Acessibilidade / Reportar erro

Sinal de perigo

CRÍTICA

Sinal de perigo

Thiago Rodrigues

Pesquisador no Núcleo de Sociabilidade Libertária (Nu-Sol) da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), coordenador do curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina, pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip) e professor substituto no Departamento de Ciência Política da PUC-SP. Publicou, entre outros, Política e drogas nas Américas (Educ/Fapesp, 2004)

Uso de "drogas": controvérsias médicas e debate público, de Maurício Fiore. Campinas: Mercado de Letras/Fapesp, 2006.

"Antes a peste que a morfina, uiva a medicina oficial; antes o inferno que a vida".

Antonin Artaud

A polêmica, dizia Michel Foucault, é estéril porque não passa de um ataque de entrincheirados munidos de idéias fixas, conceitos prontos, posições cristalizadas. O polemista, segundo Foucault, é aquele que vê diante de si "um inimigo, que está enganado, que é perigoso e cuja própria existência constitui uma ameaça"

Problematizar é atacar os discursos que domesticam as questões, por meio de uma descrição exaustiva dos acontecimentos e das forças que sobre eles atuam, conformando-os e distorcendo-os. Desse modo, aquele que busca explicações universais, teorias e quadros explicativos definitivos — o polemista que nutre uma vontade de absoluto — não tem como caminhar com Foucault. No entanto, se no analista há a atitude subversiva da problematização, nesse caso Foucault é lufada de ar em chama acesa. E essa escolha de armas, e de parceiros de armas, parece ser a ousadia a que se propôs Maurício Fiore ao se dedicar a um tema tratado quase que invariavelmente sob o signo da polêmica: as "drogas".

Fiore caminha com Foucault na eleição do alvo — os discursos médicos sobre "drogas" — e na elaboração de sua análise, uma vez que não almeja uma síntese dos discursos sobre a questão, mas apenas a explicitação de que as "controvérsias" se dão num campo no qual antagonismos e dissonâncias são apresentados em termos de polêmica. Campo que é um campo de batalhas. Por isso, Fiore é coerente ao marcar sua posição logo de início: as "drogas" não são entendidas como um "problema" há muito tempo. Ao contrário, o trajeto que constrói a produção, a comercialização e o uso de determinadas substâncias psicoativas como um "problema social" pode ser rastreado com facilidade se procuramos essa história das "drogas" na confluência de práticas moralistas, médico-sanitárias e repressivas que remontam a inícios do século XX. O autor descreve essa construção das "drogas" como questão médica, jurídica e social, enfocando como esse processo se deu no Brasil, de modo a desnaturalizar o tríptico "droga"/doença/crime. Fica demarcado, desse modo, que não se pode discutir o tema das "drogas" sem considerar a proibição de um leque grande de psicoativos. Por estar na perspectiva da problematização, Fiore não se abstém de posicionar-se, postura necessária para alguém que reconhece que seu trabalho "inscreve-se no debate público sobre o uso de 'drogas'" (p. 20) e não é um estudo pretensamente neutro ou desinteressado.

A peça central da investigação é a análise de entrevistas com médicos especialistas vinculados aos quatros principais centros de estudo e tratamento de usuários de drogas psicoativas (ilícitas ou não) do Brasil: Grupo de Estudos Interdisciplinares sobre Álcool e Drogas (Grea) do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP); Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid); Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) e a Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad) — os três últimos pertencentes à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Nas entrevistas, o autor visou a alguns temas que classificou como centrais para identificar as controvérsias entre os médicos quando o tema é uso de "drogas". Esses temas circulam no encadeamento de algumas questões: os critérios para determinar as "drogas" que devem ser controladas, a definição de "uso nocivo" ou "abusivo", o debate sobre as motivações para o uso, as opiniões sobre os modos mais eficazes para identificar num indivíduo a dependência — a doença do "uso indevido" — e as posições quanto à situação legal das "drogas".

Ao expor como os médicos filiam-se a terapêuticas distintas, Fiore explicita como os antagonismos são construídos e expressados, contrapondo instituições e centros de pesquisa concorrentes. No entanto, o trabalho teria um interesse limitado se assumisse como irredutíveis as posturas identificadas na pesquisa. A diferença que vem na análise de Fiore parece ser, exatamente, a noção de que sob o choque entre metodologias de trabalho e concepções científicas estão denominadores comuns invisíveis para os que são capturados pelas teias das "controvérsias", mas que estão em ebulição para o interessado em problematizá-las. Nesse sentido, a discussão sobre como seria "mais correto" aplicar o conceito de "uso abusivo" deixa de ser uma disputa técnica para evidenciar como os médicos lidam com noções de "perigo" ou "risco", que, longe de serem apenas um item psicofisiológico (a "ameaça" à saúde do usuário) estão revestidas de pressupostos morais e políticos sobre a relação entre indivíduo e "droga". Fiore nota, por meio das declarações colhidas, que alguns médicos consideram as "drogas" um problema em si e outros as consideram um "risco" potencial: problemas possíveis para a saúde, para as relações pessoais, para as relações com a lei e o Estado. Em todo caso, segundo Fiore, "o objetivo das falas [ ] é mostrar que elas [as "drogas"] são, invariavelmente, perigosas" (p. 79). As "controvérsias" entre os médicos ficariam, assim, circunscritas à defesa de uma ou outra solução considerada mais indicada para enfrentar um "problema inquestionável". Ao identificar essa confluência entre os discursos, Fiore não faz pouco: expõe a produção de um discurso de verdade, lastreado em práticas médicas, mas fundeado em princípios que estão mais além, ou aquém, da ciência médica. Os médicos reconhecem a dificuldade em chegar a uma conclusão sobre os "males" provocados pelas "drogas" e admitem que muitas pessoas, talvez a maioria, se relacionam com essas substâncias sem que sua vida entre nas categorias problemáticas (disfunções físicas, doenças correlatas, perturbação mental, degradação social etc.). Ainda assim, há um a priori: o uso de "drogas" é um problema.

De todos os pontos destacados por Fiore nas falas médicas coletadas, o tópico que chama mais a atenção para essa "definição exterior" do perigo das "drogas" — exterior ao campo médico em si — é o uso do termo "drogas" como um conceito-problema. Logo no início do livro, o autor alerta: o termo virá sempre entre aspas para destacar uma imprecisão terminológica que não é inocente; virá marcado assim como um "sinal de perigo"(pp. 19, 64). Os médicos se referem às "drogas" como psicoativos ilegais, assumindo o modo como o senso comum trata substâncias como maconha e cocaína. E esse dado é significativo, uma vez que os médicos reconhecem que as drogas psicoativas formam um conjunto amplo de substâncias, algumas legais e outras não. Segundo Fiore, a medicina "terminou por incorporar em sua linguagem as definições cotidianas do termo 'drogas', possuidoras de uma carga de significados específicos que formaram os aspectos sociais e legais relacionados ao seu uso, ao mesmo tempo em que foram formados por eles" (p. 68). Nesse sentido, a negatividade das "drogas" apontada pelos médicos entrevistados teria uma relação direta com a situação de ilegalidade e reprovação moral e social ao uso. A falta de "precisão científica" ao tratar das "drogas" é muito reveladora, pois explicita como a naturalização de um termo "farmacologicamente equivocado" responde a intenções morais e políticas. Do mesmo modo, o álcool é tratado como droga distinta das "drogas" — as ilícitas —, fato registrado nas falas dos médicos e até mesmo no nome de grupos de pesquisa como a Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad) e o Grupo de Estudos Interdisciplinares sobre Álcool e Drogas (Grea).

Fiore faz questão de destacar a relativa heterogeneidade do grupo entrevistado, apontando a existência de médicos mais conservadores (os totalmente afinados à proibição e à defesa da abstinência completa) e de outros que se vinculam à perspectiva da Redução de Danos. Estes médicos negariam posturas francamente proibicionistas ao partir do pressuposto de que, como o uso de drogas ilícitas não poderia ser erradicado (ao menos de imediato), a atitude terapêutica mais indicada seria minimizar os prejuízos à saúde física e metal dos usuários. Isso seria feito por meio de políticas como a substituição de seringas para usuários de drogas injetáveis ou a administração de drogas "menos danosas" a fim de reduzir ou transformar hábitos de intoxicação. O autor, ainda que demonstre certa simpatia pela Redução de Danos, não deixa de apontar como os médicos que a ela se filiam marcam uma postura que não é "pró-drogas". Ao contrário, a meta da abstinência completa — utopia dos médicos proibicionistas — também está presente entre os reducionistas, ainda que relativizada por uma avaliação "realista": já que não é possível a abstinência, ao menos seria possível diminuir os danos derivados do uso de "drogas". Em todo caso, o que cabe destacar é a premissa de que as "drogas" causam necessariamente "danos", base argumentativa comum aos mais conservadores e aos reducionistas. Fiore valoriza as distinções entre os grupos, mas realça o solo comum que ambos partilham. Esse destaque é importante do ponto de vista da problematização, uma vez que coloca em perspectiva a "polêmica" entre as categorias de médicos, relativizando-a. Ou melhor dizendo, apresenta como a disputa entre médicos se desenrola num campo de combate entre discursos enunciadores de verdades que visam firmar posições de autoridade, desqualificando o oponente. Assim, os grupos de pesquisa e os médicos que polemizam estão muito mais próximos do que em lados opostos. As entrevistas e a abordagem analítica privilegiada por Fiore nos mostram como os polemistas partilham conceitos, naturalizam o termo "drogas" e são consensuais na avaliação de que o uso de "drogas" não é "normal" e que, portanto, há uma "patologia" a ser identificada e combatida. Mais brandos ou mais proibicionistas, mais técnicos ou mais sensacionalistas, os discursos médicos estudados dividem um espaço comum que é, em um sentido ou outro, contra as "drogas".

A decisão do autor em tratar os discursos sempre como enunciados públicos — ainda que colhidos em entrevistas privadas — valoriza a intenção de explorar como se constrói o debate público sobre "drogas" a partir dos médicos e suas "controvérsias". Há, no entanto, uma promessa que não se cumpre: a da análise mais aprofundada desses discursos na mídia impressa. Ainda que reserve um capítulo para essa abordagem (Capítulo 3), Fiore admite que o objetivo de colher e tabular mais extensamente entrevistas e posições médicas nos diários Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo não pôde ser levado adiante como pretendia no início. Como o livro deriva da dissertação de mestrado, defendida no Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, resta a impressão de que inicialmente o projeto visava abarcar tanto os discursos privados como os publicizados na mídia, trabalho que talvez tenha extrapolado os limites da pesquisa e a capacidade de análise do autor. Assim, Fiore opta pela análise dos discursos colhidos em suas entrevistas, caminho que se prova mais interessante e profícuo. A percepção de que os discursos médicos a que teve acesso são manifestações públicas, ainda que coletadas no espaço privado, já justificaria sua meta de analisar o debate público sobre "drogas" a partir do ângulo dos discursos médicos. Desse modo, o terceiro capítulo parece ter sido mantido a fim de provar que os discursos médicos são veiculados pela grande mídia, gerando um debate e uma "controvérsia". Talvez em um outro trabalho, num paper ou artigo, Fiore possa avançar nessa análise específica dos discursos médicos apropriados pela imprensa. No entanto, para a pesquisa que nos é apresentada, a ausência de um estudo mais aprofundado dos diários não compromete o que parece ser o maior ganho da investigação: explicitar o conservadorismo, mais ou menos matizado, que os médicos especialistas em drogas psicoativas sustentam no Brasil.

Em seu livro, Fiore encara a controvérsia sem ser capturado pela polêmica, fato que diferencia seu texto da maioria das obras que tratam do "uso de drogas". Seu esforço é bem-sucedido na medida em que explicita o denominador comum das falas médicas e o plano concreto em que se dão as "controvérsias": o da rejeição ao uso de psicoativos e da defesa de modos mais ou menos restritivos de controles e proibições. Com isso, aqueles que se enfrentam de modo tão aguerrido, defendendo posições que são destacadas no debate público como antagônicas e inconciliáveis, nos são mostrados como quase parceiros. Reforçam, de todo modo, um grande discurso que é o "antidrogas" atravessado de valores morais e de restrições criminais. São discursos que disputam um lugar de autoridade e, nesse sentido, são todos discursos verdadeiros. São todos discursos que defendem a contenção daquilo que não se represa, do que não se extingue: a busca de sensações múltiplas a partir de substâncias psicoativas. Os discursos de verdade apresentados pelo trabalho de Fiore nos mostram uma face da guerra que se trava contra pessoas que buscam prazeres químicos e que é apenas uma das muitas frentes que compõem essa cruzada. Guerra intrincada, que produz inúmeras positividades em termos de governo dos vivos, gerenciamento de existências, intervenções internacionais, controles e punições. Uma guerra que não se extingue e que atualiza, a cada dia, novos ilegalismos, violências e insubmissões.

  • [1] Michel Foucault. "Polêmica, política, problematização" in Ditos e Escritos volume V; Manoel Barros da Motta (org,). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 226.
  • 1
    . Assim, declara uma guerra de aniquilamento que explicita a arrogância autoritária de quem se crê detentor da verdade absoluta. Os polemistas não estão dispostos a ouvir, mas apenas a enunciar "a verdade na forma de julgamento e de acordo com a autoridade que ele próprio se atribuiu"
  • 2
    . Embate de retóricas em terra desolada. O contrário de tal estagnação era, para Foucault, a busca da
    problematização, atitude metodológica que pretende transtornar o "objeto de estudo", entendendo-o como um produto de relações de força forjado nas batalhas entre discursos de verdade. Seria, portanto, visar aos problemas que são colocados para um determinado acontecimento, discurso político, domínio do saber. E reparar como eles respondem às questões que lhe são feitas, aos problemas com que são confrontados. Analisar como reagem quando acossados.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Jul 2008
    • Data do Fascículo
      Nov 2007
    Centro Brasileiro de Análise e Planejamento Rua Morgado de Mateus, 615, CEP: 04015-902 São Paulo/SP, Brasil, Tel: (11) 5574-0399, Fax: (11) 5574-5928 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: novosestudos@cebrap.org.br