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Autobiografia e sujeito histórico indígena: considerações preliminares

Resumos

A autobiografia, gênero central na bibliografia escrita por ou sobre indígenas nos Estados Unidos, está ausente na bibliografia equivalente no Brasil. Este trabalho questiona as razões desse contraste, resumindo análises sobre a peculiaridade cultural do gênero autobiográfico - profundamente vinculado à formação do indivíduo ocidental -, sobre sua possível tradução ameríndia e sobre as formas pelas quais o sujeito histórico indígena tem sido construído no Brasil.

autobiografia; etnologia; antropologia; história indígena


Autobiography, widely present in bibliography written by or about the indigenous people in the US, is seldom found in equivalent texts produced in Brazil. This article raises and discusses reasons for this contrast. It brings to light problems involving cultural peculiarities of the autobiographic genre - profoundly connected to the formation of the occidental individual -, the possibilities of its Amerindian translation and the specific aspects by which the historical indigenous subject has been constructed in Brazil.

autobiography; ethnology; anthropology; indigenous people history


Autobiografia e sujeito histórico indígena

Considerações preliminares1 [1 ] Este trabalho se insere nas atividades do projeto "Transformações indígenas: os regimes de subjetivação ameríndios à prova da história" (NuTI-PRONEX), desenvolvido em parceria com o Museu Nacional do Rio de Janeiro e o PPGAS-UFSC.

Oscar Calavia Sáez

Professor doutor do programa de pós-graduação da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do NuTI-PRONEX

RESUMO

A autobiografia, gênero central na bibliografia escrita por ou sobre indígenas nos Estados Unidos, está ausente na bibliografia equivalente no Brasil. Este trabalho questiona as razões desse contraste, resumindo análises sobre a peculiaridade cultural do gênero autobiográfico — profundamente vinculado à formação do indivíduo ocidental —, sobre sua possível tradução ameríndia e sobre as formas pelas quais o sujeito histórico indígena tem sido construído no Brasil.

Palavras-chave: autobiografia; etnologia; antropologia; história indígena.

SUMMARY

Autobiography, widely present in bibliography written by or about the indigenous people in the US, is seldom found in equivalent texts produced in Brazil. This article raises and discusses reasons for this contrast. It brings to light problems involving cultural peculiarities of the autobiographic genre — profoundly connected to the formation of the occidental individual —, the possibilities of its Amerindian translation and the specific aspects by which the historical indigenous subject has been constructed in Brazil.

Keywords: autobiography; ethnology; anthropology; indigenous people history.

Sabemos que a etnologia indígena nos Estados Unidos detém uma certa senioridade sobre a sua equivalente no Brasil. Com vários decênios de antecedência, ela desenvolveu uma ampla estrutura nas universidades e nos museus, e atingiu padrões descritivos que abaixo do Oiapoque não seriam comuns até os anos 1970. A junioridade, certo, tem também suas vantagens, e a nossa etnologia atual apresenta uma vitalidade que hoje seria difícil encontrar mais ao norte. Excetuando essa comparação tão bem inserida no relato Norte-Sul, as referências mútuas — tão pertinentes se atendermos à unidade cultural do continente — são raras. Entre a etnologia norte-americana e a brasileira instala-se uma distância dada pela cronologia e pelas opções teóricas. Dada, também, por uma tendência nem sempre confessada de entender os índios como um assunto interno às nações; ou pelo crédito excessivo dado a rótulos como latino ou anglo-americano. Podemos lamentá-lo: essa comparação seria em muitos sentidos reveladora.

UMA HISTÓRIA AMERICANA

Um deles é o que aqui vamos examinar. A autobiografia indígena — um gênero praticamente inédito no Brasil, como depois veremos —, desempenha um papel importante na história da etnologia e na própria história indígena dos distantes vizinhos do norte. Uma bibliografia crítica datada em 19812 [2 ] David Annotated Brumble. Bibliography of American Indian and Eskimo Autobiographies. Nebraska: University of Nebraska Press, 1981[ STANDARDIZEDENDPARAG] reúne 577 referências. As autobiografias indígenas são um item comum nos catálogos editoriais norte-americanos, e algumas delas (Black Elk speaks é o melhor exemplo) têm sido sucesso de venda e marcado presença em tendências globais como a New Age. Essas autobiografias constituem um conjunto heterogêneo, que vai de relatos de uma ou duas páginas, questionários e cartas, até livros completos. Podem ser histórias de vida projetadas como tais, ou o que os especialistas chamam de autobiografias cumulativas, um apanhado de documentos escritos em primeira pessoa, dos quais o analista pode inferir uma seqüência autobiográfica. A autoria pode se distribuir de modos muito variados entre o protagonista expresso do relato e o seu editor-entrevistador-amanuense. Em termos gerais, e sem que os marcos sugeridos possam ser entendidos como limites, seria fácil sugerir uma periodização dessa literatura.

As autobiografias mais temporãs — escritas já desde a época colonial, mas avolumando-se com a Independência — fazem parte da literatura missionária: são testemunhos de conversão, em que os neófitos se esforçam em demonstrar os frutos da evangelização e da educação cristã, ou da civilização sem mais nem menos.

Mais tarde, e em paralelo à marcha para o Oeste, passam a primeiro plano os relatos co-autorais, redigidos por escritores profissionais, jornalistas ou simpatizantes da causa indígena que exploram a curiosidade pelo exótico ou a simpatia do público urbano por esse mundo em declínio. É o momento em que aparecem clássicos como as memórias de Genónimo, George Bent ou Bear Head.

A primeira metade do século XX é o momento em que a autobiografia indígena é promovida pelos antropólogos, inspirados — embora não exclusivamente — pelas preocupações da escola de Cultura e Personalidade. Os pesquisadores pretendem encontrar nesses depoimentos não só uma fonte conspícua de informações etnológicas, mas sobretudo uma aproximação mais imediata à alma indígena e às relações entre indivíduo e padrão cultural. Entrevistas, histórias de vida ou depoimentos escritos às vezes pelo próprio protagonista, às vezes na sua língua e às vezes mesmo com a ajuda de pictografias ou silabários indígenas, acabam constituindo um excepcional corpus de documentação, que excede em muito o volume do que foi encaminhado aos prelos acadêmicos ou comerciais. Depois de decênios de intensa produção, o interesse pelas autobiografias decai no meio antropológico, devido à saturação do público, à desaparição dos protagonistas que haviam conhecido a vida indígena antes do confinamento em reservas, e também ao crescente ceticismo quanto às virtudes epistemológicas do método.

Mas renasce pouco depois, desta vez já como uma iniciativa indígena, e acaba constituindo talvez o principal gênero da literatura contemporânea escrita por native americans. Enquanto tal reingressa na academia, mas desta vez através dos departamentos de estudos literários, estendendo-se logo a seguir pelos novos departamentos de estudos culturais.

CALVINO E LOYOLA

Como disse antes, o contraste com o caso brasileiro é flagrante: a entrada "autobiografia" simplesmente não aparece nos repertórios bibliográficos da etnologia brasileira3 [3 ] O Handbook of Latin American Studies traz uma única referência: Ritorno alla maloca, autobiografia di un índio Makuxí, de Gabriel Viriato Raposo, editado em 1972, em Turim, pelas Missões da Consolata. . Não se pode descartar que no meio dessa vasta produção possamos encontrar alguma breve narração em primeira pessoa, ou recompilar umas quantas autobiografias cumulativas, mas, ao que parece, nunca um indígena brasileiro decidiu-se ou foi solicitado a relatar sua vida, e não o mito ou a história do seu povo. Mesmo a geração recente de escritores indígenas que vem timidamente ganhando espaço no mundo literário ignora esse gênero — significativamente, mostra-se muito mais disposta a escrever mitos. A meio caminho entre a experiência norte-americana e a brasileira — embora mais próxima desta —, a bibliografia etnológica dos países hispano-americanos apresenta uma lista curta embora significativa de títulos, em sua maior parte co-produzidos por antropólogos norte-americanos. Neste caso, o que torna o contraste mais acentuado é a existência de uma vasta literatura devida a autores indígenas, que floresce no século XVI para definhar depois com o enregelamento do regime espanhol e a decadência das elites indígenas que se processa durante o século XVII. Em geral, autores como Tezozómoc, Alva Ixtlilxóchitl ou o Inca Garcilaso dedicam-se à história de uma dinastia ou de uma pólis indígena, sem que nunca transpareça uma dimensão autobiográfica, mesmo quando o autor se apresenta como personagem relevante da trama ou quando, como no caso de Felipe Huamán Poma, lembra de incluir um auto-retrato entre as numerosas ilustrações de sua obra. Para os fins deste artigo, o contraste entre o caso brasileiro e o hispano-americano é circunstancial e menor: a comparação com o caso norte-americano esclarece algumas constantes que, embora maximizadas na literatura brasileira, podem se aplicar sem muitas restrições a outras situações "latinas". Nas páginas a seguir saltarei sem grandes precauções dos dados peruanos ou guatemaltecos aos brasileiros: as diferenças entre estes, que sem dúvida existem, deveriam ser analisadas num estágio mais avançado da pesquisa.

Não é preciso procurar muito para dar com as razões desse contraste maior entre o Norte e o Sul. A autobiografia, longe de ser um discurso espontâneo de um indivíduo natural, é um gênero caracteristicamente ocidental, com marcos bem conhecidos: as confissões de Santo Agostinho ou Rousseau, as vidas ou diários de Cellini ou Pepys, a ficção pouco fictícia de Proust... Mas o Ocidente não é um só. O individualismo anglo-saxão, com suas raízes calvinistas — especialmente com essa predestinação que só pode se inferir do exame da própria trajetória —, procura no relato autobiográfico uma verdade religiosa ou científica que nunca poderia se dar com a mesma densidade em outro tipo de relato. Essa elaboração do eu é um fator essencial do individualismo constitutivo das sociedades liberais modernas, e muito especialmente da norte-americana, onde o relato autobiográfico dos grandes homens — as memórias de Franklin são um modelo — cumprem um papel insubstituível entre os textos fundadores. De igual modo, as autobiografias indígenas ocupam um papel de exceção para representar os índios: nenhum etnógrafo bate neste sentido a Black Elk ou a Don Talayesva.

Fora do calvinismo, a reflexão autobiográfica ocidental não ocupa o mesmo lugar, mas não está de modo algum ausente. Vejamos o caso católico: o sujeito por excelência da tradição católica é corporativo, o corpo místico da Igreja; seu sacramento supremo recebe o nome de comunhão, e a salvação é uma empresa coletiva. Um outro sacramento, o da confissão — com sua propedêutica, o exercício espiritual inaciano —, fornece um digno equivalente da autoconsciência formadora do indivíduo protestante. Mas essa ocasião de auto-exame é, sintomaticamente, objeto de segredo — donde as eventuais reclamações dos missionários de que os índios teimam em fazer a sua confissão em voz alta. As virtudes devem ser públicas, os pecados devem ser privados; o vício individualiza. Antes de excluir o gênero autobiográfico — ou o individualismo em geral — da tradição ibérica em que o Brasil se insere, é preciso lembrar a importância que na literatura espanhola teve um gênero pseudo-autobiográfico, o da novela picaresca, cujos protagonistas são por definição membros da marginália. É digno de atenção que esse gênero de ficção hiperrealista — que teve um influxo considerável em outras literaturas européias — fosse incorporando outras narrativas às vezes genuinamente autobiográficas, que, mesmo relatando trajetórias honrosas — vidas de soldados, por exemplo —, tendiam fatalmente a ser escritas e lidas segundo as mesmas convenções que as dos patifes. Só essa ficção tingida de reflexão moral atinge um teor autobiográfico que falta em relatos afirmativos de gestas pessoais. O conquistador de México, Hernán Cortés, tinha no final da sua vida, ao que parece, alguns escrúpulos sobre a legitimidade da sua façanha, mas nem tais dúvidas nem quaisquer outras foram escritas pelo conquistador, que no entanto já compusera umas detalhadas "Cartas de Relación." A extensíssima literatura memorial dos conquistadores, monopolizada pela res gestae, nunca tematiza o eu, o que sugere algo mais que a sua ausência: o seu lugar antiestrutural. Um relato como o de Crashing Thunder4 [4 ] Paul Radin. Crashing Thunder. The Autobiography of an American Indian. New York: D. Appleton & Co., 1926[ STANDARDIZEDENDPARAG] , que Brumble compara às confissões de Santo Agostinho, poderia ser também comparado a essa literatura picaresca, em que o protagonista faz inventário dos seus enganos, seus pequenos ou grandes delitos. No contexto anglo-saxão, Crashing Thunder é um signo do surgimento de um eu autêntico entre os índios; no contexto latino poderia ser o do desencantamento de um mundo primitivo. O lugar das autobiografias em um e outro mundo não se diferencia em termos, digamos, cognitivos, senão pelos valores que a elas se associam.

MIMESE OU TRADUÇÃO

Os editores ou amanuenses que solicitam aos índios um relato de sua vida não se limitam a "recolher" autobiografias: antes, convocam os índios a adotar, inventar ou reinventar um gênero inédito para eles, e, o que é mais importante, um eu narrativo que provavelmente não figurava entre as acepções locais do sujeito. Decerto não estamos a descobrir nada a esse respeito. As autobiografias co-elaboradas pelos antropólogos da primeira metade do século XX demonstram uma preocupação crescente primeiro quanto à objetividade do narrado, depois quanto à influência do pesquisador-editor. No primeiro caso, podem se levantar objeções quanto às traições da memória do protagonista, ou à sua vontade de demonstrar mais méritos ou mais conhecimento dos que realmente lhe cabem. Ele pode se permitir descrições ou interpretações demasiado idiosincráticas; e o relato em si — não digamos sua publicação — é um evento político em que o depoente fala ou cala em virtude dos seus interesses e seus receios. Enfim, sobre o narrado pode pairar como uma sombra o desígnio simples e muito freqüente de atender aos desejos do editor, o que dá lugar ao segundo conjunto de objeções.

A opacidade do editor, de início, parecia fácil de exorcizar com bons propósitos de isenção científica; mas a cada novo controle estabelecido ela se revela em níveis cada vez mais profundos. O editor, às vezes na calada do texto, censura ou completa informações dependendo dos seus objetivos, altera a redação para conseguir um texto mais claro ou mais atrativo para os leitores — aplicando-lhe um verniz beletrista ou enfeitando-o com detalhes exóticos —, introduz divisões num relato corrido, ordena o texto segundo uma seqüência temporal linear; exige do narrador determinadas informações que lhe parecem necessárias, elimina repetições. Mesmo se consegue se abster de todas essas intervenções, ele deverá quase sempre traduzir. Se a princípio todas as cautelas se debruçavam sobre a fidelidade aos dados, a consciência crítica dos etnógrafos foi reclamando progressivamente uma fidelidade à estrutura original, muito mais difícil de conseguir, ou simplesmente inexeqüível, já que a própria pergunta que deslancha o relato é, talvez, profundamente estranha às respostas previstas na cultura do nativo. Se Boas já havia manifestado sua desconfiança perante a veracidade factual dos relatos autobiográficos, o que se poderia dizer da sua autenticidade formal? Afinal, que visão da alma indígena poderiam dar esses textos condicionados pelas convenções narrativas de um gênero estranho?

Nos estudos mais recentes, a peculiaridade cultural e histórica do gênero autobiográfico e a interação entre o protagonista e os seus editores e amanuenses têm deixado de ser um obstáculo epistemológico para passar a primeiro plano da análise. Evita-se assim uma certa falácia construcionista, essa que nos faz supor que revelar o caráter construído de algo seja o mesmo que anular sua existência. A escrita de autobiografias indígenas não equivale à recitação de uma lição aprendida, mas a uma tradução. Os autobiógrafos não só acomodam dados indígenas numa estrutura recebida; suas obras remetem também a gêneros narrativos indígenas, que com freqüência deixam a sua marca no resultado. Alguns eventos típicos da tradição oral poderiam se entender como antecedentes nativos da narração autobiográfica: é o caso dos coup tales, relatos de feitos guerreiros — muito mais parecidos a um curriculum vitae, um arquipélago de fatos sem fio condutor mas preocupado em citar testemunhas —, das apologias pessoais suscitadas pelas acusações de feitiçaria, e — correlatos mais firmes de uma tradição ocidental onde o relato de Santo Agostinho ocupa um lugar fundador — das narrações de busca de poder xamânico (lembremos que narrações desses dois tipos são citadas extensamente por Lévi-Strauss no seu texto sobre o feiticeiro e sua magia). Deixando de lado essa pré-história, deveremos reconhecer que as autobiografias acabaram sendo, não menos que o cavalo — outro esquema importado do Velho Mundo —, um fenômeno genuinamente indígena. Nas palavras de Brumble5 [5 ] H. David Brumble III: American Indian Autobiography. Berkeley: University of California Press, pp.118-19[ STANDARDIZEDENDPARAG] , fundamento do panorama até aqui apresentado, as autobiografias indígenas percorrem no espaço de alguns decênios a distância que a literatura ocidental percorreu em quinze séculos: mas mesmo com essa aceleração o processo é uma assimilação paulatina, não uma mimese instantânea. Em todo esse processo, em que as perguntas dos pesquisadores, as prédicas e censuras dos missionários, e os modelos literários da literatura ocidental se somam para fazer surgir um eu narrativo formatado segundo os padrões euroamericanos, não faltam indícios de outros modos de conceber o sujeito. Não necessariamente no que é dito, mas sobretudo nas resistências que o modelo autobiográfico encontra para se realizar. Pensemos no freqüente desinteresse — muitas vezes resolvido expeditivamente pelos editores — na seqüência cronológica linear, ou na negativa de incluir fatos ligados à infância, talvez anteriores à aparição enquanto tal da pessoa que escreve. Ou, como bem percebe Paul Radin no seu prólogo às reminiscências de Crashing Thunder, nessa inconstância da alma indígena, manifesta na liberdade com que o narrador alinhava atitudes contraditórias, sem focalizar e justificar a contradição, como se esperaria de um autor convicto da unicidade do seu ser. Mesmo na escrita dos literatos indígenas atuais, integrados no campo literário global, descobrem-se características que seria ingênuo vincular sem mais à sua condição étnica, mas que em qualquer caso se distanciam criativamente do padrão autobiográfico convencional: veja-se o modo como N. Scott Momaday, provavelmente o expoente mais ilustre dessa literatura, combina suas reminiscências pessoais às memórias de família, aos recursos da narração oral indígena e relatos míticos.

FALANDO DE SI

Ora, uma vez convenientemente desconstruída a história da autobiografia indígena norte-americana, nada pode fazer pensar que num processo muito diferente, como o que se encontra no Brasil, não haja história a fazer, ou objeto a deconstruir. A falta de autobiografias na etnologia brasileira não é mais natural que a sua exuberância no mundo anglo-saxão.

Poderíamos começar a percebê-lo considerando que as potenciais raízes nativas de uma narrativa autobiográfica não existem menos ao Sul que ao Norte. Minha própria experiência etnográfica entre os Yaminawa, à qual devo recorrer na falta de pistas em outros autores, me faz pensar na existência de um ângulo cego. As narrativas autobiográficas ganharam espaço entre os meus dados de campo não respondendo a uma expectativa teórica, mas precisamente contrariando os seus desígnios, que, caracteristicamente, apontavam para a memória coletiva. Falarei mais adiante dessa expressão "híbrida" que seria o relato autobiográfico dos líderes, destinado a uma audiência externa de ONGs e público nacional; também ficará para mais tarde a discussão do modo de enunciação dessa que aparece de praxe como memória coletiva. Por enquanto, basta considerar que, durante a minha pesquisa, o tipo de performance a que os Yaminawa devotavam mais interesse — e isso, tanto como enunciadores quanto como público — eram os cantos yamayama, cujo registro e audição iam consumindo as preciosas fitas e pilhas do pesquisador, ante o desassossego deste, que preferia reservá-las para outros fins. Os yamayama são, ao mesmo tempo, poesia lírica e história: falam dos pais e da sua ausência, das mudanças no modo de vida, dos amantes, dos encontros e das rupturas amorosas. São cantos de alguém, objeto de viva curiosidade por ser cantos de alguém. As eventuais alusões aos mitos e a considerável padronização dos seus textos e sua música não apagam uma referência clara a personagens concretos. Mais tarde voltaremos a essa questão com base em outros dados. Fora dessa expressão individual por excelência dos yamayama, a enunciação autobiográfica segue se manifestando. A prática xamânica, embasada numa iniciação e num exercício individual, é um terreno em que a memória individual pode ser igualmente identificada: os depoimentos que pude recolher a esse respeito dificilmente se dedicavam a formular as convenções ou as origens míticas de um paradigma xamânico. Antes centravam-se nos percalços do aprendizado, via de regra frustrado pelas tensões entre o aprendiz e o iniciador — muitas vezes um pai que lamentava esse mesmo desinteresse no aprendizado que o filho lamentava mais tarde, na minha frente. As próprias visões xamânicas ou os episódios violentos em que às vezes podia concluir a trajetória de uma xamã renomado foram-me apresentados como memórias pessoais: para ilustrar os perigos do modo antigo de xamanismo, um dos meus informantes me mostrava no meio do couro cabeludo a cicatriz de uma bordunada recebida no mesmo episódio em que seu pai, suspeito de agressão mística, perdera a vida. Em resumo, o caminho entre o sujeito Yaminawa e esse eu narrativo do modelo autobiográfico parecia ser muito curto, se não tinha sido já percorrido de um modo plenamente independente. Não há, no caso, editores de quem suspeitar. Parece claro que a missão cristã entre os Yaminawa tem feito um trabalho mais considerável do que tendem a pensar tanto eles como os seus antigos missionários; mas dificilmente teria chegado ao ponto de induzir uma interiorização e um auto-exame tão difícil de alcançar mesmo em processos manifestos de conversão.

O eu tem efetivamente um lugar no discurso das Terras Baixas da América do Sul; mas não tem sido criado para ele um lugar na literatura. Vale a pena notar que um dos discursos mais famosos da etnologia das Terras Baixas, aquele que a vítima do banquete antropofágico Tupinambá proferia pouco antes de ser abatida, era precisamente um discurso autobiográfico, em parte equivalente dos coup tales norte-americanos, embora as façanhas da vítima se enlaçassem nele com as dos seus predecessores e as dos seus herdeiros, girando em torno da vingança.

Um trabalho recentemente publicado de Suzanne Oakdale entre os Kayabi do Baixo Xingu é provavelmente o primeiro texto que faz do discurso autobiográfico o centro de uma análise da noção de pessoa6 [6 ] Oakdale, Suzanne I foresee my life. The Ritual Performance of Autobiography in an Amazonian Community. Nebraska: Lincoln & London/University of Nebraska Press, 2005. Em termos muito próximos (mas, significativamente, além das fronteiras brasileiras), poderíamos citar o trabalho de Janet Wall Hendricks. To drink of Death: the Narrative of a Shuar Warrior. Tucson: The University of Arizona, 1993. . A autobiografia se encontra dentro dos mais diversos discursos: na fala política dos líderes, tradicionais ou pós-modernos; na abertura dos cantos xamânicos, em que o curador desdobra as experiências que fazem dele um especialista apto para tratar das aflições e enfrenta as críticas e o ceticismo dos seus ouvintes; nos cantos do Jawosi, executados para dar fim ao luto com uma série de cantos bélicos, em que a relação com o inimigo fornece um modelo latente à relação que os enlutados devem estabelecer com os seus mortos. O traço mais marcante desses discursos é o seu estilo citacional, que já mereceu a atenção de outros autores, e especialmente de Eduardo Viveiros de Castro na sua análise do xamanismo Araweté7 [7 ] Eduardo Viveiros de Castro. Araweté, os deuses canibais. Rio de Janeiro: Zahar, 1986. Sobre os regimes de enunciação é necessário citar também Greg Urban. A Discourse-centered Approach to Culture : Native South American myths and Rituals. Austin: University of Texas Press, 1991. . Embora o discurso seja regido por um "eu", o enunciador pode estar emprestando sua voz a uma longa série de outros. Isso acontece quando o narrador/cantor executa uma peça herdada de outro, especialmente de algum parente morto; quando explicita os pensamentos prováveis da própria audiência, em cuja boca o narrador põe comentários eventualmente hostis do que ele está fazendo; quando fala — às vezes de si mesmo — sob o nome de um inimigo morto ou, menos dramaticamente, de um estrangeiro que conheceu durante as suas viagens. A citação, de resto, não precisa ser simples. Pode se desdobrar em cascata, quando o emissor cita alguém que cita alguém que cita alguém. Esse desvio do eu organiza um tortuoso conjunto de jogos de linguagem. Se de uma autobiografia ao estilo ocidental esperamos saber, antes de mais nada, quem e que é o narrador em seus próprios termos, aqui o narrador define sua identidade por meio do que outros fizeram ou disseram dele; é uma extrospecção antes que uma introspecção. Se de uma autobiografia ocidental esperamos que seja essencialmente original, pessoal e intransferível, neste outro caso não há incompatibilidade entre o pessoal e o paradigmático. Uma narração padronizada, ou aprendida, ou expressa em termos totalmente genéricos pode problematizar o efeito autobiográfico sem no entanto anulá-lo. O emissor pode usar esses discursos de outros metaforicamente e referir-se por meio deles a uma experiência pessoal; de outro lado, os ouvintes, carentes das claves que remetem às vozes citadas, podem entender o narrado como uma experiência puramente individual (é o que acontece, provavelmente, com os cantos yamayama de que falávamos anteriormente). O essencial é, então, o consenso de falante e ouvinte: a fala trata da sua própria vida. O estilo citacional é muito mais que um artifício retórico, ele transcreve a via que o enunciador tem seguido em pós da aquisição de conhecimento, e a formação da pessoa, através de encontros dialógicos ou agônicos. É a expressão de um processo de devir-outro, da absorção de saberes, nomes e afetos tomados de outrem.

Em geral, as análises do discurso indígena tendem, neste ponto, a desmentir a ilusão individualista: é obvio que narrações como as que foram aqui rapidamente aludidas não são produtos de um balanço interior. Não definem o sujeito pela originalidade dos predicados, muito pelo contrário. Seriamos ingênuos se procurássemos nelas uma expressão espontânea e direta do indivíduo.

Presta-se menos atenção ao fato de que essas narrações também não podem ser colocadas pacificamente na boca de um sujeito coletivo. Para começar, o percurso desse discurso citacional vai muito além das dimensões terrenas do nós sociológico; ou mais exatamente vão contra ele. O eu forma-se pela confluência de vozes de mortos, inimigos, animais, espíritos, objetos; todos eles alheios a seu convívio habitual. A análise de Oakdale indica como o coro, repetindo as frases do cantor, cuida de afirmar a presença desse grupo ao qual ele pertence, apropriando-se da sua errância. Mais que para dissolver o eu dentro do grupo, essa presença do coletivo serve como um limite à confusão do eu com entidades além do grupo mesmo. Afinal, o ponto final desse devir outro, se não fosse socialmente controlado, só poderia se identificar com a morte.

A INVENÇÃO DO SUJEITO COLETIVO

Se as autobiografias indígenas não são propriamente individuais, também não pode se dizer que sejam coletivas. Os modos de enunciação regidos por um eu ou por um nós são atalhos em direção a uma ética do discurso, a nossa, que prevê como significativas as ações e as representações individuais ou coletivas, mas que em geral foge desse disse-me-disse que seria a tradução literal do falar citacional. Mas o disse-me-disse é um modo certeiro de ligar o discurso individual a uma estrutura que não se encerra na tensão entre sociedade e indivíduo, que se configura a cada momento por um jogo de perspectivas nunca totalizadas. A nossa sociologia dá um estatuto ambíguo e em geral perverso a todo discurso que expresse esse tipo de estrutura: rumor, boato, maledicência, intriga. São discursos próprios de uma língua bífida — forked tongue, em inglês, é uma expressão muito mais comum dessa mesma metáfora —, com a qual o enunciador se posiciona só parcial ou temporariamente, ou em que o dito depende da contribuição parcial de uma pluralidade de vozes. Uma ou outra imagem podem claramente evocar o conceito de divíduo, popularizado por Marilyn Strathern, que descarta um sujeito separado de suas relações. As coisas não se dizem em absoluto, por um eu ou um nós absoluto, mas de alguém para alguém por alguém. É óbvio que na hora de resumir para um público global o que os índios dizem, esse tipo de discurso deve ser traduzido em termos de solilóquio ou de sociolóquio.

A insistência norte-americana em que os indígenas ofereçam um eu coerente e significativo à curiosidade sentimental ou científica dos brancos, essa invenção do eu, essa transformação em ícones dos rostos individuais, não se contrapõe no caso brasileiro a uma maior fidelidade aos dados, mas a uma outra normalização destes, dessa vez em termos de um sujeito coletivo. Deixemos de lado os textos antropológicos em que, em virtude de diversas opções teóricas, sem filiação nacional exclusiva, o sujeito da descrição fica sendo a estrutura, o modelo, o grupo, etc. A diferença aparece quando deve-se selecionar um sujeito histórico. É demasiado fácil, mas não ocioso, confrontar o valor representativo que cabe no Norte e no Sul, respectivamente, aos retratos em primeiro plano de Edward S. Curtis (ou aos seus equivalentes tantas vezes usados como capa das edições de autobiografias) e às fotografias xinguanas de Maureen Bisilliat, que focalizam sobretudo peles. Estas últimas são, é claro, peles pintadas, suporte de uma inscrição social; os conjuntos de dançantes rituais ou de guerreiros cumprem o mesmo papel; as figuras individuais também, mas só na medida em que apareçam inequivocamente paramentadas. O protagonista é sempre um grupo, ou a marca de um grupo.

Um exemplo também fácil é o dos etnónimos. Ou mais exatamente dos etnónimos verdadeiros, sobretudo aquelas "autodenominações" que podem se traduzir literalmente como "nós", "os humanos", "os verdadeiros humanos". O reconhecimento relativamente recente da historicidade indígena, paralelo ao reconhecimento do movimento indígena como agente histórico, não poderia ser feito sem a legitimação de modelos outros de historicidade. E, sendo necessário que os índios definam a sua própria história, é de se esperar que o façam definindo igualmente seu próprio nome. Mas essa exigência política pode acabar num paradoxo, o de que essa história se apresente enunciada em nome desses "nós", que sem dúvida cumprem um papel importante na sociologia indígena, mas que, como vimos num item anterior, estão longe de ser os protagonistas do discurso histórico local, que, pelo contrário, conta sistematicamente com a citação do discurso alheio. Nesse sentido, a demanda de uma história própria expressa em nome próprio e nos próprios termos não é muito diferente da demanda de um eu narrativo: supõe que uma autobiografia, desta vez coletiva, está dada, disponível para o pesquisador estrangeiro ou nativo.

Não se poderia dizer que essa hipóstase coletiva seja exclusiva da etnografia brasileira, nem sequer da etnografia em geral: outros primitivos, outras minorias, os próprios Estados-nação são com freqüência submetidos a ela. Mas decerto ganha um estatuto especial dentro de uma ordem jurídica em que os índios têm lugar como pessoa coletiva em contraposição à pessoa individual que serve de medida ao resto. Isto é, o que encontramos no Brasil não é só uma ordem individualista com matizes corporativos, mas uma ordem individualista com matizes corporativos em que uma exceção coletiva explícita é marca reservada da minoria étnica. O padrão é mais rígido do que podemos pensar: se, como vimos, a autobiografia está ausente da etnologia brasileira, a biografia sem mais é igualmente uma lacuna. Fora algumas referências a figuras fundadoras como Araribóia ou Tibiriçá, cuja individualidade parece estar ligada ao seu papel como ancestrais da nação mestiça, o único escrito de corte biográfico que consigo lembrar é um breve artigo que Herbert Baldus dedica a um "índio aculturado", analisando com um certo pendor entomológico as vacilações de Tiago Aipobureu entre os dois mundos que conhece8 [8 ] Herbert Baldus. "O professor Tiago Marques e o caçador Aipobureu: a reação de um índio bororo à influência da nossa civilização". In: Ensaios de Etnologia Brasileira. São Paulo: Editora Naciona,l 1979, pp. 92-107. O caso Aipobureu foi retomado posteriormente por Florestan Fernandes (" Tiago Marques Aipobureu: um bororo marginal". In: F. Fernandes. A investigação etnológica no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1975, pp. 84-115. . Tiago Aipobureu — por muito que a sua aculturação o segregue do coletivo Bororo, e portanto o individualize em certa medida — não é chamado a se manifestar sobre o processo por ele vivido, enquanto o pesquisador analisa seu aspecto físico. Porém, responde a uma pergunta sobre o destino do seu povo e relata alguns mitos, com excelente caligrafia (também perscrutada com a ajuda de um grafólogo). No Brasil, a representação do índio como coletivo foi sempre uma marca que o opunha ao branco, seja em sentido negativo (o índio carece de entidade própria, fora da que lhe confere o seu grupo), seja em sentido positivo (os índios vêem-se livres do individualismo mesquinho que nos aflige). O vigor de um sujeito coletivo, as celebrações dessa coletividade no trabalho comunitário, numa política formulada sempre em termos assambleários cujas diretrizes são sempre tomadas por consenso, numa reciprocidade entendida antes como virtude social do que como rede relacional, são traduções de uma das variantes da teoria política ocidental, essa alternativa coletivista que, malgrado os ensaios laicos, segue encontrando no cristianismo sua raiz mais poderosa.

AUTOBIOGRAFIA E ETNOPOLÍTICA

Isso nos leva a considerar a autobiografia no contexto da política indígena recente, em que assistimos à alteração — eventualmente à inversão — de algumas tendências seculares. Uma poeta indígena norte-americana se exprime a respeito de um clima adverso ao "eu" no contexto das políticas de identidade: "I have heard Indian critics say, referring to poetry, that it is best if there are no 'I's' in it. I grew up and continue to live among people who penalize you for talking about yourself and going on endlessly about your struggles"9 [9 ] Apud David Pruett. Writing the Life of the Self. Constructions of Identity in Autobiographical Discourse by Six Eighteenth-century American Indians. PhD Thesis Texas A&M University, 2004, p. 20. . Por outro lado, é provável que a constituição de sujeitos individuais representativos esteja cada vez mais a reforçar as ações políticas dos movimentos étnicos no mundo "latino".

O caso mais sintomático dessa tendência é o de Rigoberta Menchú, co-autora, com a antropóloga francesa Elizabeth Burgos-Debray, do best-seller Me llamo Rigoberta Menchú, y así me nació la conciencia. A autobiografía de Menchú, uma denúncia pungente do genocídio cometido nos anos 1980 contra os índios da Guatemala, foi talvez o principal fator que a levou a uma posição de destaque entre os líderes indígenas do continente — é hoje presidente de uma fundação que leva seu nome — e ao Premio Nobel da Paz de 1992. Uma adequada combinação de sujeito coletivo e sujeito individual pode ser especialmente eficaz quando os líderes indígenas devem enfrentar ao mesmo tempo um público nacional e internacional. Isso fica mais claro à luz da polêmica que seguiu ao exame que o antropólogo David Stoll fez das tergiversações incluídas no livro de Menchú10 [10 ] David Stoll. Menchú and the Story of All Poor Guatemalans. Boulder, Colorado: Westview Press, 1999. . Parece haver pouco lugar a dúvidas sobre os fatos: Menchú se apresenta como testemunha presencial de episódios que não presenciou e oferece uma interpretação dos fatos que simplifica a relação dos indígenas com a guerrilha guatemalteca. Mas, sobretudo, se autoconstrói como uma camponesa indígena iletrada, quando de fato seguiu uma educação formal num internato religioso que, de resto, mal teria lhe permitido participar, nos termos em que ela narra, da vida do proletariado nativo guatemalteco. Na polêmica parece ficar claro para todos os implicados que, interpretações políticas à parte (a guerra foi iniciada pelos guerrilheiros ou pelo Exército; as condições de vida dos indígenas estavam melhorando ou piorando na época?), a substância do narrado por Menchú é autêntica. Se ela não presenciou pessoalmente esta ou aquela barbárie, se esta aconteceu em tal lugar e em determinado momento ou a cem quilômetros ou cem dias antes ou depois, pouco importa. Por outro lado, o fato de apresentar como narrativa autobiográfica o que poderia ter sido narrado mais veridicamente em termos citacionais ("soube que em tal lugar...") não é indiferente. Em suma, o que Menchú oferece com tão grande sucesso não é uma narração individual, mas um eu narrativo que pode servir como metonímia de todo um povo.

A etnopolítica dos últimos 25 anos, como bem sabemos, tem contado com o pressuposto de povos indígenas estreitamente ligados a um território e a uma tradição. Embora a pertença étnica seja legalmente medida pelos critérios definidos por Barth, a prática política exige uma sobredeterminação dessa indianidade, especialmente mediante a apresentação corporal. Identificar-se e ser identificado como índio é bastante para reivindicar uma indianidade mínima que garante no papel os direitos constitucionais, mas uma posição sólida no campo etnopolítico exige algo mais, isto é, parecer índio. O aspecto índio requer, para além dos atributos físicos ou ornamentais, o respeito de certas condições ecológicas e culturais e de uma "lei do índio" baseada num padrão coletivista. Protagonistas de primeira linha dessa etnopolítica têm sido algumas novas elites indígenas que com muita freqüência vivem em condições muito diferentes das enfrentadas por aqueles povos que representam, mas cuja legitimidade está condicionada precisamente por uma argüível continuidade — lá na aldeia — desse modo de vida. Seria interessante comparar a situação desses representantes do movimento indígena à dos autores das primeiras autobiografias indígenas norte-americanas, como Samuel Ashpo, David Fowler, Hezekiah Calvin, Joseph Johnson e Tobias Shattock11 [11 ] Pruett, op.cit. . Embora pareça fácil pensar neles como expoentes da domesticação colonial, muito distantes da militância dos protagonistas do movimento indígena atual, é possível reconhecer também a amplidão das semelhanças: sua personalidade política se define pela educação formal recebida —em geral de instituições missionárias —, pelo domínio dos códigos e especialmente da linguagem e da escrita do branco, e pela aliança com determinados setores da sociedade nacional. Também, note-se, pela implicação em projetos de alcance coletivo, como a política em prol da garantia das terras. A diferença está precisamente no recorte da autobiografia: se no caso dos norte-americanos esta se destina a ilustrar exemplarmente um processo de "virar branco", o discurso do agente do movimento indígena trata do processo contrário de virar índio12 [12 ] O contraste entre esses dois projetos de transformação está tomado das falas de Eduardo Viveiros de Castro durante os debates do GT Transformações Indígenas, reunido no 28º Encontro da Anpocs, em 2004. . Se nas cartas e outros documentos que conformam aquelas autobiografias pioneiras se insinua na sombra a permanência de hábitos tradicionais, e também a consciência de uma condição étnica que se impõe à revelia do esforço por fugir a ela, ao agente do movimento indígena cabe, pelo contrário, consolidar pelo relato uma ligação com a etnia (que eventualmente resulta difícil de identificar no modo de vida do autor). Desta vez é o percurso cumprido no mundo dos brancos o que permanece por sua maior parte no âmbito do não-dito.

PESQUISA E INVENÇÃO

Mas do que estaríamos a falar aqui? Essas autobiografias que tratam do virar índio, que elaboram o vínculo com um modo de vida tradicional, e que deixam no plano de fundo a vida nos internatos, as cidades e as estradas do branco, como já dissemos, não foram escritas (ou, ao menos, publicadas). Este artigo tem uma relação complexa com o seu objeto; começa deduzindo-o de uma diferença, como ausência e não como dado. Depois passa a identificar elementos que poderiam substanciar esse objeto, preencher esse vazio criado pela reflexão. Enfim, na medida em que serve como discussão preliminar de uma pesquisa em estágio inicial, pode contribuir à produção em maior escala desse mesmo objeto: algumas dezenas ou centenas de relatos autobiográficos podem estar disponíveis para uma continuação deste texto. A análise precede o seu objeto. O paradoxo é notório, mas caberia perguntar se a pesquisa antropológica pode escapar a ele em última instância. Os objetos de outras ciências são reputados menos sensíveis à procura. A busca, por exemplo, do elo perdido não garante a aparição desse elo perdido; tem dado lugar, é verdade, a falsificações como a de Piltdown; nada comparável à copiosa elaboração de história, modelos e tradições que pode responder às indagações de um etnógrafo. Mas a antropologia tem percebido nos últimos tempos que o fado do nativo consiste, precisamente, na sua incapacidade de falsificar. A influência do pesquisador pode iniciar o processo, mas escapa de seu domínio para ser logo coberta por grossas camadas de invenção local. As autobiografias que por acaso surjam deste projeto serão irremediavelmente autênticas.

E, a rigor, o objeto inexistente desta análise não é assim tão inexistente: a autobiografia pode faltar na literatura etnográfica, mas não falta na prática etnopolítica, e representa um recurso maduro para ser usado em grande escala. Um bom exemplo é o do Concurso de Autobiografias para mulheres líderes de comunidades indígenas e camponesas organizado por Fidamérica, um órgão ligado às Nações Unidas. Segundo Fidamérica, o objetivo do concurso é "estimular a las mujeres dirigentes a que cuenten la historia de su vida, para que otras mujeres campesinas e indígenas de otros países, puedan rescatar lecciones y experiencias...", mas também "que las instituciones que apoyan el desarrollo agrícola y rural en cada país y a nivel internacional también puedan aprender a través de estas autobiografías, para que en adelante sus actividades faciliten el desarrollo de nuevas dirigentes mujeres". A promoção de autobiografias, apresentada em primeiro lugar como um meio de arrecadar dados e experiências, é sobretudo uma estratégia segura de empowerment ou, em outros termos, de formação de elites locais. Mais perto de nós, uma resposta autobiográfica é indispensável cada vez que um agente do movimento indígena quer se firmar perante os meios de comunicação e os aliados do terceiro setor. Pinçando só alguns exemplos bem conhecidos, a apresentação autobiográfica é um elemento importante para a consolidação de representantes indígenas. Divino Tserewahu, videomaker xavante, começa um dos seus documentários com um breve depoimento que estabelece as razões de sua atividade. Davi Kopenawa entremeia suas elaborações cosmológicas e históricas com reminiscências pessoais13 [13 ] Davi Kopenawa. "Sonhos das origens". In: C. A. Ricardo (ed). Povos indígenas do Brasil 1996-2000. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2000, pp. 19-23. , e o mesmo tipo de inserção autobiográfica se dá nas apresentações orais que Daniel Mundurucu faz das suas produções literárias, embora estas mesmas tenham como tema principal a mitologia do seu povo. Ocioso é dizer que essas observações sobre a autobiografia como elo legitimador do líder com a sua comunidade são absolutamente preliminares e apontam somente para uma das possibilidades que se abrem nesse campo.

Ou mais exatamente na face externa desse campo. A produção de autobiografias não poderia se reduzir à resposta a uma demanda urbana. Isso seria fugir da análise de suas conseqüências internas, sobretudo no balanço de autoridade na aldeia. Sabemos que a circulação no mundo dos brancos e os conhecimentos adquiridos nesse percurso são matérias-primas para a formação da pessoa, e especialmente dessa superpessoa que é o líder. O mesmo mediador que relata perante os brancos sua inserção numa sociedade tradicional deve encenar perante o seu povo o roteiro complementar, a história dessas capacidades adquiridas no convívio com os outros. O discurso autobiográfico é em ambos casos o meio mais adequado para esses fins.

Nesse sentido, podem-se reexaminar os motivos pelos quais o xamanismo tem se estendido desde um lugar de articulação dos domínios do cosmos gerido em privado a um lugar público de representação de uma identidade indígena genérica. O xamã, antes um sujeito extraordinário, ou um momento extraordinário do sujeito, é agora um índio-tipo. As análises dessa representação, que se distancia de fórmulas anteriores como as do índio guerreiro ou defensor do equilíbrio natural, apontam que definir o xamanismo como uma instituição guardiã de saberes possibilita uma aliança simultânea com as ONGs internacionais e com setores nacionais interessados na defesa do patrimônio (um feito que as antigas representações estavam longe de realizar)14 [14 ] Beth Conklin. "Shamans versus Pirates in the Amazonian Treasure Chest". American Anthropologist, December 2002, vol. 104, no 4, pp. 1050-061. . Sem contradizer essa leitura, poderíamos acrescentar aqui que o xamanismo pode incorporar esse valor genérico porque é no xamanismo que podemos encontrar um percurso inequivocamente indígena, mas passível de formulação detalhada em termos de autobiografia: o sujeito entre mundos é um equivalente aceitável do indivíduo fora do mundo que na teoria dumontiana sugere um ponto de articulação entre as visões holistas e individualistas. Um chefe indígena poderia muito bem representar os seus seguidores, e poderia se apresentar como um guardião adequado de um conhecimento coletivo. Mas para um chefe resulta difícil compatibilizar o pressuposto de uma entidade coletivista com a criação de uma individualidade substantiva, que pelo contrário serve muito bem à legitimação pública de um xamã.

Não convém prosseguir: esse e outros temas poderão ser examinados com mais fundamento em trabalhos posteriores. A um texto programático como este basta indicar seus objetivos, de fato muito diversos. Um deles é chamar a atenção para um objeto emergente, o discurso autobiográfico enunciado pelos líderes do movimento indígena, peça chave para entender a formação e os rumos desse movimento. Talvez, num contexto em que a voz indígena já tenha ganhado seu espaço na arena política, promover a narração autobiográfica seja também um modo de dotar essa voz da pluralidade que as sociedades indígenas sempre têm incluído na sua constituição. Esse propósito poderia parecer impertinente se supuséssemos que a etnopolítica deva adotar esse perfil sindical, segundo o qual uma voz única representa uma vantagem estratégica. Mas eis aí o início de uma boa discussão: reivindicações cujo móvel inicial é a peculiaridade sociocultural deveriam ser promovidas mediante a abolição dessa mesma peculiaridade?

Mas a narração autobiográfica é também um tema de reflexão para a etnografia; é um ângulo cego que vale a pena focar, sobretudo quando se atenta para a transformação como um âmago, e não como um acidente, das sociedades indígenas. Afinal, uma autobiografia é um bom lugar de encontro entre a estrutura e a história. Ninguém poderia, é claro, resgatar por toda a parte um sujeito autobiográfico latente: é previsível que as respostas oferecidas pelos povos indígenas a essa indagação sejam muito diferentes. A saliência do discurso autobiográfico é por isso mesmo uma variável muito relevante quando se trata de comparar sociologias sabidamente diversas. Não se trata tampouco de promover na escrita etnográfica um padrão biográfico já ensaiado alhures, mas de procurar a diversidade também sobre esse eixo, ensaiando outros modos de (d)escrever uma história de vida. Em última instância, pouco poderia se esperar de uma colaboração entre a história e a antropologia se no seu esforço de escrever uma história outra se esquecesse de indagar a respeito do seu sujeito.

Recebido para publicação em 11 de setembro de 2006.

  • [2] David Annotated Brumble. Bibliography of American Indian and Eskimo Autobiographies. Nebraska: University of Nebraska Press, 1981[
  • STANDARDIZEDENDPARAG][3] O Handbook of Latin American Studies traz uma única referência: Ritorno alla maloca, autobiografia di un índio Makuxí, de Gabriel Viriato Raposo, editado em 1972,
  • [4] Paul Radin. Crashing Thunder. The Autobiography of an American Indian. New York: D. Appleton & Co., 1926[
  • STANDARDIZEDENDPARAG] [5] H. David Brumble III: American Indian Autobiography Berkeley: University of California Press, pp.118-19[
  • STANDARDIZEDENDPARAG][6] Oakdale, Suzanne I foresee my life. The Ritual Performance of Autobiography in an Amazonian Community. Nebraska: Lincoln & London/University of Nebraska Press, 2005.
  • Em termos muito próximos (mas, significativamente, além das fronteiras brasileiras), poderíamos citar o trabalho de Janet Wall Hendricks. To drink of Death: the Narrative of a Shuar Warrior Tucson: The University of Arizona, 1993.
  • [7] Eduardo Viveiros de Castro. Araweté, os deuses canibais. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
  • Sobre os regimes de enunciação é necessário citar também Greg Urban. A Discourse-centered Approach to Culture : Native South American myths and Rituals Austin: University of Texas Press, 1991.
  • [8] Herbert Baldus. "O professor Tiago Marques e o caçador Aipobureu: a reação de um índio bororo à influência da nossa civilização". In: Ensaios de Etnologia Brasileira. São Paulo: Editora Naciona,l 1979, pp. 92-107.
  • O caso Aipobureu foi retomado posteriormente por Florestan Fernandes (" Tiago Marques Aipobureu: um bororo marginal". In: F. Fernandes. A investigação etnológica no Brasil Petrópolis: Vozes, 1975, pp. 84-115.
  • [9] Apud David Pruett. Writing the Life of the Self. Constructions of Identity in Autobiographical Discourse by Six Eighteenth-century American Indians. PhD Thesis Texas A&M University, 2004, p. 20.
  • [10] David Stoll. Menchú and the Story of All Poor Guatemalans. Boulder, Colorado: Westview Press, 1999.
  • [13] Davi Kopenawa. "Sonhos das origens". In: C. A. Ricardo (ed). Povos indígenas do Brasil 1996-2000. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2000, pp. 19-23.
  • [14] Beth Conklin. "Shamans versus Pirates in the Amazonian Treasure Chest". American Anthropologist, December 2002, vol. 104, no 4, pp. 1050-061.
  • [1
    ] Este trabalho se insere nas atividades do projeto "Transformações indígenas: os regimes de subjetivação ameríndios à prova da história" (NuTI-PRONEX), desenvolvido em parceria com o Museu Nacional do Rio de Janeiro e o PPGAS-UFSC.
  • [2
    ] David Annotated Brumble.
    Bibliography of American Indian and Eskimo Autobiographies. Nebraska: University of Nebraska Press, 1981[ STANDARDIZEDENDPARAG]
  • [3
    ] O Handbook of Latin American Studies traz uma única referência:
    Ritorno alla maloca, autobiografia di un índio Makuxí, de Gabriel Viriato Raposo, editado em 1972, em Turim, pelas Missões da Consolata.
  • [4
    ] Paul Radin.
    Crashing Thunder. The Autobiography of an American Indian. New York: D. Appleton & Co., 1926[ STANDARDIZEDENDPARAG]
  • [5
    ]
    H. David Brumble III: American Indian Autobiography. Berkeley: University of California Press, pp.118-19[ STANDARDIZEDENDPARAG]
  • [6
    ] Oakdale,
    Suzanne I foresee my life. The Ritual Performance of Autobiography in an Amazonian Community. Nebraska: Lincoln & London/University of Nebraska Press, 2005. Em termos muito próximos (mas, significativamente, além das fronteiras brasileiras), poderíamos citar o trabalho de Janet Wall Hendricks.
    To drink of Death: the Narrative of a Shuar Warrior. Tucson: The University of Arizona, 1993.
  • [7
    ] Eduardo Viveiros de Castro.
    Araweté, os deuses canibais. Rio de Janeiro: Zahar, 1986. Sobre os regimes de enunciação é necessário citar também Greg Urban.
    A Discourse-centered Approach to Culture : Native South American myths and Rituals. Austin: University of Texas Press, 1991.
  • [8
    ] Herbert Baldus. "O professor Tiago Marques e o caçador Aipobureu: a reação de um índio bororo à influência da nossa civilização". In:
    Ensaios de Etnologia Brasileira. São Paulo: Editora Naciona,l 1979, pp. 92-107. O caso Aipobureu foi retomado posteriormente por Florestan Fernandes (" Tiago Marques Aipobureu: um bororo marginal". In: F. Fernandes.
    A investigação etnológica no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1975, pp. 84-115.
  • [9
    ] Apud David Pruett.
    Writing the Life of the Self. Constructions of Identity in Autobiographical Discourse by Six Eighteenth-century American Indians. PhD Thesis Texas A&M University, 2004, p. 20.
  • [10
    ] David Stoll.
    Menchú and the Story of All Poor Guatemalans. Boulder, Colorado: Westview Press, 1999.
  • [11
    ] Pruett, op.cit.
  • [12
    ] O contraste entre esses dois projetos de transformação está tomado das falas de Eduardo Viveiros de Castro durante os debates do GT Transformações Indígenas, reunido no 28º Encontro da Anpocs, em 2004.
  • [13
    ] Davi Kopenawa. "Sonhos das origens". In: C. A. Ricardo (ed).
    Povos indígenas do Brasil 1996-2000. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2000, pp. 19-23.
  • [14
    ] Beth Conklin. "Shamans versus Pirates in the Amazonian Treasure Chest".
    American Anthropologist, December 2002, vol. 104, no 4, pp. 1050-061.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Fev 2007
    • Data do Fascículo
      Nov 2006

    Histórico

    • Recebido
      11 Set 2006
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