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Do sonho ao sonhar

CRÍTICA

Do sonho ao sonhar

Flávio Carvalho Ferraz

Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e livre-docente pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

O sonhar restaurado: formas do sonhar em Bion, Winnicott e Freud, de Tales A. M. Ab'Sáber São Paulo: Ed. 34, 2005

Freud começou a publicar seus trabalhos psicanalíticos alguns anos antes da virada do século XIX para o século XX. Vários escritos datados dos anos 90 do século XIX foram e surgiram de reflexões germinais, e vieram a ser considerados fundamentais para a compreensão de sua obra. No entanto, o marco que se convencionou para datar "oficialmente" o nascimento da psicanálise foi a publicação de "A interpretação dos sonhos", em 1900, tal é a importância fundante que esta obra veio a ter na delimitação daquilo que é o objeto propriamente dito da psicanálise: o inconsciente, para o qual o sonho seria, no dizer de Freud, a "via régia".

Nos primeiros anos da aventura psicanalítica, Freud concedia um lugar proeminente ao chamado "fator econômico" em sua teoria do funcionamento mental: a luta do organismo humano pelo prazer, a fuga do desprazer, os princípios de regulação da homeostase por meio da descarga e as conseqüências da retenção de "quantidades" na determinação da psicopatologia. Pois bem, a interpretação dos sonhos desempenhou o papel fundamental de trazer à luz e já imediatamente consolidar uma outra dimensão da investigação do que é propriamente o objeto da psicanálise: a faculdade humana de simbolização e de produção das formações dela decorrentes, presente tanto no sintoma neurótico quanto nas produções mais sublimes da humanidade.

O próprio modelo da análise decorreu, em grande medida, da análise do sonho, visto que este veio a ser tomado como o paradigma da manifestação do inconsciente e do seu poder expressivo. Entretanto, com o passar dos anos - fato que foi devidamente registrado por diversos autores da psicanálise - a presença do sonho na psicanálise que se desenvolvia pós-Freud foi como que esmaecendo, dando lugar a outros fatores do fazer analítico que, então, foram se tornando proeminentes na prática clínica e na produção teórica psicanalíticas. Nas principais escolas pós-freudianas assistiu-se a uma verdadeira ultrapassagem do sonho por outras prioridades técnicas, tais como a interpretação constante da transferência na tradição kleiniana ou a atenção ao significante no sistema lacaniano. Há até mesmo quem tenha entrevisto aí o fim da era dos sonhos na psicanálise. Seria também o fim da própria capacidade da psicanálise de sonhar?

O livro de Tales Ab'Sáber vem exatamente para nos responder negativamente a esta pergunta. Primeiro, porque é taxativo na sua crença de que o lugar do sonho continua preponderante não só em uma teoria do funcionamento mental, mas também - e isso é tão ou mais importante - na experiência psicanalítica, seja do paciente neurótico, seja do psicótico. Segundo, porque, para dar sustentação a este uso do sonho na experiência analítica, o autor não se limita à brilhante introdução ao mundo dos sonhos proporcionada por Freud, mas recorre ao que de melhor se produziu na psicanálise pós-freudiana na direção da compreensão do simbólico e de seu papel no tratamento psicanalítico. Uma teoria do sonho como formação do inconsciente, a ser interpretada - isto é, decifrada, como meio de acesso ao inconsciente - não basta quando se pretende uma aventura psicanalítica para além dos domínios das neuroses, e isto não estava previsto no sistema teórico-clínico freudiano. Para isso, Ab'Sáber teve que empreender sua viagem teórica em companhia de autores como Wilfred Ruprecht Bion e Donald Woods Winnicott. Mas o que se verifica é que o autor, já totalmente imerso neste campo, efetuou a transposição do domínio do sonho para o domínio do sonhar, o que implica uma ampliação de larga escala no primeiro paradigma psicanalítico da produção onírica. E tal viagem pôde ser empreendida com segurança porque feita em companhia de dois autores que, de modos diversos, puseram em andamento uma teoria mais abrangente tanto do pensar como de sua impossibilidade.

Assim, ao lado de uma apresentação minuciosa das teorias bioniana e winnicottiana, naquilo que elas tocam o sonho e o sonhar, Ab'Sáber apresenta sua própria clínica, corajosa e ousada, em cuja experiência o leitor verá consubstanciada em matéria viva a teoria dos autores que marcaram definitivamente sua identidade psicanalítica. Mas verá também aquilo que de pessoal emergiu daí, dando-nos uma amostra do fazer analítico do autor diante da dura mas poética prática cotidiana com pacientes que seriam, no jargão psicanalítico, considerados "difíceis", e que, nos estreitos critérios de analisabilidade definidos por Freud, "inanalisáveis".

O livro de Ab’Sáber – originalmente escrito como tese de doutorado defendida no Instituto de Psicologia da USP - compõe-se de seis capítulos que são, a rigor, quatro ensaios que podem ser lidos separadamente. O que não significa que a ordem em que se encontram não obedeça a um critério preciso. Em três capítulos encontramos diretamente a experiência do autor como analista. Trata-se de reflexões baseadas em casos clínicos por ele conduzidos. Outros três capítulos apresentam uma leitura particular da presença do sonho em Bion, Winnicott e Freud, respectivamente.

A especificidade do modo de produção de conhecimento em psicanálise, todavia, está definitivamente apresentada logo na introdução do livro, para depois ser reafirmada em toda a trajetória do pensamento que se segue através dos capítulos. Isto porque ali está narrada uma experiência infantil do autor: uma longa noite de angústia, sem conseguir conciliar o sono, depois de assistir na televisão algumas cenas do Frankenstein. A angústia que o impediu de dormir, pelo terror de que aquele monstro viesse de fato pegá-lo, só seria descongelada, na manhã seguinte, por meio do vivo interesse da mãe em saber o que tinha se passado e pela sua fala afetuosa, que permitiu ao filho discriminar entre o pensamento contido no sonhar e a realidade da vida desperta. Tal operação - que, na prática, não passa de um gesto de maternagem cotidiano que sói ocorrer quando as coisas vão bem na relação da mãe com seus filhos pequenos – foi tomada pelo autor como o próprio paradigma do que se dá no trabalho psicanalítico quando não se trata mais de interpretar, à Freud, o sentido inconsciente do sonho, mas de construir a possibilidade do próprio sonhar.

Este modo de conceber o trabalho analítico teve, na história da psicanálise, o mérito de operar uma ampliação deste instrumento rumo aos pacientes que, diferentemente dos psiconeuróticos atendidos por Freud, não puderam ainda constituir o sonhar. E aí entram Bion e Winnicott como os grandes arquitetos destes novos pilares analíticos, pois a psicanálise que eles reinventaram veio para abarcar este domínio da psicopatologia que Freud não teve tempo de explorar, mas que, justiça seja feita, chegou a ser sondado por seus contemporâneos e discípulos Sándor Ferenczi e Karl Abraham.

No primeiro capítulo, "O despertar de Joana", o autor deixa patente a rigorosa exigência que a clínica faz de uma metapsicologia consistente e de uma teoria profunda da gênese e do desenvolvimento do sujeito psíquico. Ele o faz, entretanto, sem marcar princípios técnicos de modo enunciativo: antes, é pela aparente "naturalidade" do seu hábil fazer clínico que tal rigor de articulação vai sendo quase que sub-repticiamente transmitido ao leitor. É assim que o trabalho analítico se reveste de uma concepção da constituição do ego metaforizada como matriz fotográfica: "algo da constituição do nosso ego, ou da natureza de nossas ansiedades e defesas está relacionado e é mantido pela forma da ansiedade e do uso que o outro, com quem mantemos laços libidinais, faz de nós. Assim, haveria em nós algo que é a imagem impressa, mas invertida, da forma psíquica do outro" (p.27). Ora, levando profundamente a sério tal assertiva, a clínica de Ab’Sáber, claramente exemplificada no seu texto, conduz a um trabalho psíquico que também transcenderá os limites estritos do "eu" do sujeito analisado para atingir, com sucesso, os outros significativos que o engendram! Trata-se de uma perspectiva quase surpreendente da potência da análise, que se torna factível apenas sob a condição de que a assertiva metapsicológica se fertilize e, a partir dela, criem-se instrumentos analíticos sutis e, por que não dizer, eficazes. É assim que Joana, a paciente, subjugada psiquicamente por uma relação odiosa com sua mãe, pôde, ao término da análise, reconstituir sua mãe interna (nos moldes do que entende a psicanálise clássica sobre sua função), mas, além disso, descongelar certos afetos na mãe real, promovendo um verdadeiro processo de reconciliação entre ambas. Isto que se descongela na mãe, entretanto, era algo que, até então, não podia ser claramente situada em uma ou em outra delas. Esta forma que se atinge ao termo da análise só se torna possível quando tal noção de intersubjetividade pode ser experimentada na transferência, e o analista aceite e tolere a confusão necessária para dela se sair depois.

No segundo capítulo temos uma longa explanação da obra do inglês Wilfred R. Bion, autor dos mais originais da psicanálise e tributário direto do gênio de Melanie Klein. Trata-se de um comentário detalhado sobre a evolução do pensamento bioniano, mas que retoma o argumento que preside o primeiro capítulo. Não seria o caso de descrever exaustivamente o trajeto feito por Ab’Sáber, mas, de modo sucinto, pode-se ressaltar que o problema da intersubjetivade aqui reaparece em suas dimensões metapsicólogica e clínica. Partindo do pressuposto de que o paciente "sabe" a respeito dos processos mentais que vive, o autor vai insistir na necessidade de que ele "conte sobre este saber a alguém que possa compreendê-lo, e, mais uma vez, o analista é aquele que vai acompanhar o paciente naquilo que ele já sabe, mas só pode saber de fato através de um outro que em algum momento saiba com ele para permitir-lhe que ele se aproprie do que sempre lhe foi próprio" (p.51). Ao leitor que não tenha vivido a experiência de analisar um paciente, particularmente um paciente regredido a um ponto confusional, isto pode até mesmo soar como um jogo de palavras! No entanto, trata-se de uma descrição acurada e sensível daquilo que efetivamente se passa em um processo analítico fértil. E, é bom lembrar, trata-se de algo da mesma natureza daquela maternagem da qual fala o autor, em primeira pessoa, na introdução do livro. No movimento de fusão e separação, "o analista recebe a comunicação do paciente e a devolve como dele, mas que só se tornou própria por ter passado pelo outro, que então se separa" (p.52).

No terceiro capítulo, "Uma janela para o sonho", encontra-se mais um relato clínico, no qual temos o vívido testemunho da mutação psíquica que se pode atingir quando a análise atravessa a profundidade desta confusão intersubjetiva, para desaguar na apropriação, pelo paciente, daquilo que é seu. De certa forma, este relato procura apresentar uma forma clínica àquilo que se viu no capítulo anterior, sobre Bion. Duas coisas cabe ressaltar sobre este ensaio. A primeira é que a morte psíquica a que o paciente ali tratado está sujeito – e, de fato, a experimenta! – introduz uma profunda perturbação contratransferencial. O analista, após experimentar este estado em sua mente e em seu próprio corpo, e tendo a ele sobrevivido, pode dele emergir como "cuidador". É neste momento, então, que o paciente reintregrará aquilo que já era seu. A segunda observação é que a função simbólica somente se reabilitará uma vez realizada esta travessia, sustentada pelo outro e no outro. E, dentro do argumento central do livro, que diz respeito ao sonho, é desta travessia que resultará a capacidade de sonhar, decorrente, contudo, da capacidade de dormir! De modo magistral, o autor nos provoca com a idéia de que o sono psicótico pode não ser um sono íntegro e reparador.

O quarto capítulo é inteiramente dedicado à obra de Winnicott, talvez a maior fonte de inspiração do autor. Tal como no capítulo dedicado a Bion, a obra deste autor, também inglês, é percorrida através de duas vertentes: a freudiana – de quem Winnicott "recebeu a trama simbólica da realidade interna e seus descompassos entre representação e afeto, entre o infantil e o sexualmente adulto" – e a kleiniana, que lhe deu a inspiração sobre "a imensidade de movimentos psíquicos de grande valor que já acontecem entre um bebê e sua mãe" (p.127). Ab’Sáber procura filtrar deste autor, seguindo o interesse geral do trabalho, sua contribuição a uma psicologia do sonhar, demonstrando como esta função não se encontra garantida a priori para o ser humano. Assim, o sonho se inscreve na própria trama constitutiva mais ampla do sujeito como um importante componente. Winnicott chama a atenção para os riscos do sonhar quando tal trama se encontra estruturalmente fragilizada. Neste extenso capítulo, impossível de ser resumido em poucas linhas, a teoria do sonhar encontra, novamente, correspondência no fazer clínico psicanalítico, vista sob um prisma coerente ao que já fora depurado de Bion e das próprias idéias do autor. É assim que, diferentemente daquela postura analítica diante do sonho peculiar aos primeiros tempos da psicanálise, aparece aqui o imperativo de uma expansão teórico-clínica rumo à idéia de que, mais do que operar sobre o sonho, - o que, parece, seria trabalhar sobre a dimensão interpretativa – o analista vem a tornar-se, em sonho, um "objeto subjetivo". Neste caso, ele passa a habitar a própria experiência onírica do paciente, em vez de tomar o sonho como objeto de conhecimento existente para fora da experiência. Trata-se de uma radicalização sobre um determinado ponto de vista, levando-o às últimas conseqüências. Evidentemente, os fundamentos deste modo de encarar o sonho não deixam de ser um eco dos próprios postulados freudianos, nos quais a produção do sonho em análise já seria parte integrante da mesma, num processo imantado pela experiência da transferência.

Vale ressaltar que a forma como o autor encara o texto winnicottiano pressupõe que este se situa dentro da tradição psicanalítica, isto é, constitui um autêntico prosseguimento do mesmo gênero de investigação que ocupava Freud. É importante frisar este aspecto político da compreensão do desenvolvimento do campo conceitual psicanalítico, quando há autores mais preocupados em demonstrar que os aspectos inovadores da psicanálise de Winnicott são suficientes para inscreverem-na fora do paradigma freudiano, ou até em oposição ao mesmo.

A exemplo da articulação entre a teoria de Bion e o caso clínico descrito no terceiro capítulo, mais uma vez temos um ensaio clínico – o quarto capítulo, intitulado "Menina bonita não sonha" – dando uma seqüência lógica ao capítulo precedente, sobre Winnicott. Aqui vemos como o sintoma pode circular entre duas subjetividades que se confundem: a falta de ar sentida pelo bebê em questão era, originalmente, a falta de ar experimentada pela sua mãe na relação com a própria mãe (dela). Ora, a mesma matriz confusional, que interpõe um sintoma somático entre dois seres em profunda ligação, serve para demonstrar a razão pela qual o outro é necessário à constituição do sonhar. E, sob a ótica da clínica, temos que a utilização da contratransferência na análise presta-se exatamente a esta construção, quando, dizendo-o novamente, a totalidade do ser do analista é usada para o abrigo temporário daquilo que pertence ao paciente.

Finalmente, no último capítulo – "Freud e o outro sonho" -, o autor volta ao inventor da psicanálise para falar, de modo às vezes poético, não apenas sobre a teoria freudiana do sonho, mas, agora, da fundação e do desenvolvimento da psicanálise como "o sonho" freudiano. Desta forma, retoma, sem contudo explicitá-lo, o velho axioma freudiano: o sonho é a realização de um desejo! Conclui que cabe a todos os analistas continuarmos sonhando este sonho, o que resulta em não deixar a psicanálise transformar-se em uma ciência estanque. Assim é que um dos pilares do sistema psicanalítico de Winnicott faz eco no comentário sobre a concepção freudiana do sonho: o autor afirma que, em Freud, o sonho era "tributário da sua noção de um objeto originário fixo", isto é, a mãe que está sempre ali, de corpo e alma, para dar de mamar a seu bebê. Já no pensamento winnicottiano, abraçado pelo autor, o bebê se põe a perguntar "que mãe é aquela", ou seja, o papel da maternagem é definitivo para a travessia da situação de turbulência originária rumo ao acesso à realidade compartilhada e, a fortiori, ao sonhar.

"O sonhar restaurado" é um livro que veio para ficar na literatura psicanalítica; ou, como afirma Renato Mezan, no texto da orelha que assina, "virá a se constituir num marco para os estudos psicanalíticos em nosso país". Trata-se de um texto denso, minucioso, que recorre constantemente a numerosos pensadores, registrando e comentando – em longas e abundantes notas de rodapé – as fontes em que se sustentam as idéias do autor. Disso resulta um trabalho excepcionalmente erudito, que serve de inspiração ao analista para sua prática cotidiana, mas que tem o poder de descortinar aos intelectuais de modo geral a beleza e a complexidade da disciplina psicanalítica. Ab’Sáber domina magistralmente a história da psicanálise, e por isso seu texto é pródigo em referências a analistas de todas as épocas. E, como intelectual de horizonte amplo, percorre com desenvoltura autores das ciências humanas em geral e da literatura. Enfim, Tales Ab’ Saber prova, à exaustão, que a boa clínica é aquela que decorre do rigor teórico, e que a teoria consistente é aquela que decorre de uma clínica devotada e ousada.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2006
  • Data do Fascículo
    Jul 2006
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