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Tarde reconquistado

CRÍTICA

Tarde reconquistado

Stelio Marras

Mestre e doutorando em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, co-editor da coleção Sexta Feira — Antropologia, Artes e Humanidades, e autor de A propósito de águas virtuosas — formação e ocorrências de uma estação balneária no Brasil (Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2004)

Monadologia e sociologia — e outros ensaios de Gabriel Tarde. Organização de Eduardo Vargas. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

"Temos, infelizmente, uma tendência inexplicável

a imaginar homogêneo tudo aquilo que ignoramos."

Gabriel Tarde, Monadologia e sociologia, 1893

Cem anos depois e talvez estejamos mais bem preparados para receber as idéias impactantes do filósofo Gabriel Tarde (1843-1904). Embora tivesse gozado de prestígio à sua época, tendo sido professor de filosofia no Collège de France e feito uma carreira judiciária importante, além de autor de mais de uma centena de publicações, Tarde é não raro lembrado como o teórico que, ao menos em sociologia, terminou historicamente vencido pelas idéias de Émile Durkheim, considerado em geral o fundador moderno da disciplina e ainda hoje leitura obrigatória nos cursos de ciências sociais. No entanto, Tarde nunca deixou de intrigar e fecundar grandes pensadores — de Bergson a Deleuze, apenas para mencionar dois importantes filósofos —, e conhece, hoje, uma redescoberta tão revolucionária quanto suas próprias idéias. Já aqui, é quase inevitável a menção ao sociólogo Bruno Latour e ao antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que encontram em Tarde lições teóricas de alta e estratégica relevância. Coordenada por Florencia Ferrari, esta edição de ensaios de Gabriel Tarde, lançada pela Cosac Naify, aparece portanto em momento muito propício e oportuno.

O ensaio Monadologia e sociologia, que havia sido publicado no Brasil pela editora Vozes em 2003, ganha da Cosac uma nova e muito criteriosa tradução para o português, sob revisão técnica de Eduardo Vargas, antropólogo da Universidade Federal de Minas Gerais e especialista em Gabriel Tarde, objeto de sua tese de doutorado. Também autor do estudo introdutório desta edição, Vargas reuniu ainda os outros três ensaios do livro, inéditos em português e fora de catálogo até mesmo na França. São eles: A variação universal, A ação dos fatos futuros e Os possíveis. Destaquem-se ainda, nesta edição, as informações sobre vida e obra de Tarde, incluindo uma carta autobiográfica e uma rigorosa compilação cronológica da bibliografia do autor e sobre ele. Tal reunião permite ao leitor conhecer o desenvolvimento do pensamento de Tarde, pontuando a evolução dos temas, suas variações e variedades.

Deve-se destacar, desde já, que se esse livro tem uma destinação obrigatória aos interessados em filosofia e ciências sociais, ele não importará menos ao leitor geral, que poderá desfrutar de um pensamento erudito, mas não hermético, virtude de um tempo, aquele de Gabriel Tarde, em que o conhecimento não se produzia ou não se difundia apenas por especialistas. Tempo em que a complexidade das reflexões não exigia uma linguagem conceitual impenetrável aos domínios não especializados. Em poucas palavras, o que Tarde nos oferece é um texto acessível e muito sedutor, mas não em prejuízo da exposição das idéias e sua complexidade — solução que parece ter se tornado cada vez mais rara na produção intelectual.

A MÔNADA DIVERSA

"Negar a finalidade dos seres insensíveis é

ao mesmo tempo negar sua realidade.

Ao contrário, se acreditamos que eles são,

é preciso acreditar que eles tendem."

G. Tarde, A variação universal, 1893

Hoje o termo mônada encontra semântica em química, biologia e filosofia. Com diversos sentidos, seu registro aparece já em Platão, bem como em autores cristãos e também em Kant. Mas terá assumido heurística decisiva em Leibniz, a quem Tarde repetidamente se refere no ensaio Monadologia e sociologia. A mônada de Tarde, no entanto, sofre uma torção radical em relação à de Leibniz. Agora ela é aberta e ávida, mutante e transformadora, desejosa e conquistadora, guiada por propriedades e não por essências. Os agentes do mundo, assim concebidos como mônadas, tornam supérfluas, senão enganosas, as distinções entre natureza e sociedade, matéria e espírito, objeto e sujeito, enfim todo o corolário dualista do pensamento ocidental. Supérfluo não foi, portanto, o ostracismo histórico que o pensamento de Tarde sofreu, já que pensamento contrário a tais distinções. Contudo é com ele que vemos, ao contrário do previsto pelos dogmas do pensamento naturalista moderno, os progressos da física, da química ou da biologia, como também da história ou da sociologia, produzirem e denunciarem, no dia-a-dia das ações e interações de agentes, uma multiplicação exponencial de diferenças infinitas e infinitesimais, das quais a monadologia nos dá conta.

Para Tarde, então, tal progresso fez "nos levar às mônadas". Diz ele que "os progressos da ciência favorecem a eclosão de uma monadologia renovada", já que "a ciência tende a pulverizar o universo, a multiplicar indefinidamente os seres", e "termina necessariamente espiritualizando sua poeira". Subitamente, aquilo que era frio e exterior, acachapado por um vago domínio chamado Natureza, nos é devolvido, por Tarde, sob as mais variadas e animadas formas do espírito monadológico. Se em Tarde nos deparamos com um exame crítico das ciências, ele contudo as afirma e as dignifica, sem portanto opor, como viria a ser comum na história intelectual de quase todo o século XX, ou mesmo ainda hoje, as ciências exatas às humanas, como fossem domínios distintos de realidade, cada qual exterior à outra.

Os seres, as coisas, os eventos (tudo que age e deixa rastros, como decerto acrescentaria Bruno Latour, que proclama filiação direta às idéias de Tarde, como explícito em seu recente livro1 [1 ] Ver Latour, Bruno. Reassembling the social — an introduction to actor-network-theory. Nova York: Oxford University Press, 2005. ); dos "astros" aos "indivíduos vivos" e às "nações", das "doenças" aos "radicais químicos", tudo encontra medida comum no conceito de mônada. Assim é que o exame das ações, humanas e não-humanas, engendra a monadologia. O autor lê desse modo os trabalhos de Newton ou Pasteur, fazendo romper a unidade dos corpos em favor da multiplicidade, da pulverização, da mutabilidade, da diferenciação. São, no caso da "teoria parasitária das doenças" de Pasteur, os "conflitos internos entre organismos minúsculos" que "se generaliza dia após dia": "Mas os parasitas têm também seus parasitas. E assim por diante. Outra vez o infinitesimal!" (p. 55).

Tarde cita "a descoberta newtoniana da atração, da ação à distância, seja qual for a distância, de elementos materiais uns sobre os outros" (pp. 79-80) para afirmar a assunção de sua hipótese monadológica aí reformada. Tal descoberta, diz ele, é suficiente para "demonstrar a crítica que se deve fazer" à "impenetrabilidade" das mônadas. Quanto a Darwin, a pauta de Tarde é ainda mais incisiva e atravessa todos os ensaios reunidos nesse livro. E a tal ponto que deveria nos levar a uma longa e mais detida reflexão à parte. Aqui, porém, vale iluminar brevemente apenas alguns tópicos, sobretudo para tentar seguir expondo o pensamento de Tarde.

Assim, poder-se-ia mencionar que a cosmovisão naturalista, diretamente derivada do darwinismo e afinal oficialmente dominante entre os modernos, propõe uma medida comum entre os seres (embora apenas entre os chamados seres vivos e animados) segundo uma visão substancialista, calcada nas essências dos indivíduos e das espécies — donde a origem e evolução dos entes e da própria Vida. Já a visão monadologista de Tarde escapa dos entes em direção às relações entre eles; além de que os agentes que fazem e povoam o mundo não se resumem apenas aos seres biológicos. "O abismo entre a natureza dos seres inorgânicos e a natureza dos seres vivos", sublinha Tarde, "não é instransponível" (p. 83). Por assim dizer, a Vida, em maiúsculo monadológico, não se resumiria aos seres animados.

Como seja, a visão tardiana, salvo engano, parece considerar a origem e a transformação das espécies um fenômeno profundamente relacional. Com efeito, Tarde acusa "a superioridade própria dos sistemas substancialistas em toda a história, desde Demócrito até Descartes, sobre os sistemas dinamistas mais convincentes" (p. 70). Ora, assim o ambiente, fundamento darwinista sem o qual não se explica a origem e a transformação das espécies, mereceria, se nos enviesamos pela ótica de Tarde, explodir numa infinidade de agentes que o constituem. Pois são esses agentes (que se diferenciam, se reproduzem, se multiplicam e se diferenciam novamente e sempre em outrem) os responsáveis por conectar os entes que, por sua vez, são produto das conexões. Se as espécies são mônadas, elas são abertas e se constituem umas às outras.

Mas ponto repisado por Tarde em relação a Darwin é o que critica o fundamento da conservação das espécies. Haveria certa contradição entre conservação e transformação das espécies. Diz Tarde que as "teorias transformistas em curso", capitaneadas por Darwin, imaginam uma força diversificante que não sabem onde colocar: "Em geral, elas as dispersam no exterior, nos acidentes do clima, do meio ambiente, da alimentação, do crescimento, e se recusam a reconhecer uma causa interna de diversidade no seio dos organismos" (p. 121).

Aqui o claro afastamento entre os autores. Para Tarde, "as variações específicas, os fatores do sistema darwiniano são divergências sem objetivo, rebeliões sem programa, fantasias desordenadas" (p. 121). Ou seja, o darwinismo situaria a fonte, digamos, da instabilidade (fonte de diferenciação) no meio exterior, enquanto o interior, como um bloco homogêneo, tenderia a permanecer estável — tendência da conservação. Mas qual homogeneidade! Tarde afirma a tendência inata da diferenciação — dos seres vivos e além —, e não da conservação. Esta, quer o autor, não passaria de uma pausa no curso da Vida, cuja origem e termo são impulsionados pelo desejo de se diferenciar em outrem — seja para conquistar, seja para se constituir. Daí que

em nossa hipótese, a força diversificante dos tipos, assim como sua força conservadora, possui um apoio apreensível, interior ao organismo; possui um sentido. É preciso ver em toda modificação espontânea de uma espécie viva, mesmo a mais fugaz, a visada de uma outra espécie, que ela atingiria com a condição de se amplificar suficientemente (p. 122).

Quer dizer, não se transforma por força exterior, mas interior. Tudo busca a "conquista do mundo, busca projetar-se em milhares e milhões de exemplares em todos os lugares". Diz Tarde que "durar é mudar". Contra Darwin e os chamados transformistas de sua época, o autor contesta que "a necessidade da conservação de si não é o verdadeiro âmago da natureza do ser" (p. 136). Em suma, Tarde nos apresenta uma interpretação certamente das mais profícuas do autor de A origem das espécies. É uma prodigiosa tentativa de extrair rendimentos filosóficos sobre a unificação da vida e das coisas, o "Universo", como diz ele, esta "sede insaciável do Universo" e sua "tendência à realização de todos os possíveis". A concepção das mônadas fornece assim uma unidade epistemológica capaz de tratar, num mesmo nível, agentes de diferentes naturezas: animais, plantas, átomos, humanos, órgãos, células, idéias.

Em prefácio à publicação em 1904 de Monadologia e sociologia, o amigo Henri Bergson anotou, com propriedade, que Tarde penetra nos moldes da sociologia, psicologia, direito, política e filosofia para fundar uma "certa concepção geral da realidade". Como Leibniz, Tarde aposta no infinitesimal, no mundo animado das coisas e dos seres heterogêneos flagrados sobretudo na sua realidade mais microscópica. Onde esperaríamos encontrar elementos últimos e irredutíveis, a quintessência das coisas, eis que flagramos, com o autor, uma realidade mais e mais multiplicada e diferenciada. Sendo assim, não é um tal postulado plano comum que fornece unidade às ações das coisas e dos seres do mundo, mas o impulso para a diferenciação. Tudo igualmente tende à diferença. Divergindo de Leibniz, as mônadas de Tarde são vistas como "capazes de se modificar umas às outras"; elas se interpenetram e não são "exteriores umas às outras". Ademais, essa multidão de diferentes não é moralizada, não tem ordem dada, nem tende à harmonia preestabelecida por Deus. Assim, da monadologia de Leibniz, Tarde passará a desenvolver o que denomina sua neomonadologia.

Tarde também não pretende substituir uma unidade prematuramente estabelecida por outra — uma tal vontade divina por outra qual vontade natural. Aqui, a Natureza não se unifica no naturalismo próprio da modernidade. Ao contrário, ela se revela múltipla, heterogênea, eivada das mais distintas vontades e desejos de seus elementos sempre em processo de diferenciação, sempre ávidos por conexão com o exterior. Não havendo um finalismo de "vontade única", como fosse dado na Natureza, toda ação monadológica é a um só tempo fim e meio — dos seres orgânicos às entidades atomicamente infinitesimais, das formações geológicas milenares à organização social humana. Os elementos do mundo — pessoas, coisas, seres, enfim, as mônadas — agem, seja sob conflito, seja sob cooperação, assim tecendo constantemente as relações entre eles. Sendo abertas e se modificando umas às outras, as mônadas nunca permanecem idênticas a si mesmas, senão arriscando esgotarem suas virtualidades potenciais, seus infinitos possíveis que dialeticamente garantem a força e a permanência de sua existência real, sua ação criativa calcada na diferença, sua propagação.

Tudo se passa como se o acento na diferença e na diferenciação dos agentes fundasse uma visão francamente contrária aos postulados, tão nossos conhecidos, da ordem — como se esta fosse um dado, seja ele divino, natural ou social. Tarde se situaria, então, nos antípodas desse curso, mostrando-nos, quer parecer, que o dado não é a ordem e a homogeneidade, mas sim este pulso da diferença. Ordem, harmonia, consenso e estabilidade não passariam de momentos intermediários, intervalos da diferença — de onde tudo vem e para onde tudo vai, origem e termo das coisas. Ora, sempre prenhe de heterogeneidades, o dado tende à instabilidade, ao passo que a ordem, a harmonia ou a estabilização resultam de um esforço convencional de construção. Mas esforço nunca exclusivamente humano, ou, do contrário, recairíamos novamente nas teorias construtivistas antropocêntricas, que tentam explicar o mundo e suas ocorrências como uma deriva das ações humanas. Os caminhos de Tarde nos levam para longe disso.

Se é assim, indica Tarde, a ordem, como o real, é apenas um caso finito da infinitude original. Na origem, tudo é possível. O real só se realiza abortando esses infinitos possíveis, renunciando e sacrificando-os. A realidade é sinônimo de imolação. Daí que o domínio do virtual parece ganhar um estatuto produtivo, fonte inesgotável da imaginação e da criação. O esforço de se recusar a todo custo essa multiplicidade de origem, tal em favor da identidade e da ordem — tendência muito própria da modernidade, vale sublinhar —, faz com que esta origem seja ou obliterada, negando portanto seu caráter construtivo e integrante da ordem, ou encarada como uma excrescente desordem, indesejável confusão que deve ser sanada. Pois que se retenha esta lição tardiana de que é preciso conceber dignidade epistemológica à desordem tal como se dá à ordem, ao infinito e possível simetricamente ao finito e real. Que não é sequer verossímil conceber uma força apartada da outra. Ou muito menos tentar desconhecer qualquer delas, já que ambas se constituem mútua e necessariamente.

O SOCIAL DIVERSO

"A diversidade, e não a unidade, está no coração das coisas"

G. Tarde, Monadologia e sociologia

Recusando os finalismos prematuramente dados, temos em Tarde uma aposta no plano imanente da ação no mundo: seja no presente real, seja no porvir e seus infinitos possíveis — tema este que permeia os ensaios subseqüentes. Conexão, para usar um termo caro a Latour, ou desterritorialização, para lembrarmos Deleuze, são princípios que, ao que bem parece, explicam muito satisfatoriamente as ordenações e desordenações das mônadas em interação. Partículas atômicas, seres microscópicos, ou mesmo uma idéia que se desprendeu de determinada região de uma mente brilhante, possuem uma alma monadológica, ávida por se deslocar e contagiar e conquistar o exterior. Tal semelhança monadológica dada pela crença e pelo desejo, "as duas forças da alma", diz ele, "das quais derivam a afirmação e a vontade", cria a referida imagem de uma "espiritualização do universo", povoada assim de "estados da alma", essas "forças" que "produzem a sociedade", o desejo de associar — de ter, mais do que ser. "Já que o ser é o ter", escreve Tarde, "toda coisa deve ser ávida" (p. 123).

Em algum momento da rede de acontecimentos e associações dos processos de ação no mundo, eis que um agente qualquer põe em cena sua avidez por contagiar e transformar outrem. Tal avidez expressaria, conforme Tarde, "essa necessidade de sociedade", necessidade de agregação e transformação contagiosa impulsionada pelo desejo de conquista e conexão das mônadas. Mas essa necessidade não é domínio exclusivo dos humanos. Tarde parece nos propor que tudo que existe e age compartilha dessa necessidade. Que são, pois, esses seres infinitesimais do mundo orgânico, esses múltiplos agentes ávidos de sociedade, pergunta-se o autor, "senão um feito de pequenas pessoas?" (p. 64).

Aqui, então, a tese monadológica, segundo a qual, diz Tarde, o universo "é composto de outras almas além da minha, mas no fundo semelhantes à minha" (p. 65). Temos aí, de imediato, um descentramento radical do humano. As "forças da alma", isto é, a crença e o desejo, bem como a certeza e a paixão, estão por toda parte e não são atributos exclusivos dos homens. Ao contrário, a "universalidade de sua presença" permeia uma psicologia universal que faz dissolver a pretensa prerrogativa humana de ser psicológico único. E descentramento que também atinge o ego e a consciência, já que, mesmo a inteligência, tal como a concebemos, não passa de uma espécie de psiquismo. Tarde refere-se mesmo a uma psicologia animal, celular, atômica, vegetal.

A crença e o desejo tornam comensuráveis os diferentes seres, inclusive comportando estados inconscientes, sem que, ressalva Tarde, essa monadologia recaia em uma "hipótese antropomórfica". O próprio humano não se reduz a uma unidade distinta. Seu ser é um compósito (sempre infinito e infinitesimal) de mônadas, como as "mônadas dirigentes" que presidem "nossa consciência", "elementos-chefe do cérebro", que no entanto agem e reagem sob força de outras consciências ou outros agentes igualmente dotados de crenças e desejos, capazes de se instalar em meios os mais diversos e produzir profundas modificações. Pois que é a consciência senão "a glória cerebral do elemento mais influente e mais potente do cérebro": diz Tarde que "sozinha, portanto, uma mônada não pode nada. É este o fato capital, e ele serve para explicar imediatamente outro: a tendência das mônadas a juntarem-se" (p. 90).

Mundo de constantes colaborações, disputas e apropriações entre agentes que menos se definem por uma substância essencial própria ou fixa e muito mais por forças vivas e dinâmicas, realidades de mútuos afetos e estados transitórios que recusam a filosofia do ser e abrem, conforme quer o autor, para a do ter. As coisas se têm umas às outras e são evocadas ou ativadas, não raro inadvertidamente, por força das relações. Tal preeminência da relação se mostra, nas palavras de Tarde, pelo fato de que "uma sensação não poderia ser ativa por si própria" (p. 69). Assim, são as relações entre mônadas que criam novas mônadas. Ou seja, relação produz ontologia. Ora, e como as forças da crença e do desejo dependem da ativação de outrem numa rede causal sempre múltipla, elas então "se apresentam a nós como objetiváveis ao mais alto grau"(p. 69). Por essa razão, as crenças e os desejos não se enclausuram na subjetividade ou em domínios de foro íntimo de uma quimérica psicologia exclusivamente humana.

"O que é a sociedade?", pergunta-se Tarde. "Do nosso ponto de vista, poderíamos defini-la como a posse recíproca, sob formas extremamente variadas, de todos por cada um" (p. 112). São pois as mais diversas maneiras que as mônadas encontram para se possuir umas às outras. A própria ciência tende a "generalizar estranhamente a noção de sociedade":

Ela nos fala de sociedades animais, de sociedades celulares — e por que não de sociedades atômicas? Ia me esquecendo das sociedades dos astros, os sistemas solares estelares. Todas as ciências parecem se tornar ramos da sociologia (p. 81).

Tarde argumenta pelos "elementos psíquicos escondidos", suas forças dinâmicas, "sensações, pensamentos, volições" que subsistem no "carbono, azoto, oxigênio, hidrogênio", nos "corpos vivos", nas "máquinas". Daí, enfim, que seja preciso reconhecer as "coesões" e "afinidades moleculares" das mônadas entre elas. Mesmo "uma pequena massa de protoplasma", num dos exemplos do autor, "na qual nenhum indício de organização pôde ser descoberto", age capturando e digerindo elementos. Sim, um protoplasma tem apetite e preferências.

A sociedade tardiana é feita não de elementos homogêneos, mas de heterogêneos. É portanto a diferença que opera as conexões. Elas se atraem e são produtivas: são elas que produzem as transformações da vida e das coisas. A diferença produz a diferença — daí ser ela o início e o fim dos movimentos. A diferença, portanto, corresponde a esse "vivo instinto de sociabilidade" que atravessa humanos e não-humanos — dos agregados de indivíduos vivendo sob Estados e nações até "agregados celulares, animais ou plantas". Todos os elementos, mônadas por definição, respondem por essa avidez por sociabilidade — querem conquistar, se associar, se agregar, se possuir.

Nem exclusivamente humano, nem coisa dada ou auto-evidente, o social de Tarde deve ser, a cada vez que se realiza, explicado, descrito. É sempre investigar sobre como se deu esta ou aquela possessão recíproca, tal ou tal composição monadológica, já que cada encontro é particular e suscita uma descrição própria. Esta concepção de social, já aqui se pode adivinhar, torna truísta aquela que se basta em apontar tal caráter, como se o fenômeno fosse previsível e estável. Além disso, torna mesmo equivocada a concepção já antiga, pois lhe recusa um cantão ontológico e epistemológico exclusivo dos humanos.

Ou seja, se o social existe, ele existe generalizadamente. "Se um ser vivo é uma sociedade", escreve Tarde, "um ser puramente mecânico também deve sê-lo (p. 83)." O social a tudo perpassa, posto que sempre de modo diferenciado. Ora, se a diferenciação é condição necessária para que o social se realize, é daí a razão por que se deve descrevê-lo a cada realização, que é, por definição, repita-se, sempre diferente — e portanto infinita, inesgotável. Notemos, em tempo, que é então pela diferenciação que esta concepção generalizada de sociedade se afasta da concepção também geral de natureza, já que nesta o naturalismo moderno, ao menos no plano oficial2 [2 ] Sobre o oficial e o oficioso da modernidade, ver Latour, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. São Paulo: Editora 34, 1994. , não se ancora na diferença, mas sim na repetição de uma causa comum: a causa natural. Tal natureza única, a propósito, Latour a denomina mononaturalismo, contra a qual ele opõe o multinaturalismo, inclusive emprestando o termo do perspectivismo ameríndio de Viveiros de Castro, e assim propondo, também para os modernos, uma noção múltipla de natureza3 [3 ] Idem. Políticas da natureza — como fazer ciência na democracia. Bauru: Edusc, 2004. .

Com Tarde, enfim, a sociologia readquire um arejamento há muito perdido. Tomando a sério suas proposições, a virada se torna radical. A sociologia livra-se do social e se refunda. É pois como "sociologia da associação", contra a "sociologia do social" (durkheimiana, na origem), que Bruno Latour, por sobre os ombros de Tarde, proclama essa nova fundação da disciplina. Para ele, Tarde deu fim ao social, "ou se recusou a começar por ele"4 [4 ] Cf. "Gabriel Tarde and the end of the social". In: Patrick Joyce (org.). The social in question. New bearings in history and the social sciences. Londres: Routledge, 2001, pp. 117-32 (tradução minha). . Na inversão tardiana, não é que devemos tratar os fatos sociais como coisas, mas tratar todas as coisas como sociedade5 [5 ] Idem. "Gabriel Tarde and the end of the social", cit. , isto é, como mônadas que, abertas, se mostram sempre ávidas por se associar. Tal filiação a Tarde, enfim, é perfeitamente congruente com o projeto de Latour e seus estudos de ciência, que também recusam essa unificação preestabelecida (natural, certamente, mas também social, aí no sentido de Durkheim). Filiação que também se flagra na comunicabilidade filosófica fundamental entre exterior e interior, na concepção generalizada de agência, para muito além da humana, bem como nas conexões entre agentes heterogêneos. A partir daí, mundos inteiros se abrem para a descrição — tarefa esta que passa a ser infinita, tal como seu objeto, agora renovado. Eis o mundo que reaparece virgem aos nossos olhos, movente em suas múltiplas associações, ao cabo sempre particulares e objeto das descrições antropológicas.

POSSÍVEIS, FUTUROS, VIRTUAIS: OUTROS ENSAIOS

"Tudo o que é imaginável quer ser imaginado"

G. Tarde, Os possíveis, 1893

Do ensaio da Monadologia aos outros que seguem, podemos acompanhar o desenvolvimento do que parece ser a tese maior de Tarde: o princípio da diferença, presente nos seres e suas ações no mundo, causa das ações. Segundo Tarde, a

melhor prova de que a harmonia e a perfeição não são de modo algum a finalidade das coisas é que, tão logo uma coisa chega a seu estado mais perfeito, ela está geralmente próxima de seu termo e a ponto de ser substituída (p. 161).

É o impulso da diferenciação que nunca descansa.

Ora, se ordem e a harmonia não fazem condição única e necessária para afirmar a existência das coisas, a conseqüência imediata é reconhecer necessidade nos acasos, isto é, em tudo aquilo que é "possível" de acontecer, mas que é "abortado" em favor das exigências de um real presente e normal. É enfim sobre esse mundo de possíveis, da ação do futuro sobre o presente, desse mundo prenhe de virtualidades, que Tarde dedica reflexão nesses outros ensaios. "No fundo de cada coisa, há toda coisa real ou possível" (p. 81).

Abrindo para os possíveis, Tarde nos retira do ramerrão do real — desse real confinado a si só, justificável em si, desconectado de seus múltiplos e inerentes devires. Aqui, torna-se explícita a herança do autor em Deleuze e Guattari, bem como na etnologia ameríndia de Viveiros de Castro, que aponta, tanto na ação quanto na cosmologia indígena, a operação deste princípio da diferença6 [5 ] Idem. "Gabriel Tarde and the end of the social", cit. . É pela "virtualidade", essa "fonte de possibilidades", que agora podemos flagrar com justeza não apenas os outros, mas, pela intuição de Tarde, nós mesmos. E não apenas os humanos, mas tudo que vive e age. Imediatamente o mundo se torna mais simétrico e comensurável. O que era exótico, frio e exterior desaparece.

Tarde reclama pela importância da "explicação pelo futuro", aliás tão recusada pelos dogmas do pensamento ocidental, firmados na efetivação do presente e na ação do passado (que funda a História), sem contudo reconhecer a ação sacrificial que é preciso impor para que o normal se edifique. Daí ser preciso denunciar os enganos da normalidade, como a propósito o normal da sociologia durkheimiana, assentado na repetição e no idêntico, e fonte de tantos mal-entendidos, muito desastrosos, que pesam sobre nossas coletividades. "O normal assim entendido", escreve Tarde, "está a contrapelo das coisas; ele nega a grande lei da Diferença, isto é, da imolação e do sacrifício necessário" (p. 181). Por isso é preciso reconhecer o sacrifício imposto à infinitude dos possíveis, à potência da virtualidade, sem o qual não há normal ou real que se estabeleça. A "finitude do mundo" depende desse "excesso do possível sobre o real", e do "aborto" necessário dos possíveis. Só os possíveis, condicionados por um futuro infinito, explicam "as mudanças e os progressos das coisas" (p. 223).

Em Tarde, finalmente, podemos imaginar uma reconciliação da filosofia com as ciências sociais, enlaçadas na prosa do mundo — uma prosa da Diferença, princípio e fim das agências e forças que a tudo animam e movem. Que os próximos cem anos recubram o Gabriel Tarde até então sombreado. Haverá porvir, confiemos na ação do futuro. Com Tarde, temos por onde.

  • [1
    ] Ver Latour, Bruno.
    Reassembling the social — an introduction to actor-network-theory. Nova York: Oxford University Press, 2005.
  • [2
    ] Sobre o oficial e o oficioso da modernidade, ver Latour, Bruno.
    Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. São Paulo: Editora 34, 1994.
  • [3
    ] Idem.
    Políticas da natureza — como fazer ciência na democracia. Bauru: Edusc, 2004.
  • [4
    ] Cf. "Gabriel Tarde and the end of the social". In: Patrick Joyce (org.).
    The social in question. New bearings in history and the social sciences. Londres: Routledge, 2001, pp. 117-32 (tradução minha).
  • [5
    ] Idem. "Gabriel Tarde and the end of the social", cit.
  • [6
    ] Ver Viveiros de Castro, E.
    A inconstância da alma selvagem — e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Out 2007
    • Data do Fascículo
      Jul 2007
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