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Apresentação

DOSSIÊ DE ESTADO DE DIREITO E SEGURANÇA

Apresentação

Marta Rodriguez de Assis MachadoI; José Rodrigo RodriguezII

IDoutora em Direito pela USP, é professora da Escola de Direito de São Paulo da FGV e membro do Núcleo Direito e Democracia do Cebrap

IIDoutor em filosofia pela Unicamp e mestre em Direito pela USP, é professor, coordenador de publicações e editor da revista Direito GV, e membro do Núcleo Direito e Democracia do Cebrap

O combate ao terrorismo internacional e ao crime organizado como um todo tem servido de justificativa para a adoção, via legislação, de medidas restritivas de direitos individuais, as quais, para dizer o mínimo, fogem aos padrões do Estado de direito das democracias ocidentais. Os dois textos deste dossiê - Terroristas como pessoas no Direito, de Günther Jakobs, e Cidadãos mundiais entre a liberdade e a segurança, de Klaus Günther - trazem diagnósticos a esse respeito, a partir de mudanças recentes no ordenamento penal e processual alemão e das diretivas da União Européia em relação à segurança. Ambos os autores tratam do mesmo fenômeno: a intervenção do Direito penal tem se adiantado e expandido de tal forma que ele estaria se convertendo, nesses casos, em um mero instrumento de prevenção policial. No entanto, como veremos, localizam-se em pólos opostos do debate sobre o papel da regulação penal.

Jakobs vem apontando para a expansão e a antecipação da intervenção do Direito penal desde 1985, quando agrupou tais medidas, ainda de modo descritivo, sob a denominação de "direito penal do inimigo", em oposição ao "direito penal do cidadão". A partir de 2001, a discussão em torno do terrorismo internacional ganhou relevância, e os termos propostos por Jakobs passaram a pautar o debate, especialmente no cenário europeu, mas também com influência na América Latina (sobretudo na Colômbia). Pode-se dizer que atualmente são incontornáveis nesse debate tanto a distinção criada por ele - "direito penal do cidadão" versus "direito penal do inimigo" -, como a sua própria posição, que passou a conter uma defesa, dentro de certos limites, do endurecimento da intervenção penal e da ampliação dos poderes do Estado de agir em nome da prevenção. O texto traduzido para este dossiê traz um de seus artigos mais recentes sobre este tema, no qual ele aplica tal distinção justamente na análise das medidas antiterrorismo na Europa - o que até então ele próprio não havia feito, preocupado que estava em traçar os limites conceituais da distinção e justificá-la.

Günther, por sua vez, faz uma avaliação global dos problemas que este modo de regular pode trazer para a democracia, especialmente no que diz respeito ao combate preventivo ao terrorismo. Para o autor, medidas deste tipo, apesar de legais, violam direitos e garantias individuais. A confusão entre direito penal e medidas policiais estaria corroendo por dentro os fundamentos do Estado de direito ao permitir que os agentes públicos constranjam pessoas diante de situações de simples suspeita de perigo, apenas em nome da prevenção. No limite, o aprofundamento dessa tendência levaria a um modelo de Estado policial ou preventivo, em que se inverte o ônus da prova: é como se todos nós fôssemos suspeitos até que se prove em contrário e, por isso, o Estado pode vir a ser autorizado a investigar os atos de qualquer pessoa a qualquer momento, bastando para isso decidir, unilateralmente, que tal ação se justifica para fins de prevenção.

Ambos os textos analisam uma série de instrumentos que concretizam a tendência de ampliação dos poderes do Estado em nome da prevenção: a punição, na Alemanha, do mero pertencimento a organizações criminosas como um crime autônomo a penas bastante elevadas e as diversas medidas de antecipação da ação do Estado, independentemente da ocorrência de um fato ilícito, com a ampliação de seus poderes de investigação, justificadas sob a necessidade de prevenção (investigações sigilosas, escutas, prisões preventivas etc.). Trata-se de medidas que não se justificam pelo que já ocorreu, como é de regra a atuação do Direito penal, mas que se guiam pelo desejo de segurança futura. Seu foco é muito mais a conduta considerada perigosa do que o evento propriamente lesivo.

Günther Jakobs tenta circunscrever tais institutos à "guerra contra o terror", nomeando-os de "direito penal do inimigo", como dissemos, em contraposição ao "direito penal dos cidadãos". Ele aponta, em primeiro lugar, a necessidade metodológica de separá-los, sob o risco de contaminação, mas acaba reconhecendo um âmbito de aplicação "legítimo" do "direito penal do inimigo". Estados de direito "imperfeitos" como os que encontramos concretamente seriam obrigados a adotar medidas restritivas de direitos, em casos de emergência, diante daqueles que põem em risco o próprio Estado de direito.

O reconhecimento de um direito penal para inimigos representa a exclusão de determinadas pessoas do campo "normal" de imputação de direitos e deveres de uma determinada sociedade em nome de sua recusa em tomar parte daquela forma de vida. Nessa perspectiva, o terrorista é visto com alguém, por assim dizer, que coloca em risco a sociedade como um todo e, portanto, não deve receber as mesmas garantias atribuídas à população em geral. Isso significa que ao terrorista não seriam aplicáveis os mesmos direitos e garantias fundamentais que as democracias ocidentais atribuem a todos os cidadãos. A universalidade de direitos "postulada" por esse modelo de Estado seria apenas uma abstração, irrealizável na prática.

O "direito penal do inimigo" faz retroceder esta conquista, criando mecanismos de exclusão daqueles indivíduos que não se portam de modo a oferecer "embasamento cognitivo" suficiente de que se comportarão conforme o direito. Estes, afirma Jakobs, poderão sofrer intervenções mais severas em sua liberdade, a fim de afastar os riscos de suas condutas. É nesse âmbito que alguns dos institutos já vigentes na Alemanha devem ser compreendidos e justificados. Tais exceções, segundo Jakobs, devem ser feitas de forma regulada, sem exceder o "necessário" para afastar o perigo. Entretanto, o autor não chega a tratar dos limites dessa intervenção, nem se ocupa com dar mais detalhes em relação a esta difícil questão sobre quem e sob que critérios determinam quem deixa de merecer o tratamento de pessoa.

Tudo isso já vem ocorrendo, contudo, num clima de relativa calma: a opinião pública, salvo exceções, parece referendar tacitamente tais atos, que deveriam causar escândalo entre aqueles que acreditam no Estado de direito e não em regimes autoritários como melhor forma de governo. De certa forma, essa tendência é resultado da força que a idéia de segurança vem ganhando na opinião pública de diversos países e da sua mudança de status - o problema passa a ser colocado publicamente em termos de direito dos cidadãos à segurança, ou, nas palavras de Jakobs, "direito à situação de efetiva vigência de direitos" -, com maior força, portanto, para justificar tais políticas preventivas.

Ambos os autores, cada um a seu modo, chamam a atenção para a importância de se discutir as mudanças nos ordenamentos jurídico-penais com mais cuidado. Jakobs alerta para os riscos de contaminação, ou seja, os riscos de que cidadãos possam ser indevidamente tratados como inimigos, ou de que as exceções se dissimulem na aparência de direito penal e processo penal baseados no princípio da culpa (e não na segurança). Daí a necessidade de descrever, organizar e circunscrever o âmbito de aplicação dos institutos que discutimos sob a rubrica "direito penal do inimigo". Klaus Günther, de sua parte, mostra como a existência dessa divisão entre cidadãos e inimigos - pressuposto que explicaria a passividade da esfera pública diante de tais medidas - é em si mesma uma ameaça para a democracia e para o Estado de direito.

É importante deixar claro que as questões abordadas por Jakobs e Günther, em um primeiro momento em referência à Alemanha e à Europa, têm alcance mundial. O texto de Günther deixa isso muito claro ao afirmar que estamos assistindo à criação de um sistema mundial de segurança. Mas tal debate varia de forma e de tom nos diversos locais em que ele ocorre. Na Europa, por enquanto, o debate no campo teórico encontra-se de modo geral polarizado entre as duas posições trazidas emblematicamente neste dossiê - a aceitação, ainda que com pesar, da suspensão do Estado de direto em alguns casos versus a negação das medidas antigarantistas - posição esta última que, como bem descrevem os nossos autores, vem perdendo representatividade nas políticas penais concretamente adotadas.

Entre os juristas norte-americanos, protagonistas de disputas ainda mais acirradas sobre tais temas, especialmente quanto ao uso da tortura, encontramos a posição ímpar de Bruce Ackerman, que nos parece importante mencionar para dar ao leitor um panorama mais completo sobre este debate. Professor de direito constitucional de Yale, ele traz uma questão nova à discussão (especialmente em Before the next attack, Yale, 2005). A par de descrever e avaliar normativamente fenômenos similares ocorridos no direito norte-americano, ele procura inventar mecanismos excepcionais de combate ao terrorismo que não violem o Estado de direito. Trata-se de admitir a necessidade de relativizar direitos, mas de forma democrática, controlada e limitada, com a adoção de um regime constitucional específico.

A discussão destes problemas é central para uma boa compreensão do direito contemporâneo. Como mostram Jakobs e Günther, uma análise institucional que desça à minúcia do funcionamento das instituições acrescenta muito à compreensão do funcionamento do aparelho do Estado e sua relação com a sociedade. Falar de "direito", "norma" e "normalização" em abstrato é, na maior parte das vezes, deixar de tratar dos problemas que realmente interessam. Pois no interior de um conceito como "Estado de direito" cabem diversos desenhos institucionais, inclusive alguns que, veladamente, podem vir a destruir a racionalidade de seu funcionamento.

Muitas vezes, é no nível menos abstrato do desenho das instituições e da criação de normas de hierarquia inferior que a batalha da liberdade e da democracia é perdida. Este espaço fica completamente invisível quando o debate se fixa em idéias gerais e princípios abstratos. Hoje, o pensamento e as práticas autoritárias parecem ter fixado residência na minúcia institucional e deixado as grandes idéias totalizantes um pouco de lado. Para perceber tal mudança será preciso, cada vez mais, aprender a olhar para os lugares certos. Não se trata de prescindir da abstração, mas de utilizá-la corretamente com o fim de identificar as diversas maneiras de concretizar os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.

Para discutir este problema, a melhor forma de concretizar os ideais do Ocidente, não se pode prescindir do olhar treinado dos juristas, capaz de detectar mudanças microscópicas no direito ocidental e avaliar seu impacto sobre o Estado de direito e sobre a democracia. Não é por acaso que, como bem observará o leitor, a discussão sobre liberdade, democracia e Estado de direito levantada nestes textos, que consideramos paradigmáticos, é o tempo todo perpassada pela análise de institutos jurídicos concretos do ordenamento alemão e comunitário. São análises minuciosas como essas em relação a nossos institutos jurídicos e às práticas de nossas instituições que entendemos necessárias se pretendemos realmente interferir na definição do nosso espaço de liberdade.

Numa época em que o debate ideológico não gira mais em torno da escolha entre dois grandes sistemas, capitalismo ou socialismo, análises desse tipo tornam-se cada vez mais urgentes. É a partir delas que se podem discernir com mais clareza posições políticas e ideológicas. Afinal, poucos teriam coragem hoje de declarar publicamente serem contra o Estado de direito. Em abstrato, todos o defendem. No entanto, muitos estão prontos a admitir que o Estado possa grampear telefones sem controle judicial, revistar cidadãos e residências em qualquer circunstância, entre outras ações que restringem ou mesmo suprimem direitos e liberdades. De outra parte, discursos que negam em bloco a relevância das instituições sem a preocupação de compreender mais a fundo em que espaço os excessos ocorrem e como podemos reagir a eles também contribuem pouco para a própria defesa e a consolidação do Estado de direito.

Recebido para publicação em 28 de novembro de 2008.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Maio 2009
  • Data do Fascículo
    Mar 2009
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