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O verdadeiro no mais próximo

Resumos

O artigo pretende aferir algumas das correspondências e problematizações presentes no livro de S. Kracauer, O ornamento da massa, e nas cartas trocadas entre ele e Theodor W. Adorno.

Kracauer; Adorno; O ornamento da massa; Crítica da cultura


The article aims at discussing possible similarities and common problems between Kracauer's book, The mass ornament, and the letters he wrote to Theodor W. Adorno.

Kracauer; Adorno; The mass ornament; cultural criticism


TRÊS VEZES SIEGFRIED KRACAUER

O verdadeiro no mais próximo* [* ] Ao longo deste texto, os trechos citados sem referência provêm de Kracauer, Siegfried. O ornamento da massa. São Paulo: Cosac Naify, 2009 (indico entre parê nteses a paginação), e de Adorno, Theodor W. e Kracauer, Siegfried. Briefwechsel 1923-1966. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2008 (indico entre parê nteses a data da carta). A tradução de O ornamento da massa foi cotejada e muitas vezes alterada, tomando como referência Das Ornament der Masse. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1977 [1963] .

Leopoldo Waizbort

RESUMO

O artigo pretende aferir algumas das correspondências e problematizações presentes no livro de S. Kracauer, O ornamento da massa, e nas cartas trocadas entre ele e Theodor W. Adorno.

Palavras chave: Kracauer; Adorno; O ornamento da massa; Crítica da cultura.

ABSTRACT

The article aims at discussing possible similarities and common problems between Kracauer's book, The mass ornament, and the letters he wrote to Theodor W. Adorno.

Keywords: Kracauer; Adorno; The mass ornament; cultural criticism.

1

O ornamento da massa foi publicado em 1963, quando Siegfried Kracauer tinha 74 anos. A idade era algo que ele procurava de todos os modos ocultar; nas cartas que trocou com Theodor Wiesengrund Adorno, à época da organização e publicação do livro, essa questão aflora com a maior intensidade e é nomeada por Adorno um tabu-e assim aceita por Kracauer. Podemos cogitar que Kracauer - nascido em 1889-se sentisse um homem de outro tempo, cuja vida havia sido vivida em um outro mundo, que não aquele dos anos de 1960. O que é verdade, embora não resuma toda a verdade.

Ao tomarmos o livro em mãos, vemos que ele compõe-se de uma série de ensaios - 24, para sermos precisos - escritos na década de 1920. O mais antigo foi publicado em 1920, o último em 1931. São textos de uma outra época, daqueles anos entre as guerras, em tudo distantes da realidade dos anos de 1960; sem falar no deslocamento espacial, do Kracauer profundamente imerso na realidade alemã dos anos de 1920 para o Kracauer dos anos de 1960 nos Estados Unidos. São muitas as descontinuidades; elas remetem à história de vida, repleta de percalços e dificuldades, desse intelectual muito particular, tenaz e refinado. Relatá-la seria cair em contradição com ele mesmo, e talvez seja esse o motivo pelo qual sua idade tenha se tornado tabu.

Isso poderia ser elaborado lembrando o livro que escreveu sobre Jacques Offenbach e a Paris do Segundo Império. Em vez de escrever a biografia do compositor, construindo uma vida heróica ou explorando os acontecimentos íntimos, Kracauer preferiu explorar um outro gênero, a "Gesellschaftsbiographie", a biografia de uma sociedade. Buscava solver o biografado em meio a uma cadeia de interdependências e interações sociais, cujo resultado final era fazer brilhar, por meio do biografado, a sociedade1 [1 ] Cf. Kracauer. Werke. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2004ss, vol. 8. Na carta de 1 out. 1950, Kracauer comenta a vontade de escrever suas memórias. . Esse livro, escrito em meio ao exílio, nas condições as mais precárias, e publicado em Amsterdam em 1937, às vésperas da guerra, custou a Kracauer a amizade com Walter Benjamin e Theodor Adorno. Benjamin achou que Kracauer havia usurpado seu plano de escrever sobre a Paris do Segundo Império; Adorno irritou-se profundamente com o pouco caso com o material musical, já que Offenbach era um compositor e desse assunto ele entendia melhor do que ninguém, ou pelo menos assim achava.

A recente publicação da correspondência entre Kracauer e Adorno, que vai de 1923 a 1966, expõe tudo isso e muito mais, além de algumas coisas sobre O ornamento da massa, livro publicado devido ao interesse e à ajuda de Adorno, que mantinha excelentes relações com o editor e proprietário da editora Suhrkamp e intermediou a publicação de dois livros de Friedel - era assim, usando diminutivo de Siegfried, que Theodor, ou melhor, Teddie, o tratava - , sendo um deles O ornamento da massa. O título foi, inclusive, sugestão de Adorno, que Kracauer prontamente acatou (carta de 4 set. 1962). Essa é uma das razões pelas quais O ornamento da massa é dedicado a Adorno, mas não é a única.

A ligação entre os dois foi muito forte por volta do final da Grande Guerra, quando se conheceram-ambos viviam em Francoforte junto ao Meno - e conviveram intimamente. Adorno, nascido em 1903, portanto 14 anos mais jovem do que Kracauer, foi profundamente influenciado pelo amigo, como ele mesmo reconheceu no texto que escreveu sobre Kracauer, pouco antes da morte deste (e que se encontra republicado neste número de Novos Estudos). O afastamento entre eles foi se alargando aos poucos, mas continuamente, desde o início dos anos de 1920 - momento no qual se inicia a correspondência ora publicada - e os anos e as dificuldades do exílio, aquela vida prejudicada, que Adorno escandiu em Minima moralia, aumentaram as incompreensões; reaproximações ocorreram ao longo dos anos de 1940, 1950 e 1960, sem jamais reencontrar o calor dos anos ao redor da Grande Guerra.

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O ornamento da massa é um livro de construção rigorosa, riscado por arquiteto que sabia traçar com firmeza seus planos e perspectivas. Composto de introdução ("Geometria natural"), quatro partes ("Objetos externos e internos", "Construções", "Perspectivas", "Cinema") e um desfecho ("Ponto de fuga"), reúne ensaios sobre temas variados e de dicção também diversa. O início e o final são os momentos explícita e intencionalmente mais pessoais do livro, compostos de recordações elaboradas literariamente, a que não falta agudeza. Em "Geometria natural", Kracauer enfeixou três vinhetas sobre cidades francesas - Aix - en - Provence, Marselha e Paris - que oferecem uma espécie de contraponto à tríade Frankfurt - Berlim - Viena, pela qual Teddie transitava na mesma época. Frankfurt era a terra natal de ambos, Berlim, a cidade maravilhosa e Viena, interdita a Kracauer, refúgio do jovem e promissor aluno de Alban Berg - a ida de Adorno a Viena, para estudar com Berg, em 1925, exprime espacialmente a separação entre os dois amigos, que Kracauer dificilmente suportou e que procurou, de variadas maneiras, compensar.

As três vinhetas, escritas e publicadas por volta de setembro de 1926, são resultado de andanças de Kracauer pela França, enquanto Adorno permanecia longe. Na correspondência dessa época, Adorno recomenda a Kracauer que, em Paris, não deixe de assistir a L'enfant e les sortilèges, tentando colonizar com música a estadia do outro, menos sensível a essa forma de expressão artística. Como amiúde, Adorno permanece centrado em suas coisas - no caso, na sua penetrante afinidade com aquela música de Ravel, que lhe rendeu um de seus mais belos e mais pessoais ensaios2 [2 ] Cf. Adorno. Gesammelte Schriften. Frankfurt/M:Suhrkamp, 1970-1986, vol. 17, pp. 60-65. . Mas Kracauer, que estudara arquitetura, pensava antes com as formas e imagens:pontos, linhas, superfícies, planos, enquadramentos. "Desenha o que viu, todo o seu pensamento é fundamentalmente um apropriar-se dos objetos por meio do olhar dirigido a eles" (p. 277).

"Geometria natural" fala de várias coisas, e algumas delas difíceis de precisar, em virtude de uma linguagem alusiva e metafórica ("Por motivos completamente irracionais, imaginei que essas três pequenas peças formassem, no que diz respeito à atmosfera, uma boa abertura. Em virtude de seu caráter geométrico, elas ressoam a palavra 'ornamento' do título", lemos na anotação à carta de 10 dez. 1962). Mas há criptografia autoreferente, no menino de 13 anos ("você tem 19, eu 34", escrevia Kracauer a Adorno em carta fervorosa de 5 abr. 1923), "jovens de sua idade" (p. 51), enquanto o mais velho, que se sente inseguro nessa distância, é refratado em mil cores e formas. O ornamento da massa poderia ter sido um ensaio de reconciliação dos dois amigos, fechando o arco da intimidade da juventude, do afastamento da idade adulta e da aproximação discreta, cuidadosa e contida da idade voraz.

Nessa época de reaproximação, Kracauer escreveu a Adorno: "É interessante que os críticos mais jovens sempre mencionem o parentesco entre você, eu, Benjamin e Bloch" (carta de 1 abr. 1964). Tal parentesco é perceptível com clareza em "Geometria natural", sobretudo com Benjamin e Bloch, que escreveram textos similares. Mas, além disso, há na abertura de O ornamento da massa o anúncio dos grandes temas do livro:"aqueles que esperam", a multidão, o asilo, o "esplendor sensível", o calor humano, a herança daquele tempo, a mercadoria, "os pobres lá fora", o vazio.

Essas considerações visam sugerir a engenhosa composição e articulação que arma o livro e que se espraia por todo o volume. O que não deixa de ser surpreendente e exigir faro detetivesco, dado que os textos, oriundos de jornal e publicados ao longo de anos, não foram concebidos e executados tendo em vista o livro que os reuniria, mais de trinta anos depois. Talvez concretize-se aqui uma secreta doutrina das semelhanças, que somente Benjamin saberia perscrutar:não tanto apontar as semelhanças encontradas, mas a restituição dos processos que as produzem3 [3 ] Cf. Benjamin, W. Gesammelte Schriften. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1991, vol. II. 1, p. 204. . Ao que parece, é o que o próprio Kracauer tinha em mente, ao assinalar a Adorno que escrevia seus textos de jornal segundo um ponto de vista unificado e com o maior amor e cuidado (cartas de 22 jul. 1930, 1 ago. 1930, 1 abr. 1964). O aventureiro, ou detetive, que avançar nessa direção pode se orientar pelo uso da bússola presente na escrita de Kracauer: a metáfora e, sobretudo, a analogia. Assim, o livro "poderia parecer, a um astrônomo, uma nebulosa" (p. 57).

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Analogia? Exatamente o mesmo procedimento que Kracauer detectara em seu mestre Georg Simmel? Um bom roteiro para começar a percorrer e se perder em um livro como O ornamento da massa talvez seja voltar à interpretação de Simmel por Kracauer para este último. "Onde há uma analogia autêntica, precisa existir de fato o paralelismo dos eventos por ela afirmado, cuja similitude de sentido é livre de qualquer arbítrio subjetivo:ela é por nós descoberta, mas não desencadeada" (p. 255). É o que encontramos em Kracauer e pode ser aferido no uso do "como", marca registrada da formulação analógica. Ele pulula pelos ensaios, como no exemplo a seguir, que tem a vantagem de referir-se a procedimentos que também são próprios de Krac (como os amigos o apelidaram):

Ágil e delicado, [ele] estende-se em amplitude e profundidade, evocando a idéia de um mundo de rara vibração; como uma paisagem ensolarada, em que os rígidos contornos dos objetos se dissolvem, ficando apenas um único mar de luz trêmula, que reflete a coisa singular (p. 272).

Embora o passo provenha do ensaio sobre Simmel contido em O ornamento da massa, poderia sem dúvida ser extraído da vinheta inicial do livro, sobre o menino e o touro, ou de muitos outros textos de Kracauer. Teria ele aprendido com Simmel a falar por meio de analogias? Como quer que seja, o movimento analógico subtrai-se à univocidade do conceito: "quanto mais assistemático um espírito [...], tanto menos as suas realizações enraizam -se em convicções que suportam a luz plena da clareza conceitual" (p. 250). Daí a ambigüidade que encontramos em muitos dos textos de Krac, devida menos a um arco de possibilidades de sentido do que a um resíduo de opacidade que não se deixa dissolver jamais. De onde provém, ou em que se enraíza esse resto irredutível? Devemos ver aí um nexo social social forte, que jamais deixa de comparecer em suas análises.

A recente publicação da correspondência de Simmel recolhe algumas poucas cartas de Kracauer e dá em alguma medida notícia das relações entre ambos. Aluno de Simmel por volta de 1907 - 1908, Kracauer manteve com ele, até sua morte em 1918, um contato constante, que sem dúvida representou a inflexão fundamental em sua vida intelectual, possibilitando que o jovem arquiteto assumisse definitivamente seu interesse pela filosofia, pela sociologia e - síntese dessas duas vertentes - pela crítica do presente, vista em formas as mais inusitadas e inesperadas, de significação aparentemente secundária: sua entrega apaixonada pela superfície, pelos restos, pelos vestígios.

É o que se vê no seguinte trecho de carta a Simmel, ainda nos anos da Grande Guerra: "Sou um ser humano tão intensamente dado à realidade e à visão, tão profundamente interessado na visada do singular, que quase sempre perpetro as generalizações conceituais com má - consciência"4 [4 ] Carta de Kracauer a Simmel, 30 nov. 1917, em Simmel, G. Briefe 1912-1918 (Gesamtausgabe, vol. 23). Frankfurt/M: Suhrkamp, 2008, p. 882. . Um trecho que, em sua simplicidade, oferece uma chave para entendermos Kracauer: sempre que, em suas análises, se deparava com o conceito tomando forma, ou o conceito aparecendo, cada vez mais nítido, em meio à paisagem que se descortina apenas gradualmente, Kracauer optava pelo concreto. Não se trata, absolutamente, de repúdio ao conceito, mas de uma afinidade irredutível - talvez decantada mais e mais em sua vida de jornalista - repórter - com o material de que é feito o mundo no qual vivem os homens. Gostava de vaguear pelos espaços, perscrutar os vãos, auscultar o murmúrio da cidade.

O jornal foi seu meio. No início dos anos de 1920, em plena hiperinflação, ao assumir a profissão de repórter, Kracauer mergulha de vez na realidade concreta, ampliando o leque dos objetos e dos temas de investigação. No Kracauer repórter nasce uma sociologia a partir do espírito da reportagem - em paralelo ao consumado por outro aluno de Simmel, Robert Ezra Park, em Chicago5 [5 ] Cf. Lindner, R. Die Entdeckung der Stadtkultur. Soziologie als Erfahrung der Reportage. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1990. Kracauer discutiu em detalhe o problema da reportagem como modalidade de conhecimento (ver Kracauer, Werke, op. cit., vol. 1, p. 222). . Ambos se encontraram, sem o saber, no ponto arquimediano - simmeliano, o "sentimento infalível para diferenças" (p. 254) e a "refinada e incomum capacidade de observação, de uma sensibilidade sem igual" (p. 246), que resultou em duas vertentes importantes, e muito diversas, da recepção de Simmel ao longo do século XX.

Entretanto, apesar do americanismo que impregna a época, Chicago não é Frankfurt e Kracauer não é Park. O pendor filosófico de Kracauer leva inevitavelmente ao que está por detrás, do fenômeno de superfície para uma interpretação que acaba por revelar algo que, ali estando, jamais era visto. Em Simmel encontramos, formulado talvez de modo mais abstrato, a sonda que penetra do fenômeno de superfície até a verdade, resultado sempre do processo de interpretação, adjudicação de sentido6 [6 ] A esse respeito, ver Waizbort, L. As aventuras de Georg Simmel. São Paulo: Editora 34, 2000. . Com efeito, vale para Kracauer exatamente o que ele diagnosticou em seu mestre: "o mediador nato entre o fenômeno e as idéias" - nem totalmente empírico, nem totalmente metafísico (p. 273). Essa natureza intermediária recebe, em Kracauer, milhares de refrações, nos objetos de estudo e mesmo na situação do próprio analista. Sua empreitada é um abandona-se à multiplicidade, renunciando a princípios unificadores, que tudo abarcam. O mundo dos fenômenos se oferece ao intérprete, que o submete incessantemente a perspectivas sempre novas, iluminando-o de tantos lados quanto for capaz e revelando, nesse surto de movimentos, aspectos que estavam e permeneciam ali, mas não víamos. Seus objetos de interesse não nos são distantes, nem mesmo estranhos, embora possam aparecer de modo estranho: "um esforço básico de Simmel é liberar todo fenômeno espiritual de seu falso ser - para - si e mostrar como ele está enraizado nos grandes nexos da vida" (p. 252).

Foi Teddie, em sua relação ambígua diante de Georg Simmel, que identificou com acurácia a importância do antigo professor para Friedel, ao mesmo tempo em que sugere, em tom crítico, o peculiar nexo de pensamento e escrita que caracteriza a ambos:

Ele [Kracauer] se ligava a Georg Simmel e Max Scheler, os primeiros a vincular, contra a divisão oficial do trabalho, o interesse filosófico a um interesse social que, ao menos desde a morte de Hegel, caíra em descrédito na filosofia institucionalmente reconhecida. [...] Devia a Simmel não apenas a capacidade de interpretar fenômenos específicos, objetivos, voltando-se para aquilo que neles, segundo essa concepção, aparece em estruturas universais. Era-lhe, além disso, devedor de uma atitude de pensar e expor que, com demorado desvelo, articula um elo com outro, mesmo lá onde elos intermediários atravancam o movimento do pensamento, onde o andamento poderia tornar-se tenso: pensar com o lápis na mão

7 [7 ] Adorno. "O curioso realista: sobre Siegfried Kracauer". Novos Estudos, nº 85, 2009, p. ???.

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Não deve haver dúvida sobre o ponto de fuga do olhar de Kracauer, o alvo de sua reflexão:um acurado diagnóstico de seu tempo presente, das condições de existência de sua época, em suas mil e uma refrações e vibrações. Qual o seu interesse? O significado. O sentido da fotografia, da dança, da moda, da ginástica, da viagem, do circo e dos esportes, do cinema e do rádio, das ruas e dos lugares, dos cabarés, da propaganda e muito mais. Contudo, um significado intrinsecamente histórico e referido desde a raiz ao tempo presente. A partir disso, desenvolve uma referencialidade dupla, pois o significado dos fenômenos é mobilizado para caracterizar o tempo em que se vive.

O que pode ser constatado em um texto como "A viagem e a dança", de 1925, revelador de alguns dos movimentos recorrentes no pensamento e na escrita de Kracauer. Na escrita: o procedimento de abertura, o parágrafo inicial, que sintetiza e anuncia quase criptograficamente o texto, expondo de modo repentino o objeto em contexto e conjuntura inesperados.

Aquela sociedade, que se costuma denominar burguesa, escraviza-se hoje ao prazer de viajar e dançar com tal fervor, como nenhuma época anterior foi capaz de se entregar a atividades tão profanas. Seria simples demais reconduzir essas paixões espaciotemporais ao desenvolvimento das comunicações ou compreendê-las psicologicamente como efeitos do pós - guerra. Por mais corretas que sejam tais referências, elas não esclarecem nem a forma específica nem o significado que essas duas manifestações da vida ganharam no presente (p. 81).

Dessa forma, Kracauer arma seu problema, e o que resta é escandir cada um dos pontos, segmentos e planos. A viagem e a dança são não mais experiências em sentido enfático, mas tornaram-se vivências (para utilizarmos uma distinção conhecida), ou nem mesmo isso. De uma experiência e exigência da alma, a viagem converte-se em busca pelo exótico, mero deslocamento no espaço (Kracauer encontrará o mesmo nos filmes e nos romances). A dança faz o mesmo com relação ao tempo; em ambos os fenômenos testemunhamos espaço e tempo transformados em acontecimento, ouseja, a sua redução à forma e à instituição. Tal redução significa duplamente que espaço e tempo perdem suas dimensões transcendentes, o infinito e o eterno, ao mesmo tempo em que o infinito e o eterno se oferecem apenas como viagem e dança. "A viagem e a dança adquiriram um significado teológico" (p. 87). Donde sua importância na época (e na nossa, voltarei ao tema adiante).

Em face dessa existência concreta e cotidiana, Kracauer acena com um "homem real, que não se reduz a uma figura do funcionamento mecanizado e contrapõe-se à dissolução no espaço e no tempo" (p. 84). Ele está imerso no "caráter duplo da existência", daí sua "tragédia". Como sabem os leitores de Simmel, estamos aqui em território conhecido, a cisão de cultura subjetiva e cultura objetiva, a tragédia da cultura, o dualismo básico da existência. A crítica do presente assume um teor normativo, figurando um outro histórico (cuja concretização no presente se resume ao domínio do estético, à obra de arte), que se poderia esperar. Sim, esperar, pois outro texto de Kracauer trata exatamente daqueles que esperam. Vivia-se um tempo de espera.

A tragédia concretiza-se no domínio da técnica e na transformação dos meios em fins - um verdadeiro tópos do pensamento que vai do final do século XIX à época da catástrofe atômica. Tal como em seus mestres, vivemos uma racionalização da vida que é desencantamento do mundo e submissão do vivo ao morto, da vida à técnica. "A dimensão técnica torna-se um fim em si mesma e origina-se um mundo que, dito de modo vulgar, não deseja nada mais do que a maior tecnicização possível de tudo o que ocorre" (p. 86). Neste mundo vivemos, e é nele, então, que a viagem e a dança ganham estatuto transcendente. Impostura, embuste e ardil; uma vida no falso, desfigurada; mas real: nosso mundo. Uma saída aparece de modo fluido: pensar até o fim a negatividade do existente.

É flagrante como o pensamento de Kracauer enraíza-se em seus mestres, anunciando e desenvolvendo temas e análises que estamos acostumados a referir a Adorno, como se pode observar na questão da dança, pois a discussão do tempo é a discussão do ritmo, e Friedel antecipa aspectos que Teddie desenvolverá sobretudo em seu texto sobre o jazz e, a seguir, na análise da indústria cultural em Dialética do iluminismo. Vale a pena ouvir sua voz:

A moderna dança de salão [...] tende a expor o ritmo pura e simplesmente; a dança não exprime mais conteúdos determinados no tempo: o tempo tornou-se seu verdadeiro conteúdo. Se a dança, em seus inícios, era um ato de culto, hoje ela é um culto do movimento; se antes o ritmo era uma manifestação erótico - anímica, hoje ele satisfaz-se consigo mesmo e despacha os significados. Uma velocidade que nada mais quer do que si mesma:essa é a intenção secreta das melodias do jazz [...]. Elas impelem à extinção da melodia e a postergar cada vez mais as cadências, que designam o declínio do sentido, pois que nelas se desvela e completa a mecanização já instalada na melodia. Aqui se consuma a virada de um significado dado pelo movimento para um movimento que designa apenas a si mesmo [...]. Suas consequências não são determinadas por uma lei objetiva e referida a conteúdos, à qual também a música se adaptaria, mas brota livremente de cada um dos impulsos de movimento que se dirigem para a música. Uma individualização, caso se queira; mas uma individualização que não visa absolutamente ao individual (p. 83).

Essas linhas, publicadas em 1925, não impediram Kracauer de, em 1936 - quando Adorno lhe envia seu estudo sobre o jazz que será publicado em 1937 - , reconhecer enfaticamente o brilho da análise de Adorno, que em muitos aspectos lhe era tributária (carta de 24 out. 1936). Logo depois, quando Adorno une-se definitivamente a Horkheimer para juntos escreverem o livro sobre a dialética, o fragmento sobre a indústria cultural retoma com grande centralidade o tema da individualização: o indivíduo torna-se mero exemplar fungível, consumação demoníaca do ser genérico8 [8 ] Cf. Horkheimer, M. e Adorno, T. W. Dialektik der Aufklaerung. Philosophische Fragmente. Frankfurt/M: S. Fischer, 1988 [1944/1947], pp. 154, 162-165. . O leitor de hoje, por seu lado, fica assombrado com a clarividência de Kracauer, que descreve um fenômeno que a música tecno e sua dança consumaram com perfeição notável em nossa época. Isso demarca um aspecto central do trabalho e da reflexão de Siegfried Kracauer, que, sendo diagnóstico de época, se abre no mesmo movimento para o passado e para o futuro - um modelo de análise que permanece programa para nossa situação atual.

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Esse complexo e multifacetado empreendimento encontrará formulação concentrada e justificadamente famosa na abertura do ensaio que dá título a O ornamento da massa:

O lugar que uma época ocupa no processo histórico deve ser determinado de modo mais incisivo a partir da análise de suas discretas manifestaçõesdesuperfície, doquedosjuízos daépoca sobresi mesma. Estes, como expressão de tendências de época, não são uma prova conclusiva para a constituição global da época. Aquelas, em virtude de seu caráter inconsciente, garantem um acesso imediato ao conteúdo fundamental do existente. Inversamente, ao seu conhecimento está ligada a sua interpretação. O conteúdo fundamental de uma época e seus movimentos despercebidos iluminam-se reciprocamente (p. 91).

O passo tem evidente função programática e enfeixa não somente os textos reunidos em O ornamento da massa, mas vale para o conjunto bem mais amplo dos artigos que Krac publica naqueles anos9 [9 ] Ver Kracauer, Werke, op. cit. , vol. 5, no prelo (2010). Atualmente disponíveis em Kracauer, Schriften. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1990, vol. 5, e Kracauer, Frankfurter Turmhaeuser e Berliner Nebeneinander. Zurique: Epoca, 1997 e 1996. Além disso, ver os escritos sobre cinema reunidos no vol. 6 de Werke, op. cit. . O esforço em iluminar uma época é recorrente no historismo do entreguerras, no qual Kracauer, a seu modo, se enquadra, e permanecerá um desafio cognitivo até seu acerto de contas com a história, em seu último e inacabado livro: History: the last things before the last (póstumo, 1969). Falar assim da época supõe tratá-la como uma unidade, e é por ser um todo que ela pode ser lida a partir de seus fragmentos, despojos, restos, marcas de superfície, pátinas. Há um fio secreto que tudo enlaça, como no panteísmo estético simmeliano. Dessarte, as descontinuidades, embora possam ser assinaladas, são em última instância subsumidas na síntese epocal - e talvez essa seja a crítica mais contundente que se possa fazer a Kracauer, pois os restos poderiam ser as fagulhas que implodem a unidade da época - , justamente um dos problemas que Benjamin tentou enfrentar em suas famosas teses (ver o protocolo juntado à carta de 16 out. 1960).

A massa de que fala Kracauer é algo novo, que em uma espécie de "salto qualitativo" (carta de 25 jul. 1930) se torna o ornamento de si mesma. Em outras palavras, a massa passa a comportar o ornamento, como um de seus feitos - uma nova contribuição para a psicologia, a sociologia, a morfologia e a estética das massas. O ornamento é da massa e para a massa; o espectador do ornamento é ela mesma.

Tais ornamentos deixam-se ver em momentos e situações variadas, como a reiterar que são mesmo uma marca dessa nova massa:nos estádios, nas revistas, no cinema, na dança, no cabaré, na ginástica. No momento em que a ideologia nacional - socialista eleva o "povo" à instância penúltima de decisão (a última é evidentemente o Fuehrer, que ademais sintetiza o povo), Kracauer lhe contrapõe a massa, como desvinculada, sem personalidade, composta apenas pelo número - enquanto o povo remete a uma comunidade e, portanto, a vínculos, valores e história (mesmo que falseados). Aqui, as unidades são as mesmas que foram assinaladas no ensaio sobre a viagem e a dança: não o indivíduo, mas algo genérico - "membro da massa". Uma de suas qualidades é esvaziar as qualidades porventura existentes, ou que existiram em fenômenos similares. Por essa razão, também se pode dizer que "o ornamento é um fim em si mesmo" (p. 93) e todo o esforço despendido para sua configuração não vai além disso. Ir além seria utopia, algo de que Kracauer desconfia (cartas de 4 jul. 195110 [10 ] Ver neste número de Novos Estudos Cebrap, p. 41. e 16 out. 1960), e assim prefere simplesmente esperar.

O caráter linear do ornamento da massa é evidenciado pelo pensamento visual de Kracauer; as figuras que porventura aparecem nas formações da massa (nos cabarés, nos desfiles, nas evoluções, nos espetáculos) são sempre linhas, subsumidas à figura que formam. Por isso sua individualidade é nula. Manifesta-se aí a correspondência entre o ornamento da massa e o processo de produção capitalista, que diz respeito à calculabilidade e à impessoalidade; ademais, tanto um como outro são processos totais, nos quais as partículas trabalhadoras se anulam no produto final. "O ornamento da massa é o reflexo estético da racionalidade almejada pelo sistema econômico dominante" (p. 95). Daí sua legitimidade, pois configura uma forma estética ancorada na realidade; e é por essa razão que o ornamento da massa entretém e diverte a massa, oriunda das fábricas e dos escritórios. Trabalhando sobre o que restou, a massa cria seu próprio ornamento.

Nisto se vê o respeito e o interesse de Kracauer pelas formas desprezadas. Contra uma arte elitista e mesmo contra a grande arte - cuja época teria passado e cujas energias se esgotaram - , ele tece o elogio do entretenimento de massa, que ao menos tem teor de realidade. Entretanto, sua realidade está inteiramente à serviço da fuga da realidade. Isso se explica pelo nexo de ofuscação produzido pela dialética do iluminismo e seu ímpeto de dominação da natureza (interna e externa ao ser humano), que Kracauer não deixa de formular. O embate de mito e razão resultano processode desmitologização, e"a época capitalista é uma etapa no caminho rumo aodesencantamento" (p. 96). Assim, inscreve a época contemporânea em um nexo histórico - universal, que será explorado em detalhe logo a seguir por Horkheimer e Adorno em seus fragmentos filosóficos de 194411 [11 ] Em carta de 29 maio 1931, Adorno comunica a Kracauer: "Em conjunto com Horkheimer, trabalho no esboço de uma teoria da dialética". Trata-se do primeiro anúncio do que será, anos depois, a Dialética do iluminismo. No plano da biografia dos dois missivistas, esse anúncio é um marco na passagem definitiva de Adorno da esfera de proximidade de Kracauer para a de Horkheimer, consumando o longo processo de distanciamento. A outra face dessa mesma afirmação pode ser lida na carta de 12 jan. 1933, na qual Adorno comunica que seu livro sobre Kierkegaard será dedicado a Kracauer "em testemunho de nosso trabalho comum", que tinha ficado passado. Na mesma carta, e em várias outras, Adorno manifesta o intuito de "selar a paz" entre Kracauer e o Instituto para pesquisa social, isto é, Max Horkheimer. . Entretanto, se a racionalidade capitalista significou, para Kracauer, o processo do moderno, ela não se identifica com a razão tout court, pois que é uma "razão turva", caracterizada por uma opacidade própria, nomeadamente com relação ao ser humano, que é instrumentalizado para os fins da produção. Kracauer não critica o capitalismo por um excesso de racionalização (tal como a crítica conservadora, organicista, saudosa da comunidade), antes o contrário: ele racionaliza pouco demais, pois a razão estanca em face do interesse capitalista, da infra-estrutura. Nesse ponto, ela trai seu compromisso com a verdade.

O caráter abstrato é algo característico dessa razão, que é reconhecida por Kracauer em sua ambiguidade: ela é progressiva ao atuar como força desmitologizadora e regressiva ao enrijecer-se em fórmula. Não há dúvida de que o tema e o problema da ratio capitalista perpassam como um fio de Ariadne O ornamento da massa e os escritos de Kracauer do entreguerras. Esquematicamente, poderíamos dizer que Kracauer pensa extremos: uma "sociedade dominada pela ratio autônoma", isto é, uma razão que se autonomiza de toda substância e torna-se cega e, no pólo oposto, uma "ratio emancipada" (pp. 192 e 202). Em termos históricos e com os vetores direcionados para o tempo presente, isso conduz a uma espécie de encruzilhada da razão:

O pensamento atual encontra-se diante do dilema de se abrir à razão ou continuar à deriva, sem abertura para ela. Não pode ultrapassar os limites que ele mesmo se impôs, sem que o sistema econômico, que é sua infraestrutura, seja substancialmente alterado (p. 98).

Sem pronunciar o termo revolução, é disso que se trata. Nesse ponto pode-se aquilatar o débito do pensamento de Kracauer com o marxismo, que pede cuidadosa ponderação e que passa também necessariamente pela compreensão da delicada conjuntura alemã12 [12 ] Sobre tal conjuntura, ver o trabalho já clássico de Peukert, Detlev J. Die Weimarer Republik. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1987. . Muito produtivo seria também enfocar esse mesmo problema na constelação intelectual formada por Krac, Teddie, Benji (Benjamin), "dupla amiga Lênin e Trotski" (Horkheimer e Pollock), Bloch, que a publicação progressiva das diversas correspondências permite reconstituir. No caso em pauta, vale assinalar como as ênfases e as perspectivas também vão se alterando ao longo do tempo:assim, quase dez anos após a publicação do ensaio que discutimos, comentando o texto de Adorno sobre o jazz, Kracauer parece descrer da possibilidade de uma tal transformação (carta de 24 out. 1936).

O nexo de pensamento, razão e infra - estrutura tolhe, portanto, a possibilidade de uma emancipação humana, não obstante o potencial emancipador da razão, de que Kracauer não duvida e do qual não abre mão. O intermezzo sobre a dialética do iluminismo, no ensaio "O ornamento da massa", permite-lhe retomar seu tema assinalando que o ornamento da massa possui uma ambigüidade similar à ambigüidade do caráter abstrato do pensamento capitalista. Sugerindo o nexo de fundamento que une o ornamento da massa à época capitalista e ao seu momento atual, passa a assinalar seus traços progressivos e regressivos. De um lado, o ornamento da massa elimina os laços orgânicos e "dessubstancializa a natureza", uma evidente desmitologização. Digamos que ele aparece claramente como um artifício humano. De outro, há novamente uma carência, uma falta de racionalidade, dado que a razão estanca antes de chegar ao ser humano e falha em preservá-lo em meio à massa. Não por acaso as figuras do ornamento são mudas e sempre disjecta membra- formas da abstração e déficits de concretude, que dizer de individuação. Kracauer subsume isso na rubrica "culto mitológico", como que para enfatizar o retorno ao mito em meio à luz da razão.

Esse retorno é um dos temas importantes de "O ornamento da massa", pois Kracauer cerra as fileiras contra as tentativas românticas e irracionais de atrelar novamente o ser humano a uma natureza mítica, recorrentemente tomada como originária e impoluta - essa a regressão, em face dos progressos da razão, mesmo que capitalista. Ele é taxativo, afirmando a irrealidade desses devaneios que, contudo, tiveram, e ainda têm, adeptos e defensores estritos, quando não fervorosos.

Como contraface, tece a defesa do ornamento da massa, sem contudo deixar de reconhecer seus limites - precisamente os limites da sociedade contemporânea, os limites da ratio capitalista. Há toda uma teoria da arte in nuce no ensaio, que depende da teoria das "esferas" e do "grau de realidade" no qual se baseia, a cada vez, a obra de arte. Gostaria de citar esse passo, em tudo sugestivo:

Se consideráveis teores de realidade são subtraídos da visibilidade do nosso mundo, então a arte tem que explorar aquilo que sobrou, pois uma exposição estética é tanto mais real, quanto menos ela prescinde da realidade exterior à esfera estética. Por menor que seja o valor do ornamento da massa, segundo o seu grau de realidade ele está acima das produções artísticas que cultivam os sentimentos elevados e obsoletos em formas pretéritas [...] (p. 95).

Evidentemente, trata-se ao mesmo tempo do problema das formas e de seu envelhecimento, obsolescência e atualidade, uma questão que somente se deixa resolver na análise da obra singular, que configura a seu modo, único, a forma. Não obstante, vibra aqui uma sensibilidade aberta para formas artísticas menores e menos nobres, mas que, no entender de Kracauer, são mais reais do que a grande arte - o que deve ser compreendido, ainda, com vistas a dois desdobramentos: como uma clara tomada de posição nos debates da época, por exemplo com relação ao realismo (pois o grau de realidade é um parâmetro para os debates sobre os realismos, que marcaram época) e como indicativo da massa como objeto estético (ou seja, da reprodutibilidade técnica da arte e de seu direcionamento para a massa, para não falar da estetização da política).

Essa teoria da arte, ancorada no reconhecimento do processo de produção capitalista e de sua racionalidade específica, e considerando ainda a dialética de mito e razão, volta-se para as manifestações de superfície, que não são reconhecidas como arte. Há por assim dizer um deslocamento do locus da arte, que se dirige para essas novas formas - e esse deslocamento é o movimento da arte para a nossa posição histórica, diz Kracauer. Fica sugerida a morte da grande arte, cuja época passou, e a abertura futura para uma arte que só pode ser uma arte revolucionada, uma arte da revolução. Uma arte pós - ornamento da massa, que se alce a um grau de realidade mais elevado, vale dizer, que rompa com os limites da ratio capitalista.

Voltemos ao parágrafo de abertura e ao problema da unidade da época. Postulá-la - condição de possibilidade para o tipo de análise proposta e realizada por Kracauer - significa tomar o partido da totalidade e assumir um ponto de vista marxista, que podemos aferir no divisor de águas de 1923, História e consciência de classe, onde se lê:

[...] a essência do método dialético consiste [...] no fato de cada momento apreendido correta e dialeticamente conter a totalidade toda [die ganze Totalitaet] e de o método todo poder ser desenvolvido a partir de cada momento. [...] no momento singular radica a possibilidade de desenvolver, a partir dele, toda a riqueza de conteúdo da totalidade. [...] a essência da história consiste precisamente na modificação daquelas formas estruturais por meio das quais ocorre a cada vez a confrontação do homem com o seu meio e que determinam a objetividade da sua vida interior e exterior. Mas isso só é possível, objetiva e realmente (e, por conseguinte, só pode ser adequadamente compreendido) se a individualidade, a unicidade de uma época, de uma formação etc. , que consiste na peculiaridade destas formas estruturais, for encontrada e indicada nelas e por elas

13 [13 ] Lukács, G. Geschichte und Klassenbewusstsein. Studien ueber marxistische Dialektik. Neuwied/Berlim: Luchterhand, 1970 [1923], pp. 297, 298, 273-274.

.

Creio que podemos referir a tomada de posição e o programa de Kracauer a essa discussão, embora o problema da unidade da época não estivesse limitado ao debate no interior do marxismo. Antes o contrário; creio que Lukács e Kracauer vêem-se confrontados com essa questão, que assoma por vários lados e disciplinas. Temos, em ambos, um posicionamento evidentemente contrastivo14 [14 ] Cf. Waizbort, A passagem do três ao um: crítica literária - sociologia - filologia. São Paulo, Cosac Naify, 2007, parte 3. . Não há dúvida, entretanto, de que a questão da totalidade - posta em posição central pelo livro de Lukács - é capital para Kracauer e está articulada ao problema da unidade da época e suas manifestações.

6

O problema da totalidade foi debatido por Kracauer e Adorno em mais de um momento e, pode-se supor, sobretudo oralmente. Não obstante, ao comentar a leitura de Os empregados, Teddie reiterou a Friedel a necessidade e a importância de conseguir operar uma categoria de totalidade que não se desfaça em idealismo (carta de 26 maio 1930). De modo menos evidente, é esse mesmo problema que avulta no duro embate propiciado pela publicação de Jacques Offenbach e a Paris de sua época (publicado simultaneamente em francês e alemão em 1937).

Em uma carta implacável (13 maio 1937), Adorno acusou a leitura do livro e elencou uma série de objeções, não somente de detalhes, mas de concepção e realização. O problema da época aparece não apenas no título do livro, mas é a contrapartida da idéia de uma "biografia da sociedade", que se configuraria como totalidade ancorada em um registro epocal - em última instância, as relações sociais de produção. Isso propicia, em mesma medida, a chave para a decifração histórica dessa sociedade e, por tabela, do compositor que nela vive e atua.

O enfoque dado ao compositor foi criticado por Adorno utilizando, em geral, os mesmos argumentos que Kracauer havia destilado em sua crítica às biografias. Adorno formulou o problema apontando o caráter abstrato do modo como estava posta a relação de indivíduo e sociedade, atribuindo autonomia ao primeiro e articulando as duas dimensões de modo mecânico, de sorte a indicar que àquela sociedade cabia aquele indivíduo e vice - versa. Assim, abdicava da verdadeira tarefa, que seria suprimir o "dualismo figura - fundo", ou seja, passar de uma má abstração para uma compreensão verdadeira da totalidade social, vale dizer da história. As exigências para tanto não eram desprezíveis, a começar pelo reconhecimento do material propriamente musical, que havia sido deixado de lado por Kracauer em favor de uma abordagem que privilegiava a opereta como uma espécie de obra de arte total às avessas e na qual, por essa razão, prescindindo da análise técnica, o elemento musical dissolvia-se em meio ao resto. Adorno irritou-se; mas o problema tinha de fato um alcance mais amplo, que era a possibilidade de exposição do amplo nexo social - histórico no qual se assentava Offenbach. O que exigiria a passagem de uma totalidade abstrata para uma totalidade concreta (que jamais poderia prescindir da análise do detalhe), e exatamente aí Kracauer teria sucumbido. No final das contas, o livro não teria dado conta nem do indivíduo concreto - pois ele não é uma mônada autônoma - , nem da sociedade concreta, nem da música de Offenbach, a ser visada em seu "caráter social". Embora não diga com todas as letras, Teddie acusa Friedel de escrever uma biografia leve, mundana e no final das contas falsa: falsa na exposição do compositor, da sociedade, da época e da música15 [15 ] A crítica a Kracauer foi discutida com Benjamin: ver as cartas trocadas por Adorno e Benjamin entre 4 e 17 maio 1937 em Adorno e Benjamin, Briefwechsel 1928-1940. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1994, pp. 240-252. Além disso, Adorno publicou uma resenha do Offenbach na Zeitschrift fuer Sozialforschung, porém mais comedida: "seu método não é a análise crítica, antes a construção de uma harmonia preestabelecida entre a sociedade e o autor" (cf. Adorno, Gesammelte Schriften, op. cit. , vol. 19, pp. 363 - 365). .

7

O livro de sucesso e a moda biográfica são alguns dos fenômenos de superfície que revelam a época e que Kracauer tratou de analisar, cumprindo o programa anunciado. O caso dos livros de sucesso é emblemático: Kracauer sai do fenômeno de superfície - o best-seller - e busca seus fundamentos, vislumbrados na transformação da estrutura econômica e, a partir desta, nas alterações da estratificação social. Se o livro vende, é porque há leitores; o caminho da investigação é a busca e a identificação dos suportes sociais daquela literatura: o público. Nesse aspecto, ele acompanha um surto de interesse pela questão do público leitor que nasce às vésperas da Grande Guerra e se desenvolve amplamente no entreguerras16 [16 ] Lembro, a título apenas de exemplo, os trabalhos de Schuecking, Benjamin, Auerbach etc. . Kracauer encontra um novo estrato médio que se amplia e diferencia, cobrindo um espectro complexo que vai da grande burguesia ao proletariado. Essa classe, ou melhor, esses estratos médios serão um dos grandes desafios analíticos para o Kracauer daquela época; ele perseguirá o problema em variados fenômenos de superfície e centenas de artigos para o jornal. Trata-se de um objeto arredio, e o único modo de apanhá-lo é indiretamente, como no caso presente: considerando suas preferências de leitura.

A análise dos best-sellers permite elencar alguns traços recorrentes: o individualismo, o sentimentalismo, o erotismo, o idealismo, a aventura, o exótico, a indiferença. Ingredientes importantes na fatura do best-seller, eles facultam ao investigador desvelar a "estrutura da consciência desses novos estratos burgueses" (p. 115), que são os suportes sociais dessa literatura. Se chegamos à estrutura de consciência, conseguimos elementos suficientes para caracterizar esses novos estratos médios. Kracauer caracteriza - os como regressivos com um argumento que vimos desenvolvido em "O ornamento da massa": o amálgama dos elementos característicos e recorrentes nos best-sellers revela uma desconfiança na razão e um refúgio na natureza e no mito17 [17 ] Esse é, creio, um tipo de análise fecundo para se compreender o que um autor como Paulo Coelho faz e significa. . Esses estratos médios estavam acossados e refugiaram-se nessa literatura, assim como na moda biográfica, na viagem e na dança. Procurando evadir-se da realidade, foram especialmente suscetíveis de cooptação e conquista por instâncias doadoras de sentido. Donde o protagonismo do líder carismático. Kracauer estava farejando, nas entrelinhas dos best-sellers, o facismo. É também por essa razão que conclui o texto com uma paráfrase de uma conhecida tese de Karl Marx acerca da transformação do mundo. Pois para poder transformar é preciso, antes de mais nada, saber o que é preciso transformar: daí a importância em conhecer os novos estratos médios e suas formas de consciência.

O texto sobre a alta conjuntura da biografia aborda os mesmos problemas, atacando - os, porém, por outro flanco. Também aqui encontramos desenvolvimentos de temas do ensaio programático, tanto os já discutidos com relação ao best-seller, como aquele outro, relativo à obra de arte. Pois a biografia é considerada uma "forma artística da nova burguesia", o que vale dizer que essa nova burguesia forja uma forma artística própria, que é a biografia, e a consome (pois repete-se aqui a problematização do público leitor como suporte social de um produto cultural). Que forma é essa? Novamente, Kracauer aponta para o esgotamento das formas tradicionais - no caso, o romance - e, em virtude disso, uma situação de ausência de coordenadas. É aí que a biografia ganha conjuntura, ao basear -se em um modelo dado de antemão, cujas coordenadas estão dadas pela facticidade do biografado (e de seu mundo).

Por outro lado, a biografia faculta em negativo delinear uma resposta para a crise do romance: seria necessário posicionar-se nas" cesuras de nossa construção social" - mas quem se habilita a tanto? - e a partir dessa posição inquirir e embater-se com "as forças sociais nas quais se encarna hoje a realidade"(p. 120). Kracauer não as nomeia, embora afirme que certamente não se trata da burguesia. Novamente encontramo-nos em terreno movediço, pois a estrutura social em processo de transformação repele uma determinação direta. O ensaio sobre o ornamento da massa sugeria que a massa, embora tivesse também elementos regressivos, não podia ser ignorada em favor de outros fenômenos ainda mais regressivos. Mais ainda, era a massa que estava mais entranhada na realidade e seu ornamento aparecia como mais legítimo do que a arte burguesa.

Como quer que seja, não cabe aqui definir o que Kracauer se furtou a formular de modo unívoco, embora fique sugerida em seu texto, uma vez mais, a revolução. O argumento é muito atual e merece ser reproduzido: somente naquelas forças sociais que encarnam a realidade

[...]

pode-se buscar aqueles conhecimentos que, talvez, garantam uma forma artística autêntica. Pois a validade que esta carece só pode vir das afirmações da consciência a mais avançada que se pode desenvolver aqui, e somente aqui. A partir dela, que oferece apoio, pode nascer a forma literária; ou então ela não nasce dela e a forma fica - nos vedada no presente (p. 120).

O argumento de Kracauer, desenvolvido em variados ensaios, ressalta a questão das condições de possibilidade da obra de arte no presente. Isso implica e significa, em mesma medida, inquirir acerca de seus suportes sociais, o que, por sua vez, exige tanta clareza quanto possível com relação à estratificação social.

8

Kracauer esperava uma transformação e pretendia contribuir para a clarificação do que precisava ser transformado, donde a exigência de acurado diagnóstico do presente. Como vimos, suas análises reconheciam forças sociais progressivas (uma superação dos limites da ratio capitalista) e forças sociais regressivas (o retorno ao mito).

E, com efeito, a transformação ocorreu, e forçou - o ao exílio (carta de 15 abr. 1933, reveladora da ingenuidade política de Teddie). O triunfo foi das forças regressivas e caberia esclarecer se ele estava inscrito naquela racionalidade capitalista e, portanto, deveria ser compreendido como seu desenvolvimento histórico, ou se, ao contrário, fugia àquela lógica e a ela se contrapunha, o que significava uma ruptura histórica em face do processo capitalista. Por outras palavras, o nacional - socialismo era o estágio mais avançado do capitalismo ou sua superação revolucionária?

A posição de Kracauer parece-me ser mais esta última (uma revolução que é regressão), embora assentada no desenvolvimento do capitalismo. Mas a questão não é simples. Em variados momentos, ele realça o potencial desmitologizante das relações capitalistas, criticando somente (o que não é pouco) os seus limites. Se é assim, a superação das relações capitalistas - almejada por Kracauer - transcorreu em sentido inverso, como retorno à mitologia.

Uma resposta a essas questões, que Kracauer provavelmente diria que não se deixam responder de modo direto, passava pela definição dos sujeitos históricos envolvidos nesse processo. E essa foi uma tarefa que ele tomou, conseqüentemente, para si.

Seu interesse estava voltado sobretudo para os novos estratos médios, e mais precisamente para a transformação social que os proletarizava, convertendo - os em massa. Com a crise que caracterizou os anos do entreguerras, a transformação ganhou contornos muito nítidos. Nos dois últimos anos da década de 1920, Kracauer dedicou-se a refletir e colher materiais sobre a questão, e disso nasceu o livro Os empregados, publicado em 1930. Em O ornamento da massa, que reúne também textos desses anos, encontramos muito presente não somente essa problematização, como também ensaios que são variações, derivas, apêndices, antecipações ou complementos daquele livro.

Um exemplo é a análise do pensamento conservador - revolucionário daqueles anos, exercida no embate com as idéias do grupo de intelectuais reunidos em torno da revista Die Tat. Eles são emblemáticos dos dilemas e das aporias da época, e isso é demonstrado por Kracauer, que aponta uma série de contradições no pensamento impresso na revista. Kracauer intitula sua análise "Rebelião dos estratos médios", não deixando dúvidas acerca de onde situa os suportes sociais daquele pensamento. Die Tat pretende oferecer um diagnóstico de época, baseado no repúdio simultâneo do liberalismo, do socialismo e do comunismo. Seus conceitos de base são "povo" - em contraposição a indivíduo e massa - e "estado" - unidade integradora e totalizante de caráter orgânico e irracional. Esses dois eixos revelam sua posição anti - racional e anti - iluminista, o que permite a Kracauer destilar a relação contraditória de mito e razão. Com efeito, temos aqui uma mitologização, de sabor romântico, do povo e de seu estado. Convertê-los em mito é, contudo, uma resposta histórica aos limites da razão, à sua limitação como ratio capitalista. Aparecendo apenas sob essa forma histórica tolhida, a razão é descartada em favor do mito. Pois como ratio capitalista, ela apenas causa desintegração, cuja face mais pungente são aqueles anos de crise aguda. E os que mais sofrem são os estratos médios, os empregados, que são "dessubstancializados" (p. 131).

Kracauer argumenta em duas frentes. De um lado, mostra uma série de contradições que caracterizam o pensamento exposto em Die Tat: sirva de exemplo o conceito de indivíduo, de claro enraizamento liberal, que em vez de ser negado - dado que se repudia energicamente o liberalismo - , é recauchutado, embora incompatível de raiz com a apologia do estado orgânico e vital. Essa e outras contradições levam Kracauer a concluir que se trata de uma rebelião "da natureza contra o espírito" (p. 140). Ou seja, contra a razão, que aparece somente em sua forma tolhida. De outro lado, Kracauer insiste nos suportes sociais: nos estratos médios. São eles, como enuncia o título, que se rebelam. Sua rebelião, contudo, é de certo modo amorfa: contraditória na pena de seus intelectuais e, por conta da mencionada dessubstancialização, desprovida de caracterização estruturalmente decisiva no que diz respeito ao seu lugar social. Pois os estratos médios se proletarizaram (uma clara conseqüência daqueles anos de crise), embora não aceitem esse movimento. Isso converte-se em repúdio ao capitalismo, e nesse movimento de repúdio à ratio capitalista vai junto a razão. Daí o sucesso do mito, seu apelo, um movimento que ao mesmo tempo lhes faculta negar tanto o liberalismo como o marxismo. Para Kracauer, as camadas médias - e é daí que advém seu interesse enorme por elas - são uma espécie de centro de gravidade e sismógrafo. Exprimem como nenhum outro momento da sociedade as transformações, as contradições, as aporias e a crise da época. Nesse sentido, elas são também uma espécie de fiel da balança. Para onde se inclinarem, ou quem as conquistar, levará o bolo. Também aqui a história encarregou-se de oferecer resposta.

9

Entretanto, a resposta histórica demorou ainda um momentinho para chegar, e enquanto isso os estratos médios ficaram esperando; essa espera é o tema de um outro ensaio do livro, "Aqueles que esperam", publicado em 1922. Portanto, quase dez anos antes, quando as cores ainda não eram tão pardas, mas a crise atingia o seu auge com a hiperinflação. O confronto dos ensaios sobre os intelectuais ao redor de Die Tat e aqueles que esperam permite delinear, embora em traços gerais, um pouco do movimento operado por Kracauer ao longo dos anos de 1920. Ao final da década, não há dúvida de que Kracauer se alinha ao materialismo histórico, embora com muito cuidado tático e estratégico nas formulações para não ser tachado de comunista ou socialista18 [18 ] Sobre tática e marxismo, há uma boa discussão por ocasião da aula de Adorno no seu processo de habilitação na Universidade de Frankfurt, em 1931 (ver as cartas de 7 e 8 jun. 1931). . Publicando em um jornal cuja linha vai tendendo cada vez mais para a direita no curso da década, e dependendo por inteiro do emprego para sobreviver, Kracauer é cuidadoso também no âmbito das condições materiais de existência - em carta a Adorno, no início da difícil situação do exílio, ele afirma: "atualmente só posso escrever sobre coisas ideais a partir de fundamentos materiais" (carta de 21 jan. 1933). De toda forma, o recrudescimento da situação ao longo dos anos exige do jornalista tomadas de posição cada vez mais claras e fortes. Assim, ao debater com a turma de Die Tat, não deixa de formular em um tom de debate aberto e argumentação que visa à persuasão, embora obviamente tivesse a mais séria das desconfianças quanto àquelas posições. Como se viu, a argumentação busca fundamento na estrutura social, destacando sua transformação; o fundamento são as condições materiais de existência e as formas assumidas pelas relações de produção e consumo. No início dos anos de 1920, essa perspectiva, embora não esteja ausente, está longe de aparecer com a ênfase e determinação do final da década. Na análise dos que esperam, Kracauer indaga pelas posições contemporâneas de cunho individual - e não coletivo - resultantes do avançado processo de secularização. Seu ponto de partida é a constatação de um vazio existencial, oriundo do desencantamento do mundo, "sofrimento metafísico pela falta de um sentido mais elevado no mundo" (p. 149). Mas, em vez de indagar pelas condições sociais desse vazio, Kracauer dirige seu olhar para a "situação anímica" (p. 150), direcionando a discussão para a interioridade. Esse rumo de problematização é fundamentalmente diferente de uma postura mais materialista, baseando-se no final das contas em uma psicologia, mesmo que social.

Isso pode e pede ser explicado por dois lados, que obviamente acabam por se encontrar. Um deles é a situação pessoal de Kracauer: também ele vivia um temor e vazio existencial, que as cartas a Adorno do início dos anos de 1920 revelam com a eloqüência de uma paixão. Nesse sentido, também ele era um daqueles que esperavam. O outro lado diz respeito a Kierkegaard, uma presença muito importante na relação de Friedel e Teddie. Não é mero acaso que as idéias de "salto" e "esfera", de origem kierkegaardianas, apareçam nesse texto e em muitos outros. O filósofo da interioridade fornece, embora sem ser nomeado, o enquadramento da problematização de Kracauer. Para o problema formulado em termos subjetivos, só cabe o "salto", a assunção de um valor como ato de crença cujo fundamento é exclusivamente subjetivo e no limite inescrutável e que possui, ademais, um teor decisionista afim com o decisionismo político que ganhava força naquela quadra histórica.

Discutir Kierkegaard é assunto para especialistas; aqui poderei somente tangenciar o problema, tomando dois textos presentes em O ornamento da massa:aquele sobre Weber e Troeltsch, que é onde Kracauer retoma o problema dos dilemas e das conseqüências da secularização ("A crise da ciência", de 1923), e o ensaio sobre o "Saguão do hotel", que depende da teoria das esferas.

O embate com Troeltsch e Weber é uma discussão sobre o relativismo, um resultado histórico da perda do absoluto, do processo de secularização. O encaminhamento de Troeltsch para a superação do relativismo é ancorar os valores em uma síntese da cultura. Dessa forma, o salto não é abolido, mas realiza-se a partir do trampolim seguro daquela síntese. Kracauer discorda, pois não aceita a intuição que fundamentaria e possibilitaria uma tal síntese da cultura. Em seu entendimento esta é, também ela, relativa, e com isso o problema continua irresoluto. Com relação a Weber, o salto no absoluto é inexoravelmente um ato de fé, que não se pode nem deve mascarar (ou seja, não há jamais um trampolim seguro). Kracauer modula nos dois sociólogos o problema do salto no absoluto, mostrando como a cada vez ele revela - assumidamente ou não - uma tomada de posição com relação a valores últimos que não pode ser fundamentada no âmbito intrinsecamente científico - daí a crença. Toda essa discussão está, portanto, subentendida na análise de Kracauer do vazio existencial dos anos de 1920 - aliás, a crise na ciência nada mais é que uma de suas mil faces.

As esferas, por outro lado, são um procedimento teórico elaborado por Kierkegaard para operar distinções, separando o que é diferente. Assim, o ético não se confunde com o estético nem com o religioso, para ficarmos nas três esferas da existência determinadas pelo filósofo. Na teoria das esferas, o domínio da existência fica repartido e distinto entre as diversas esferas, que decerto não precisam seguir a repartição original dada por Kierkegaard. É o que ocorre em Kracauer, que retoma e redireciona a teoria das esferas, inicialmente em seu livro sobre o romance policial, um de cujos capítulos aparece publicado em O ornamento da massa: "O saguão do hotel". Uma leitura ousada permitiria afirmar que Kracauer, nesse texto e no livro do qual ele faz parte, reescreve a metafísica kierkegaardiana em termos do século XX e da cultura de massa. Interessa-lhe não o pecado, a fé, a ironia ou algum outro tópico do dinamarquês; interessa-lhe uma forma nova, o romance policial, que exprime de modo único, em uma forma estética própria, "a idéia da sociedade civilizada plenamente racionalizada"19 [19 ] Kracauer, Werke, op. cit. , vol. 1, p. 107. Em O ornamento da massa, lemos: "Sem ser obra de arte, o romance policial mostra à sociedade civilizada sua face verdadeira de modo mais puro do que ela usualmente está propensa a ver" (p. 192). . Com efeito, é em seu trabalho sobre o romance policial que Kracauer começa a discernir e caracterizar o ornamento da massa, a "interpretar um meio popular com os meios da filosofia clássica", no dizer de uma comentadora20 [20 ]Mulder - Bach, I. "Nachbemerkung und editorische Notiz". In: Kracauer, Werke, op. cit. , vol. 1, p. 380. . Não somente da filosofia, pois a sociologia circunscreve subterraneamente o universo sobre o qual Kracauer manuseia e adultera a terminologia filosófica. Pois o romance policial refere-se a uma esfera da realidade da sociedade, e é esta que, no final das contas, interessa a Kracauer compreender. Ou seja, o romance policial, lido sob a perspectiva da reelaboração da teoria das esferas de Kierkegaard, oferece a chave, no registro de um epifenômeno social, para a compreensão da realidade social. Manuseando provocativamente a hierarquia das esferas, o texto sobre o lobby de hotel é uma diatribe iconoclasta, ao decantar uma correspondência entre o lobby (a esfera rasteira) e a casa de deus, o templo, a igreja (a esfera elevada); uma diatribe, diga-se de passagem, calcada na distinção sociológica de comunidade e sociedade. Uma tal analogia (pois a "correspondência" é um modo de concretizar aanalogia) é possibilitada pela formaestética, mesmo que o romance policial não seja obra de arte consumada.

Nesse ponto, Kracauer retoma a teoria da arte mencionada com relação a O ornamento da massa, ou melhor, antecipa - a, pois que falamos de um texto cronologicamente anterior. Nessa esfera mais baixa, o romance policial explora o que sobrou, "leva a falar um mundo que nada diz" (p. 191); justamente aquele mundo super - racionalizado, dominado pela ratio capitalista, secularizado e carente de mito. O romance policial acaba por sugerir, em negativo e pela via da forma estética, uma outra sociedade, daquela"ratio emancipada", que antecipa a imagem evocada por Adorno, anos depois, em Minima moralia ("Sur l'eau"):uma "sociedade possível", que se abandona a si mesma, "satisfeita com sua insignificância", como que de volta a um" começo indiferenciado"(pp. 192, 193, 202).

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Não haveria como mencionar Kierkegaard e o livro sobre o romance policial sem adentrar nos meandros das relações pessoais, visto que o tratado filosófico sobre o romance policial, do qual "O saguão do hotel" constituía originalmente o terceiro capítulo, era dedicado "A Theodor Wiesengrund - Adorno, meu amigo". Escrito entre 1922 e 1925, foi uma espécie de ligação e compensação imaginárias que Kracauer concebeu no exato momento em que a íntima relação de ambos se esgarçava. O livro, tratando de um tema da predileção dos dois, consumava na dedicatória um enlace que, na realidade, deixava cada vez mais de existir. Quando Kracauer terminou o livro, Adorno já estava morando em Viena; a incerteza da relação, nesse momento, é o que explica a ansiedade de Adorno em receber o livro impresso (carta de 31 maio 1925); seu relato da leitura de Kierkegaard, ou do caixote repleto de livros do filósofo, são formas de estabelecer um vínculo com o amigo distante (cartas de 14 mar. 1925 e 10 abr. 1925)21 [21 ] Ao seu mestre Alban Berg, Adorno não deixou de relatar os percalços da relação (ver as cartas de 12 set. 1925, 15 out. 1925 e 19 ago. 1926 em Adorno, T. W. e Berg, Alban. Briefwechsel 1925-1935. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1997). Cf. carta de 10 abr. 1925 neste número de Novos Estudos Cebrap, p. 25. .

Poucos anos depois, Adorno respondeu à dedicatória de Kracauer dedicando-lhe a sua tese de habilitação, Kierkegaard: construção do estético (defendida em 1931 e publicada em 1933; ver carta de 1 abr. 1930), exatamente nos mesmos termos: "A Siegfried Kracauer, meu amigo". Se no caso do romance policial Kracauer havia escrito sobre um assunto que movia a ambos, o mesmo pode ser dito da tese de Adorno. Kierkegaard havia sido lido, inicialmente, em companhia de Kracauer, e a alentada tese é um resultado tardio daquela experiência comum22 [22 ] Sobre as leituras em comum, o início da amizade, as figurações disso na prosa de ficção de Kracauer etc. , ver Mueller - Doohm, S. Adorno. Eine Biographie. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2003, pp. 61ss. . Não por acaso, Adorno selecionou para a tese uma epígrafe de Edgar Allan Poe, um dos pais do romance policial. Uma vez finalizada a tese, Teddie espera ansioso o comentário de Friedel e, logo depois, ao se tornar docente na universidade, planeja utilizar o livro sobre o romance policial, apesar de inédito, em seu primeiro seminário de estética (carta de 29 maio 1931).

Homenageado com a dedicatória, Kracauer escreveu uma resenha do livro, "Kierkegaard revelado", que contudo não chegou a ser publicada, graças à ascensão de Hitler e à fuga, às pressas, de Kracauer para a França (cartas de jan. , mar. e abr. 1933). Não obstante, Adorno recebeu o texto da resenha, que o tocou profundamente. Muitos anos depois, em 1962, quando começaram os planos de publicação de O ornamento da massa, Kracauer quis recuperar a resenha e publicá-la pela primeira vez, o que não ocorreu em virtude do pedido de Adorno, que temia ficar em evidência demais no livro (cartas de 26 mar. 1963 e 10 abr. 1963)23 [23 ] O texto somente foi publicado em 1990: Kracauer, Schriften, op. cit. , vol. 5. 3, pp. 263-267. . Isso porque, pela segunda vez, Kracauer dedica-lhe um livro: O ornamento da massa, publicado em 1963 graças à intermediação de Adorno junto à editora, traz como dedicatória "Para Theodor W. Adorno" (nessa altura, Teddie não aparecia mais como "meu amigo").

Embora o tratado de Kracauer não seja um livro sobre Kierkegaard, este ocupa um lugar central na composição e basta compará-lo com a tese para constatar os laços que os unem: o livro de Krac inicia-se com um capítulo intitulado "Esferas", enquanto a tese de Adorno tem um capítulo dedicado à "Lógica das 'esferas'" (cf. carta de 25 jul. 1930). Lendo em paralelo os dois capítulos dos dois livros, pode-se ponderar sobre a proximidade. Apesar de todo o afastamento, pelos anos afora, Kierkegaard permeneceu um símbolo de proximidade, um território em comum (ver, por exemplo, cartas de 9 jul. 1963, 3 ago. 1963, 21 nov. 1964).

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As análises sobre o grupo em torno de Die Tat e sobre o público leitor dos best-sellers e biografias são concretizações de um tipo de análise sociológica - no caso de Kracauer, de matriz simmeliana - que procura destacar os grupos sociais. Seu avanço em relação a Simmel é enfatizar o grupo como portador - "Traeger" é o termo - chave que pode ser traduzido como portador ou suporte, conforme se enfatize a passividade ou a atividade do grupo - , ou seja, o grupo como um sujeito social, que evidentemente não se confunde nem com o indivíduo, nem com um ente superior e abstrato como nação ou o estado. É exatamente essa a discussão movida por Kracauer em "O grupo como portador de idéias", um texto de 1922 publicado em uma revista de sociologia24 [24 ] Do conjunto de 24 ensaios reunidos em O ornamento da massa, apenas três não foram publicados no Frankfurter Zeitung, jornal no qual Kracauer trabalhou de 1921 a 1933. O ensaio sobre "O saguão do hotel", parte do livro então inédito sobre o romance policial, foi considerado por Kracauer - com razão - difícil demais para ser publicado no jornal. Os outros dois, sobre Simmel e sobre o grupo como portador, são extensos demais para o jornal, além de desenvolverem uma argumentação mais detalhada, e foram ambos publicados em prestigiosas revistas científicas. .

A idéia do grupo como "Traeger" não era nova, antes o contrário. Com o desenvolvimento da sociologia e a importância que ela deu aos grupos sociais, estes logo foram interpretados como suportes ou portadores. Kracauer tentava, em seu texto, colocar ordem na casa e esclarecer como isso de fato ocorria, e ao mesmo tempo forneceu uma fundamentação para suas interpretações concretas do fenômeno. Assim, questiona os enfoques "autoritativo" e "individualista", que ancoram as idéias aquém ou além do grupo; para ele, embora uma idéia possa provir de um indivíduo determinado, é o grupo que lhe dá carne e osso e é por essa razão investiga o grupo como portador da idéia: "como mediador entre os indivíduos e as idéias que preenchem o mundo social" (p. 168).

Trata-se, então, de investigar a forma e a dinâmica dos grupos, assim como responder à velha questão do fundamento social das idéias, que não existem livres e soltas, mas apenas na medida em que são suportadas por grupos sociais determinados. Entretanto, seu texto é uma variação simmeliana, facilmente reconhecível para os leitores de Simmel, em virtude do tom, do modo de argumentação e da terminologia. É uma espécie de intermediação entre o tratamento dado por Simmel ao grupo e as análises concretas de Kracauer, como as mencionadas sobre o público leitor e o grupo ao redor de Die Tat. Talvez esteja aí a explicação para o fato de o texto ser o menos vibrante do livro, pois não possui o brilho nem de Simmel, nem de Kracauer.

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O problema da secularização reaparece com contornos muito bem definidos na aguda crítica de Kracauer à tradução do Antigo Testamento por Franz Rosenzwieg e Martin Buber, que gerou uma rápida polêmica entre os envolvidos (carta de 21 nov. 1964). Segundo sua argumentação, é a dimensão do profano que domina o presente, enquanto a religião nada mais tem a ver com a verdade. Uma vez mais lançando mão da oposição sociológica de comunidade e sociedade, escrevia: "às comunidades das religiões positivas contrapõe-se a sociedade como uma grandeza que chegou a si mesma, com seus conceitos e objetivos próprios. É nesta, e não naquelas, que, no presente, reside a atualidade" (pp. 210 - 211).

Não há mais verdade na esfera da religião. Se no passado esta possuia relação com a verdade, isso se dissolveu no processo histórico, no curso do qual "o profano se destacou das esferas teológicas" (p. 219), e reivindicar hoje essa relação é pura ideologia, que pode inclusive assumir formas variadas, de teor mitológico e neo-romântico25 [25 ] Em carta de 22 jul. 1963, após receber exemplar do recém-lançado O ornamento da massa, com a dedicatória impressa, e reler o ensaio, Teddie escreveu a Friedel: "o trabalho contra Buber me agradou especialmente, ainda hoje tão atual como naquela época". Naquela época, Benji escreveu entusiasmado a Kracauer, comentando o quanto se identificava com o texto (ver Benjamin, Gesammelte Briefe, op. cit. , vol. 3, pp. 143 - 144). .

Assim, a tradução, que procura uma "renovação religiosa", consuma antes um anacronismo, cujo significado só pode ser regressivo. Nesse ponto, Kracauer ata o processo de secularização à transformação do mundo, "reorganização do ser social", que passa necessariamente pelo reconhecimento "das relações econômicas e sociais de poder, que condicionam até as últimas ramificações a estrutura espiritual da sociedade atual" (p. 211).

No ensaio sobre Max Scheler, escrito alguns anos antes, Kracauer já havia discutido o problema da renovação religiosa, que informava o pensamento tardio de Scheler. Entretanto, ali a problematização conectava-se com o problema da espera - não somente Scheler era um daqueles que esperavam, como procurava ainda orientar os que esperam. A carência de orientação é atribuída por Kracauer à situação da época e, portanto, casa com o diagnóstico de outros ensaios do livro. "Desenraizados como ainda somos, dificilmente podemos escapar do relativismo e erramos incansavalmente de uma manifestação à outra, de cultura a cultura, mergulhando, na falta de um ser próprio, no ser de um fenômeno qualquer" (p. 229).

Essa situação, descrita do coração da grande crise de 1920 - 1923, abre evidentemente as portas para a transformação, e parece-me justo derivar daí a postura alerta de Kracauer, denunciando continuamente o lado conservador e mesmo regressivo das soluções renovadoras - da religião à política, passando pelo corpo, pelo entretenimento e tudo o mais.

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Os dois ensaios sobre Walter Benjamin e Franz Kafka oferecem uma posição situada no pólo oposto das renovações e dos relativismos, das mitologias e da ratio capitalista. No caso de Benjamin, trata-se explicitamente de um "pensamento que permanece estranho ao pensamento da época" (p. 279). E como uma das faces desse pensamento é mergulhar na variedade e na multiplicidade dos fenômenos da vida contemporânea, é lícito e talvez mesmo necessário identificar a afinidade entre os dois amigos - amigos ao menos na época em que Kracauer escrevia o ensaio - , de modo a podermos ver em espelho algo do próprio Kracauer. Eis uma amostra:

Uma rara capacidade intuitiva torna - o capaz de penetrar o mundo ancestral das substâncias e decobrir aquilo que lhes pertence desde o início (p. 280).

As formas e fenômenos vivos perturbam - o como um sonho; no estádio da desintegração, iluminam-se (p. 282).

Ele nunca perde a oportunidade de demonstrar que o grande é pequeno e o pequeno, grande (p. 282).

A varinha mágica de sua intuição toca no domínio do que pouco aparece, do que é geralmente depreciado, do preterido pela história e justo ali descobre os significados os mais elevados (p. 282).

A leitura das cartas de Benjamin a Kracauer justifica a aproximação, ao revelar o quanto Benjamin via em Kracauer uma alma que vibrava simpaticamente com a sua26 [26 ] A simpatia vibrou com intensidades variadas ao longo dos anos, mas até os anos do exílio foi pouco perturbada. Ver a correspondência ao longo dos anos em Benjamin, Gesammelte Briefe, op. cit. . E o mesmo se pode dizer do texto sobre Kafka - cronologicamente o último texto de O ornamento da massa.

As narrativas de Kafka comentadas por Kracauer "foram escritas nos anos da guerra, da revolução e da inflação. Embora nenhuma palavra em todo o volume refira-se imediatamente a esses acontecimentos, eles estão sem dúvida dentre os seus pressupostos" (p. 287). Pode-se dizer o mesmo de O ornamento da massa, embora haja, ocasionalmente, uma ou outra referência aos acontecimentos. De certa forma, aquilo que Kafka realiza em suas narrativas - "avaliar e elaborar o caos do mundo" (p. 287) - é o mesmo que Kracauer almeja em seus ensaios de jornal. Assim, os homens ou animais perdidos, confusos e desesperançados de Kafka são os equivalentes dos que esperam de Kracauer. Correspondência similar toca o problema da dialética da razão; é como se Kafka formulasse o mesmo problema perseguido por Kracauer, embora talvez se deva dizer que a precedência caiba antes ao escritor tcheco, e o frank - furteano seja uma espécie de companheiro de viagem. Ou, lembrando uma colocação com relação a Benjamin, sejam todos eles, embora cada um a seu modo, "agentes secretos" (p. 283). Note-se, dessa forma, como a expectativa e a racionalidade abordadas por Kafka aproximam-se da espera e da dialética do iluminismo destiladas por Krac:

Kafka desvia de si aquela racionalidade que, a despeito de sua força lógica, é impotente, e acompanha-a em meio ao matagal das situações humanas. Somente graças à intervenção contínua daquela racionalidade a deformidade do mundo é definitivamente exposta. Se a estupidez dominasse o mundo, ainda seria justificada a expectativa de que a inteligência poderia mudá-lo. Mas precisamente essa expectativa é desapontada pela inutilidade factual da intervenção de reflexões racionais (p. 295).

Trata-se de registros e testemunhos, de caráter sismográfico, das condições do tempo presente. Escrevendo em 1931, Kracauer assume com mais clareza a perspectiva transformadora, ante o movimento de reação do momento, que vivencia cotidianamente no jornal (cf. carta de 2 jan. 1931). Mencionei anteriormente uma passagem na qual Kracauer afirmava ser necessário conhecer para poder transformar. Esse conhecimento é a missão do agente secreto.

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Estaria Teddie, também ele, envolvido nessas missões? Vejamos o que diz a esse respeito uma carta bem posterior de Friedel (28 ago. 1954), na qual comenta as "Anotações sobre Kafka", que Adorno acabara de publicar (o costume de trocar os textos entre si perdura ao longo dos anos, sempre que as condições exteriores e interiores permitem):

Seu ensaio sobre Kafka pertence a seus melhores trabalhos. Fiquei muito satisfeito com respeito a variadas coisas: sua recusa do conceito de símbolo na estética, hoje em dia tão supervalorizado (no cinema, a dimensão anti-simbólica do que é visado nunca é suficientemente enfatizada); sua insistência em considerar Kafka literalmente; seu

Leitmotiv

, segundo o qual Kafka compreende o "sistema" a partir de seus detritos (tal como alguém que revolve o lixo e compõe, somente para si, a partir dos trapos e entulhos desprezados, figuras belas) - um tema que, creio, tratei continuamente em meus próprios ensaios sobre Kafka no

Frankfurter Zeitung

; a passagem sobre Kafka e o expressionismo e sobre sua intenção contínua de deixar o poder se confessar. A citação de Cooper é um

real find

e a parábola maravilhosa de Lessing cai bem no contexto. Sobre o tema Kafka e os detritos ocorre-me ainda que, certa feita, Benjamin disse algo similar a meu respeito:em sua grande crítica de

Os empregados, ele

comparou-me com um trapeiro

[Lumpensammler] que

chega ao raiar do dia e cata o lixo. Nem tudo me impressionou igualmente. A tentativa de pôr a descoberto as relações entre Kafka e Freud é simplista; um dos exemplos dados - a figura do "terceiro porteiro" - parece-me, ademais, muito pouco convincente. E suas variadas referências à situação política e social são, do meu ponto de vista, não somente problemáticas por si mesmas, mas também não satisfazem à relação de Kafka com sua época, mesmo que expressas de modo formalista. Mas tudo isso são coisas inevitáveis.

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O conjunto de textos que acabo de abordar forma a parte de O ornamento da massa intitulada "Perspectivas", como se viu um ajuste de contas com algumas tendências decisivas da vida intelectual alemã do entreguerras. Recapitulo sinteticamente, para oferecer agora uma visada panorâmica. O primeiro caso é a tradução do Antigo Testamento por Buber e Rosenzweig, que Kracauer julga anacrônica, mas ao mesmo tempo em sintonia com aqueles que almejam renovação religiosa em pleno mundo secularizado. Essa contradição é modulada em outra tonalidade no texto seguinte, sobre o catolicismo professado por Max Scheler em sua antropologia filosófica, de teor relativista - e na cópula de catolicismo e relativismo, que dá título ao ensaio, já se revela a contradição de que partimos. O tema ganha nova variação no texto seguinte, sobre Weber e Troeltsch, os dois grandes sociólogos da religião e do mundo secularizado, que diagnosticaram precisamente a tensão intrínseca de religião e ciência, mito e conhecimento. A seguir, vem o capítulo introdutório do livro sobre Simmel, decantando as condições de interpretação, ou melhor, o seu próprio movimento interpretativo e o interesse pelos objetos concretos do mundo concreto no qual vivem os homens. Esse ensaio demarca o centro dessa seção do livro e funciona como um ponto de rotação:a seguir, os textos sobre Walter Benjamin e Franz Kafka apontam e exploram um outro lado, derivado da rotação simmeliana. Isto é evidente na leitura de Benjamin, de quem Kracauer louva exatamente aquilo que o próprio Benjamin louvara em Simmel, a reconquista da filosofia27 [27 ] "Em contraposição a todas estas escolas antipsicológicas [o neokantismo de Cohen, a fenomenologia de Husserl] está a doutrina de Georg Simmel (1858-1918). Sua dialética característica está a serviço da Lebensphilosophie e tende a um impressionismo psicológico que, hostil ao sistema, se volta para o conhecimento da essência de fenômenos e tendências espirituais singulares. [...] A filosofia de Georg Simmel já indica uma transição de uma filosofia rigorosamente de cátedra para uma filosofia determinada de modo ensaístico ou poético" (Benjamin, Gesammelte Schriften, op. cit. , vol. II. 2, p. 810). . De modo muito diferente, o mesmo problema coloca-se com relação à Kafka: trata-se de uma obra que mostra o avesso dos mesmos problemas discutidos e modulados nos textos anteriores. Dessarte, o diagnóstico do presente conclui essa seção do livro no reconhecimento literário da confusão do mundo dos homens. Em Kafka, aquele filósofo renovado, que é a própria figura de Kracauer, aparece sob a forma do cão filósofo, "animal excepcionalmente dotado de dons filosóficos e com o qual Kafka se identifica em longos trechos", como lemos na página 288 (ver também p. 79).

Esse sumário faculta perceber como a estrutura do livro é rigorosamente pensada e construída. Apesar de ter me restringido a apenas uma de suas partes, o procedimento pode e deve ser averiguado no registro mais amplo, seja das outras partes, seja da unidade do livro. Uma outra amostra disso é o ensaio sobre os que esperam, que reproduz in nuce todo o movimento que apontei na seção "Perspectivas" e cujo avesso é a narrativa de Kafka "Diante da lei".

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A parte final de O ornamento da massa é dedicada ao cinema; Kracauer, como se sabe, foi um dos mais importantes críticos de cinema na Alemanha do entreguerras28 [28 ] A crítica cinematográfica, que ultrapassa oitocentos títulos, está reunida emKracauer, Werke, op. cit. , vol. 6, além de suas duas conhecidas monografias sobre teoria do cinema e sobre o cinema alemão do entreguerras. . Entretanto, a seção do livro dedicada ao cinema trata menos do filme (embora não falte análise fílmica) do que da indústria cultural, no momento em que essa já era indústria, mas ainda não tinha seu conceito formulado. E, apesar de suas análises sobre a literatura de massa (presentes em O ornamento da massa) e sobre o rádio (ausentes do volume), é sobretudo o cinema que realiza plenamente a vocação industrial da cultura. Como já vimos com relação aos best-sellers, Kracauer indaga pelos portadores sociais dessa forma de entretenimento, e nesse caso desenvolve perspectivas complementares, enfocando ora a indústria do cinema propriamente dita - os estúdios, a produção, o capital - , ora seus portadores sociais de gosto - exatamente as mesmas camadas médias em processo de transformação, já nossas conhecidas.

No ensaio "O mundo de calicó", Krac retrata uma cidade - estúdio cinematográfico, o mundo de fantasia, fachada, falsidade e cópia de que são feitos os sonhos do cinema. Em "As pequenas balconistas vão ao cinema", intitulado originalmente "Filme e sociedade", ele descreve o mundo falso dos enredos cinematográficos, cuja função social é entreter e pacificar os estratos médios, que são os suportes de gosto dessa forma de diversão de massa. Nesse texto de 1927, até mesmo na terminologia Kracauer reforça crítica à sociedade capitalista, ao capital e à ideologia: "a sociedade é poderosa demais para tolerar películas diferentes daquelas que lhe convêm. O filme precisa espelhá-la, queira ou não" (p. 312). O que ele reproduz? Os "sonhos diurnos da sociedade" (p. 313), como se ela pudesse estar além das classes e de suas determinações sociais. Mas tudo isso nada mais é do que ideologia em estado puro: "A quintessência dos motivos fílmicos é ao mesmo tempo a soma das ideologias sociais, que são desencantados pela interpretação desses motivos" (p. 315). O mesmo enfoque é desenvolvido no texto "Cinema, 1928" (originalmente intitulado "O cinema atual e seu público"), modulando contudo perspectivas diferentes e complementares. Kracauer passa em revista a produção alemã contemporânea, arrolando os gêneros (ficção, histórico, documental, cultural, experimental, noticiários semanais etc. ); desfibrando as técnicas de composição e construção fílmica, quando atribui grande destaque ao problema da montagem; caraterizando tanto a fotografia como a cenografia; confrontando roteiro e literatura; identificando o star - system e o espaço da crítica de cinema. As análises confluem para dois pólos, articulados entre si:o gosto e a mentalidade. O gosto é, como sempre, referido aos seus portadores sociais, e embora o cinema, como diversão de massa, conquiste a todos, são novamente as camadas médias em processo de proletarização que se destacam. Por outro lado, mentalidade é o ponto crítico, no qual o cinema renega seu potencial artístico e crítico, fugindo da realidade. É justamente nessa fuga que se pode aferir o seu sentido no contexto da época: ele é uma distração que procura ocultar a desagregação social, ao invés de revelá-la. Uma espécie de ponto de encontro de falência social e falência estética.

Já vimos, desde a abertura de "O ornamento da massa", que o processo de adjudicação de sentido é a missão do agente Kracauer; nesse momento ela se converte, com plenas letras, em crítica da ideologia. Isso culmina no último ensaio da seção sobre cinema, intitulado "Culto da distração", cujo subtítulo foi surrupiado da edição brasileira: "Sobre os cinemas de Berlim". Aliando sua atividade como crítico de arquitetura (modalidade não contemplada em O ornamento da massa) e de cinema, Kracauer analisa a tendência que transforma os cinemas em grandes palácios de entretenimento, de grandiosa arquitetura, capazes de receber verdadeiras massas de uma só vez. Nesses palácios, o filme propriamente dito é rebaixado a uma atração entre outras, apresentado em meio a uma sessão que conjuga filme, variedade, cabaré, jogos de luz e som e o que mais se mostrar propício para o entretenimento da massa. O espetáculo almeja a obra de arte total, e em meio a ela o filme, com sua bidimensionalidade específica, acaba por sucumbir, por perder sua capacidade de ilusão. O público, por seu lado, torna-se definitivamente massa: o "público homogêneo da metrópole" (p. 345), que reúne a pirâmide social de cima a baixo.

Em nenhum outro texto a questão da indústria cultural - cujo conceito caberá a Adorno, na virada para os anos de 1940, cunhar - aparece com tanto ímpeto e agudeza como no "Culto da distração", que apresenta uma página verdadeiramente antológica sobre o assunto (p. 346). A transformação do tempo livre em tempo administrado, em um negócio como outro qualquer; o ofuscamento da reflexão; o culto do vazio; as armadilhas da falsa individuação; a fuga da realidade: todos esses problemas são abordados por Kracauer e é uma pena que na correspondência com Adorno nada disso apareça. Provavelmente porque, na época de publicação dos ensaios no jornal, a comunicação oral entre os dois era constante. Na ocasião em que Adorno desenvolvia suas idéias sobre a indústria cultural, já no exílio norte - americano, o contato com Kracauer havia esmorecido, fatigado por tantas desavenças, e no momento da republicação em O ornamento da massa, seria muito custoso para Adorno rever suas posições e reconhecer o débito para com o amigo de outrora. Por outro lado, em que medida Walter Benjamin, cujo texto sobre as massas e a reprodutibilidade técnica é de 1935, é devedor de Kracauer, cabe aos leitores ponderar.

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Como sugeri, podemos aquilatar um movimento, ao longo dos anos de 1920, no qual Kracauer se desloca sutilmente de um relativismo de raiz simmeliana para um marxismo distante das doutrinas partidárias, mas ancorado nas relações sociais de produção e na luta de classes. Se as relações de produção aparecem com clareza e nudez, o mesmo não se pode dizer da luta de classes, em virtude do processo de transformação dos estratos médios. Esse processo, que conduz a uma proletarização destes últimos, de certo modo representa uma simplificação da estrutura de classe, reduzida, como assinalara Marx, tendencialmente a capitalistas e proletários. Contudo, in concreto essa polarização assume colorações variadas, como se pode perceber no debate com os intelectuais do grupo de Die Tat. Isso deixa entrever o problema do sujeito da transformação histórica almejada por Kracauer, que não parece ser o proletariado industrial, nem os estratos médios proletarizados, e muito menos um amálgama de ambos, e que conduz à situação paradoxal da ausência de um sujeito para a transformação-no final dos anos de 1920 e início da década seguinte, ele já usava o termo revolução29 [29 ] Ver a discussão do ensaio de Adorno sobre o jazz em carta de 24 out. 1936. .

Em um movimento paralelo a esse, mas distinto, ocorre uma transformação na concepção mesma de sociologia, que de certa forma é o sistema de orientação utilizado por Kracauer em suas incursões e excursões. Pois, embora possam me acusar de tentar favorecer a corporação dos sociólogos, sou obrigado a ressaltar que as construções, as perspectivas e os objetos internos e externos que Kracauer deslinda são tratados sub specie sociológica. Isso decorre de uma virada, enraizada historicamente, da filosofia rumo aos objetos concretos, e Kracauer percebeu e realizou esse movimento inicialmente alinhando-se a Simmel, como um aluno que pretendia tornar-se discípulo e que a seguir foi ganhando fôlego, repertório e enfoques próprios30 [30 ] "Mas Georg Simmel [...] foi então o primeiro [...] a realizar aquela virada da filosofia rumo aos objetos concretos, que permanece um cânone para aqueles que não se contentam com o matraquear da crítica do conhecimento ou da história do espírito" (Adorno, Gesammelte Schriften, op. cit. , vol. 11, p. 558). . As poucas cartas que sobraram da correspondência com Simmel revelam esse movimento, e os escritos inéditos dos anos de 1910 e 1920, assim como os publicados, vão demarcando os avanços graduais de autonomia e confiança de Kracauer.

Não é acaso, então, que o primeiro livro que Kracauer publica, em 1922 - portanto, coetâneo dos primeiros ensaios reunidos em O ornamento da massa - , intitule-se Sociologia como ciência. Seu próximo livro não ficcional será publicado somente em 1930 - o outro limite cronológico dos ensaios reunidos em O ornamento - e trata dos empregados, ou seja, um instantâneo dos estratos médios que tanto interessam ao sociólogo Kracauer. Pessoas que vão ao cinema, ouvem rádio, viajam e dançam; lêem biografias e livros de sucesso; vão aos estádios, aos cafés, aos magazines; se distraem e se entediam para, ao final, assistirem à demolição da Passagem das tílias.

Todos esses fenômenos, que tomo dos ensaios reunidos no livro, coagulam o interesse sociológico de Kracauer. O percurso é aquele revelado pelos livros que marcam os extremos. Em 1922, Sociologia como ciência pretendia uma fundamentação fenomenológica dessa nova disciplina, cujo nascimento na Alemanha foi tardio e abortou variadas vezes. Seu enfoque é eminentemente teórico, no sentido de uma definição de seu âmbito e problematização e de uma fundamentação das condições de seu conhecimento, para que ela possa, então, desenvolver-se plena e adequadamente (uma perspectiva "extremamente fenomenológica", como se lê na suma da sociologia alemã anterior à Guerra31 [31 ] Refiro-me ao célebre Handwoerterbuch der Soziologie, organizado por A. Vierkandt e publicado em 1931. Cito a reimpressão inalterada: Stuttgart: F. Enke, 1959, p. 578. ). No pólo diametralmente oposto encontra-se o livro de 1930, Os empregados, no qual Krac investiga a formação e a ascensão (na verdade rebaixamento) de novas camadas médias, que se convertem em massa, tanto para fruir do entretenimento da indústria cultural, como para lotar as demonstrações - espetáculos nacional - socialistas. Para compor esse estudo sociológico, Kracauer realizou incursões exploratórias no mundo dos trabalhadores não operários, predominantemente em Berlim, no final dos anos de 1920, traçando o desenho de uma nova camada social, transformada em massa em virtude de um processo inédito de nivelamento social. Interessava-lhe a nova realidade, o modo como a sociedade se transformava e assumia novas formas de organização, sobretudo no âmbito das formas cotidianas de vida, das condições materiais, sociais e espirituais de vida, de hábitos, desejos e misérias, no mundo do trabalho e no mundo do entretenimento, procurando apreender dessas transformações um retrato dessa nova sociedade e de suas formas de consciência.

18

A publicação de Os empregados, no momento em que Adorno redigia sua tese de habilitação sobre Kierkegaard, propicia ocasião para uma discussão importante entre os dois. Para Adorno, a questão que se coloca é encontrar e saber dar o peso exato para uma análise que combina improvisação na forma e experiência dos objetos, sem contudo abdicar de um procedimento documental. Kracauer responde argumentando que procurou um tipo de consideração dos fenômenos que fosse "estruturada", no sentido de não oscilar entre teoria e prática, mas por assim dizer resolvê-las ambas em um só golpe (portanto, um reconhecimento, pelo próprio autor, do percurso que realiza ao longo dos anos de 1920, saindo da Sociologia de 1922 até o estudo de 1930). Isso se consubstancia em uma "dialética material"; à diferença de Marx e Lênin, cuja dialética é tolhida por uma filosofia da totalidade, Os empregados procura libertar-se desse vínculo e transformá-la em "fogo de metralhadora". Adorno, de seu lado, formulou o problema como uma "dialética intermitente", interrompida pelas inervações de uma realidade que não se deixa subsumir. Ambos buscavam transpor os marcos do marxismo usual, que lhes parecia depender de uma categoria de totalidade com fundamento, em última instância, idealista e que por essa razão emasculava a dialética - uma busca, desnecessário dizer, que acompanhará o pensamento dos dois pelos anos afora (cartas de 12 maio 1930, 25 maio 1930, 26 maio 1930 e outras mais). No caso de Adorno, isso encontraria imediatamente lugar no que viria a ser o seu Ensaio sobre Wagner (uma espécie de avesso do livro sobre Offenbach), assentado sobre o duplo desafio de dar conta da "mediação entre categorias sociais e técnico - estéticas" e da "dedução da obra de arte total a partir do caráter de mercadoria", com o que se resolveria o estorvo do idealismo (carta de 3 maio 1938).

19

Pouco depois da tensa discussão causada pelo livro sobre Offenbach, a relação de Teddie e Friedel sofreu novo revés. Desde algum tempo, Kracauer havia se esforçado para recompor a relação com Max Horkheimer, que havia ficado estremecida pelo fato de Kracauer não ter podido, em 1930, resenhar no jornal o livro de Horkheimer Inícios da filosofia burguesa da história, publicado naquele ano. Como assinalei, ao longo dos anos de 1930 Adorno foi aproximando-se cada vez mais de Horkheimer e a emigração para os Estados Unidos, em fevereiro de 1938, selou definitivamente a ligação de Teddie com o Institut fuer Sozialforschung e seu diretor. Uma vez entrosado no grupo que comandava o instituto e sua revista, Teddie esforçou-se para ajudar seus dois principais amigos que haviam ficado para trás na Europa, Benjamin e Kracauer, buscando meios para financiá-los, trazê-los para a América e publicá-los na revista do instituto. No caso de Kracauer, Adorno estimulou-o a acertar com Horkheimer a elaboração de um estudo sobre a propaganda nazista. Embora o instituto não pudesse, ao que parece, incorporá-lo como pesquisador, podia contratá-lo como freelance, incumbido de desenvolver o mencionado estudo, a ser possivelmente publicado pelo instituto. Kracauer, exilado em Paris e vivendo em condições muito precárias - apesar do sucesso comercial e de crítica do livro sobre Offenbach, publicado em francês, inglês, sueco e alemão - , pesquisou e escreveu "A propaganda totalitária alemã e italiana", concluído em 1938. O tema já era do interesse de Kracauer (carta de 9 nov. 1936) e a possibilidade de levá-lo adiante sob o patrocínio do instituto parecia-lhe promissora, embora almejasse um vínculo institucional e material seguro (cf. diversas cartas de 1937). O resultado foi um texto de 176 páginas, sobre o qual Adorno escreveu, para uso interno do instituto, um detalhado parecer:em geral bastante crítico, mas destacando aspectos pontuais positivos. Em função disso, e do texto ser muito extenso para ser publicado na revista do instituto, Adorno foi incumbido por Horkheimer (ou tomou para si a tarefa) de "editar" o original de Kracauer, aparando arestas e diminuindo drasticamente o tamanho. Logo Teddie escreveu a Friedel, explicando seus procedimentos de "edição", enviando o texto revisto e pedindo autorização para a publicação da versão editada (carta de 28 jun. 1938). Kracauer respondeu em longa carta, considerando o texto "editado" na verdade um texto de Adorno, tão distante estava do original que ele havia enviado para Nova York. As intervenções de Adorno no texto não se limitavam a cortes, mas praticavam amplas reformulações, de sorte que Kracauer não se reconhecia mais como autor e, por essa razão, negou-se a autorizar a publicação (carta de 20 ago. 193832 [32 ] Ver neste número de Novos Estudos Cebrap, p. 35. ).

Houvesse espaço, seria interessante passar em revista os aspectos mais substantivos desse contratempo, que exige reconstruir as análises que Horkheimer e Adorno ensaiavam àquela altura e que ganhariam forma acabada em textos como "O estado autoritário" e Dialética do iluminismo. Kracauer não fazia parte do grupo; não lhes parecia suficientemente marxista e, embora fosse rico em insights, não tinha nem densidade teórica, nem embasamento empírico suficiente. Tudo isso convergia na necessidade de remodelar o estudo de Kracauer, com vistas a adequá-lo ao padrão do instituto e somente então talvez publicá-lo na revista. Donde o trabalho de "edição" empreendido por Adorno, que Kracauer só poderia repudiar e de fato repudiou com veemência: "Na verdade você não editou o meu manuscrito, mas sim utilizou-o como base para um trabalho próprio". Em resumo, o texto de Kracauer "tornava compreensível a origem do facismo, expunha sua relação complexa com o capitalismo e reconstruía o desenvolvimento da propaganda totalitária", mas tudo isso desaparecia da versão editada por Adorno (carta de 20 ago. 193833 [33 ] Ibidem. ). Diante da posição peremptória de Kracauer, Adorno viu-se forçado, na resposta, a admitir que havia "tentado reformular o texto no sentido da posição teórica decidida que está por detrás da revista" (carta de 12 set. 1938)34 [34 ] Ver neste número de Novos Estudos Cebrap, p. 38. Cf. as cartas de Adorno a Benjamin de 4 maio 1938 e 8 jun. 1938, em Adorno e Benjamin, Briefwechsel 1928 - 1940, op. cit. .

As duas grandes divergências de 1937 (Offenbach) e 1938 (propaganda facista) coroaram quase vinte anos de gradual afastamento e tornaram impossível qualquer nova tentativa de trabalho comum ou próximo. A partir de então, a relação de Friedel e Teddie seria a de uma amizade fria e distante, respeitosa pelo calor que a animara no passado (o que explica também as cartas tocantes dos anos de 1940, 1950 e 1960, cujo ponto de fuga é um passado mais feliz). Nos anos que vão de 1938 a 1941, as cartas concentram-se em um grande esforço: a emigração do casal Siegfried e Elisabeth Kracauer para os Estados Unidos.

20

Em 1941 o casal Kracauer aportou em Nova York (carta de 28 mar. 1941); no mesmo ano, o casal Adorno abandonava aquela cidade rumo à costa oeste, onde passaria a viver na vizinhança do casal Horkheimer, até o momento do retorno à Alemanha. Kracauer e sua mulher permaneceram nos Estados Unidos, onde ele veio a falecer em 1966, ela em 1971.

Em 1964, Adorno escreveu seu texto sobre Kracauer e enviou-o a Horkheimer, acompanhado do seguinte comentário:

Max, o pequeno trabalho talvez lhe interesse um bocadinho. É uma conferência radiofônica que escrevi por ocasião dos 75 anos de Kracauer, mas não mencionei isso a pedido dele. De todo modo, você é a única pessoa que pode compreendê-lo. Ele é propositalmente alusivo: refere-se, no que diz de negativo com relação a K . , indiretamente, de modo positivo, a nós, você e eu. Talvez lhe agrade. A Kracauer ele parece apenas ter causado desgosto [...]

35 [35 ] Carta de Adorno a Horkheimer de 30 nov. 1964, em Adorno, T. W. e Horkheimer, M. Briefwechsel 1927-1969. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2006, vol. 4, pp. 730-731. O desgosto de Friedel aparece nas cartas trocadas entre Adorno e Kracauer de 15 out. 1964 a 21 nov. 1964.

.

Quando Kracauer morreu, Adorno escreveu um necrológio36 [36 ] Cf. Adorno, Gesammelte Schriften, op. cit. , vol. 20. 1, pp. 194-196. e enviou a Horkheimer as seguintes palavras:

Você deve ter lido meu curto necrológio de Kracauer. Estou muito tocado, simplesmente porque muito de minha pré-história, daquele tempo em que você e eu ainda não nos conhecíamos, está ligado a ele. [...] Quem sabe se eu teria me dedicado à filosofia, se não fosse ele - embora isso fosse dificilmente evitável. De toda maneira, agora que ele está morto aquilo que devo a ele ganha proeminência, em comparação com a aversão posterior, que de resto começou cedo

37 [37 ] Carta de Adorno a Horkheimer de 5 dez. 1966, em Adorno e Horkheimer, Briefwechsel 1927-1969, op. cit. , vol. 4, pp. 781 - 782.

.

Alguns meses depois, Adorno deu novamente vazão ao mesmo sentimento que o perturbava:

Envio-lhe [...] a fotocópia de uma carta que escrevi a Kracauer há trinta anos e que constitui decerto a verdadeira cesura em nossa relação. [...] Não sei se hoje ainda poderia escrever uma carta tão rude [...]

38 [38 ] Carta de Adorno a Horkheimer de 1 set. 1967, em Adorno e Horkheimer, Briefwechsel 1927-1969, op. cit. , vol. 4, p. 818.

.

Tratava-se da carta de 1937, mencionada anteriormente, em que Adorno criticava implacavelmente o livro sobre Offenbach. Horkheimer deve ter percebido o quanto Adorno sentia-se incomodado e achou melhor, dessa vez, responder:

A carta a Kracauer é, como você diz, rude. Talvez hoje você não mais a escrevesse daquele modo. Você não seria menos decidido na crítica, apenas pessoalmente um pouco mais amigável. Não considero isso um inconveniente, pois apesar de todo o conformismo Kracauer não fazia parte, no final das contas, dos inimigos

39 [39 ] Carta de Horkheimer a Adorno de 6 set. 1967, em Adorno e Horkheimer, Briefwechsel 1927-1969, op. cit. , vol. 4, p. 819.

.

Recebido para publicação em 1 de junho de 2009 1 de junho de 2009.

LEOPOLDO WAIZBORT é professor de sociologia na USP.

  • [*] Ao longo deste texto, os trechos citados sem referência provêm de Kracauer, Siegfried. O ornamento da massa São Paulo: Cosac Naify, 2009 (indico entre parê
  • nteses a paginação), e de Adorno, Theodor W. e Kracauer, Siegfried. Briefwechsel 1923-1966 Frankfurt/M: Suhrkamp, 2008 (indico entre parê
  • nteses a data da carta). A tradução de O ornamento da massa foi cotejada e muitas vezes alterada, tomando como referência Das Ornament der Masse Frankfurt/M: Suhrkamp, 1977 [1963]
  • [1] Cf. Kracauer. Werke Frankfurt/M: Suhrkamp, 2004ss, vol. 8.
  • [2] Cf. Adorno. Gesammelte Schriften Frankfurt/M:Suhrkamp, 1970-1986, vol. 17, pp. 60-65.
  • [3] Cf. Benjamin, W. Gesammelte Schriften Frankfurt/M: Suhrkamp, 1991, vol. II. 1, p. 204.
  • [4] Carta de Kracauer a Simmel, 30 nov. 1917, em Simmel, G. Briefe 1912-1918 (Gesamtausgabe, vol. 23). Frankfurt/M: Suhrkamp, 2008, p. 882.
  • [5] Cf. Lindner, R. Die Entdeckung der Stadtkultur. Soziologie als Erfahrung der Reportage Frankfurt/M: Suhrkamp, 1990.
  • [6] A esse respeito, ver Waizbort, L. As aventuras de Georg Simmel São Paulo: Editora 34, 2000.
  • [7] Adorno. "O curioso realista: sobre Siegfried Kracauer". Novos Estudos, nº 85, 2009, p.
  • [8] Cf. Horkheimer, M. e Adorno, T. W. Dialektik der Aufklaerung. Philosophische Fragmente Frankfurt/M: S. Fischer, 1988 [1944/1947], pp. 154, 162-165.
  • [9] Ver Kracauer, Werke, op. cit. , vol. 5, no prelo (2010). Atualmente disponíveis em Kracauer, Schriften Frankfurt/M: Suhrkamp, 1990, vol. 5,
  • e Kracauer, Frankfurter Turmhaeuser e Berliner Nebeneinander Zurique: Epoca, 1997 e 1996.
  • [12] Sobre tal conjuntura, ver o trabalho já clássico de Peukert, Detlev J. Die Weimarer Republik Frankfurt/M: Suhrkamp, 1987.
  • [13] Lukács, G. Geschichte und Klassenbewusstsein. Studien ueber marxistische Dialektik Neuwied/Berlim: Luchterhand, 1970 [1923], pp. 297, 298, 273-274.
  • [14] Cf. Waizbort, A passagem do três ao um: crítica literária - sociologia - filologia São Paulo, Cosac Naify, 2007, parte 3.
  • [15] A crítica a Kracauer foi discutida com Benjamin: ver as cartas trocadas por Adorno e Benjamin entre 4 e 17 maio 1937 em Adorno e Benjamin, Briefwechsel 1928-1940 Frankfurt/M: Suhrkamp, 1994, pp. 240-252.
  • [21] Ao seu mestre Alban Berg, Adorno não deixou de relatar os percalços da relação (ver as cartas de 12 set. 1925, 15 out. 1925 e 19 ago. 1926 em Adorno, T. W. e Berg, Alban. Briefwechsel 1925-1935 Frankfurt/M: Suhrkamp, 1997).
  • [22] Sobre as leituras em comum, o início da amizade, as figurações disso na prosa de ficção de Kracauer etc. , ver Mueller - Doohm, S. Adorno. Eine Biographie Frankfurt/M: Suhrkamp, 2003, pp. 61ss.
  • [31] Refiro-me ao célebre Handwoerterbuch der Soziologie, organizado por A. Vierkandt e publicado em 1931.
  • [35] Carta de Adorno a Horkheimer de 30 nov. 1964, em Adorno, T. W. e Horkheimer, M. Briefwechsel 1927-1969 Frankfurt/M: Suhrkamp, 2006, vol. 4, pp. 730-731.
  • [*
    ] Ao longo deste texto, os trechos citados sem referência provêm de Kracauer, Siegfried.
    O ornamento da massa. São Paulo: Cosac Naify, 2009 (indico entre parê nteses a paginação), e de Adorno, Theodor W. e Kracauer, Siegfried.
    Briefwechsel 1923-1966. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2008 (indico entre parê nteses a data da carta). A tradução de
    O ornamento da massa foi cotejada e muitas vezes alterada, tomando como referência
    Das Ornament der Masse. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1977 [1963] .
  • [1
    ] Cf. Kracauer.
    Werke. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2004ss, vol. 8. Na carta de 1 out. 1950, Kracauer comenta a vontade de escrever suas memórias.
  • [2
    ] Cf. Adorno.
    Gesammelte Schriften. Frankfurt/M:Suhrkamp, 1970-1986, vol. 17, pp. 60-65.
  • [3
    ] Cf. Benjamin, W.
    Gesammelte Schriften. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1991, vol. II. 1, p. 204.
  • [4
    ] Carta de Kracauer a Simmel, 30 nov. 1917, em Simmel, G.
    Briefe 1912-1918 (Gesamtausgabe, vol. 23). Frankfurt/M: Suhrkamp, 2008, p. 882.
  • [5
    ] Cf. Lindner, R.
    Die Entdeckung der Stadtkultur. Soziologie als Erfahrung der Reportage. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1990. Kracauer discutiu em detalhe o problema da reportagem como modalidade de conhecimento (ver Kracauer,
    Werke, op. cit., vol. 1, p. 222).
  • [6
    ] A esse respeito, ver Waizbort, L.
    As aventuras de Georg Simmel. São Paulo: Editora 34, 2000.
  • [7
    ] Adorno. "O curioso realista: sobre Siegfried Kracauer".
    Novos Estudos, nº 85, 2009, p. ???.
  • [8
    ] Cf. Horkheimer, M. e Adorno, T. W.
    Dialektik der Aufklaerung. Philosophische Fragmente. Frankfurt/M: S. Fischer, 1988 [1944/1947], pp. 154, 162-165.
  • [9
    ] Ver Kracauer,
    Werke, op. cit. , vol. 5, no prelo (2010). Atualmente disponíveis em Kracauer,
    Schriften. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1990, vol. 5, e Kracauer,
    Frankfurter Turmhaeuser e
    Berliner Nebeneinander. Zurique: Epoca, 1997 e 1996. Além disso, ver os escritos sobre cinema reunidos no vol. 6 de
    Werke, op. cit.
  • [10
    ] Ver neste número de
    Novos Estudos Cebrap, p. 41.
  • [11
    ] Em carta de 29 maio 1931, Adorno comunica a Kracauer: "Em conjunto com Horkheimer, trabalho no esboço de uma teoria da dialética". Trata-se do primeiro anúncio do que será, anos depois, a
    Dialética do iluminismo. No plano da biografia dos dois missivistas, esse anúncio é um marco na passagem definitiva de Adorno da esfera de proximidade de Kracauer para a de Horkheimer, consumando o longo processo de distanciamento. A outra face dessa mesma afirmação pode ser lida na carta de 12 jan. 1933, na qual Adorno comunica que seu livro sobre Kierkegaard será dedicado a Kracauer "em testemunho de nosso trabalho comum", que tinha ficado passado. Na mesma carta, e em várias outras, Adorno manifesta o intuito de "selar a paz" entre Kracauer e o Instituto para pesquisa social, isto é, Max Horkheimer.
  • [12
    ] Sobre tal conjuntura, ver o trabalho já clássico de Peukert, Detlev J.
    Die Weimarer Republik. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1987.
  • [13
    ] Lukács, G.
    Geschichte und Klassenbewusstsein. Studien ueber marxistische Dialektik. Neuwied/Berlim: Luchterhand, 1970 [1923], pp. 297, 298, 273-274.
  • [14
    ] Cf. Waizbort,
    A passagem do três ao um: crítica literária - sociologia - filologia. São Paulo, Cosac Naify, 2007, parte 3.
  • [15
    ] A crítica a Kracauer foi discutida com Benjamin: ver as cartas trocadas por Adorno e Benjamin entre 4 e 17 maio 1937 em Adorno e Benjamin,
    Briefwechsel 1928-1940. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1994, pp. 240-252. Além disso, Adorno publicou uma resenha do
    Offenbach na
    Zeitschrift fuer Sozialforschung, porém mais comedida: "seu método não é a análise crítica, antes a construção de uma harmonia preestabelecida entre a sociedade e o autor" (cf. Adorno,
    Gesammelte Schriften, op. cit. , vol. 19, pp. 363 - 365).
  • [16
    ] Lembro, a título apenas de exemplo, os trabalhos de Schuecking, Benjamin, Auerbach etc.
  • [17
    ] Esse é, creio, um tipo de análise fecundo para se compreender o que um autor como Paulo Coelho faz e significa.
  • [18
    ] Sobre tática e marxismo, há uma boa discussão por ocasião da aula de Adorno no seu processo de habilitação na Universidade de Frankfurt, em 1931 (ver as cartas de 7 e 8 jun. 1931).
  • [19
    ] Kracauer,
    Werke, op. cit. , vol. 1, p. 107. Em
    O ornamento da massa, lemos: "Sem ser obra de arte, o romance policial mostra à sociedade civilizada sua face verdadeira de modo mais puro do que ela usualmente está propensa a ver" (p. 192).
  • [20
    ]Mulder - Bach, I. "Nachbemerkung und editorische Notiz". In: Kracauer,
    Werke, op. cit. , vol. 1, p. 380.
  • [21
    ] Ao seu mestre Alban Berg, Adorno não deixou de relatar os percalços da relação (ver as cartas de 12 set. 1925, 15 out. 1925 e 19 ago. 1926 em Adorno, T. W. e Berg, Alban.
    Briefwechsel 1925-1935. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1997). Cf. carta de 10 abr. 1925 neste número de
    Novos Estudos Cebrap, p. 25.
  • [22
    ] Sobre as leituras em comum, o início da amizade, as figurações disso na prosa de ficção de Kracauer etc. , ver Mueller - Doohm, S.
    Adorno. Eine Biographie. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2003, pp. 61ss.
  • [23
    ] O texto somente foi publicado em 1990: Kracauer,
    Schriften, op. cit. , vol. 5. 3, pp. 263-267.
  • [24
    ] Do conjunto de 24 ensaios reunidos em
    O ornamento da massa, apenas três não foram publicados no
    Frankfurter Zeitung, jornal no qual Kracauer trabalhou de 1921 a 1933. O ensaio sobre "O saguão do hotel", parte do livro então inédito sobre o romance policial, foi considerado por Kracauer - com razão - difícil demais para ser publicado no jornal. Os outros dois, sobre Simmel e sobre o grupo como portador, são extensos demais para o jornal, além de desenvolverem uma argumentação mais detalhada, e foram ambos publicados em prestigiosas revistas científicas.
  • [25
    ] Em carta de 22 jul. 1963, após receber exemplar do recém-lançado
    O ornamento da massa, com a dedicatória impressa, e reler o ensaio, Teddie escreveu a Friedel: "o trabalho contra Buber me agradou especialmente, ainda hoje tão atual como naquela época". Naquela época, Benji escreveu entusiasmado a Kracauer, comentando o quanto se identificava com o texto (ver Benjamin,
    Gesammelte Briefe, op. cit. , vol. 3, pp. 143 - 144).
  • [26
    ] A simpatia vibrou com intensidades variadas ao longo dos anos, mas até os anos do exílio foi pouco perturbada. Ver a correspondência ao longo dos anos em Benjamin,
    Gesammelte Briefe, op. cit.
  • [27
    ] "Em contraposição a todas estas escolas antipsicológicas [o neokantismo de Cohen, a fenomenologia de Husserl] está a doutrina de Georg Simmel (1858-1918). Sua dialética característica está a serviço da Lebensphilosophie e tende a um impressionismo psicológico que, hostil ao sistema, se volta para o conhecimento da essência de fenômenos e tendências espirituais singulares. [...] A filosofia de Georg Simmel já indica uma transição de uma filosofia rigorosamente de cátedra para uma filosofia determinada de modo ensaístico ou poético" (Benjamin,
    Gesammelte Schriften, op. cit. , vol. II. 2, p. 810).
  • [28
    ] A crítica cinematográfica, que ultrapassa oitocentos títulos, está reunida emKracauer,
    Werke, op. cit. , vol. 6, além de suas duas conhecidas monografias sobre teoria do cinema e sobre o cinema alemão do entreguerras.
  • [29
    ] Ver a discussão do ensaio de Adorno sobre o jazz em carta de 24 out. 1936.
  • [30
    ] "Mas Georg Simmel [...] foi então o primeiro [...] a realizar aquela virada da filosofia rumo aos objetos concretos, que permanece um cânone para aqueles que não se contentam com o matraquear da crítica do conhecimento ou da história do espírito" (Adorno,
    Gesammelte Schriften, op. cit. , vol. 11, p. 558).
  • [31
    ] Refiro-me ao célebre
    Handwoerterbuch der Soziologie, organizado por A. Vierkandt e publicado em 1931. Cito a reimpressão inalterada: Stuttgart: F. Enke, 1959, p. 578.
  • [32
    ] Ver neste número de
    Novos Estudos Cebrap, p. 35.
  • [33
    ] Ibidem.
  • [34
    ] Ver neste número de
    Novos Estudos Cebrap, p. 38. Cf. as cartas de Adorno a Benjamin de 4 maio 1938 e 8 jun. 1938, em Adorno e Benjamin,
    Briefwechsel 1928 - 1940, op. cit.
  • [35
    ] Carta de Adorno a Horkheimer de 30 nov. 1964, em Adorno, T. W. e Horkheimer, M.
    Briefwechsel 1927-1969. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2006, vol. 4, pp. 730-731. O desgosto de Friedel aparece nas cartas trocadas entre Adorno e Kracauer de 15 out. 1964 a 21 nov. 1964.
  • [36
    ] Cf. Adorno,
    Gesammelte Schriften, op. cit. , vol. 20. 1, pp. 194-196.
  • [37
    ] Carta de Adorno a Horkheimer de 5 dez. 1966, em Adorno e Horkheimer,
    Briefwechsel 1927-1969, op. cit. , vol. 4, pp. 781 - 782.
  • [38
    ] Carta de Adorno a Horkheimer de 1 set. 1967, em Adorno e Horkheimer,
    Briefwechsel 1927-1969, op. cit. , vol. 4, p. 818.
  • [39
    ] Carta de Horkheimer a Adorno de 6 set. 1967, em Adorno e Horkheimer,
    Briefwechsel 1927-1969, op. cit. , vol. 4, p. 819.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Jun 2010
    • Data do Fascículo
      2009

    Histórico

    • Recebido
      01 Jun 2009
    • Aceito
      01 Jun 2009
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