próprio poder. Assim, para Espinosa, o amor é o aumento de nosso próprio poder acompanhado do reconhecimento de uma causa externa. Notem que isso não é uma noção de amor na qual toda a diferença se perde ao abraçar uma unidade que amarra seus movimentos – uma noção comum para a maior parte dos teólogos cristãos. Não. Esse é um amor baseado na multiplicidade. E isso é exatamente como concebemos a multidão: singularidade somada a cooperação, reconhecimento da diferença e do benefício de uma relação comum. É nesse sentido que dizemos que o projeto da multidão é um projeto do amor.

Recebido para publicação em 7 de junho de 2006.

Tradução do inglês de Milton Ohata

  • [1] Michael Hardt e Antonio Negri. Empire, Cambridge: Harvard, p. 41. [
  • [3] G.W.F.Hegel.Lectures on Fine Art, vol. 1.Oxford:Clarendon,1975,p.89.
  • [4] Michael Hardt e Antonio Negri. Multitude: War and Democracy in the Age of Empire, New York: Penguin, 2004. [
  • [5] Gilles Deleuze e Félix Guattari. What is Philosophy, tradução de Hugh Tombinson e Graham Burchell,Nova York: Columbia University Press, 1994,p.2.
  • [6] Thomas Jefferson.Writings,Nova York:Library of America,1984,p.1.396.
  • [7] Tor Norretranders. The User Illusion: Cutting Consciousness Down to Size,Nova York: Viking,1998.
  • [1
    ] Michael Hardt e Antonio Negri.
    Empire, Cambridge: Harvard, p. 41. [ Há edição brasileira:
    Império, Rio de Janeiro,Record,2005,7ed.]
  • [2
    ] “The Global Coliseum: on
    Empire”, Cultural Studies,16 — 2,março de 2002, 177-192.
  • [3
    ] G.W.F.Hegel.
    Lectures on Fine Art, vol. 1.Oxford:Clarendon,1975,p.89.
  • [4
    ] Michael Hardt e Antonio Negri.
    Multitude: War and Democracy in the Age of Empire, New York: Penguin, 2004. [ tradução brasileira:
    Multidão, Rio de Janeiro,Record,2005]
  • [5
    ] Gilles Deleuze e Félix Guattari.
    What is Philosophy, tradução de Hugh Tombinson e Graham Burchell,Nova York: Columbia University Press, 1994,p.2.
  • [6
    ] Thomas Jefferson.
    Writings,Nova York:Library of America,1984,p.1.396.
  • [7
    ] Tor Norretranders.
    The User Illusion: Cutting Consciousness Down to Size,Nova York: Viking,1998.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Set 2006
    • Data do Fascículo
      Jul 2006

    Histórico

    • Recebido
      07 Jun 2006
    Centro Brasileiro de Análise e Planejamento Rua Morgado de Mateus, 615, CEP: 04015-902 São Paulo/SP, Brasil, Tel: (11) 5574-0399, Fax: (11) 5574-5928 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: novosestudos@cebrap.org.br